Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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segunda-feira, 2 de junho de 2025
Guiné 61/74 - P26874: Efemérides (456): Comemoração do 99.º aniversário do Núcleo de Torres Vedras da Liga dos Combatentes e homenagem aos antigos combatentes do Concelho (João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil)
1. Mensagem do nosso camarada João Rodrigues Lobo, ex-Alf Mil, CMDT do Pelotão de Transportes Especiais / BENG 447 (Bissau, Brá, 1968/71) com data de 1 de Junho de 2025:
Boa tarde,
Esta manhã, ocasionalmente, assisti à cerimónia do Núcleo da Liga dos Combatentes de Torres Vedras, que comemorou 99 anos, e prestou homenagem aos mortos deste concelho, condecorando também alguns ex-combatentes.
Este Núcleo (do qual não sou associado) ao que tenho acompanhado pelo jornal Badaladas, tem várias actividades e convívios.
Aproveitei para uma pequena reportagem fotográfica que, julgo, terá interesse para publicar no Blog, presumindo que esta intromissão será bem recebida por este Núcleo.
Grande abraço
João Rodrigues Lobo
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Nota do editor
Último post da série de 9 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26784: Efemérides (455): Cerimónia da inauguração do Monumento Concelhio aos Combatentes do Ultramar, do Dia do Combatente e do 16.º Aniversário do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, levadas a efeito no passado dia 3 de Maio de 2025 (Carlos Vinhal)
Guiné 61/74 - P26873: Questões politicamente (in)corretas (59): Porque é que os "turras" jogavam xadrez e os "tugas" não ? (José Belo, Suécia)
Fonte: Casa Comum | Instituição:Fundação Mário Soares e Maria Barroso | Pasta: 05222.000.141 | Título: Júlio de Carvalho, Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes | Assunto: Os combatentes cabo-verdianos Júlio de Carvalho [Julinho], Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes [da Silva] jogando xadrez numa base do PAIGC | Data: 1963 - 1973 | Observações: Valdemar Lopes da Silva foi professor no Centro de Instrução Política e Militar (CIPM) do PAIGC, a partir de 1970 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Fotografias
Citação:
(1963-1973), "Júlio de Carvalho, Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43496 (2025-5-31)
(Reproduzido com a devida vénia...)
1. Comentário do José Belo, o (e)terno régulo da Tabanca da Lapónia de Um Homem Só (oficial do exército dos "tugas", e jurista na Suécia, reformado):
Data - domingo, 1/06/ 2025, 23:02
Caro Luis
A caixa da fotografia é de facto uma caixa de xadrez de marca muito conhecida na Suécia.
Eram muitos, e diversos, os fornecimentos efectuados pela Suécia ao PAIGC.
Curiosamente, em talvez milhares de fotografias dos Camaradas da Guiné por nós observadas, não existe uma única com um tabuleiro de xadrez.
Matraquilhos, póquer de dados, damas, lerpa, e talvez uma pseudossofisticada partida de bridge no Clube Milar de Santa Luzia em Bissau ou … em resguardados Comandos de Batalhão.
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(*) Vd. poste de 1 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26871: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VI: o pesadelo do tenente-coronel: as batatas e o frango congelado!...
(**) Último poste da série > 8 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24539: Questões politicamente (in)correctas (58): Ainda a própósito do eventual recurso ao "trabalho forçado" (teoricamente abolido em 1961, por Adriano Moreira) (Cherno Baldé)
domingo, 1 de junho de 2025
Guiné 61/74 - P26872: Convívios (1036): Fotorreportagem do 61º almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, Algés, 29 de maio de 2025 (Manuel Resende / Luís Graça ) - Parte III
Foto nº 19A (a primeira de cima): o cor Raul Folques tem já c. 30 referências no nosso blogue, mas ainda não se senta à sombra do nosso poilão; o mesmo se passa com o ten gen pilav José Nico, com 32 referências; o Raul Folques é um assíduo frequentador da Tabanca da Linha; sem um nem outro, a história da nossa guerra ficará incompleta...
