quarta-feira, 1 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19734: Antropologia (29): Valentim Fernandes e o seu monumento literário “Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Ando há meses a juntar material sobre as primeiríssimas descrições e relatos que envolvem a Guiné dos rios de Cabo Verde, a Senegâmbia, Terra dos Negros, entre muitas outras designações. Valentim Fernandes é reconhecido como autor fundamental pelo vigor da sua narrativa, com a excecional vantagem de ir confirmando o que relatos portugueses anteriores mostravam deste admirável mundo da passagem dos homens pardos para a Terra dos Negros, fixou locais, usos e costumes, tal como a alimentação e a representação do poder dos reis.
A Valentim Fernandes e deve muito pela minúcia dos dados etnológicos e antropológicos e o colorido da escrita. Vale a pena lê-lo, é um encanto.

Um abraço do
Mário


Valentim Fernandes e o seu monumento literário 
“Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (1)

Beja Santos

Em 1951, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicava uma obra fundamental da literatura de viagens quinhentista de autoria de Valentim Fernandes, também conhecido por Valentino de Morávia, era natural da Alemanha, tipógrafo de profissão, veio para Portugal nos últimos anos do século XV e trabalhou associado a outra impressora, também alemão, Nicolau de Saxónia. Três importantes estudiosos apresentavam o documento: Théodore Monod, Avelino Teixeira da Mota e Raymond Mauny. Tratava-se de um acontecimento, ir repescar um manuscrito conservado na biblioteca de Munique e que tem a originalidade histórica de referir o Senegal, o litoral da futura Guiné Portuguesa, as ilhas de Cabo Verde, S. Tomé e Ano Bom. É uma escrita cheia de vivacidade, onde se descrevem plantas e animais, costumes indígenas, ritos religiosos e onde se regista com clareza o conhecimento exato e profundo que os portugueses já tinham da costa da Guiné, do Senegal e da Serra Leoa. Valentim Fernandes escreveu no seu próprio punho o documento, desenhou as cartas que Conrad Peutinger compilou em volume, hoje na biblioteca de Munique.

Fontoura da Costa refere-se nestes termos a Valentim Fernandes: “Foi um dos grandes admiradores da expansão portuguesa. Deixou um dos maiores monumentos literários escritos no início do século XVI, acerca dessa expansão… É sobretudo como coleccionador de relatos sobre as regiões descobertas pelos portugueses, incluindo descrições de viagens e roteiros, que Valentim Fernandes mostra verdadeiramente todo o seu interesse pela expansão mundial dos portugueses. É unanimemente reconhecido como fundamental para a história de África Ocidental. É considerado como fonte primária para uma infinidade de factos relativos à geografia e às populações da África Ocidental".

Nesta recensão vamo-nos cingir ao que Valentim Fernandes aporta sobre a região compreendida entre o Senegal e o Cabo do Monte (atual Libéria) do ponto de vista político, etnológico, científico e comercial.

Já estamos na sua narrativa entre o rio Senegal e o Cabo Roxo. Quando chegaram ao rio Senegal (Çanaga), mais tarde, André Álvares de Almada escreverá Sanagá, ele escreve:  
“Indo avante acharam o mar barrento, sondaram e acharam a água doce de que todos beberam, lançaram âncoras, indo num batel viram uma choça onde tomaram um negrinho e acharam um moço de dentro (do interior) e um escudo redondo feito de orelha de elefante. A este moço fez o Infante D. Henrique aprender letras para clérigo para o mandar pregar a fé de Cristo".

Refere que o rio Çanaga separa os Azenegues Mouros dos Jolofos (é igual a Jalofo), reino que começa na outra margem e diz que neste rio se resgata pouco ouro mas há muitos escravos negros. Observe-se que as descrições contemporâneas ou anteriores a Valentim Fernandes são bem claras dos homens pardos antes de se chegar à terra dos negros. Falando dos Jolofos, observa as suas práticas idolátricas: tomam uma panela de barro velha e lançam nela sangue de galinha e penas e água suja e a cobrem e põem a dita panela entre portas numa casinha feita de palha. Mais adiante diz que nesta terra e no território dos Mandingas há judeus que são negros como a gente da terra, não têm sinagogas e não usam das cerimónias dos outros judeus.

E segue-se um curioso reportório sobre costumes alimentares. Comem carne de muitos animais, têm muitas vacas que são como as nossas, porém pequenas, há também cabras, gamos, lebres, galinhas, elefantes e búfalos. Comem arroz e milho zaburro, cuscuz, que é feito também de milho zaburro. Praticam a pescaria, onde revelam destreza e valentia. Nas suas bebidas constam o vinho de mel, de milho e de palmeira, e tem uma observação curiosa: “Há palmeiras nesta terra, grandes como as de Espanha”.

Faz uma descrição de Cabo Verde continental e depois prossegue entre o Cabo Verde e o rio da Gâmbia, dizendo que as nações não estão muito sujeitas ao rei de Çanaga nem têm rei nem senhor. São homens muito negros e dispostos de corpo. A terra está cheia de matos e arvoredos e cheias de ribeiras.
O rei de Çanaga tentou muitas vezes entrar nestas nações para as subjugar e foi sempre vencido por elas. E aqui apresenta os Barbacins como muito negros e seguidores da seita de Mafoma. É um observador que procura matizar e distinguir cuidadosamente, diz que todas estas terras têm navios para atravessar os rios, essas embarcações chamam-se almadias. E depois descreve a guerra entre os Jolofos. E assim se chega ao rio de Gâmbia, onde começa o reino dos Mandingas. O rei dos Mandingas chama-se Mandimansa porque os da terra pela sua linguagem chamam à província de Mandingas por Mandi. Este rei é senhor de muitos vassalos e pagam muitos tributos. Descreve com enorme poder de observação a justiça do Mandingas. E faz referências ao comércio. Os portugueses levam para lá manilhas de latão, contas e pano vermelho e mantas do Alentejo e algodão que transportam das ilhas de Cabo Verde e cavalos, um cavalo é trocado por sete negros. E deixa claro que nesta terra não há moeda como em toda a Guiné.

Veremos a seguir, numa narrativa vivacíssima, tudo o que Valentim Fernandes observa e comenta, e entraremos no rio de S. Domingos.

(Continua)

Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History

Ex Libris de Valentim Fernandes

Nú Barreto nasceu em São Domingos, em 1966, vive e trabalha em Torcy, França. Estudou na Gobelins, em Paris. Expõe desde finais da década de 1990
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18962: Antropologia (28): Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926; Dissertação de Mestrado em Antropologia Social por Olívia Gonçalves Janequine (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19733: Os nossos seres, saberes e lazeres (321): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte IV: Xangai, 24 de maio de 1980




República Popular da China > Xangai > 24 de maio de 1980

Fotos (e texto): © António Graça de Abreu (2019). Todos os direitos reservados. [Edição / revisão e fixação de texto para este blogue: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mensagem do António Graça de Abreu com data de ontem

"Um texto espantoso! Já me tinha esquecido que o tinha escrito. Foi publicado no Diário de Notícias, a 5.7.1980. Este é para o blogue, com as fotos."



[Recorde-se: foi professor de Português em Pequim (Beijing) e tradutor nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras. Viveu em Pequim e Xangai entre 1977 e 1983. Ex-alf mil SGE, CAOP 1 (Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74), é membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 230 referências. Vive em Cascais. É um cidadão do mundo, poeta, escritor e reputado sinólogo. Chama-se António [José] Graça de Abreu, nascido no Porto em 1947.] (*)



Xangai, 24 de Maio de 1980 (**)


Xangai não me surpreendeu. 10.800.000 de habitantes, uma terra com mais dois milhões de habitantes do que Tóquio, Londres ou a cidade do México, as outras urbes megalómanas com maior população no globo. 


