1. Mensagem de José Manuel M. Dinis (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679,
Bajocunda, 1970/71), com data de 27 de Dezembro de 2009:
Ora viva!
Imagino-te, Carlos, depois das festas natalícias, com um bocadinho de dificuldade em chegares com os dedinhos ao teclado. Uma espécie de empanturrice que tolhe os movimentos. Por isso, peço desculpa se for inoportuna a mensagem, mas, consola-te com a proximidade da noite das grandes farras, durante a qual terás oportunidade para dançar em todos os estilos, desbaratando as gorduras excessivas, apurando o bom colesterol, deixando-te revigorado de músculos para o que der e vier. Jura, pá que não vais ficar agarrado ao computador! E depois, nos primeiros dias de Janeiro, vais às análises, e tranquilizas a família com os resultados.
Nesta perspectiva, quero fazer votos de que estejamos atleticamente melhor preparados, que durante o ano que termina. E que juntes muitas alegrias.
Votos extensivos aos atabancados e curiosos.
Peço aos prezados camaradas que, se algum tiver conhecimento de um alentejano, de nome Manuel António Espadinha Ourives, meritoso Foxtrot, o favor de nos pôr em contacto.
Abraços
J.D.
Tabassi, 30NOV70JMMD
Sob o céu estrelado, imensamente abundante de astros, como não se vê em Portugal, mas inspiram saudades e desejos de viajar, adormeci sobre o luxo de um colchão insuflável, estendido sobre a erva fresca, virado para oeste, onde havia uma vala abrigo, para o que desse e viesse, a uns cinco, seis metros do arame que delimitava a aldeia na direcção poente e, logo a seguir, era a orla da mata densa, sombria, povoada por passarada e macacos, que, ao anoitecer, dormiam como gente.
Devia estar em sono profundo. Talvez sonhasse, porque era bom sonhar com alternativas às dificuldades. Mas, como não era meu costume recordar os sonhos, não posso afirmá-lo. Se, porém, seguia Morfeu na vigilância que exercia sobre as donzelas que dormiam e sonhavam, e nessa esteira me insinuava junto delas, não tive qualquer sucesso, nem o episódio durou muito tempo, pois, repentinamente, pum, despertei com um tiro, um tiro só, a romper com o silêncio escuro do princípio da noite. Que raio de merda, afirmava interrogativamente, enquanto me dirigia para o lado do disparo, do lado norte da aldeia.
Quando me aproximei do primeiro grupo daquele lado, logo o Virgílio Sousa se me dirigiu, num misto de nervoso e arrependido por ter disparado:
- Meu furriel, dizia incomodado, há ali turras a instalarem-se, eu estava de vigilância e ouvi muito bem os movimentos deles e galhos a quebrar.
Por mim não pressentia nada, e o silêncio era total. Respondi que seriam macacos num qualquer movimento. O Virgílio retorquia que não. Era dos melhores soldados e eu apreciava-o bastante. Dei-lhe a reprimenda pelo disparo infeliz, fiz-lhe ver que estávamos ali à conversa e não havia sinais do inimigo, o que contrariava a impressão dele, mas se viessem para atacar-nos, o tiro e a nossa conversa já teriam dado uma direcção, e já teríamos sido alvejados. Com ele estavam ainda o Orlando, o Pestana e o Pauleiro. Uma boa equipa. Estes últimos quase não falaram, mas pareciam alinhar com os argumentos do Virgílio. Uns minutos depois regressei ao colchão. Deixei a arma junto ao morteirete. O morteiro 60 naquela noite, ficava por minha conta, enquanto designara o Rodrigues para outra equipa, dada a falta de pessoal. Comigo ficavam também o Transmissões, o Enfermeiro e o Virgílio Fernandes. Voltei a adormecer, e profundamente.