Foto nº 20> Magnífica Tabanca da Linha > 61º almoço-convívio > Algés > Restaurante Caravela De Ouro > 29 de maio de 2025 > António Brito Ribeiro (São João Estoril, Cascais)
Foto nº 22> Magnífica Tabanca da Linha > 61º almoço-convívio > Algés > Restaurante Caravela De Ouro > 29 de maio de 2025 > João Pereira da Costa (Lisboa) e António Alves (Lisboa),. dois bons camaradas que eu também gostaria de ver sentados à sombra do nosso poilão...
Foto nº 23> Magnífica Tabanca da Linha > 61º almoço-convívio > Algés > Restaurante Caravela De Ouro > 29 de maio de 2025 > O António Graça de Abreu (à direita), um dos veteranos do nosso blogue (para o qual entrou em 05/02/07); foi também cofundador, em 2010, da Tabanca da Linha)... A seru lado, um convidado, GNR, que veio com o José Augusto Batista (furriel da minha Companhia, a CCAÇ 2585, que se vê em outra foto).
Estes dois camaradas que nunca se tinham encontrado na vida, conheceram-se no Hotel Riviera ( Junqueiro. Carcavelos, Cascais), por ocasião do 32º almoço-convívio do Magnífica Tabanca da Linha, em 20 de julho de 2017: tinham um ponto em comum, chamado Buruntuma, lá no cu de Judas" da Guiné... e ficaram todo o almoço a conversar animadamente à volta de um álbum de fotografias... Domingos Pardal, conhecido empresário de mármores em Pero Pinheiro, e o então "periquito" Jorge Ferreira, o fotógrafo de Buruntuma... que ficou encantado com a partilha de informação e conhecimento e com o ambiente da Tabanca da Linha (de tal maneira ficou fã, que raramente falha ao nossos almoços- convívios...).
O Pardal esteve em Cufar (que foi estrear) e depois em Buruntuma (aqui esteve 11 meses)... Em Cufar foi contemporâneo do meu primo José António Canoa Nogueira (1942-1965) (sold do Pel Mort 942, adido ao BCAÇ 619, morto em combate).
Na altura o Domingos Pardal aceitou o meu convite para integrar a Tabanca Grande; foi sold cond auto da CCAV 703 / BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66). A esta subunidade pertenceu também o nosso grão-tabanqueiro Manuel Luís Lomba. Por qualquer razão, nunca chegou a mandar a foto da praxe (a do "antigamente")...Em suma, estás em falta, Domingos Pardal!)
Foto nº 26> Magnífica Tabanca da Linha > 61º almoço-convívio > Algés > Restaurante Caravela De Ouro > 29 de maio de 2025 > Carlos Silvério (Ribamar. Lourinhã), ao centro; Joaquim Grilo Almeida (Lisboa), à direita, e o António Andrade (Oeiras) à esquerda (Estes dois últimos ainda não são membros da Tabanca Grande, distração deles ou minha).
Foto nº 27> Magnífica Tabanca da Linha > 61º almoço-convívio > Algés > Restaurante Caravela De Ouro > 29 de maio de 2025 > O Manuel Gonçalves, a esposa, Maria de Fátima, "Tucha" (Carcavelos, Cascais), e a Alice Carneiro, esposa do nosso editor LG (Lourinhã).
Foto nº 28> Magnífica Tabanca da Linha > 61º almoço-convívio > Algés > Restaurante Caravela De Ouro > 29 de maio de 2025 > Hélder Sousa (Setúbal) e Rogé Guerreiro (Cascais) (O Rogé Henriques Guerreiro foi 1.º Cabo Op Cripto, CCAÇ 4743, Gadamael e Tite, 1972/74; é m,membro da nossa Tabanca Grande desde 6 de maio de 2012).
1. Continuação da fotorreportagem do último almoço-convívio da Tabanca da Linha, Algés, 29 de maio de 2025, em que participaram 83 "magníficos" dos 87 inscritos. Fotos do Manuel Resende; legendagem: LG.
Último poste da série > 31 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26868: Convívios (1035): Fotorreportagem do 61º almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, Algés, 29 de maio de 2025 (Manuel Resende / Luís Graça ) - Parte II
Guiné 61/74 - P26871: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VI: o pesadelo do tenente-coronel: as batatas e o frango congelado!...