Se fosse possível esvaziar Xangai da sua imensa mole humana, metiam-se cá todos os portugueses e ainda sobrava espaço. É a metrópole mais aberta da China, burgo diferente de todas as outras cidades do império. Parecer-se-ia com Hong Kong se Hong Kong tivesse parado de se desenvolver em 1949. 

A imponente Xangai, da Bund, da Avenida Nanquim que se estende por sete quilómetros, dos hotéis, teatros e cinemas permanentemente cheios desde as nove da manhã, foi toda construída antes de os comunistas tomarem o poder.

Só depois de viver há quase três anos na China, tive ocasião de visitar Xangai. Já atravessei este país por duas vezes, de lés-a-lés, de Pequim às fronteiras com o Laos e o Vietnam, da Manchúria, no norte, a Cantão e Macau, bem lá no sul, porém Xangai nunca tinha ficado nos espelhos do caminho. 

Desta vez, Xangai foi o objectivo da viagem e cheguei à cidade do delta do rio Yangtsé com uma enorme vontade de ver e conhecer. Esta fantástica urbe é motivo de permanente conversa e busca de entendimentos entre chineses, e não só. Eu tinha de atravessar Xangai, da a meter na minha vida, esta é a cidade onde tudo aconteceu, acontece e tudo pode vir a acontecer.

Na China existe uma certa rivalidade entre Pequim e Xangai, pequinenses e xangaineses puxam, à vez, a brasa à sua sardinha e tentam provar que a cidade onde nasceram é que é a melhor. Algo semelhante à nossa rivalidadezinha entre Porto e Lisboa, procurando tripeiros e alfacinhas pôr no galarim, fazer valer a superior e excelsa qualidade de cada uma das suas terras.

Pequim é o centro político da China, uma cidade com a História surgindo em cada canto, os palácios dos imperadores Ming e Qing, os templos, os parques, os jardins, três milhões de bicicletas para oito milhões de habitantes, um certo conservadorismo nos modos e hábitos das pessoas. 

Xangai é o grande centro industrial e comercial da China, uma cidade agitada, jovem, cheia de força, permanentemente voltada para horizontes mais amplos. 

Não por acaso, foi fundado em Xangai, em 1921, o Partido Comunista da China, e também aqui nasceu, na década de sessenta, o grupo de Xangai que, depois da morte de Mao Zedong, viria a ser tristemente famoso como o execrável “bando dos quatro.”

Nesta terra, num passado ainda próximo, cometeram-se as maiores brutalidades sobre o povo chinês, impiedosamente explorado pelo capital inglês, francês, norte-americano, japonês, cidade também à mercê dos gangues e das tríades chinesas. Paraíso de aventureiros sem escrúpulos, cadinho de um proletariado incipiente que talvez nunca se tivesse libertado das garras de uma exploração feroz sem a ajuda de Mao, Zhu De e dos milhares de camponeses que constituiam o grosso dos soldados do exército comunista que tomou Xangai em 1949. 

Mas, contradição em que a China, mais do que qualquer outro país é fértil, foi devida à espantosa invasão estrangeira dos séculos XIX e primeiras décadas do século XX que Xangai se transformou na mais moderna e avançada cidade da China. O contacto com o capitalismo selvagem, desenfreado, abriu os olhos aos chineses e o capital estrangeiro e também o saber como se cria riqueza, proporcionou a Xangai os meios para fabricar tudo o que precisa e continuar a dar cartas em toda a Ásia. 

Não falta comida neste imenso burgo, a variedade e qualidade dos produtos ultrapassa de longe o que é feito em qualquer outra cidade do império. Xangai não só fabrica muito e bem, abastece-se e abastece a China.
Claro que a vida não é fácil para os milhões e milhões de pessoas que aqui vivem. O problema número um talvez não seja o arroz de cada dia, mas a casa, a habitação, o quarto para cada um. Há milhares de quarteirões inteiros a cair que precisam de ser arrasados e construídos de novo. Há milhões de jovens que querem casar, mas onde encontrar um tecto para os abrigar, onde descobrir um espaço para os ajudar a alinhar as suas vidas? 

Nesta cidade de brandos costumes, a mais liberal da China, ao fim da tarde, na Bund, no parque do Povo, junto ao rio, gostei de ver os namorados aos milhares, praticamente encostados uns aos outros, em filas compactas, debruçados no extenso parapeito sobre as águas do Huangpu. Beijando-se, longamente, ignorando quem passa e finge que não vê. Talvez seja a maior aglomeração amorosa do mundo. Estas meninas de Xangai (ou da China inteira?), suaves, pretensamente recatadas, enroscando-se nos namorados, enlaçando-se neles. Ah!...

Talvez não gostasse de viver em Xangai, este mundo enorme quase me assusta para a vida de todos os dias. Tenho uma costela forte de anacoreta frustrado, descontente com o mundo dos homens, procurando refúgio no isolamento das montanhas, longe das vilanias terrenas, mais perto do céu. No entanto, se velho monge panteísta, eu me escondesse nas faldas de um qualquer Gerês ou Soajo, lá no Portugal do outro lado do mundo, ou aqui na China, na magia de outras montanhas, entre nuvens do amanhecer e azáleas em flor, desejaria, por certo esquecer o meu bordão de reverente asceta da Natureza e adoraria descer, de vez em quando, para uma grande cidade, como Xangai, ao encontro da vida que por aqui se cria, queima, esbate e recomeça sempre.


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Notas do editor:

(*) Vd, poste de 20 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19701: Os nossos seres, saberes e lazeres (319): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte III: Pequim e Macau, out / nov 1982

(**) Último poste da série > 27 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19722: Os nossos seres, saberes e lazeres (320): No condado de Oxford, a pretexto de um casamento em Fairford (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19732: Parabéns a você (1612): José Carlos Neves, ex-Soldado TRMS do STM/CTIG (Guiné, 1974) e Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19726: Parabéns a você (1611): Giselda Pessoa, ex-2.º Sarg Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 30 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19731: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004 (4): "Os Roncos de Farim: 1966-1972", uma nota de leitura da brochura compilada pelo Carlos Silva




Notas de leitura > História do Pelotão “Os Roncos de Farim, 1966/1972",  compilação de Carlos Silva 

por Beja Santos
 (*)


Foi graças à Teresa Almeida, da Biblioteca da Liga dos Combatentes [, foto a seguir, à direita], que tive acesso a este documento surpreendente, uma obra desvelada do nosso confrade Carlos Silva. 

Desconhecia inteiramente a existência de “Os Roncos” e os experientes e valorosos militares que estiveram na sua constituição.
Teresa Almeida

 Formalmente, este grupo foi-se constituindo adstrito à CCAÇ 1585, e desde a primeira hora nele participaram ativamente o 1º cabo Marcelino da Mata, a comandar uma secção de milícias, e o 1º cabo Cherno Sissé, a comandar uma outra secção.

Tal foi o seu desempenho, e havendo a proposta apresentada pelo 1º cabo Marcelino da Mata para comandar um grupo especial, acertou-se na constituição de um pelotão ficando como seu primeiro comandante o alferes miliciano Filipe José Ribeiro. 

O grupo entrou em funções em Dezembro de 1966 [, ainda em vida do capitão inf José Jerónimo da Silva Cravidão, que iria morrer em combate em seis meses depois] (**), após ter participado numa operação com dois grupos de combate da CCAÇ 1585. No decurso de um assalto a uma casa de mato, Ribeiro, Marcelino e Cherno, e mais quatro valorosos elementos entraram determinados no objetivo, com sangue frio impressionante. 

