quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14973: Os nossos seres, saberes e lazeres (109): Tomar à la minuta (11): Vinde, Divino Espírito, aqui estão os tabuleiros da nossa fé (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 17 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
E assim se chegou à Festa dos Tabuleiros, o acontecimento religioso e etnográfico que Tomar propicia. No contexto da teofania do culto do Espírito Santo, o mais surpreendente acontece aqui e nalgumas ilhas dos Açores. As ruas engalanadas fazem antever os milhares de horas de paciência a cortar papel e a torná-lo revigorante arte efémera; os cortejos que vão pululando entre sexta e sábado, originando ajuntamentos espontâneos, sabe-se lá de que freguesia tomarense vêm aqueles pares, eles de calça preta, faixa à cinta, camisa branca e gravata a condizer com a faixa da companheira, ela transportando em cima da rodilha cerca de 15 quilos de fiadas de pão armado e encimado pela Pomba do Espírito Santo.
Uma cidade em festa, numa amenidade surpreendente, até ao momento culminante daquele domingo do grande desfile de todos os tabuleiros que serão abençoados pelo bispo. Inesquecível. E agora vamos fazer uma pausa, repensar Tomar.
A seguir a viagem segue para Itália. Depois conto.

Um abraço do
Mário


Tomar à la minuta (11)

Beja Santos

Vinde, Divino Espírito, aqui estão os tabuleiros da nossa fé





Não escondo a minha ansiedade, subi a fasquia das minhas expetativas, pela primeira vez na vida este septuagenário comparecerá à Festa dos Tabuleiros. A sua aura vem de longe, a minha avó Ângela contava-me, enquanto eu adormecia, a intensidade dos preparativos, as saudades que ela levou para África, os bilhetes-postais lhe chegavam de Tomar com a azáfama dos familiares na organização dos festejos.
À cautela, na sexta-feira de manhã vagueio, simulo que a intensidade do colorido ainda está longe e que tudo vou sorver, em longos haustos, para nunca mais esquecer. Preocupo-me com pormenores, coisas que só a mim dizem respeito, e que vêm nestas imagens: um belo portão Arte Deco, é bem provável que numa Alemanha qualquer fosse peça de museu, aqui está em fase de enferrujamento. Na rua do compositor Lopes Graça apanhei o cartaz e o incentivo: “Acordai!” e logo me lembrei de um recital de poesia no Instituto Superior Técnico, Maria Barroso galvanizava a assistência jovem com poemas de Manuel da Fonseca e ouviu-se o coro da Academia dos Amadores de Música, até que entrou a polícia à chanfalhada, foi desordem geral mas Maria Barroso enfrentou os caceteiros sem uma tremura. E temos aquela escada, que sorte com aquela luz, crua e desnudada, atravessa-se numa das ruas que mais prazer me dá, não sei se é a Idade Média se é uma aldeia serrana que entra por Tomar adentro. E visitei uma exposição que está no belo edifício que foi do Turismo, ali se exibem peças extraordinárias que foram doadas pelo professor José-Augusto França, como este óleo de Joaquim Rodrigo que me traz reminiscências de Piet Mondrian.




Assim entrei na festa, na embriaguez da cor das ruas, venho venerar o labor meticuloso de quem lavrou em papel toda esta decoração, alguém me disse que haverá banda de música por estas ruas populares ornamentadas, quero andar aqui à solta, mais tarde passarei pela Várzea Grande para me inteirar com do Cortejo do Mordomo, já vi passar pelas ruas gente a cavalo, bem ajaezados, até pensei que iam para a Feira da Golegã… Estou a contar com surpresas amanhã, apanhar os Cortejos Parciais dos Tabuleiros. Agora, deixem-me andar na folia, a cor é comigo.


Andei a saltitar entre a Corredoura, a Várzea Pequena, pus-me na ponte velha, voltei a mergulhar nesta imensidão de luz e de sombreado. Se uma das pautas de conduta da cidade é a sua amenidade, a festa e quem a visita não trouxeram estridência, andam todos em estado de admiração, vejo gente de outros pontos da Europa boquiabertos, de câmara em punho para que ninguém dos Países Bálticos até ao Mar Negro possa negar que naquele ponto do mapa, não muito longe do centro de Portugal, há para ali uma festa peculiar ao divino Espírito Santo, e que não é de fácil entendimento. Serão eles os mensageiros deste fenómeno tão terno e tão denso da Santíssima Trindade, outros virão para confirmar a beleza das imagens de que eles são portadores.



É sábado, vou pôr-me na giraldinha, à procura de surpresas dos Cortejos Parciais dos Tabuleiros, os pares desfilam solenes, cientes da supervisão pública, riem quando se aplaude e cumprimentam quando são reconhecidos, tanto quanto eu sei tanto pode ser gente de Carregueiros, Santa Maria dos Olivais, Junceira ou Sabacheira, são muitas as freguesias, dão-nos o privilégio dos ver deambular entre a parte da cidade e o casco histórico, é este um dos grandes temperos destes dias de lazer e homenagem cristã.



Nova pausa, passo pela Levada, venho visitar uma exposição fotográfica, a da família Correia, o pai de nome Augusto Corrêa Júnior e o filho José Augusto Pimentel Corrêa, agora é um mergulho no passado, que bela iniciativa, já visitei a exposição de Arte Abstrata da Coleção José-Augusto França, parei demoradamente frente às imagens de Lopes Graça, valeu a pena conhecer os dotes fotográficos destes Corrêa e Correia que saíram do pó do esquecimento.




É o zénite da festa, domingo, 12 de Julho, acalorado desde o meio-dia. Venho preparado para grandes emoções, o Cortejo dos Tabuleiros arrancará da Mata dos Sete Montes, haverá antes o Cortejo das Coroas e Pendões do Espírito Santo, aproveitei para os últimos disparos, aquela pombinha junto de porta manuelina na Igreja de S. João Batista assombra-me. Vou aguentar a pé firme junto à entrada da mata, quero acompanhar tudo, gaiteiros e tamborileiros, as quatro bandas de música, os pensões e o início do grande evento, dado pelo fogueteiro. E pelas quatro horas da tarde os escuteiros abrem alas, passaram os polícias e desencadeia-se a marcha processional, estabeleceu-se a eletricidade, há faísca mágica, mesmo com a assistência a acotovelar-se, todos querem imagens, de vez em quando há suspiros e alarmes, aquela menina que parece que vai deixar cair o tabuleiro, outra que se soltou a rodilha da cabeça, passa uma jovem com ar contrito, um dos pães foi esburacado por ratos ou pássaros, há comentários, e ela segue encabulada. Depois mergulho na multidão, até assisti a uma cena de pancadaria, um deles ficou com a camisa toda rasgada, e lenhos na cara. Falta-me ânimo para o momento solene, aquele que irá ocorrer pelas 16 horas, em plena Praça da República quando todas estas moçoilas de diferentes idades erguerem sincronicamente, à terceira badalada, os seus tabuleiros.