1. Continuação de "Recordações de um Furriel Miliciano, Guiné 1973/74":
(i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde;
(ii) foi fur mil amanuense, ChefInt, QG/CTIG, Bissau, 1973/74;
(iii) ficou em Bissau até 1975;
(iv) radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia;
(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;
(vi) tem 2 dezenas e meia de referências no nosso blogue.(*)
Depois da minha chegada, tive de me adaptar ao calor intenso, descobri a cidade Bissau, conheci muita gente.
Hoje descrevo: o trabalho, a rotina no dia-a-dia, o ambiente de guerra que se vivia na calma aparente de Bissau
O tempo passa e paira sobre nós o ultimato do tenente-coronel, para esvaziar as prateleiras dos mais de mil “autos de víveres e artigos de cantina” que estavam ali numa estante. Por isso, tenho de aprender depressa e logo iniciar o trabalho de minutar a análise e propostas de decisão.
O alferes vai-me ajudando a escrever a respectiva “informação” para despacho superior. O colega furriel veterano também me ajuda, dá-me uns toques e assim vou aprendendo a linguagem jurídica; mas o que considero um trabalho de aprendizagem, foi logo submetido ao chefe, sem que eu ainda tivesse a necessária experiência. Não tarda, o tenente-coronel chama-me ao gabinete para me admoestar: “Então, nosso furriel? Como é que é?” E blá blá blá… etc.
O alferes lá me desculpava, assumia os erros… e assim fui apanhando traquejo e experiência.
Neste ambiente de guerra e mortes, a tropa no mato, tem quase tudo do bom, para manter o moral e boa disposição! As cantinas disponibilizam boas bebidas, desde whiskies (de qualidade) a licores Glayva, Tríplice, aguardente velha, etc., vinhos engarrafados (do melhor), muita cerveja, os mais diversos artigos de toilete, etc. etc. E são enviados os mais variados produtos para a confecção da alimentação diária.
A quebra, destruição deste «stock» devido à manipulação aquando do embarque e descarga e transporte, bombardeamentos, etc. dá origem aos autos que são enviados para apreciação na «Secção de Autos» onde trabalho…
A CHEFINT resolve ainda autos de fardamento, controla os consumos de víveres, fiscaliza a contabilidade das unidades, enfim tudo e mais alguma coisa. Manuel Amante, um velho amigo e colega do liceu que foi colocado no final de 1973 na Chefia da Intendência, explica:
“Nós fornecíamos material e equipamentos e tudo… aliás a Manutenção Militar estava sob a coordenação ou orientação da… Chefint – Chefia da Intendência) e eu fui colocado na secção que… vá lá, digamos, a «secção funerária», onde nós é que geríamos os caixões, portanto, eu fui chefe dessa pequena secção onde nós geríamos os caixões de chumbo, de madeira, de zinco, consoante a naturalidade de quem tivesse morrido, assim se distribuía.
Portanto, eu, mais ou menos nessa altura, eu tinha uma ideia de como é que eram as operações. Apesar dos quartéis terem um stock de caixões, quando faltavam, eles requeriam e nós dispensávamos isso."
Com o passar dos dias sinto-me integrado na secção de autos de víveres, onde o ambiente é de conversa e conhecimento mútuo. Os três civis, colegas de serviço são: o Demba Baldé, que tem uma cara horrível, toda desfeita por queimaduras…, é ele quem trata do arquivo; há um vivaço chamado, Issa Baldé que é o dactilógrafo; o Claudino, trata de expedientes administrativos, é um homem na casa dos 30 anos, de pele clara, tem um bigodaço, parece ser cabo-verdiano.
O alferes comenta a brincar:
“Olha, na Guiné são todos: Mané, Baldé, Turé… Camará, Embaló, Djaló, Dabó… Eu confundo sempre os nomes!”
Apesar de muitos terem apelidos homónimos, não são, nem familiares, nem parentes. Há mais civis nas outras secções, a maioria guineenses, mas também há descendentes de cabo-verdianos.
O Demba ao me ver sair várias vezes para ir beber e voltar todo molhado em suor – acho que sentia pena de mim – certo dia ao me ver assim, não resistiu e disse:
“Oh! Gonçalves, assim não vais poder aguentar a comissão! Tens de te adaptar ao calor! Toma lá, põe na boca, um pedacinho chega!"