Marcelino da Mata
Marcelino da Mata [, foto à esquerda, Tabanca da Linha, 2015] terá dito mais tarde ao comandante do BCAÇ 1887:

 “Encontrei o alferes para comandar o grupo, é maluco, até apanha os turras à mão…”. 

Assim se constituía um pelotão lendário. Juntaram-se as secções de Marcelino da Mata e de Cherno Sissé e foram selecionados outros soldados milícias. “Os Roncos” surgem como um grupo especial de tropa de choque que abriria o caminho às restantes. 

Os seus feitos, até à sua extinção (os seus elementos irão ser integrados mais tarde em companhias africanas e companhias de Comandos Africanos) foram extraordinários, em qualquer operação sabia-se de antemão que se podia contar com um naipe excecional de gente valorosa. 

Escrito à mão, no exemplar que consultei, aparece anotado pelo então alferes Filipe Ribeiro: 

“O grupo era constituído por 24 elementos, assim distribuídos: secção de Marcelino com 11 elementos, secção de Cherno Sissé com 11 elementos, o meu guarda-costas e eu, no total éramos 24. Acontece que em muitas operações o grupo não tinha mais que 15 ou 16 elementos. Éramos poucos mas eficazes”. 

É impressionante ver-se o nome destes homens e ler-se depois nas observações o rol de feridos e mortos.


A CCAÇ 1585 tinha a responsabilidade do subsector de Farim, fazia operações em locais como Sambuiá, Bricama, Biribão, Sano e Sulucó, entre outras. A partir de Dezembro de 1966, “Os Roncos” vão a todas, capturam armamento, entram em casas de mato, criam a lenda. Por exemplo, em Janeiro de 1967, na operação Cajado,  Ribeiro e a secção do Cherno confrontam-se com um grupo inimigo
cinco a seis vezes superior. E Carlos Silva [, foto a seguir, à direita,] retira a seguinte nota: 

Carlos Silva
“6 granadas de morteiro que não chegaram a explodir ficaram espetadas no lodo da bolanha, em volta do alferes Ribeiro, porque, entretanto, teve de sair do abrigo junto a uma árvore e deslocar-se para as proximidades da bolanha. Tudo isto devido a ter de pedir via rádio à companhia de Cuntima uma maca para evacuar o ferido e munições. Pois ficaram lá quase duas horas debaixo de fogo intenso, sob um autêntico inferno. Não podiam retirar do local na medida em que aguardavam pelo regresso da secção do Marcelino, que entretanto já vinha no gosse-gosse para também dar apoio. Quando os reforços de Cuntima chegaram ao local de combate, disseram-lhe para se levantar com cuidado, agarrando-lhe pelos braços, pois tinha à sua volta seis granadas de morteiro 82…”.

Carlos Silva colige o historial mês a mês, sucesso a sucesso, vão-se averbando os louvores, de oficial a soldados, Ribeiro e os seus homens aparecem associados a outras forças. Em Outubro de 1967, depois da operação Caju, em que participaram “Os Roncos”, escreveu-se: 

“Foram três dias e três noites consecutivas em que as tropas estiveram constantemente em ação, batendo uma extensa zona, com a chuva a cair ininterruptamente, cumpriu-se a missão, apesar do sacrifício ter sido enorme”. 

Cherno Sissé e Malã Indjai foram agraciados com a Cruz de Guerra de 4ª Classe. Os louvores não param. Em Outubro desse ano,  a CCAÇ 1585 foi transferida para Quinhamel, o alferes Ribeiro deixou “Os Roncos”, foi rendido pelo alferes Morais Sarmento,  da CART 1691, que passou a comandar o pelotão. 

Em Dezembro, irá ter lugar a batalha de Cumbamori, tratou-se da operação Chibata, havia notícias da presença de Luís Cabral nesta localidade e base inimiga. Deslocaram-se três destacamentos. Assaltou-se Cumbamori, Luís Cabral teve tempo de fugir, infligiram-se muitas baixas, fizeram-se 5 prisioneiros e capturou-se material, caíram no dever 4 soldados dos “Roncos” e houve 17 feridos. 

Sobre esses acontecimentos Luís Cabral irá escrever o que viveu em “Crónica da Libertação”, págs. 315 a 330, fora a primeira vez em que ele estava presente num encontro entre as forças do PAIGC e as tropas portuguesas.

Em Junho de 1969, a Marcelino da Mata era-lhe conferido o grau de Cavaleiro da Ordem Militar da Torre Espada, tinha sido já agraciado com duas cruzes de guerra, foi promovido por distinção a 1º sargento e graduado em alferes. Em Junho de 1970, igual honraria será conferida a Cherno Sissé.

Em Agosto de 1969, “Os Roncos” participaram numa operação em Faquina, onde será capturada uma elevada tonelagem de material. Cherno Sissé aguentou a pé-firme uma tempestade de fogo. José Pais, em “Histórias de Guerra – Índia, Angola e Guiné, Anos 1960”, editora Prefácio, 2002, refere-se ao malogrado Cherno Sissé, residente num bairro da lata da Cruz Vermelha, depois de ter sido espancado e de lhe terem vazado o único olho que lhe restava: 

Capa da brochura


“Lá fui à Boa-Hora e lá tentei explicar ao meritíssimo juiz o que é ter servido o Exército português 27 anos, o que é ter sido combatente operacional na Guiné durante 9 anos seguidos, o que é ser ex-combatente desprezado e o que representa para um homem destes a perda da dignidade pessoal face à vida. O meritíssimo aplicou-lhe três anos e meio. Visitei-o com o filho no hospital prisão de Caxias. Cherno Sissé, 1º sargento do Exército de Portugal na reforma, duas Cruzes de Guerra, duas vezes promovido por distinção, Cavaleiro da Torre Espada, passados dois anos de cadeia, saiu em liberdade condicional. Voltou para casa, de onde agora quase nunca sai. A casa de Cherno Sissé continua a ser porto de abrigo dos fugidos da Guiné e dos que têm fome. Lá vão pedir conselho ao Homem Grande da Catorze de Farim que a Pátria portuguesa usou e deitou fora”.

A história de “Os Roncos” deve a Carlos Silva ter sido passada a escrito. Em meu entender, entidades como a Liga dos Combatentes deviam propiciar um estudo aprofundado sobre estes vultos grandiosos que correm o risco de desaparecer e dar-se forma a este grupo excecional que praticamente caiu no esquecimento. Os valorosos soldados guineenses mereciam ver esmaltada a sua história coroada de valor, dedicação e lealdade. Para os portugueses lhes reconhecerem o mérito prodigioso e a dívida impagável.(**)


Mário Beja Santos

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Guiné 61/74 - P19730: Convívios (890): XXXIV Almoço/Convívio do pessoal da CART 3494/BART 3873, dia 1 de Junho de 2019, na Carapinheira - Montemor-o-Velho (Sousa de Castro / António Bonito)

1. Em mensagem de 29 de Abril de 2019, o nosso camarada Sousa de Castro (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74), enviou-nos para publicação o anúncio do XXXIV Almoço/Convívio do pessoal da sua Companhia, a levar a efeito no próximo dia 1 de Junho, na Carapinheira - Montemor-o-Velho.