Volto a rememorar as histórias que a avó Ângela me contava sobre esta teofania do Espírito Santo, senti como minha toda esta movimentação prazenteira das ruas coloridas, dos desfiles, da cidade que se abriu com os braços bem abertos para acolher todos.

Chegou a hora de partir, de dizer adeus, introduzir uma pausa e refletir sobre esta rede de afetos tomarenses. Nativo ou forasteiro, devemos sempre procurar ver o nosso lugar com olhares renovados.
Como escreveu uma vez José Saramago, a viagem nunca acaba o que acaba são os viajantes. O que vê de manhã não é o que se vê à tarde, o que se vê na Primavera não é o que se vê no Outono, o olhar remoça-se, depura-se ou decanta-se. E o nosso lugar bem-amado tem outro sangue oxigenado, é uma saudade entranhada que nos revigora o futuro. Como esta imagem tão bela, esta escultura antiga que me faz cismar, fixada nos muros da Igreja de S. João Batista. Até um dia, despeço-me com estima.


Texto e fotos: © Mário Beja Santos

(FIM)
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Nota do editor

Postes da série de:

27 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14669: Os nossos seres, saberes e lazeres (96): Tomar à la minuta (1) (Mário Beja Santos)

3 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14694: Os nossos seres, saberes e lazeres (97): Tomar à la minuta (2) (Mário Beja Santos)

10 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14726: Os nossos seres, saberes e lazeres (99): Tomar à la minuta (3) (Mário Beja Santos)

17 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14758: Os nossos seres, saberes e lazeres (101): Tomar à la minuta (4) (Mário Beja Santos)

24 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14793: Os nossos seres, saberes e lazeres (102): Tomar à la minuta (5) (Mário Beja Santos)

1 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14819: Os nossos seres, saberes e lazeres (103): Tomar à la minuta (6) (Mário Beja Santos)

8 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14849: Os nossos seres, saberes e lazeres (104): Tomar à la minuta (7) (Mário Beja Santos)

15 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14880: Os nossos seres, saberes e lazeres (106): Tomar à la minuta (8) (Mário Beja Santos)

22 de Julho de 2015> Guiné 63/74 - P14915: Os nossos seres, saberes e lazeres (107): Tomar à la minuta (9) (Mário Beja Santos)
e
29 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14944: Os nossos seres, saberes e lazeres (108): Tomar à la minuta (10) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14972: (De)caras (24); o meu retrato, pintado em 1970 pelo Leão Lopes, do BENG 447 (Humberto Reis, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > 1970 > Retrato do Humberto Reis (ex-fur mil, op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), pintado por Leão Lopes (ex-fur mil, BENG 447, Bambadinca, 1970/72)




Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > c. 1969/1970 >   Humberto Reis (ex-fur mil, op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71), vestido à civil.


Fotos: © Humberto Reis (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem do grã-tabanqueiro Humberto Reis, com data de ontem, 4 de agosto, 17h53  


Luís

Aqui vai a foto de um quadro que foi pintado em 1970, pelo Leão Lopes (ex-fur mil do BENG 446. quando esteve deslocado lá em Bambadinca, adiado à CCS/BART 2917, 1970/72).

Eu era muito fotogénico, não era?

Custou-me a brincadeira 500 escudos naquele tempo.

Julgo que o Leão Lopes chegou a ser ministro da República de Cabo Verde.

Curiosidades

Um abraço

Humberto

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Nota do editor:

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14971: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (14): De 15 a 18 de Junho de 1973

1. Em mensagem do dia 30 de Julho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

14 - De 15 a 18 de Junho de 1973

Da História da Unidade BCAÇ 4513:

JUN73/15 – Apresentou-se em Aldeia Formosa 1 elemento IN armado com metralhadora ligeira DEGTYAREV, chamado NHONA NBANA. Pertencia ao bigrupo de KANSEMBEL desde OUT72, depois de ter regressado da RÚSSIA. Revelou outros elementos de interesse.
- A sub-base da estrada CUMBIJÃ-NHACOBÁ atingiu hoje esta última localidade.

Do meu diário:

15 de Junho de 1973 – (sexta-feira) – Aldeia Formosa; Ida a Buba e regresso com dilúvio.
A missão de hoje foi escoltar a coluna na ida a Buba para trazer géneros.
À passagem por Nhala verifiquei que o temporal de ontem à noite fez ali bastantes estragos, não poupando uns quantos telhados de zinco e abatendo a frontaria da minha miserável tabanca.
[Pelos vistos, nesta época ainda não tínhamos em Nhala quarto para oficiais “periquitos”].
Soube pelo camarada C. L., que ali se encontra a substituir o Cap. B. da C., que alguns soldados tiveram perturbações mentais ao presenciarem o temporal. Houve um soldado socorrido que esteve longo tempo sem dizer nada com nexo, nem reconhecer as pessoas. Tal foi a visão nocturna dos relâmpagos que, com estrondo, rasgaram o dilúvio tocado a vento.

À chegada a Buba, a primeira coisa que logo à entrada me chamou a atenção, foi o estado em que se encontrava o telhado da escola local: saltou do lugar juntamente com a estrutura como se fosse um chapéu de palha e ficou no chão apoiado a uma das paredes. Como sempre, de cada vez que vou a Buba, fico com horríveis dores de cabeça, não sei se pelo nervosismo e irritação que me provoca a confusão dos carregamentos das viaturas, se pela desgastante viagem nas picadas em péssimo estado, percorrendo aos saltos na viatura, cerca de 30 quilómetros.

Demorámos ali muito tempo no carregamento de enormes caixas, algumas das quais com 900 kg. Para as fazer carregar nas Berliet, tivemos que esperar que a maré baixasse, para as viaturas poderem descer ao leito do rio e ficarem num plano inferior ao cais. Depois, através de pranchas de ferro, as caixas deslizaram seguras pelo cabo do guincho de outra Berliet colocada no lado oposto do cais, também no leito do rio.