Pum-pum-pum, tará-tá-tá, tará-tá-tá. O barulho era a sério. De supetão, abri os olhos, ergui-me, e corri. Na surpresa, ainda me agachei à aproximação de um
rocket que soprava durante a passagem, e deixava um rasto que lhe dava identificação. Corri quatro ou cinco passadas, e bati de caras numa árvore. Merda, era no sentido contrário. Identifiquei assim a minha posição no terreno. Corri, então, em direcção à valeta, onde estavam os meus parceiros, já aos tiros para a periferia. A arma estava num extremo, na direcção norte. Disse ao Virgílio para ter atenção ao lado da bolanha, não fossem os gajos desencadear a norte e penetrar pelo sul.
Tabassi tinha defesas naturais: a norte e oeste, a floresta densa que se aproximava do arame, a sul, a bolanha e o cemitério conferiam-nos alguma segurança e desprezávamos a defesa por ali, no entanto, no momento, parecia-me um lado vulnerável. Em princípio, só se afigurava possível atacar a aldeia, a partir da direcção leste-oeste, a de mais fácil instalação para atacar, já que o coberto florestal não era tão denso, e a estrada de Bajocunda para Pirada seria ideal para colocar morteiros.
Afinal, disparavam
rockets junto do arame.
Respirava-se um ar aquecido, uma mistura de terra e pólvora que me deixava apreensivo. À minha frente a visibilidade era boa. Peguei na G3 e reparei que no ângulo extremo do arame, onde se encontravam os linhas norte e oeste, havia uma saída de RPG. Dirigi para ali meia dúzia de tiros, não sei se demasiado alto, se demasiado baixo. As saídas continuavam a acontecer. A distância seria de uns quarenta metros. Daquele extremo para sul, junto do arame, não vi qualquer sinal de ataque. Mas do lado norte, na direcção para a estrada, mesmo sem visibilidade directa por interposição da tabanca, dava para ver e ouvir distintamente os reflexos e explosões das saídas e o rasto dos
rockets, enquanto as armas ligeiras só causavam perturbação. Dei ao Transmissões essa indicação para quando se iniciasse o fogo de artilharia. Voltei ao meu lugar, e decidi-me pelo morteiro. Introduzi a mão, e senti o tubo limpo. Acariciei-o com a esperança de uma boa parceria. Havia ali um cunhete de granadas e estava a céu aberto, numa zona desmatada. Peguei numa granada, retirei-lhe as cargas propulsoras, porque a distância para o alvo era bastante escassa. Com a mão esquerda empinei o tubo, dei-lhe um ângulo de quase noventa graus, e direcionei-o. Pensei com os meus botões se a granada não iria rebentar atrás, pois já punha em dúvida se não excedera no ângulo. Porra, ajusta ligeiramente e vai à experiência, disse para mim. A granada voou e caíu ali perto, nitidamente perto, provocando uma explosão bem localizada. Fantástico, mais duas ou três do mesmo género, a ver, pensei com ar avalizador. Seguiram-se uns bons tiros e a posição inimiga perdeu actividade.
- Cabrões de merda, estão a querer fintar-me, e reagi, enviando mais fruta.
O ataque continuava de outras posições, num carnaval de metralha e rebentamentos. Entretanto, o Virgílio de Sousa viera anunciar-me que o Orlando e o Pestana estavam atingidos e inoperacionais. Perguntei-lhe qual era a situação e respondeu que o Pauleiro ficara a aguentar. Mandei-o regressar rapidamente e que poupasse munições. Disse ao Transmissões que comunicasse já termos dois feridos graves. O Enfermeiro, um piriquito deslocado de uma Companhia de Pirada, disse-me que ia para para junto dos feridos, mas ripostei-lhe para aguentar, que preferia um Enfermeiro vivo, a um gajo morto. A Artilharia fizera-se ouvir. Dirigi-me ao Rádio para chamar a atenção que visavam muito longe, e o ataque prosseguia, para esperarem mais um bocado e encurtarem a alça, tudo em português decentíssimo que não posso aqui reproduzir. Quando dei conta, o Enfermeiro desaparecera, tinha ido prestar os primeiros socorros e, felizmente, em boa hora o decidiu.