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Nota do editor

Último poste da série de 9 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19661: Convívios (889): XXXVI Encontro do pessoal da CCAÇ 2317, dia 1 de Junho de 2019, no Restaurante Ramirinho II - Marecos - Penafiel (Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf)

Guiné 61/74 - P19729: A galeria dos meus heróis (29): 'Disculpen las moléstias"... Ou uma história que mete vítimas e carrascos (Luís Graça)





Pemiche > Museu Nacional da Resistência e Liberdade , o  15º Museu Nacional > 27 de abril de 2019


Fotos: © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A galeria dos meus heróis >  'Disculpen las moléstias"...  Ou uma história que mete vítimas e carrascos 

por Luís Graça



1. Peniche, ou melhor, o forte de Peniche, era talvez o sítio mais improvável para reencontrar um dos poucos camaradas, do tempo do Curso de Sargentos Milicianos, em Tavira, de quem eu guardava uma nítida (falando da sua fisionomia) e sobretudo grata recordação (no que dizia respeito ao convívio): o Sarmento.

Tínhamos em comum o gosto pela escrita, pelo jornalismo. Ele era do 
Fundão, de uma terra chamada Alpedrinha, sabê-lo-ei mais tarde. E chegara a colaborar, enquanto jovem, no prestigiado "Jornal do Fundão", criado em 1946, por António Paulouro, e um dos raros jornais independentes que existia no Portugal desse tempo... Eu também vinha do jornalismo regionalista, onde aprendi a fintar a censura…

Em Tavira, no quartel da Atalaia, no CISMI, o Centro de Instrução de Sargentos Milicianos, colaborávamos no jornal de parede. Recordo-me que tínhamos uma equipa editorial, composta por vários soldados-instruendos que tinham dado como profissão o jornalismo… 
 
E, claro, tínhamos,  um "diretor". O comandante da unidade, um tenente-coronel ou coronel, já não me recordo qual era o posto, zelava pela "orientação editorial do jornal" e, claro, pelo moral da tropa (e a moral da Nação). Miúdas de peitos fartos, generosos, de bicos espetados, e "bundas" largas e redondas, loiraças, provocantes, anglo-saxónicas ou escandinavas, era bem vindas e aclamadas: afinal de contas, os instruendos estavam na flor da idade, precisavam de ter sonhos cor de rosa à noite... Sim, porque os sonhos verde-rubros das grandezas do império não davam tanta "pica"...

Também o rádio CISMI, se bem me lembro, que nos acordava em altos berros logo pela madrugada… Mas eu era do jornal de parede.. Tínhamos alguma liberdade, todavia havia limites para a "desbunda": recordo-me de, um belo dia, ele, comandante, director, censor-mor, lídimo representante do Exército e da Nação, ter-nos obrigado a mandar para o lixo uma vasta e luxuosa edição especial, uma verdadeira enciclopédia, ilustrada, com dezenas e dezenas de fotos, mapas e recortes, dedicada à II Guerra Mundial e ao "nazifascismo" (que palavrão!). Foram horas e horas de trabalho, roubadas ao sono,  que acabaram ingloriamente no caixote do lixo!

O argumento do censor-mor era de peso, e até de bom senso, definitivamente pedagógico e sobretudo retumbante: "Meus senhores, para guerra, já basta a nossa, a do Ultramar!"... Como, de resto, iríamos comprovar dentro de escassos meses... 



2. Quis o destino que tirássemos, os dois, eu e o Sarmento, a especialidade de armas pesadas de infantaria, e que depois fôssemos mobilizados para a Guiné, não sem antes termos ido ainda dar uma rápida recruta, como 1ºs cabos milicianos, em Castelo Branco, no BC 6, se não erro... Estávamos lá os dois quando foi o terramoto de 28 de fevereiro de 1969...O "nosso" já acontecera umas horas antes, com a ordem de mobilização para a Guiné...

Embarcámos no mesmo dia e no mesmo navio, o "Niassa",  três meses depois. Convivemos bastante nesses cinco dias de viagem, especulando sobre o incerto mundo que nos esperava. Mas, chegados a Bissau, cada um seguiu o seu inexorável destino, depois de dois ou três dias nos Adidos. 

Apesar das promessas de irmos dando notícias por carta ou aerograma, acabámos por perder o rasto um do outro. Como aconteceu com outros efémeros amigos que íamos fazendo pelas estações do calvário da tropa: Caldas da Rainha, Tavira, Castelo Branco... Em todo o caso, não tenho qualquer memória da passagem do Sarmento pelo RI 5...


3. Foi preciso esperar meio século para, num bambúrrio de sorte, nos encontrarmo-nos e nos reconhecermo-nos, aos 72 anos !... O pretexto foi a celebração dos 45 anos da saída dos presos políticos da cadeia de Peniche, dois dias depois do 25 de Abril de 1974.

Fui lá com a minha mulher que queria recordar os momentos, de grande ansiedade e euforia, em que fora dar um abraço a um dos seus amigos, colega de trabalho, que estava preso. Ela não tinha a certeza que ele viria à cerimónia de sábado passado, eventualmente com a filha e a neta. Mas a verdade é que veio, e a minha mulher voltou a fazer uma festa, abraçando-o e beijando-o efusivamente. A seu lado estava, nem mais nem menos, o Sarmento e um seu amigo.

Segundo ela me contou, há 45 anos foram longas horas de espera e mesmo assim não sairam todos os presos. Os fuzileiros tinham instruções, da Junta de Salvação Nacional, para não deixar sair os presos condenados por "crimes de sangue" (sic)... Enfim, acabaram por sair todos, graças à força. mobilização e resiliência da multidão que se juntou na fortaleza de 
Peniche, e que foi gritando, até ao fim do dia do dia 26 e princípios do dia 27, "ou saem todos ou não sai nenhum"...E a verdade é que saíram todos na madrugada do dia 27...


Eu não estive lá nessa altura, trabalhava e vivia em Mafra, e nem sequer namorava ainda com a minha futura mulher. Mas, ao que parece, um dos tipos que foi solto era também um amigo, conterrâneo ou familiar do Sarmento, alegadamente preso por pertencer à LUAR.

Quarenta e cinco anos depois, na comemoração dessa efeméride, e de entre os mais de dois mil e quinhentos presos políticos, que passaram por Peniche, entre 1933 e 1974, estavam alguns, talvez algumas dezenas, dos sobreviventes, agora todos eles de cabelos grisalhos... Lá estavam, aparentemente felizes e orgulhosos, de cravo ao peito, no passado sábado, dia 27 de abril de 2019. A fortaleza agora é monumento nacional e sede do Museu Nacional da Resistência e Liberdade, o 15º museu nacional.


4. Curiosamente, entre os VIP presentes, sentados, frente ao palco,   estava o Jerónimo de Sousa, deputado e secretário-geral do PCP (e, que eu saiba,  nunca foi preso pela PIDE/DGS). Há uns anos atrás é que eu vim a saber, que ele foi mobilizado para o TO da Guiné, tendo embarcado no "Niassa", em 24 de maio de 1969, comigo e com o Sarmento e mais uns mil setecentos e tal militares, sem sabermos naturalmente nada dele nem ele de nós. Éramos uma série de  companhias independentes, além de vários pelotões, incluindo uma companhia de polícia militar a que pertencia o camarada,  ex-soldado condutor auto, da companhia de polícia militar, a CPM 2537, Jerónimo de Sousa.

O Sarmento não sabia, nem sequer suspeitava,  dessa coincidência, de resto já aqui relatada no nosso blogue. Fui eu quem lhe revelei esse segredo de Polichinelo, talvez uma hora depois de sermos apresentados um ao outro pelo ex-preso político, amigo e colega de trabalho da minha mulher.