Estendeu a mão com algo e diz:
"Vai ajudar-te a controlar a sede!”
Perguntei o que é isso, ele responde:
“Noz de cola! Põe isso num canto da boca!”
Desconfiado, tomei o pedacinho daquele fruto verde por fora, branco por dentro, a textura parecia a de um pedaço de tâmara meio verde, mas não meti na boca. Aceitei a oferta por cortesia. Demba também não comentou a minha atitude. Passados uns dias, vendo a minha aflição, Demba voltou a alertar-me:
“Põe o pedacinho de cola na boca e a sede vai acabar!”
Assim fiz, senti então uma sensação de frescura na boca e na cara, a saliva aumentou… Agora o meu problema é: ir frequentemente cuspir na casa de banho! Passadas umas semanas, comecei a adaptar-me ao calor intenso da Guiné, já nem utilizava a noz de cola, bebia normalmente.
Demba Baldé é muçulmano, reza todos dias às 11 da manhã e à tarde às 17 horas; ele levanta-se, vai a um canto, estende um pequeno tapete no chão e faz as suas orações.
Demba, notou o meu espanto por ele estar muitas vezes a rezar com um rosário nas mãos enquanto trabalhava; por isso ele tomou a iniciativa de me explicar os preceitos da fé muçulmana, um mundo que eu desconhecia: no Ramadão, tinham de rezar todo o dia e fazer jejum, só comiam à noite; quem pode frequentar a mesquita; peregrinação a Meca, quem lá foi, passa a ter título de «El Haaj», ou “Aladje”; e isso e aquilo… etc. e tal.
Curioso, perguntei apontando, o que era aquele rosário que ele tinha nas mãos? Fez-se de desentendido, não insisti. Prosseguiu explicando que nomes da Bíblia que se diz, serem cristãos, vêm do árabe: Abraão é Ibrahim, José vem de Youssef, etc.
Quanto ao rosário, a explicação veio pelo Issa Baldé: chama-se “tashby”. O Issa diz que também é «Fula», explica que o seu nome significa «Jesus» em árabe, aliás fez questão de sublinhar, «Issa» é que é o verdadeiro nome de Jesus!
Mas, este nosso dactilógrafo, embora muçulmano, não era praticante, fumava muito e dava-se muito bem com o Claudino, outro grande fumador, gozava com o Demba, quando ele me contava estas estórias de religião ou da etnia «Fula».
Demba também me explicou que é da etnia «Fula» com orgulho diz:
“Nós somos diferentes das outras etnias da Guiné porque sabemos ler e escrever, temos o nosso próprio alfabeto!"
O ex-militar Manuel Dinis, comentou anos mais tarde:
"Os fulas, ardentes propagandistas do islão, propagavam a escolaridade em árabe. A população manifestava-se algo colaborante, mas assumia uma posição neutra em relação ao IN (inimigo) de maneira a, agradando a uns, não desagradar aos outros.”
Comecei então a ter uma outra noção da Guiné e da sua diversidade. Ao mesmo tempo tentava descobrir alguma ligação minha, com esta terra e com a sua gente. Minha mãe, dizia sempre que a avó dela, era da Guiné, que era filha de um régulo «Fula»! Ou era «Papel»?
Bem, não importa… Desde pequeno que ouvia contar que a minha bisavó tinha sido levada da Guiné para Cabo Verde pelo meu bisavô, um «badio» branco, filho de metropolitano, natural de Vilar de Mouros, norte de Portugal, que se casou com uma branca da Ilha do Fogo (ela foi sepultada no cemitério da Praia em 1700 e tal… e lá estão outros membros da família “Abreu Rodrigues Fernandes”),
Mamã contou-me, naquela época, foi um escândalo na cidade da Praia, quando o director da alfândega (o meu bisavô), branco loiro, olhos azuis, apareceu amantizado com uma preta da Guiné, onde esteve destacado em serviço.
Mamã dizia que ela cozinhava aquelas comidas da Guiné e contava aquelas «estórias» fantásticas do mato e animais selvagens… Explicou: foi vovô (meu bisavô) quem a ensinou a ler e escrever, ter boas maneiras, comprava-lhe roupas caras! Viveram felizes até quando já velhinhos a morte os separou.