Voltei ao morteiro, agora para fazer tiros para a floresta ao longo do arame onde o IN se instalara. A coisa complicava-se por falta de visibilidade, mas tinha que ser, para abater ou provocar a debandada. Porra, acabaram-se as granadas. Mas junto do Viçoso, no lado oposto, junto da entrada, havia outro cunhete. Fui em correria. Quando regressava ao morteiro, o ataque tinha terminado. Mais umas palavrinhas para a Artilharia. Larguei o rádio, e avisei aqules dois que aguentassem ali, e o Virgílio que estivesse atento ao arame. Um tiro seria um sinal de ataque com certeza.
Fui à posição onde se registaram os feridos. Já ali estavam alguns elementos da posição mais próxima. Depressa reorganizei a defesa, deixei que três ou quatro providenciassem ao carregamento dos feridos para o interior da aldeia. Foram para a casa do chefe da tabanca. Havia que designar dois outros elementos para substituição. Depois dei a volta à aldeia para ver o pessoal. Estavam bem dispostos e ainda tinham bastantes munições. Até o piriquito alentejano, o Espadinha Ourives, demonstrava bom ar e confiança. O Antão Mendes veio ter comigo, com a cremalheira dental aberta, em sorriso largo e malandro, a contar que os gajos que estavam mesmo à frente dele, levaram com uma quantidade de dilagramas que se lixaram. Perguntei-lhe se tinha retirado as cavilhas às granadas, e respondeu que sim, pois claro.
- Grande coisa que fizeste, hoje era para os corrermos à pedrada, disse, afastando-me.
- O furriel está maluco, ouvio-o dizer, e devia continuar a descrever as cenas para quem queria mais informações.
Finalmente fui saber dos feridos. Fiquei arrepiado, até à espera do pior. À luz da vela e de uma mecha, o Enfermeiro desdobrava-se em cuidados. Fez um excelente trabalho, cuidou das feridas de cada um com grande dedicação e saber, salvando-os da morte. Deu um tremendo exemplo de camaradagem, primeiro, arriscando-se na deslocação durante o foguetório; depois, no local, dispensando os primeiros socorros à luz de um isqueiro, nas barbas do inimigo que ainda atacava; finalmente, na assistência nocturna até à evacuação. Sem descanso, sem dar mostras de cansaço, com tremenda escassez de meios. Subitamente, senti uma tremenda pressão sanguínea, que percorria as artérias em grande velocidade e grande tensão. Foi, durante um minuto, a minha descarga nervosa.
Recebi a informação de que o 3.º Pelotão vinha a caminho com outro Enfermeiro. Desloquei-me novamente às posições do lado de Bajocunda a prevenir a chegada eminente dos camaradas, não fosse acontecer um disparate. Fui lá eu, não mandei. Depois, junto do Rádio, fui informado que, aos primeiros alvores, devia ter os feridos prontos para evacuação, mas seriam levados em viatura para Bajocunda, e dali seriam transferidos para Bissau.
À frente, o Leal comandava o 3.º Pelotão, e dava exemplo de coragem e determinação para nos socorrerem. Foi uma grande alegria. Reforçámos as posições defensivas, pois seriam ainda umas duas da manhã e considerámos a possibilidade de novo ataque.
Aos primeiros alvores, saíu uma Secção para verificar as posições inimigas, sem mexer no que fosse, enquanto eu ficava junto dos feridos a ver como seriam tratados, sem intromissões desnecessárias. Como previsto, de Bajocunda chegaram as viaturas para os transportar. Alguém chegou-se a mim, referindo a existência de mortos na mata. Já não esperei mais, e logo me dirigi para o local. Alertei para ninguém me seguir, e aos que estavam por lá, para não se movimentarem. Quando ali cheguei, no sítio onde, inicialmente, detectara as saídas de RPG, estavam cinco corpos, um ainda vivo. Lembro-me muitas vezes do que pode ter sido a sua última manifestação: tocou-me na bota e fez um olhar surpreendente, absolutamente branco, o globo ocular ter-se-ia revirado, e parecia um berlinde
leiteira. Morreu pouco depois. Pedi para me trazerem a corda e referi que não queria ali mais ninguém. Aproximavam-se civis com facas para cortar orelhas. Referi novamente que não queria ali mais ninguém, para além dos que estavam comigo, e dei ordem a dois Foxtrot para dispararem sobre os desobedientes. Quando me trouxeram a corda, mandei afastar o pessoal. Fiz um laço que coloquei num dos pés de cada um e, na posição de deitado, puxei por cinco vezes sem consequências. Nenhum dos corpos estava armadilhado. O terreno também não apresentava sinais de minas.