Não há memória da saída duma coluna tão tarde de Buba, sujeita aos perigos que acarreta aquele trajecto à noite. Mesmo sem ataques. Passámos em Nhala ainda de dia, mas alguns quilómetros antes de Mampatá, já era noite fechada, com a agravante de sermos apanhados por mais um temporal. Quase de repente, o céu ficou completamente negro, iluminado, a espaços, pelos frequentes e longos clarões dos relâmpagos. A chuva não tardou e as grossas bátegas magoavam-nos a cara. Servimo-nos de algumas chapas de zinco que carregávamos na nossa viatura (porque o condutor ainda não tinha colocado a capota de lona) mas, apesar disso, não conseguimos evitar uma bela molha, gelada e abundante. A água ia já alta na picada, parecia um rio, e chegava a ser belo o efeito produzido pela luz amarela dos faróis projectada na barreira de água que os rodados levantavam, vendo-se, ainda, através dela, os farolins vermelhos da viatura da frente. Uma fonte luminosa em movimento com metro e meio de altura.
[Percebo a ênfase dada a tão singelo fenómeno, porque ainda hoje o recordo com invulgar nitidez].

Chegados a Aldeia Formosa, deixámos as viaturas para serem descarregadas amanhã.

16 de Junho de 1973 – (sábado) – Aldeia Formosa; Descanso.
Hoje, outra vez de descanso. É dia-sim, dia-não. Nada de especial a anotar.

Aldeia Formosa. Formosa, só se for pelos hibiscos à entrada do Comando...

Aldeia Formosa a cores. E eu também.

Aldeia Formosa cinzenta. Como eu...

17 de Junho de 1973 – (domingo) – Aldeia Formosa; O Pata Grande.

Saída da minha Companhia completa para protecção às obras da estrada. Eu fiquei com o grupo emboscado junto a uma “pedreira”, na zona de Cumbijã, onde ainda se tira terra para cobrir o piso da estrada em determinado sítio. Na “frente” nada de especial e, lá atrás, também não. “A Oeste nada de novo”. Para passar o tempo, entretenho-me a observar as formigas e a bicharada rastejante. Mesmo na berma da estrada está a nascer um bagabaga. Para já, não passa de um montículo com mais ou menos um centímetro cúbico. Mas cada vez são mais as formigas que chegam, incansáveis, com uma pequena baga de argila ainda húmida presa nas mandíbulas. Depõem a baga no montículo e desaparecem por entre o capim e as ervas, com a mesma pressa com que chegaram. Só que o local não é viável e toda esta canseira será em vão. Onde é que já se viu um bagabaga quase encostado ao alcatrão? Como lamento não ter aqui com que fotografar! De vez em quando, mando o cabo das transmissões fazer uma chamada para quebrar a monotonia.
Já depois de ter chegado a Aldeia Formosa, cerca das 16 horas e picos, soube que o meu camarada J. A. T. da 1.ª CCAÇ de Buba e, como eu, especialista de minas e armadilhas, levantou uma mina A/C (anticarro), bem perto do local onde estive todo o dia, mas para o lado de Nhacobá. Como ele previa, estava armadilhada e levou-lhe cerca de uma hora a levantar. Pelo requinte da maldade, adivinha-se o autor.
Temos, portanto, o Pata Grande & Cª. a meter-se connosco. De futuro a coisa vai ser mais delicada.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513:

Jun73/18 – S. Ex.ª GENERAL CMDT CHEFE ANTÓNIO SPÍNOLA acompanhado da REPOPER visitou A. FORMOSA. Com o Exmº. MAJOR D. M. DESLOCOU-SE a NHACOBÁ e CUMBIJÃ. Graduou em Alferes o Fur. Mil. VIEIRA da CCAV 8351.

- Às 9h30 grupo IN não estimado flagelou durante 10 minutos da direcção S-SW com cerca de 50 granadas de morteiro 82 e RPG-2 as NT instaladas em NHACOBÁ na protecção aos trabalhos de Engenharia, sem consequências.

- Às 10h45 1 máquina de Engenharia D-7 accionou em NHACOBÁ 1 mina anticarro IN sofrendo danos graves.

- Pelas 11h15 a CCART 6250 detectou e levantou em NHACOBÁ 1 mina antipessoal IN PMD-44.

Do meu diário:

18 de Junho de 1973 – (segunda-feira) – A. Formosa; Dia de descanso; Visita do Gen. Spínola.

Hoje levantei-me acossado pela curiosidade: estava a acordar quando ouvi chegar à pista dois helicópteros. Como logo calculei, um deles trazia o “Caco-Baldé”, que vinha certamente avaliar o ponto da situação. Esteve aqui breves instantes e dirigiu-se depois para Nhacobá, pilotando ele próprio o helicóptero. Chegou ali algum tempo depois de ter havido um ataque, sem consequências, à Companhia que estava a chegar para proteger as máquinas que agora, ao que dizem, estão a preparar o terreno para se montar ali um destacamento. A curta distância do local em que o general se encontrava com alguns indivíduos, rebentou uma mina sob as lagartas duma das máquinas que, embora não ficasse impossibilitada de trabalhar, sofreu alguns danos. Esta manhã ainda foi levantada ali mais uma mina antipessoal.

Entretanto, aqui em Aldeia Formosa chegaram a juntar-se na pista três avionetas civis, não sei ao certo para que efeito, mas devem ter sido fretadas por militares, pois o avião militar que aqui costuma vir, não apareceu. Foi cedo ainda que o Gen. Spínola partiu para Bissau, passando de novo por aqui.

À tarde o Cap. de Operações J. A. C. chamou-me para ir ver a mina A/C levantada ontem pelo Alf. T., a fim de saber a minha opinião. Tratava-se de um modelo relativamente recente, embora eu o conhecesse, mas equipado com um dispositivo anti levantamento. Ainda no Gabinete de Operações apreciei, junto à mina, uma belíssima metralhadora de tambor, que foi trazida há dias por um elemento do PAIGC que se entregou com todo o equipamento.

Ultimamente têm-se ouvido uns boatos, ao que parece não descabidos, de que o meu Batalhão irá sair daqui de Aldeia para Cumbijã, deixando duas companhias em Nhacobá. Para aqui viria um Batalhão que está a chegar a Bolama para fazer a IAO, saído há pouco da Metrópole. Entretanto, o Batalhão que nós viemos render, só irá embora em Setembro, facto que tem desorientado e revoltado quase toda a gente, pois que assim, irão para a Metrópole depois de uma comissão de 27 ou 28 meses, quando o normal são 23.