Mas, nunca contei esta minha história ao pessoal da repartição de autos, nem a qualquer outra pessoa em Bissau! Conto hoje, pela primeira com a devida vénia e orgulho…
Enquanto se trabalhava no duro para limpar as prateleiras, daqueles mais de mil autos e outras tantas dezenas que iam entrando todos os meses, falávamos uns com os outros e havia muita camaradagem, mas com o devido respeito pela hierarquia e funções de cada um.
O alferes era quem brincava muito e gozava com as coisas mais simples, era uma forma de se manter moral alto e passarmos o tempo menos angustiados. Porque, não podíamos fugir dos acontecimentos do dia-a-dia, sempre sangrentos, que nos chegavam, ora sob a forma de «relatos» comentados à boca fechada, ou nos relatórios que acompanhavam alguns autos, como justificativa de ataques e flagelações…
Havia também informações que chegavam através da ERG (Emissor Regional da Guiné) nos programas «Guiné Melhor» entre as 19 e 20 horas. Em crioulo, português e línguas nativas, apresentava-se a visão oficial dos acontecimentos no teatro de operações (TO). Muitas vezes havia relatos de militares ou de outras pessoas sobre os ataques a colunas de transporte, emboscadas, etc. seguidos de comentários por gente da emissora.
De passagem por Bissau, vinham do mato muitos militares, uns a caminho de férias na metrópole, outros por evacuação médica, outros simplesmente enviados, para uns dias de folga para descansar, porque já estavam «marados» e tinham comportamentos estranhos…
Toda esta malta trazia novidades, tinha «estórias» para contar, que esclareciam muitos boatos que circulavam… No fundo não eram boatos, mas sim notícias truncadas ou distorcidas de acontecimentos reais. A malta da companhia de transportes estava muito perto de nós, num quartel ao lado do QG. Quando voltavam das missões de reabastecimento contavam as ocorrências.
Recorde-se, Bissau está cercada por um campo de minas, por arame farpado e pela guerra! Não se pode ir a nenhum lugar no interior porque é perigoso! Nhacra, uma localidade muito próxima, é atacada com uma certa regularidade.
Eu consegui ir uma vez a um pouco mais perto, a Safim… foi em maio de 1973, fui comer umas ostras frescas, mas era perigoso. Havia lá um restaurante, fui logo apresentado ao dono e à esposa, ambos com um excesso de peso que salta à vista, mas são muito simpáticos, sabem receber os fregueses. Decorreu, então, um agradável petiscar de ostras, claro, muita conversa, nem me passou pela cabeça a guerra, ou qualquer perigo, que estava ali perto.
A circulação pelo território da Guiné nesta altura só é feita através de colunas militares e pelas LDG (as lanchas militares de desembarque grandes) também usadas nas operações de reabastecimento; os barcos civis muitas vezes são escoltados. Os meios aéreos destinam-se às operações militares, algumas vezes fazem operações urgentes de reabastecimento... lançamentos de víveres em paraquedas, caso do frango congelado e rações de combate.
Nos relatórios «confidenciais» que acompanhavam os autos e passavam pelas minhas mãos, vinham muitas vezes descrições dos ataques e a lista dos danos causados, claro, a mim só interessava a lista dos artigos de cantina destruídos: tantas centenas/caixas de garrafas de cerveja partidas, tantos disto e daquilo… destruído, molhado, etc.
Impressionava-me a menção final da quantidade de munições utilizadas na resposta ao IN: disparados tantos mil cartuchos de tantos milímetros, lançadas tantas granadas, etc. etc.
Casa Comum | Instituição:Fundação Mário Soares e Maria Barroso | Pasta: 05222.000.141 | Título: Júlio de Carvalho, Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes | Assunto: Os combatentes caboverdianos Júlio de Carvalho [Julinho], Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes [da Silva] jogando xadrez numa base do PAIGC | Data: 1963 - 1973 | Observações: Valdemar Lopes da Silva foi professor no Centro de Instrução Política e Militar (CIPM) do PAIGC, a partir de 1970 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral | Tipo Documental: Fotografias
Citação:
(1963-1973), "Júlio de Carvalho, Tchifon, Cláudio Duarte e Valdemar Lopes", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43496 (2025-5-31)
(Reproduzido com a devida vénia...)