Palavra puxa palavra, falou-se do blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné. Mas o Sarmento só me conhecia por Henriques... Afinal o Graça e o Henriques era a mesma e única pessoa... Na realidade, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, conclui eu, embevecido. Caímos, naturalmente, nos braços um do outro!


5. Diga-se, em abono da verdade, que o Sarmento já em tempos tinha sabido do meu paradeiro através do blogue, e estava para me contactar, até porque queria trazer os netos à Lourinhã, para uma visita ao DinoParque, o parque dos dinossauros que é o maior da Europa, e está justamente localizado na terra onde eu hoje moro e onde nasci. (Enfim, perdoem-me a publicidade, mas é por uma boa causa!)... Não foi preciso, afinal: reconhecemo-nos em Peniche, por um feliz acaso... 


Enquanto os ex-presos políticos ficaram a partilhar as suas doridas memórias da cadeia de Peniche, eu e o Sarmento pusemos a "escrita" em dia, falando dos tempos de Tavira, de Castelo Branco, da nossa memorável viagem no "Niassa" e das nossas desventuras por terras da Guiné, eu no leste, ele no sul... 

Não sei qual de nós teve mais sorte, no TO da Guiné: mais emboscada menos emboscada, mais mina menos mina, andámos os dois na porrada, eu numa companhia africana, ele numa companhia independente. Nada do que aprendemos em Tavira nos serviu. E a arma que nos distribuiram foi a G3. Nunca tivemos nem manejámos armas pesadas, canhões sem recuso, morteiros, bredas, brownings...

Antes de despedirmo-nos, trocámos emails e números de telemóvel e prometemos encontrarmo-nos na Lourinhã, no próximo verão, nas férias grandes escolares dos netinhos... Eu prontifiquei-me a fazer-lhe uma visita guiada pelo DinoParque, para cuja criação, de resto, também dera a minha pequena, modesta, contribuição enquanto sócio e membro, há uns largos anos atrás, dos corpos sociais do Grupo de Etnologia e Arqueologia da Lourinhã (GEAL) que está na génese do "museu da Lourinhã" e, mais recentemente, do DinoParque.

O Sarmento, que vive hoje nos arredores do Fundão, numa quintinha cheia de belas cerejeiras, depois de ter feito uma carreira como professor de filosofia, no ensino secundário, prometeu-me mandar um pequeno texto para o blogue, para esta minha série, "A galeria dos meus heróis"... Prometeu e cumpriu. Com a seguinte mensagem:

"Henriques, ou melhor Graça, velho amigo e camarada de armas (pesadas): Não me peças mais para escrever sobre a tropa e a guerra. Já fechei há muito esse departamento. Por amizade e apreço pelo teu trabalho de mineiro das nossas memórias, mando-te este texto que me saiu de rajada. Vê se era isso que tu querias. Até ao próximo verão, no Dino Parque da Lourinhã. Sarmento"

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A melhor ditadura é sempre pior
que a pior democracia

por J. Sarmento


Os portugueses, soturnos e fatalistas, escrevem nas portas interiores das casas de banho: "Isto é uma merda". Os espanhóis, cínicos mas encantadores, escrevem um bilhetinho e põem-no na porta do elevador: "Disculpen las moléstias".

O pequeno almoço é uma merda, casqueiro com marmelada, e a Internet não funciona, o quarto do hotel é horroso,já passaram por aqui milhares de motoristas de camiões TIR. As paredes estão pintadas a cor de vómito e de esperma requentado. Mas o gerente não tem que ser simpático, apenas tem que saber gerir o bordel espanhol que a agência de turismo me arranjou à beira da estrada, na periferia de Cáceres.

Com a violência de género a aumentar exponencialmente em Espanha, são as espanholas que agora gritam, em manifestações de protesto na rua: "Disculpen las moléstias..., pero nos están matando".

Que pena, eu nunca ter estado em Espanha antes do 25 de Abril, nem conhecer nenhum espanhol e muito menos nenhuma espanhola. Minto, conhecia alguns galegos, que tinham tascos e carvoarias em Lisboa ou eram amola-tesouras. Ia-se a Espanha, nesse tempo, só com passaporte. Há séculos que havia uma fronteira, com gajos façanhudos, armados,  de um lado e do outro, como em todas as fronteira.

Mas a maior parte dos portugueses deu-se ao luxo de dispensar o passaporte e o controlo fronteiriço e foi "a salto", com a mala de cartão às costas. Só lhe interessava chegar aos Pirinéus franceses. A partir daí, era outra vida, outro mundo, o eldorado...Isto é, o "bidonville" e os "chantiers", o bairro de lata e os estaleiros de construção. Nunca ninguém ofereceu, em nenhuma parte do mundo, que eu saiba, o paraíso aos imigrantes...

Dava-me jeito ter aumentado o meu léxico com essa deliciosa expressão idiomática: "Disculpen las moléstias"... Dava-me jeito quando fiz a tropa e fui mobilizado para a Guiné para defender uma parte da Pátria que não era minha. Estava disposto (ou pelo menos fui educado para isso, na escola de Alpedrinha) a dar a minha vida pela parte da Pátria que era minha, a minha terra, a terra dos meus pais, avós e demais antepassados...

Faço a minha declaração de interesses: não fui faltoso, nem refratário, muito menos desertor. Também não fui herói. Nunca me bati à cruz de guerra. O tenente Esteves, no CISMI, Tavira, ainda bem tentou cantar-me a cantiga do bandido: "Eu sou devedor à Pátria, / E a Pátria me está devendo, / A Pátria paga-me em vida, / Eu pago à Pátria em morrendo"...

Quem disse que "é doce morrer pela Pátria", que dê primeiro o exemplo... Eu nunca consegui perceber os seus discursos patrióticos, dizendo-me que eu, o Henriques e mais uma chusma de instruendos do CSM, o Curso de Sargentos Milicianos, vindos dos quatro cantos de Portugal, éramos "a fina flor da Nação"... Gajos que tinham o 5º ano dos liceus ou equivalente. Outros o 7º ou o 7º incompleto. Sempre tinham mais letras do que a grande maioria da população, é verdade. Mas quem é que frequentava o liceu naquele tempo ? Só nas capitais de distrito havia liceus, nas vilórias como as nossas havia alguns colégios particulares, incluindo seminários (como o do Fundão onde estudou o grande escritor Virgílio Ferreira, e foi essa experiência que o inspirou, e o levou a escrever a "Manhã Submersa").

Para mim, desde os quinze anos, em 1965, quando comecei a escrever e a interessar-me pela vida política, tinha a estranha perceção de que era "a fina flor, sim, mas... do entulho". Na terreola onde nasci, lá nas berças... E era isso, que escrevíamos, por outras palavras, nos jornais de caserna em Tavira... Eu, o Henriques e outros soldados-instruendos de quem já não recordo nem nomes nem caras.

Fiz questão, há uns largos anos atrás, de visitar o antigo quartel da Atalaia, em Tavira, depois de lutar durante mais de quarenta anos contra a minha fobia em relação às coisas da tropa e da guerra, que me deixaram um amargo de boca e um sentimento antimilitarista. Os preconceitos têm raízes fundas, daí não ser fácil extirpá-los. No fundo, baseiam-se em experiências mais ou menos desagradáveis de cada um de nós (e, muitas vezes, na ausência efetiva de contacto com o objeto do preconceito).

Achei o quartel ainda muito mais pequeno do que no meu tempo. Aquilo parecia o Portugal dos Pequenitos. Não sei como é que, naquele espaço diminuto, cabiam tantas cabeças e pernas e braços, fardados, éramos algumas centenas de jovens na flor da idade, já com carimbo na caderneta e destino marcado: "Mobilizado para servir a Pátria na províncias portuguesa ultramarinas de... Angola, ou Guiné, ou Moçambique".