Há outros boatos quanto à colocação do meu Batalhão depois de sair daqui, mas o que é certo, é que tanto uns como outros são bastante perturbadores, pois que, para além de uma exposição permanente a ataques nesses locais aventados, é sabido que voltaremos a não ter as mínimas condições de vida. (...).
[Segue-se uma série de lamentos que prefiro não transcrever e que só revelam ingenuidade e ignorância das verdadeiras agruras que ainda estavam para vir].

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14940: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (13): 9 a 14 de Junho de 1973, com baptismo de fogo a 13

Guiné 63/74 - P14970: Memória dos lugares (311): Lisboa, Cais da Rocha Conde de Óbidos, partida do N/M Quanza, em 8/1/1964, com o pessoal do BCAÇ 619 (Catió, 1964/66) (João Sacoto)


Foto nº 2


Foto nº 1


Foto nº 1 A


Foto nº 1 B

Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > 8/1/1964 > Partida do N/M Quanza, com o pessoal do BCAÇ 619 (Catió, 1964/66).

Fotos: © João Sacôto (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1. Mensagem, de 30 de junho último, de João Gabriel Sacôto Martins Fernandes [ ex-alf mil da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66): comandante da TAP, reformado]

 Luís:

Da partida para a Guiné do BCAÇ 619 e,  portanto, também da [minha] CCAÇ 617, tenho estas duas que poderás, querendo, publicar. (Nota: a criança que está no cais com um adulto, é a minha filha que, nesse dia, 8/01/64,  fez 2 anos.)[Vd. foto nº 1 B].

Ab. Sacôto.
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Guiné 63/74 - P14969: Tabanca Grande (471): Cláudio Brito, neto do falecido major art ref Fernando Brito (1932-2014)... Novo grã-tabanqueiro, nº 697


1. Mensagem, de omtem, 3 do corrente,  do nosso amigo Cláudio Brito, neto do major art ref Fernando Brito (1932-2014):


Saudações,
Antes de mais, um muito obrigado por este convite [, para integrar a Tabanca Grande,] que, alegremente, aceito, pesando-me, sem dúvida, e alegremente também, a responsabilidade de tal cargo. Porém, se depender de mim, esta Tabanca continuará a ser brindada com fontes históricas para a preservação da sua memória, da nossa memória.


Espero poder contribuir com as fontes selecionadas que trabalharei afincadamente para serem apresentadas ao blogue e quem o segue.

Envio uma fotografia recente minha e, ainda, envio o exemplo fotográfico usado para que o Leão Lopes tivesse podido pintar o quadro [, de meu pai,] que tão artisticamente concretizou.

De facto, podemos verificar uma linha histórica, apenas através da fotografia.

No verso da mesma está inscrito com a letra do meu pai: "Para o meu paizinho [, Fernando Brito,] com muitos beijos de parabéns do filho amigo, Fernando José". Brindado nos anos (a 30 de novembro) com uma fotografia do filho, [o meu avô] retribuiu o amor, mandando pintar um retrato mediante a mesma.

Vemos imediatamente as semelhanças, mas perguntamo-nos "a foto não é a preto e branco?". Sim, pelo que as cores foram imaginadas pelo próprio Leão Lopes ou feitas mediante informação fornecidas pelo meu avô. De qualquer das maneiras, o produto foi concretizado lindamente.

Assim me despeço, prometendo redobrar estas fontes de uma próxima vez.

Um grande abraço a todos, Cláudio Brito.




O pai do Cláudio Brito, Fernando José, em 1971,  aos 11 anos,  Foi com base nesta foto que o Leão Lopes pintou o seu retrato, em Bambadinca.




Dedicatória, no verso da fotografia, dp Fernando José ao pai, Fernando Brito, por ocasião do seu 39º aniversário (em 30 de novembro de 1971).



Retrato do Fernando José, pintado em Bambadinca por Leão Lopes, ex-fur mil, BENG 447 (1970/72)


Fotos: © Cláudio Brito (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

2. Mensagem de anteontem, 2 do corrente, do Cláudio Brito;


Saudações,  Sr. Luís Graça e Camaradas da Guiné,

Espero que esteja tudo bem.

Antes de mais, o meu mais profundo agradecimento por ter publicado este quadro e esta memória que, entretanto, passou a ser uma memória de todos (*). Não se pode perder apenas no meu arquivo pessoal e ficar a colecionar pó numa parede.

Com a graça de Deus e com alguma sorte à mistura, o meu avô falava muito comigo (também me demonstrei sempre interessado) e explicou-me a história ou estória de muitas das fotos, quadros, retratos e objetos que recuperei. A maior das sortes é ter alguém do "outro lado" para partilhar essa história e torná-la comentada e acessível e, por isso, perpetuada.

Relativamente ao quadro (*), ainda posso avançar algumas coisinhas:

(i) "folha de capim" é uma planta que cresce de uma forma comprida e alongada sendo suficientemente firme para, por exemplo, pintar; portanto, concluo que os materiais de pintura não eram de fácil acesso, mas a mão firme do pintor não falhou;

(ii) o meu pai tinha exatamente 11 anos nessa altura, foi em 1971; o meu pai nasceu no ano de 1960, a 18 de abril, sendo registado no dia 19 de março;

(iii) a fotografia, usada como modelo para pintar, detenho-a igualmente, e posso enviar para comparação do trabalho.

Quanto aos restantes materiais, a tecnologia tem-nos provido dos mais completos instrumentos, portanto não há desculpa da minha parte e, brevemente, farei uma escolha extensiva e, equipado com esses instrumentos, passarei os elementos do meu plano de visão para o "plano de todos", ou seja, "o plano da Tabanca", com especial enfoque para as fotografias que detenho. E quem diz fotografias, poderá dizer outras coisas. Coisas que poderão estar esquecidas no tempo aqui, mas que unidas a quem as "tocou", "viveu" e "usou" começam a fazer sentido e a montar um puzzle. Preenche a memória do meu avô e de outros tantos que estiveram lado a lado com ele.

Ficarei honrado com qualquer resposta dada pelo artista [, Leão Lopes,]  que pintou alguém tão querido por mim e fico ainda mais honrado por poder partilhar tudo isto [, no blogue dos amigos e camaradas da Guiné].