Um dia chamou-me a atenção num desses relatórios a alusão a um tal «JJ» que era descrito como um cabo-verdiano que andava por aí com um bigrupo do PAIGC cujos ataques, dizia-se, eram destemidos e implacáveis. Parecia uma desculpa para tanta destruição descrita! Outra vez, vi uma referência a um tal «Chifon» que juntamente com o «JJ» fizeram um grande ataque, houve dificuldades na resposta ao IN.
[ Nota do editor LG: Esse JJ seria o Júlio de Carvalho, "Julinho" ? Ou o Jaime Mota, morto em Canquelifá, em 7 de janeiro de 1974 ? Ou ainda o Joaquim Pedro Silva, "Baró" ?.Ou, mais provavelmente, o João José Lopes da Silva ?... Por outro lado, no Arquivo Amílcar Cabral, há uma foto, que reproduzimos acima em que aparece o "Tchifon", seguramente nome de guerra, a observar uma partida de xadrez.]
Dizia-se claramente naqueles relatórios que os cabo-verdianos e cubanos é que eram culpados ou lideravam ataques tão violentos, isso parecia uma justificação. Lia essas informações, mas nunca comentei com ninguém. Documentos classificados é ler e esquecer.
Algum tempo depois, pelos autos que íamos resolvendo daquela pilha dos mil e dos outros tantos, que iam chegando, saltava à vista: a «batata» era o grande e maior problema na logística. Devido ao clima, apodreciam toneladas de batata, que constituíam perdas enormes! A tropa gostava de batata e era reticente no consumo de feijões e massas, que requisitavam, mas iam comendo aos poucos, logo, muitas vezes, acabavam por exceder o prazo, apodreciam, constituindo mais perdas e claro, dando origem a autos…
O tenente-coronel andava preocupado, por isso me solicitou um gráfico sobre perdas de batata por meses desde o ano anterior. Para evitar o apodrecer de toneladas e toneladas de batata, até tinham sido instalados aparelhos de ar condicionado em muitos armazéns!
Depois da batata, o pesadelo do tenente-coronel era o frango congelado. É que o pessoal no mato não cumpria as regras de descongelamento estipuladas nas NEP, logo, quilos e mais quilos de frango ficavam impróprios para o consumo… O calor encarregava-se do resto… eram elaborados autos e mais autos… cuja decisão era quase sempre: a pagar pelo pessoal responsável!
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 27 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26853: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte V: aqui sinto-me em casa, encontro tias, primos, vizinhos, colegas de escola e do liceu...
(**) Vd. poste de de 31 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23935: Antologia (88): Cabo Verde: história das suas forças armadas, constituídas a partir de um núcleo de antigos combatentes do PAIGC (excertos de artigo de Pedro dos Reis Brito, "Revista Militar", n.º 2461/2462, de fev / mar 2007)
sábado, 31 de maio de 2025
Guiné 61/74 - P26870: Agenda Cultural (888): Convite para uma conversa sobre o livro "Quatro Personagens à Procura de Abril", da autoria de Luís Reis Torgal. Sessão organizada por Carlos Fiolhais no âmbito das Conversas Almedina, na Livraria Almedina Estádio Cidade de Coimbra, dia 4 de Junho de 2025, pelas 18 horas
1. Mensagem de Luís Reis Torgal, Historiador e Professor Catedrático Jubilado da Universidade de Coimbra (ex-Alf Mil TRMS do CMD AGR 2952 e COMBIS, Mansoa e Bissau, 1968/69), com data de hoje, 31 de Maio de 2025:
Caros Amigos
Apenas vos envio este convite para conhecimento e a pedido da Almedina, que me convidou para ter uma das conversas no pequeno espaço da livraria do Estádio de Coimbra.
Nem fiz escolhas entre os muitos convites que tenho num endereço de grupo. Só gosto que saibam que este livro, que é o mais pessoal que escrevi, está vivo.[1]
Infelizmente não pude aceitar os convites para o apresentar na feira de Lisboa, mas ele estará por lá.