Por muito que eu me esforçasse, não consegui reviver os dois meses e meio que aqui passara, no último trimestre de 1968... Não consegui chamar até mim os fantasmas de alguns instrutores e comandantes de companhia, como o Robles, o Trotil e o Esteves a quem batíamos a pala com temor e reverência... Não me recordo do Robles, mas o seu fantasma pairava no ar... Eram heróis, cacimbados, da guerra de Angola, dizia-se...

Do Esteves, que foi meu comandante de companhia, meu e do Henriques, e tinha o posto de tenente, recordo-me da sua única frase de antologia: "Vocês são a fina flor da Nação"... E a malta repetia, baixinho: ... "fina flor do entulho"... Fina flor da merda da feira do gado da cidade, onde rebolávamos às quintas-feiras, fina flor da merda das salinas de Tavira, fina flor da merda das bolanhas da Guiné...

Nunca me passou pela cabeça, a não ser agora, que estou reformado, mas eu devia ter apresentadp, no regresso a casa, um "pedido de desculpas"... Devia ter devolvido a massa que o exército me pagou. O que era complicado: o "patacão da guerra" que ficou amealhado no banco, foi para a vida de estroina dos primeiros meses, na peluda, em Coimbra e depois Lisboa, e para pagar dívidas da família: as propinas do colégio da mana mais nova, num colégio de padres, na capital de distrito; um adiantamento para as despesas da boda da mais velha; um adiantamento ao velhote para o compensar dos calotes dos clientes...

Deviam-me ter pedido desculpas e aceitar de volta o "patacão sujo da guerra" (a expressão, acho que era do Henriques), que me pagaram a troco da intrujice de me considerarem parte integrante da "fina flor da Nação"... 

Acho até que fui vítima de um erro de "casting", devem ter-se enganado no nome e morada... Eu devo ter ido em lugar de um gajo qualquer da elite, da fina flor da Nação,   que, esse, sim, é que devia ter combatido (e até morrido, em caso de necessidade...) pela Pátria ou pelo menos pela parte da Pátria que lhe pertencia. Para mim a Pátria está dividida em duas partes: a que não era minha e a que era minha...Confesso, no entanto, que a linha divisória não era facilmente percetível...

"Fina flor do entulho" voltei a sentir-me eu, quando fui preso pela PIDE/DGS, depois dos acontecimentos da Capela do Rato, logo nos primeiros dias de janeiro de 1973. Ainda hoje estou para saber qual foi o meu crime e o móbil do meu crime...

Tinha vindo da Guiné há um ano e tal, em março de 1971. Completei o sétimo ano e matriculei-me na Faculdade de Letras, em filosofia, no ano letivo de 1972/73. Nunca me filiei em nenhuma "organização subversiva" (como então se dizia), contrariamente ao meu amigo da LUAR, que estava preso em Peniche no dia 25 de Abril de 1974. Muito menos andei a pôr bombas e sabotar os navios de transporte de tropas, ou as Berliet do Tramagal, ou os helis de Tancos. Estava demasiado cansado da guerra para voltar a "pegar em armas"... mesmo que a causa fosse justa.

Como é que eu fui parar à António Maria Cardoso e depois a Caxias, ainda hoje não sei, essa informação está omissa na ficha da PIDE/DGS que eu consultei na Torre do Tombo. Iu oura e simplesmente desapareceu. Estive detido três meses e tal,  sem culpa formada, e fui submetido à tortura do sono, como era uso e costume na António Maria Cardoso... Queriam nomes e moradas!... Por muito boa vontade que eu tivesse, não tinha nomes para dar, aos pides, sobre a "rede" a que eu alegadamente pertencia: chamavam-lhe "O Grito do Povo", uma organização que se destacava, na altura, pela denúncia da guerra colonial e pelo apoio aos desertores e exilados políticos...

Devo acrescentar aqui um pormenor caricato: quando já estava há vários dias e noites, na tortura do sono, à beira da exaustão, na véspera de ser interrogado por mais um inspetor da PIDE/DGS, há um novato que vem fazer o "turno" da noite... e que, de repente, me reconhece do tempo de Guiné:


- Meu furriel!... Sarmento?!...

O homem era da minha companhia e parecia mais incomodado do que eu pelo insólito da situação: eu, vítima, e ele, carrasco. Senti um frémito de horror só de pensar que ele estava quase tentado a abraçar-me:


- O que é faz... aqui ?


- Eu é que te pergunto!...Afinal, sou teu hóspede... Inverteram-se os papéis.


Intencionalmente, tratei-o por tu, tive esse rasgo extremo de lucidez. Enfim, conhecia-o bem, era o "escritas", o 1º cabo escriturário da companhia... Um tio, padre, aconselhara-o, a entrar para a PIDE, agora rebaptizada como DGS - Direção Geral de Segurança... "Tinha cama, mesa e roupa lavada. E vencimento de funcionário público ao fim do mês". Nada mais seguro, nos incertos tempos que corriam. E a "situação estava para durar"... Disse-me que ainda era "estagiário"...e estava a "aprender os truques" (sic) para poder integrar uma brigada de investigação.

O  meu guarda dessa noite era, afinal, um antigo camarada de armas!... Eu não podia crer!... 

Afinal, tínhamos ido e vindo no meu navio. E, naturalmente, sempre que eu ia à secretaria da companhia, lá estava ele a bater à máquina de escrever, no teclado HCESAR. E a tirar cópias a "stencil"... Confesso que nunca fomos amigos. De resto, éramos mais de 160 na companhia, e vovíamos em abrigos diferentes. Mas eu não tinha nada a apontar-lhe por eventuais palavras, ações ou omissões. Era um gajo igual a tantos outros, contando os dias do calendário que faltavam para acabar a comissão. Nem sequer sabia o que é que ele pensava da guerra ou da situação política, ou deixava de pensar. Se calhar nem pensava nada, como muitos outros, a grande maioria.

Pois é, a vida dá muitas voltas e é preciso "fazer pela vidinha"... Para alguns, a PIDE/DGS era um emprego, "seguro", tal como era a GNR, a Polícia de Trânsito, a Guarda Fiscal, a PSP, as finanças, os tribunais... 

Enfim, o "escritas" tentou ser "gentil" comigo, ao tentar justificar a sua opção de emprego no pós-guerra...Bêbedo de sono, ofendido e humilhado, acabrunhado, não conseguia manter qualquer diálogo com  o meu novo carrasco, de quem no entanto, devo acrescentar, sentia um misto de asco e curiosidade mórbida... Como é que um gajo que me parecia "minimamente decente", como era o "escritas" da companhia, um antigo camarada de armas, da Guiné, de 1969/71, se tinha tornado um pide ?

O cabrão do "escritas", que ainda tinha o sotaque nortenho, teve um tímido e atabalhoado gesto de compaixão, ao ver-me no mísero estado em que eu estava, um autêntico farrapo humano... Continuou sempre a tratar-me por furriel:

- Meu furriel, não fique de pé, sente-se aqui nesta cadeira. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas... E assim retempera forças. O inspetor tem horário de funcionário público. Só volta às nove horas, nove e tal, de amanhã, par não dizer dez. Até lá, o senhor tem a minha autorização para dormitar. Eu velo pelo seu sono. Estamos aqui os dois, sem ninguém nos ver, eu empresto-lhe a minha cadeira. Por mor dos tempos passados na Guiné... Por mor da nossa camaradagem... Se eu ouvir passos, dou-lhe um empurrão e acordo-o. Mas está tudo a bater sorna a esta hora da noite. Fique descansado...