Um grande obrigado, abraço e até breve,

Cláudio Brito

 3. Comentário de LG:

Cláudio. obrigado pelas explicações adicionais e pela tua rápida aceitação do meu convite. Como prometido ficas desde já apresentado  à Tabanca Grande. Afinal, tu és, desde o princípio,  um dos nossos: os filho e netos dos nossos camaradas, nossos filhos e netos são...

És  o grã-tabanqueiro nº 697, o teu nome passa a figurar na lista alfabética dos grã-tabanqueiros, que consta da coluna do lado esquerdo da página de rosto do blogue (**)... O teu avô era (e continuará a  ser) o nº 641:  o seu nome está na lista dos camaradas e amigos (n=41) que da lei da morte já se foram libertando...

Contamos contigo  para podermos continuar a alimentar este blogue dos amigos e camaradas da Guiné. Sê bem vindo. Tens as regras de convívio na série O Nosso Livro de Estilo.

Um abraço grande. Luis



Guiné 63/74 - P14968: Parabéns a você (940): José Nunes, ex-1.º Cabo Mecânico Electricista do BENG 447 (Guiné, 1968/70) e Rui Alexandrino Ferreira, TCoronel Ref (Guiné, 1965/67 e 1970/72)


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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14952: Parabéns a você (939): Manuel Augusto Reis, ex-Alf Mil Cav da CCAV 8350 (Guiné, 1972/74)

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14967: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (16): O rio que mais me impressionou na Guiné foi o Corubal (Abel Santos, ex-Soldado Atirador da CART 1742)

1. Em mensagem do dia 27 de Julho de 2015, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), fala-nos do rio que mais o impressionou na Guiné, o Corubal:


Rio Corubal 

O rio que mais me impressionou foi o Corubal na zona do Che-Che, junto à estrada, ou picada, de Nova Lamego para Madina de Boé e Béli, passando por Dara e Canjadude.

Impressionou-me quando pela primeira vez o vi e fiquei apreciando toda aquela quietude, as suas águas límpidas e refrescantes, mas ao mesmo tempo incutindo em mim um certo respeito perante tão misterioso silêncio.

Na zona em que o atravessei, através da célebre jangada de má recordação para o Exército Português, aquando das colunas de reabastecimento aos camaradas de Madina de Boé e Béli, pude apreciá-lo melhor da outra margem, lado de Madina, na extensão até onde os meus olhos alcançavam, ouvindo o chilrear dos pássaros, o murmúrio das suas águas correndo no seu leito até encontrar a foz.

Hoje recordo com alguma nostalgia aquele imponente curso de água que tanto me impressionou.

Junto algumas fotos que são reveladoras da época, em que me cruzei com a majestade do Rio Corubal


O Rio Corubal a preto e branco

 Uma Daimler a banhos no Rio Corubal

Nas margens do Rio Corubal

Texto e fotos: © Abel Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14966: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (15): Aguardente doc Lourinhã, 15 anos, a 150 aéreos num supermercado dos Algarves... Em homenagem à terra do nosso editor LG (Hélder Sousa)

Guiné 63/74 - P14966: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (15): Aguardente doc Lourinhã, 15 anos, a 150 aéreos num supermercado dos Algarves... Em homenagem à terra do nosso editor LG (Hélder Sousa)




Magistra, passe a publicidade,  é uma aguardente doc Lourinhã,  de 15 anos... A foto é do Hélder Sousa.

"Uma das marcas mais emblemáticas da região ], Região Demarcada da Aguardente Vínica de Qualidade com Denominação de Origem Controlada “Lourinhã”] é a Magistra, uma aguardente produzida pelo Esporão em parceria com a Quinta do Rol. Esta aguardente é o resultado da junção das melhores aguardentes vínicas velhas de 1989, 90, 95 e 96, que foram seleccionadas em conjunto pelo enólogo [australiano] David Baverstock  [, do Esporã0] e a equipa da Quinta do Rol. Este lote único permaneceu, posteriormente, em balseiro de madeira até 2008 e não sofreu qualquer alteração, nem através de tratamentos ou filtrações, nem por meio de adição de produtos. Para produzir a Magistra foram seleccionadas uvas de vinhas velhas da Quinta do Rol em que estão presentes as castas Tális (Uniblanc), Malvasia, Boal e Alicante Branco." (Fonte: Shopping Spirit)

"Durante mais de duzentos anos, as casas produtoras dos melhores Vinhos do Porto beneficiaram da Aguardente da Lourinhã para produzir os seus afamados vinhos licorosos. Nos últimos trinta anos com o apoio científico da Estação Vitivinícola Nacional, sediada em Dois Portos [, Torres Vedras,]  foi testada e confirmada a sua superior qualidade, a qual apenas encontra paralelo, a nível europeu nas aguardentes francesas das regiões do Cognac  e do Armagnac." (Fonte:  Adega Cooperativa da Lourinhã)....

"Os mais velhos da terra lembram-se dos tempos em que havia 0uma destilaria em cada esquina' - eram 32 quando se constituiu a Adega Cooperativa, em 1957." (Fonte; Público, 7/3/2010)

1. Mensagem de Hélder Sousa, nosso colaborador permanente,  régulo da Tabanca de Setúbal, ex-fur mil trms TSF (PicheBissau, 1970/72):

Data: 30 de julho de 2015 às 23:55
Assunto: Postalinho de férias..... Aguardente da Lourinhã.

Caros camaradas

Em tempos tenho ideia do Luís ter referido que a "sua Lourinhã" era detentora não só de uma aguardente 'de estalo' como também se orgulhava de possuir estatuto de 'região demarcada'.

Como que a comprovar isso, envio esta foto que consegui num supermercado no Algarve onde, pela módica quantia de 150 Euros, se pode adquirir esta garrafa.

Se conseguirem ler o rótulo lá se diz que "a Lourinhã é uma das três regiões exclusivas e demarcadas de aguardente do mundo, embora menos conhecida que Cognac e Armagnac".

Esta "Magistra" será realmente boa, mas cá para mim, terá o seu preço empolado por ser comercializada pelo "Esporão", do conhecido José Roquete....

Espero que tenham possibilidade de usufruir de dias de descanso que os meus "dias de licença" estão no fim.