Grande abraço
LRT
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Notas do editor
[1] - Vd. post de 1 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26639: Agenda cultural (880): Lançamento do livro "Quatro Personagens À Procura De Abril", da autoria de Luís Reis Torgal, a levar a efeito no próximo dia 8 de Abril de 2025, às 18h00, na Casa Municipal de Cultura, em Coimbra. O livro será apresentado no dia 10 de Abril, pelas 18h00, na Sede da Associação 25 de Abril
Último post da série de 30 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26865: Agenda Cultural (887): Visitas guiadas à exposição "Imaginários da Guiné-Bissau - O Espólio da Álvaro de Barros Geraldo (1955-1975)", patente de 8 de maio a 31 de agosto de 2025, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Rua da Escola Politécnica 56, Lisboa (Catarina Laranjeiro)
Guiné 61/74 - P26869: Os nossos seres, saberes e lazeres (683): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (206): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 6 (Mário Beja Santos)

Queridos amigos,
Permitam-me um desabafo de quem há duas semanas foi operado a um tendão na coifa ou manguito e anda com o braço enfraquecido, como se impõe, como diz a minha ortopedista o tempo é que é o remédio. Fiz desta viagem já um tanto gemebundo, nunca me passou pela cabeça que mesmo com aquelas massagens de alívio do Voltaren e a toma de analgésico pudesse andar por ali com tanta genica, como felizmente andei, não é por prosápia que me interrogo como andei a fazer aqueles quilómetros de bom andarilho desde a estação central ferroviária de Frankfurt até ao museu e etapas seguintes, ainda se vão seguir alguns dias em que andei sem parança. No caso do apontamento de hoje, deliciei-me com o contraste do centro histórico da velha Frankfurt visto de dia e de noite, é uma área muito dinâmica da segunda maior praça financeira da Europa (a primeira é Londres); o essencial da viagem era despedir-me de uma velha amiga que me cumulou de gentilezas, mais de um quarto de século, e que determinou ao seu herdeiro que eu seria uma das poucas pessoas a ter direito às cerimónias fúnebres; e mesmo com a coifa a dar-me dores regressei ao centro histórico de Frankfurt, também em jeito de despedida, já no comboio de regresso a Idestein dei graças por ser um velho a caminho de 80 anos que tem tido o privilégio de percorrer caminhos de um continente que cimenta os valores e princípios que o moldam, é na Europa que eu sinto a minha identidade, sem nenhum detrimento do meu amor por um certo ponto de África.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (206):
Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 6
Mário Beja Santos
Não quero esconder que saio compungido do Museu Der Städel, os alemães não brincam com os horários, falta um minuto para as 18 horas, esta imagem do vestíbulo do museu ninguém me a tira. Fiquem sabendo que descia esta bela escadaria e mergulhei de chofre na primeira mostra de imagens que vos apresentei, uma seleção de alta qualidade entre o século XIX e o modernismo europeu. Paciência, hei de voltar, haja saúde, tenho este privilégio de haver amigos fraternos que em franqueiam cama e mesa. É nisto, do hei de voltar, que me assaltou à mente aquela tirada retumbante do final da obra de José Saramago Viagem a Portugal em que ele diz que a viagem nunca acaba, os viajantes é que acabam, o que se vê dia não é o que se vê de noite, o que se vê na primavera não é o que se vê no outono, etc., etc., deu-me, o leitor que me desculpe, para pôr em sequência o que eu tinha posto na câmara ao atravessar o rio Meno, e seguidamente mostrar-vos o que deste lado do rio Meno vejo à noite, tão só para me sentir certo e seguro que todos os dias são bons para voltar, e há aquela sedução da cambiante horária que tudo molda sobre a forma das coisas.
O leitor que me perdoe a ingenuidade e a ignorância, tirar uma imagem com o vidro em frente pode ser entendido como muito artístico, aqui certamente não o é, mas temos o confronto entre a luz e a sombra.
Ao amanhecer, partimos em grupo para uma localidade perto de Frankfurt, Offenbach, é a apertadíssima moção de uma despedida, a deposição de cinzas de alguém com quem tive íntima amizade mais de um quarto de século, telefonemas a fio, convites para ir de lá para cá e de cá para lá, dei comigo a pensar que é a primeira vez que entro num cemitério alemão, gozam de uma serenidade que se aparenta com a dos britânicos, lá fui tirando imagens à sorrelfa, não queria ferir sentimentos, há preconceitos a respeitar, e não vimos propriamente para circuito turístico.