Não foi, confesso,  o melhor sono da minha vida. Não consegui dormir em cima da cadeira do pide, meu ex-camarada de armas. Mas descansei as pernas, que estavam um trambolho, depois de tantos dias sujeito à tortura do sono. O meu medo era aparecer, de rompante, o filho da puta do inspetor e perceber a marosca... Espantoso, sem o querer, era eu que estava a vigiar o pide, e não o pide que me estava a guardar...Por volta das oito e tal, ele sacudiu-me e eu abri os olhos, esbugalhados... Só me disse:

- São horas de se preparar... Boa sorte. E desculpe lá qualquer coisinha.

Nunca mais, na vida, lhe pus a vista em cima ... Entretanto, às dez horas em ponto, como mau funcionário público, o senhor inspetor, bem barbeado, bem dormido, ainda a cheirar a café, a cigarro e a água de colónia barata, 
 veio-me fazer a sua visita matinal e trazer-me notícias, "uma boa e outra má, ou menos má":

- Também estive na Guiné, afinal fomos camaradas de armas, se bem que desempenhando papéis diferentes, eu na guerra da inteligência, em Bissau, e você de G3 em punho no mato. Ambos lutámos pela Pátria. Eu, ainda no tempo do general Schulz (ele dizia Schultz...), você do nosso general Spínola. Dois grandes chefes militares.

E prosseguiu, cínico, provocador, ameaçador e enigmático:


- A boa notícia é que vou soltá-lo. Não tenho mais razões por o manter aqui detido. E depois está a ocupar uma vaga no nosso hotel de cinco estrelas (referia-se aq Caxias...) que nos está a fazer muita falta. Não faltam clientes... Não temos, em boa verdade, nenhum facto, substancial, que comprove, de maneira clara e inequívoca, a sua ligação ao "Grito do Povo". 

Fez um silêncio de alguns segundos, respirou fundo e voltou, solene, a ser o dono do jogo:

A má notícia... é que você vai continuar a ficar debaixo de olho. Do nosso, claro. Se lhe posso dar um conselho, como ex-camarada da Guiné, não se meta com essa canalha, acabe o seu curso, e trate da sua vidinha. E, já que anda em filosofia, fique com esta máxima que eu lhe dou de borla: "Mais vale uma boa ditadura do que uma má democracia"... Estamos em guerra, lá fora, em África. Somos o bastião da defesa da liberdade do mundo ocidental. O apoio, direto ou indireto, à deserção e aos desertores é um crime de lesa-Pátria. Vista-se, recomponha-se... E desculpe lá qualquer coisinha.

Não sem antes de me ter posto ao ridículo, pela enésima vez, lembrando-me o "crime" de eu ter dado, ingenuamente, a minha morada para a entrega do correio, a um gajo meu conhecido da faculdade, que tinha passado à clandestinidade (sem eu o saber)... A correspondência passou a ser intercetada pela PIDE/DGS e eu caí que nem um patinho nos braços dos gajos...

... Ainda voltei a Caxias, para fazer o "check out"... Pequei na minha trouxa, com um nó seco na garganta, apanhei o comboio até ao Cais do Sodré e voltei ao meu quarto, numas águas furtadas da rua da Misericórdia, que estavam inteiramente por minha conta (tal como a caixa do correio). Tomei um banho, demorado, e fui ao Trindade comer o melhor bife da minha vida... No dia seguinte, voltei à Faculdade para dar uma explicação sobre as minhas "férias" de 3 meses tal por conta da PIDE/DGS... Não tiveram com contemplações. Chumbei por faltas nesse ano. Felizmente que um ano depois aconteceu o 25 de Abril.

E hoje,  ao fim de uma vida, só posso discordar do pide que me torturou, ao mesmo tempo que me dava lições de ciência política... Afinal, a melhor ditadura é sempre pior que a pior democracia. Os democratas é que são parvos, tratam os seus inimigos com tolerância e clemência...

Tanto quanto soube, mais tarde, tanto o "escritas" como o "senhor inspetor", estiveram na prisão de Alcoentre e foram uns dos tais 89 pides que fugiram pela porta do cavalo, em 29 de junho de 1975... Para Espanha, seguramente. E de lá estou a vê-los a mandarem, cinicamente,  um bilhetinho para as suas antigas vítimas:

- Disculpen las moléstias!...

J. Sarmento, Fundão, Quinta das Cerejeiras, 29/4/2019 

segunda-feira, 29 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19728: Notas de leitura (1173): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2016:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo à análise da tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre Fausto Duarte, um escritor e divulgador injustamente esquecido. Romancista, publicista e afanoso vasculhador de documentação que inseriu nos dos projetos a que deu toda a sua dedicação, o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.
Não se pode falar da literatura colonial na Guiné sem o pôr no pódio; não se pode falar na investigação e divulgação histórica sem o considerar como esforçado pioneiro na revelação da presença portuguesa naquela Guiné das praças e presídios. As entidades representativas da cultura de Portugal e da Guiné-Bissau só tinham a ganhar em mostrar Fausto Duarte tal como ele foi: um luso-cabo-verdiano emaranhado por grande paixão às terras da Guiné.

Um abraço do
Mário


Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (3)

Beja Santos

Fausto Duarte pertence à vasta lista de escritores, divulgadores e investigadores injustamente esquecidos. Homem de uma cultura medularmente europeia, orgulhava-se das suas origens cabo-verdianas e vai revelar-se como o nome mais sonante da literatura colonial guineense e o investigador e divulgador de mérito das coisas guineenses. Continuamos a abordar a tese de doutoramento de Benjamim Pinto Bull sobre a obra de Fausto Duarte, apresentada na universidade de Paris Sorbonne, no ano universitário de 1975-1976.

Fausto Duarte foi um importante investigador da história da Guiné. O seu propósito fundamental como Chefe da Secção História do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa era o de “inserir nas páginas do boletim material de grande importância histórica constituído por manuscritos, tais como avisos, contas, cartas patentes, consultas, registos, pareceres, etc e outros documentos que poderão interessar a quem se disponha a estudar as origens da formação da província e o seu progressivo desenvolvimento a partir da época em que a nossa ação estava circunscrita às pequenas Praças e Feitorias nascidas da exploração das fontes de riqueza dos Rios da Guiné… Por eles se conhecerá melhor o meio, e o homem, ou seja, a terra, o colono e o nativo, as suas paixões e as suas lutas”. Os artigos que ele publicou no Boletim denotam uma grande preocupação pelo rigor e o seu acrisolado amor por Portugal e pela Guiné: artigos em que abordava a mudança desde a época da permanente hostilidade ao branco até ao momento em que é o branco que passa a decidir tudo; Alexandre Herculano tribuno e a sua importante peça de oratória sobre a Guiné Portuguesa; uma chamada de atenção sobre o presídio de Bissau e o Ilhéu do Rei. Revela-se uma investigação para explicar uma estratégia de ocupação estrangeira frente a Bissau. Veja-se com mais pormenor.