Abraços, Hélder Sousa


2. Comentário de LG:

Obrigado, Hélder, por puxares por um dos "pergaminhos" da minha terra... A aguardente doc Lourinhã é um deles, os dinossauros são outro... Os lourinhanenses aindam não sabem muito bem  o que fazer com estes dois produtos de excelência... Falta-lhes o rasgo de génio dos grandes estrategas, com visão global e de futuro...

Essa tal "Magistra" é  luxo demais para um pobre tuga como eu... Nunca me passou pelo estreito... Conheço a XO  da Adega Cooperativa de Lourinhã, que é um dos dois produtores de "Lourinhac"... O outro produtor, imagina, é o Carlos Melo Ribeiro, o "patrão" da Siemens em Portugal, que tem aqui uma quinta, a quinta do Rol, em Ribeira de Palheiros, Miragaia,  Lourinhã... A "Magistra" é dele, uma aguardente de 15 anos, feita em parceria com a Quinta do Esporão, do Roquete... As garrafas da Adega Cooperativa da Lourinhã, essas, andam entre os 35 e os 50 euros... Um dia hei de levar uma para a Tabanca de Setúbal... Ab. Luis
Fonte: Adega Cooperativa da Lourinhã  (Com a devida vénia...)


A criação da  Região Demarcada da Aguardente Vínica de Qualidade com Denominação de Origem Controlada “Lourinhã” remonta a 1992, ano em que viu o seu mérito reconhecido com a publicação do Decreto-Lei nº34/92 de 7 de Março. É a primeira e única região demarcada do país somente para produção de aguardentes, e uma das três regiões no espaço europeu, em posição de igualdade com as célebres aguardentes francesas, Cognac e Armagnac. Em provas cegas, o "Lourinhac" (designação popular, mas não consensual)  não fica atrás dos seus concorrentes, franceses, mais antigos e afamados... Viver aqui artigo do Público.

Para saber mais:

(i) Características da Aguardente Lourinhã;  (ii) Região Demarcada de Aguardente Vínica de Qualidade com Denominação de  Origem Controlada "Lourinhã";
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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14965: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (14): Contos da Guiné: Ansumane, o caçador de crocodilos (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando)

Guiné 63/74 - P14965: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (14): Contos da Guiné: Ansumane, o caçador de crocodilos (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando)

1. Publicamos hoje o conto "Ansumane, o caçador de crocodilos", enviada, a nosso pedido ao Blogue, pelo camarada Virgínio Briote (ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67), em mensagem do dia 28 de Julho de 2015:

Contos da Guiné

Ansumane, o caçador de crocodilos*

A inquietação que sentia contrastava com a calma daquela noite de lua cheia nas margens do rio. Boa noite, patrão, o Braima, camisa a arrastar pelo chão, gorro de lã na cabeça, cachimbo há que tempos nos dentes. Braima Dáfé, pés grandes, seco, resistência incomum, dia a dia a remar a canoa entre as margens, levando a mancarra que os nativos tinham para vender aos comerciantes. Patrão, tem canoa ali na margem, quer passar?


Rio acima, a brisa fresca e mansa a dar-lhes, o chlap chlap do remo, a agitação a dissipar-se, pouco e pouco a vida a ficar para trás até desaparecer, dobrada a curva do rio. E logo ali, entre os tufos das palmeiras, duas árvores despidas, encostadas uma à outra, ramos entrelaçados de tal forma que àquela distância, lhe pareciam duas pessoas abraçadas uma à outra, uma delas com um braço erguido como se pedisse auxílio ao céu. O que é aquilo, Braima? Eh, patrão, aquelas árvores são pessoas! Sim, patrão, há muito tempo.

Nem tinha ainda nascido o avô do meu avô. Quando as mulheres adúlteras eram castigadas com o desprezo, às vezes até com a morte. No tempo em que havia respeito pela honra, não era como agora. Pois nesse tempo, uma bajuda chamada Kadi foi prometida ainda menina ao poderoso Bacar Seidi, um velho rabugento já com oito mulheres.

Kadi a crescer, o coração fraco a palpitar começou a inclinar-se para Ansumane, caçador de crocodilos, o mais famoso da região. Ansumane correspondia, queria mesmo casar com ela, mas o pai já a tinha prometido a outro, mais dotado que o caçador, a coragem como único dote. Olhavam-se com aqueles olhos que toda a tabanca via, nos batuques Kadi a dançar, seios para cima e para baixo, as ancas fartas, os olhos de Ansumane. Ele bem gostava de satisfazer o seu corpo, ela de casar com ele, ai dela, tinha que cumprir a palavra de seu pai, casar com Bacar Seidi.

Passaram tempos, muitos mesmo até que um dia, com grande desgosto de Ansumane, Kadi foi entregue a Bacar Seidi, e outras luas passaram. Ansumane sem conseguir desviar-se para outra, rodeava a morança, procurava nem que fosse só vê-la, os dias a passarem-se, ele sempre a magicar como a havia de convencer a ser dele, a vontade de caçar crocodilos a passar. O homem dela, conhecedor da amizade que os unia, vigiava as redondezas, nunca se sabe. Até que um dia as febres tomaram conta de Bacar Seidi. Ansumane, na sua ronda nocturna como era costume, viu a adorada Kadi, ao ar fresco da noite na varanda. Kadi, como um assobio baixo, ela a correr, o impulso do coração mais forte que o chamamento dele, para os braços do amado. Tens que ser minha, não posso Ansumane, eu sou do Bacar, ele é o homem a quem Alá me entregou! Mas ele é velho e tu não gostas dele, tu gostas de mim, eu sei! É verdade, Ansumane, mas ele é o meu homem e eu a sua mulher, Ansumane a apertá-la mais contra o seu peito, mãos nervosas nos redondos de Kadi, aquele corpo jovem, ela a estremecer, um delírio, ele a insistir Kadi, vem comigo, fujamos, tenho a canoa na margem, se atravessarmos pela bolanha depressa chegamos! Vamos Kadi, para um lugar que ninguém nos conheça, onde o teu homem nunca nos alcance. Kadi mesmo junto ao coração dele, a tentação mais forte, o corpo a palpitar, Ansumane sim, é um homem jovem, viçoso, meu homem é velho.