Durante a fuga acelerada, o IN teve a preocupação de levar o material passível de carregar. Ainda assim deixaram algum armamento. Já não corríamos qualquer perigo. Mandei vir um Unimog, e ajudei a carregar os turras, para serem enterrados em Bajocunda. Antes, alguém se me dirigiu:
- Furriel, olhe só as botas destes gajos, novinhas e em "calfe", enquanto eu ando com estas rotas e sem concerto. Posso tirar-lhe as botas?
- Claro que sim, podiam tirar as botas, os cintos, uma faca de mato, até uma pistola, que foi convenientemente guardada. Só não podiam ferir-lhes a dignidade.
Ainda recebi um cinto como recordação.
No interior do arame, perto da posição atingida pelo primeiro disparo IN, encontrei uma granada de morteiro, enfiada na terra arenosa, e que não rebentara. Provavelmente não atingiria o pessoal que já contava com dois feridos, mas foi uma grande sorte, e só eu usei o morteiro. Foi quando fiz fogo cruzado sobre umas moranças para aliviar a pressão do IN.
O comportamento do Pelotão foi de grande atitude, com reacção pronta, serena e eficaz. Sofremos duas baixas, resultantes do primeiro disparo do IN, que acertou, exactamente, numa árvore próxima da posição ocupada pelos Foxtrot, e estilhaçou em redor, atingindo aqueles dois com gravidade. O Pestana foi evacuado para Lisboa, enquanto o Orlando, um mês depois, apesar das marcas e de alguns estilhaços impregnados no corpo, pediu para regressar ao mato e ao Pelotão, continuando a usar o lança-granadas como arma. Guindou-se, dessa maneira, a um nível heróico, desprezando os serviços auxiliares, em favor da família em que se tornara o Foxtrot, contribuindo para a coesão e impondo-se à admiração dos restantes. Aguentou até ao final da comissão com raros queixumes, humilde, mas decidido e camarada.
À chegada a Bajocunda uma multidão apinhava-se para nos receber. O Lameirão deu uma buzinadela, e imediatamente o proibi de fazer festa. A presença de muitos civis deixou-me intrigado, a pensar, se estariam ali para nos vitoriar, se em derradeira homenagem aos mortos. Apeei-me e dirigi-me para o quarto. Deitei-me sobre a cama, ainda perplexo, a pensar sobre a infelicidade dos mortos, sobre a provável infelicidade dos feridos, e sobre a possível afectação do nosso comportamento futuro. Pensei sobre os senhores da guerra, no conforto dos gabinetes, naqueles que dominam as mentes, impingem-lhes missões de inaceitáveis sacrifícios e entendimentos, e manipulam grandes e insondáveis interesses sob o manto da razão e do progresso, mas não se preocupam com as vítimas, antes, aliviam as consciências com a atribuição de medalhas e pseudo-homenagens, que se resumem ao frete de um discurso. E o povo aceita e orgulha-se dos heróis, perpetuando os sistemas que o domina.
Alguns elementos do 2.º Pelotão - Foxtrot, de pé, da esquerda para a direita: Dinis, Abreu, Teresa e França. Em baixo: Lamarão (condutor), Rodrigues, Martins e Virgílio Sousa__________
Notas de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5424: História da CCAÇ 2679 (30): Situação geral no mês de Outubro de 1970 (José Manuel M. Dinis)