Ocorreu-me conectar estas três imagens, já lera que por razões geológicas, porventura por fenómeno que terá milhões e milhões de anos, todo este vale de Frankfurt parece a cratera de um vulcão rodeado de uma cordilheira de montanha, como é patente na terceira imagem, anteriormente mostrei uma secção do cemitério e um monumento dedicado aos mortos da guerra, o monumento, imagine-se, tem a ver com a guerra franco-prussiana de 1870.
Finda a cerimónia fúnebre, abraços repetidos e apertos de mão, olhos molhados, até à próxima, cada um partiu para o seu destino, o meu é o centro histórico de Frankfurt, vou andar à volta desse espaço que dá pelo nome de Römerberg, prende-se com uma área de grande interesse histórico para os alemães, na catedral de S. Bartolomeu os príncipes eleitores escolhiam o novo imperador, depois de investido, em festa encaminhava-se para o Römer, o edifício da Câmara Municipal e depois para o palácio imperial, todo este território conheceu ocupação romana, a era carolíngia, a alta Idade Média, aqui os nazis fizeram a queima de livros a que eram hostis, a barbaridade em fogueira. Entro agora na Igreja de Santa Catarina perto de Hauptwache, onde existiu uma estação da guarda, agora um café do século XX, como quase tudo neste espaço conheceu a reconstrução, no final da visita irei aqui tomar um café. Santa Catarina foi igreja medieval, depois transformada em igreja barroca, devorada pelo fogo em 22 de março de 1944 e reconstruída. Fui surpreendido à entrada por alguns vestígios do passado, estava na hora de servir uma refeição quente a gente sem-abrigo, pediu-se licença para ir ver peças que resistiram ao bombardeamento ou que tinham sido salvaguardadas.
Igreja de S. Nicolau, para surpresa do leitor foi ligeiramente danificada e mostra toda a beleza do gótico alemão, com as suas cores primitivas.
É uma das mais imponentes casas da velha Frankfurt, diz aqui na brochura que é conhecida pelo nome de Goldene Waage, escamadas douradas, construída entre 1618 e 1621, reconstruída no século XVIII, tem café e o museu histórico de Frankfurt.
Chama-se catedral de S. Bartolomeu, a torre sineira é impressionante, o seu vestíbulo é neogótico. Diz na brochura que não é uma catedral no sentido estrito da palavra, seria melhor designá-la por igreja episcopal. O que acontece é que a partir do século XII era aqui que decorriam as cerimónias de investidura do imperador do sacro império romano-germânico. Como em tantíssimas igrejas, neste caso vem da era merovíngia, tornou-se na capela palatina dos Carolíngios e Saxões, de facto as eleições reais começara por se realizar aqui, com o andar dos anos fez-se uma divisão para a eleição, projetou-se o transepto e a grande torre é obra já do século XV.
A catedral está recheada de belos retábulos, altares, capelas, grandes tesouros como o quadro de Anthonis van Dick, A Lamentação de Cristo, os cadeirais do coro são de uma beleza impressionante, como aqui se exemplifica com um dos retábulos.
Na linha do transepto, que era aqui que na Idade Média se realizava a procissão do novo imperador eleito, temos agora a sul um grande órgão, construído entre 1553 e 1944, é uma construção impressionante, um órgão moderno perfeitamente adaptado a uma estrutura antiga.
À saída de S. Bartolomeu encontrei esta imagem que nos mostra os efeitos do bombardeamento de 22 de março de 1944, foram vários dias de bombardeamentos que coroaram com o daquele de 22, esmagador, a catedral aguentou todos aqueles embates, tal como a igreja de S. Nicolau.
É hora de regressar a casa, o dia de amanhã será passado no Limburgo, que eu desconhecia totalmente, estou pronto a regressar pelas razões do que a seguir vos vou mostrar.
(continua)
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Nota do editor
Último post da série de 24 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26841: Os nossos seres, saberes e lazeres (682): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (205): Algures, na Renânia-Palatinado, em Idstein, perto de Frankfurt – 5 (Mário Beja Santos)