Mão na mão, a passos largos na estreita vereda, a serpentear pelas palhotas, a bolanha, a seguir a margem do rio. Junto à sebe da purgueira, o sussurrar da brisa agitou as ramagens do arbusto. Não contavam, estremeceram, abraçaram-se como se estivessem mais protegidos. Acharam que não podiam esperar mais. E no silêncio da noite, deram-se um ao outro, as estrelas a brilharem como testemunhas. Ficaram esquecidos, a onda de loucura passara, Kadi em si, o erro agora sem remédio, não podia voltar para o seu homem, tinha mesmo que fugir com Ansumane. Vamos depressa antes que Bacar dê pela minha falta, vamos.

Na morança, Bacar há muito que despertara a arder em febres, se tomasse um chá de buco talvez ficasse melhor, diria a Kadi que lho preparasse. Kadi, Kadi, a voz dele a voltar para trás. Ergueu-se um pouco para ver a esteira de Kadi, devia estar a repousar, não a viu, Kadi, outra e outra vez, o eco sem resposta. Onde estaria Kadi a esta hora que ninguém está fora das moranças, obra de Ansumane, seria? A cólera deu-lhe forças, levantou-se, a espada de gume curto na mão enrugada, correu para o rio, o que as pernas deixavam, um pressentimento estranho.

Não queria acreditar, as febres, Kadi mão na mão de Ansumane a caminho do rio a dois passos. Não conseguindo alcançá-los, Kadiii, um grito áspero de gelar a chegar até eles. Estacaram, tolhidos sem poder mexer-se! Que Alá os livrasse da vingança no fio da espada, tão cortante como a voz que os fizera deter, incapazes de mais um passo que fosse! Morrer! Não, ela não queria morrer às mãos de Bacar, os braços a rodear o corpo forte de Ansumane, mais protegida da fúria de Bacar. Morrer! Não, ele não queria, nem a morte de Kadi que agora mais que nunca era sua. E erguendo-se para o céu pediu a Alá que os protegesse.

A prece foi ouvida. Quando Bacar já a curta distância, a espada no ar prestes a abater-se sobre as cabeças, Alá livrou-os da morte, transformou-os em árvores! Foi assim que um pedaço de pau encontrou a espada de Bacar! Dizem que hoje, tantas luas passadas, em noites de tempestade ainda escorrem gotas de sangue daquele lanho já seco pelos tempos!

Quando Braima acabou a história, fixou melhor as estranhas árvores, a ver se via nelas a infeliz história de Ansumane, o caçador de crocodilos, a fantasia das palavras de Braima ainda no ar. O silêncio daquela noite brilhante foi subitamente quebrado por um uivo, sinistro de um cão. Braima respondeu com um prolongado eh! eeeeh! E estalou repetidamente com a língua… Quando os cães uivam é sinal que algum mal está para acontecer! Vamos embora, patrão, é melhor! Duas remadas fundas viraram a canoa em direcção à vida.

Uma lenda que ouvi lá.

VB
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Notas do editor

(*) Este conto havia já sido publicado, na I Série do nosso Blogue, em 17 de Outubro de 2005 no poste > Guiné 63/74 - P223: Tabanca Grande: Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Cuntima e Brá, 1965/67) e a história de Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)

Último poste da série de 1 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14957: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (13): O meu amigo e camarada Joaquim Jorge, da CCAÇ 616 / BCAÇ 619 (Empada, 1964/66), que vive hoje em Ferrel, Peniche, e que eu não vejo há 50 anos (João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66)

Guiné 63/74 - P14964: (Ex)citações (288): Estações dos CTT na Guiné (Jorge Araújo)


1. O nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), a seguinte mensagem com data de 29JUL2015. 



ESTAÇÕES DOS CTT NA GUINÉ

Caro Camarada Luís,

Ainda que não seja minha a foto em anexo, mas sim do meu/nosso camarada Acácio Correia (ex-Alf. Mil. da CART 3494, que me a facultou e onde está em primeiro plano), aqui deixo mais um testemunho - o do GABÚ - para incluir no «Roteiro das Estações dos CTT na Guiné».

De referir que esta imagem, datada de 1998, foi obtida durante uma visita realizada por um grupo de ex-combatentes da CART 3494 à Guiné-Bissau, ou seja, vinte e quatro anos após o nosso regresso a casa.

Ainda assim, é de considerar como válida a hipótese de tratar-se de um edifício do nosso tempo no CTIG. 


Com um forte abraço de amizade.
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494
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Nota de M.R.: 

Vd. Também o último poste desta série em: 

Guiné 63/74 - P14963: Notas de leitura (743): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
É uma obra magnífica, duríssima, questiona-se a todo o momento como é que um romance desta envergadura não voltou à guerra, seja no romance, conto ou poesia. É facto que leu muito, em todos os quadrantes da guerra, o que lhe permitiu elaborar uma obra de referência, “Os Anos da Guerra”, de 1988, foi o pioneiro e devemos-lhe obra muitíssimo asseada.
Falando por mim, deu-me pistas valiosas para o livro que escrevi sobre a literatura da guerra da Guiné. No meio da brutalidade e das descrições horrendas, João de Melo ascende ao volteio poético, e permitam-me este exemplo magnífico, em jeito de quase despedida: “Eu, soldado ocidental, demoro aqui os olhos: uma seta voa ao encontro dos sítios, do seu conhecimento. sirvo-me dos morros de Calambata, da Canda (a serra azul), da Binda (as tagarelas árvores-garrafas) e bebo a invenção destes nomes. sentei-me na noite, em Calambata, com um cigarro suspenso da ferida visível do rosto e de lá vos mandei escrito de toda a memória que há sobre os dias desta guerra”.

Um abraço do
Mário


Autópsia de Um Mar de Ruínas (3), por João de Melo

Beja Santos

Em Calambata, vai crescendo a tensão emocional, os mortos por ali andam, em bolandas, aguardam transporte que tarda em chegar. Na sanzala sonha-se, estão a chegar os dias de pesar o café e receber nas mãos o dinheiro quente. Já se sabe que vão chegar as grandes bebedeiras, o que sobrar não dará para o ano todo. É nisto que uma espetacular queimada vem alvoraçar Calambata. E volta o ramerrão, a mansidão dos dias, tal como vai ser vivida na messe de sargentos:
“O Furriel Silvares sorvia e mastigava a cerveja morta, com a repugnância de quem estivesse bebendo a própria urina – e o carão habitualmente rubro de Octávio enchera-se de covas vivas. Apenas o furriel das transmissões dormitava no seu canto, de novo desesperado, sem saber por que motivo a cortiça do cérebro não cedia já ao torpor e à hipnose do álcool, ao uísque e ao martini, ao gin tónico com uma rodela de limão; Tavares escrevia uma nova página do seu diário de campanha, memórias de guerra sobre o título de De Como Nos Fomos A Eles Em África E Asinha Os Tornámos Escravos Nossos E De Nossa Única Vontade; escrevia em duplicado, com um químico, sendo o original para a mulher e a cópia para guardar num cofre de folha retangular. De uma forma geral, estavam para ali, tardes inteiras, e não falavam, por quanto já nada havia para dizer, nem o jogo das cartas servia de pretexto para empurrar o tempo e as palavras”.

E abruptamente a guerra reacendeu-se, as minas rebentavam em todas as picadas matando homens e Berliets. Chegaram tropas de intervenção de Luanda, tomaram conta de todo o Norte, parecia que a guerrilha queria aniquilar a cidade de São Salvador, a população pôs-se ao trabalho, construiu abrigos e valas. Começa a espera, prevê-se que a próxima grande flagelação será Calambata. É neste contexto que João de Melo escreve belíssimas páginas sobre o amor, antológicas:
“Nas mãos incertas do meu amor repousarão algumas das palavras. Escrevo-as nuns transparentes, levíssimos aerogramas de um azul de anjos, porque vem avião, são três da tarde e o amor desespera tanto. Ninguém melhor do que tu, amor, lembrará vivo. São três da tarde e eu de ti tão sedento como da água que pudesse caber nos mares do deserto. Sou porém um homem com mãos de cedro (…). Porque demoram tanto os abomináveis sargentos-de-dia a distribuição do correio? Não sabem, não saberão nunca, amor, que uma carta não tem só a importância de ser escrita. Abre-me os lençóis para que o sono te doa como um címbalo acordado em Lisboa. Falas-me de um país às três da tarde, 1972, e nunca foi tão triste o mês de Novembro (…). … eis meus dias serenos, parados iguais: um exílio de homem na guerra, enquanto acredita no amor, amor, tem seus recados e não conhece outros países. Por isso te digo que em tudo há um tempo e um lugar para ele até que o amor ausente seja um canto. Este canto ausente és tu, amor, e só a ti o digo, escrevendo-o com o abandono e o desamparo de um sentimento de amor que há de ser sempre maior do que a minha vida”.

A brutalidade começa a tomar conta dos militares de Calambata, são as lavadeiras quem pagam, as chuvas são imensas, as gentes das sanzalas andam apressadas a proteger o café. Cresciam as nuvens, uma bravia tempestade rebentou, tal e qual um estrondo de guerra. “E quando, finalmente, essa chuva rompeu, as pessoas calaram sua boca de repente e ficaram a pensar as pedradas de granizo davam gozo ouvir no silêncio porque adormeciam por dentro. Pouco a pouco, pelo chão, a água formava poças, levava consigo o lixo e as areias e ficava tão avermelhada como o sangue que podia escorrer das feridas das pessoas”. O envolvimento do escritor com a vida dura dos nativos é permanente, pela sua voz ouvimos os anseios, as promessas e as esperanças nos dias melhores. A realidade é dura, a comida falta e os meninos lá vão ao quartel buscar a comida para o jantar.

Os meses passam, a fadiga toma conta de todos, é bem patente naqueles patrulhamentos de vários dias:  
“Eram vinte e sete homens destroçados, vencidos pelo cansaço de três dias de marcha através da selva. Trazida na memória do corpo, e vinda de todos os meses que levavam já daquelas andanças, a fadiga reduzira-os à condição de peregrinos da própria terra que pisavam. À ordem de parar, deixaram-se logo cair para o chão, com tudo o que transportavam às costas: armas e granadas, bornais de campanha com panos de tenda e um cobertor, algumas caixas de ração de combate, colchões pneumáticos, os cantis, uma ou outra lata de cerveja. Colava-se-lhes o cabelo à testa e ao pescoço – e nos rostos empoeirados, com sulcos de transpiração que pareciam mascará-los, alastrava agora um fogo convulso e sanguíneo, de uma cor afiambrada”.
São patrulhamentos incessantes, evita-se a todo o transe que a guerrilha esfarele quem vive em Calambata. E num desses patrulhamentos encontram os guerrilheiros, há fogo confuso e depois o silêncio. E João de Melo pincela primorosamente a descrição de um rasgo de bravura, a alucinação e o destemor que nada faz prever:
“Viu o olhar alucinado do furriel Octávio e teve logo a certeza de que ele ia desatar a correr pela mata fora, disposto a enfrentar o risco de ser atravessado pelas balas dos guerrilheiros. Tentou agarrá-lo por uma perna, mas falharam-lhe os dedos. O furriel caiu, levantou-se, pôs-se a rolar no chão, como uma bola, até se estatelar ao comprido numa plataforma baixa da mata. Aí, despejou o primeiro carregador de munições sobre o chapinhar invisível daqueles passos lançados na fuga. Sacou a Breda das mãos do soldado Monteiro e desfez-se rapidamente de uma fita de balas. A seguir, correu de novo pela mata e recomeçou a disparar às-cegas. Acreditou que faria alguns mortos: os cadáveres teriam de ser iguaizinhos aos dos companheiros mortos nas outras emboscadas, com aqueles estranhos braços rígidos apontados a um céu sem altura. Sempre jurara vingá-los. Com um pouco de sorte, o seu nome constaria em breve dos relatórios de guerra, ficaria indissoluvelmente ligada à história de um Batalhão martirizado. Quando se viu sem balas, assumiu um ar idiota. Meio atordoado, puxou da única granada que trazia enganchada no cinturão e retirou-lhe a cavilha com os dentes. Ficou a seguir com os olhos o gesto circular da mão que a atirava para longe, por cima da copa das árvores, e esperou a explosão. A mata encheu-se logo de ecos. Regressou cabisbaixo, de cócoras e olhos no chão, porque tão-pouco podia oferecer o espetáculo de trazer consigo um prisioneiro de guerra, uma arma ou mesmo as orelhas de um cadáver”.
O alferes anda por ali descorçoado, já só pensa nas férias. É nisto que se ouve ao longe o zumbido dos helicópteros.

O romance avança rapidamente para o fim, vem a caminho uma coluna civil com gente de Makela do Zombo, vêm fazer negócios de café e outras coisas mais, e vem também a caminho a tropa especial ávida por matar os combatentes da revolução.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14954: Notas de leitura (742): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (2) (Mário Beja Santos)