O investigador pretende provar que três séculos após a sua descoberta a Guiné continuava a preocupar duplamente os portugueses pela sua insegurança, estamos em meados do século XVIII. De uma parte, as sublevações constantes dos autóctones e, por outro lado a presença indesejável no país de estrangeiros. Não era Bissau que atraía os franceses, era o Ilhéu do Rei, porque pertencia ao rei de Bissau, interessava cativá-lo para reduzir a influência portuguesa. Benjamim Pinto Bull encontra outra razão para este tipo de trabalhos de Fausto Duarte. Em 1950, a Guiné começava politicamente a mexer. Tudo se passava na clandestinidade mais absoluta. Era com interesse que os guineenses devoraram todos os artigos de história. O ilhéu, esclarece o autor, tinha uma excelente água potável e um clima mais agradável que Bissau. Era muito difícil a um simples turista, ou mesmo a um guineense não informado, de ter em conta a importância do ilhéu, dois séculos antes. Todo o comércio de escravos, de marfim e de cera passava pelo ilhéu do rei. Em meados do século XVIII, os franceses controlavam todo o comércio entre as ilhas Bijagós, Rio Grande e Serra Leoa, porque “ficava o dito ilhéu a menos de um tiro da peça da dita ilha de Bissau e que se os franceses se apossassem do ilhéu logo eram senhores da dita ilha e de todo o negócio daquela costa, com um grave prejuízo da Coroa”.

Todos os temas de história o interessavam: Aires Tinoco, que trouxe de volta a caravela de Nuno Tristão, em 1447; a rivalidade entre “Capitania” e “Igreja”, é próprio Fausto Duarte que explica o significado da rivalidade. A Capitania representava a Coroa e tinha como missão a supervisão absoluta da terra enquanto a presença da Igreja era de um caráter puramente espiritual, eram estes os dois grandes pilhares da conquista e da sua harmonia dependia a paz nas praças e presídios.

Fausto Duarte compulsou cartas de capitães-mores, feitores, bispos, visitadores e assistentes das praças e presídios da Guiné: feliz incitativa de nos pôr ocorrente de todos os problemas da Guiné-Bissau ao longo do século XVIII, publicando-as sem comentários. Dedicou igualmente atenção ao período em que a Guiné se desvinculou de Cabo Verde. É o caso do artigo sobre a Guiné ou Senegâmbia Portuguesa no tempo do Governador Pedro Inácio de Gouveia, publica o relatório de 10 de Outubro de 1982 deste segundo governador da Guiné, onde não se escondem as realidades e as numerosas contradições que cerceavam a ação do governador. O relatório tem o mérito de apresentar desapaixonadamente os aspetos políticos, económicos e sociais. A Guiné não tinha ainda as suas fronteiras bem definidas, já não havia tráfico de escravos, entrara-se com bastante entusiasmo no investimento agrícola, no conhecimento das potencialidades da terra. Isto num tempo em que a concorrência francesa era quase sufocante. Por carta assinada pelo rei D. Luís, em 18 de Março de 1879, dava-se a separação definitiva entre Cabo Verde e a Guiné, ficando claro que a Guiné Portuguesa seria uma província independente com governo sediado em Bolama. E Fausto Duarte não esconde as suas opções: “Terminava assim uma dependência de que apenas o arquipélago beneficiava”.

Benjamim Pinto Bull é muito parcimonioso na descrição que faz quanto ao trabalho de Fausto Duarte nos Anuários da Guiné Portuguesa de 1946 e 1948. O que é inexplicável e mesmo injustificável, é um dos trabalhos mais aturados e relevantes de Fausto Duarte, são levantamentos hoje incontornáveis para estudar a Guiné e mormente o que estava a acontecer graças à governação de Sarmento Rodrigues. Pinto Bull analisa detalhadamente o manuscrito da última obra de ficção de Fausto Duarte cuja publicação foi objetada pela censura, tal a crueza com que se fala de fomes e secas, miséria e emigração, é o texto em que excecionalmente Fausto Duarte regressa às suas origens cabo-verdianas. Curiosas são as análises de Pinto Bull sobre os contextos romanescos de Fausto Duarte e as suas principais ideias-força: as relações ilícitas, o conceito de “vencido” e os verbos vencer e lutar; a religião e a superstição. Em termos de conclusão, o doutorando mostra Fausto Duarte como um escritor que revela um grande desprezo pela hipocrisia, a ambição, as rivalidades e a inveja e a maledicência, erigido em defesa do povo guinéu e a insurgir-se permanentemente contra as expressões da violência colonial, caso das palmatórias. Define-o como um arauto da civilização portuguesa, um escritor que exalta o soldado, o missionário e o comerciante, em permanente orgulho pela gesta da civilização portuguesa naquele ponto de África.

Imagem que consta do Anuário da Guiné Portuguesa de 1946, organizado por Fausto Duarte, e já reproduzida no blogue
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Notas do editor

Postes anteriores de:

15 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19682: Notas de leitura (1169): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (1) (Mário Beja Santos)
e
22 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19706: Notas de leitura (1171): Um luso-cabo-verdiano que amou desmedidamente a Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de26 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19719: Notas de leitura (1172): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P19727: 15 anos a blogar, desde 23/4/2004: repescando velhos postes (3): Em homenagem, póstuma, ao cap inf José Cravidão (1942-1967) (Claudina Cravidão)

Cap inf José Cravidão (1942-1967)
1. Mensagem, de 28 de maio de 2013, de Claudina Cravidão, viúva do cap inf José Jerónimo da Silva Cravidão (Arroiolos, 1942- Farim, Guiné, 1967), cap inf, cmdt CCaç 1585 (Nema, Farim e Quinhamel, 1966/68), morto em combate em 4 de Junho de 1967 (*). 

Mobilizada pelo RI 2, a CCAÇ 1585 embarcou em 30/7/1966 e regressou à metrópole em 9/5/1968; era uma companhia independente; teve dois comandantes, o cap inf José  Cravidão e o cap mil inf Vitor Gama.

O cap inf José Cravidão era natural de Arroiolos, e é um dos muitos camaradas nossos injustamente esquecidos nos Dez de Junho destes anos todos, antes e depois do 25 de Abril. 

Fizemos questão de o lembrar, em 10 de junho de 2013, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, que se comemorou justamente em Elvas, a terra que acolheu os seus restos mortais. Deixou viúva e 2 filhas, uma médica e outra enfermeira (**)

A mensagem da viúva chegou-nos pelo mail do Jaime Silva [, o Jaime Bonifácio Marques da Silva, meu amigo do peito, grande camarada, membro da nossa Tabanca Grande, natural de (e residente em) Seixal, Lourinhã, professor de educação física, docente reformado do ensino superior politécnico, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72 [, foto à direita, acima]




2. Palavras da Claudina Cravidão [, Maria Claudina Marçal Lopes Silva], licenciada em educação física, colega do Jaime Silva, de curso, e amiga de Luanda, onde conviveram, antes do 25 de Abril] (**)


Jaime, muito obrigada, pela tua intervenção neste assunto. Andei um bocado em baixo, porque já sabes que estas coisas doem e, quando mexemos nelas, doem ainda mais, porque se tornam mais presentes.No entanto aconteceu e o inevitável não tem solução. Já reuni outras homenagens, como o terem dado o nome dele a um largo, ao fundo da rua onde ele morava, em Arraiolos [, Largo Capitão José Cravidão] , assim como uma lápide, bastante grande, na parada do quartel, em Farim [, Guiné], também com o seu nome.


Está tudo digitalizado, aliás mandei digitalizar numa casa de artigos fotográficos, mas as letras são muito pequenas, não sei se estarão bem legíveis. Penso que não pode ser de outra forma. Nestas coisas da Net, não sou nenhuma expert e, o que sei, são os netos que me ensinam.

Pensei 2 vezes, em ir com isto para a frente. O meu marido era um homem que não ligava nada a homenagens e a outras coisas do bem parecer... Ligava, sim, à verdadeira essência das coisas, por isso discordava muitas vezes da opinião dos chefes, que passavam o tempo nos gabinetes e nem sequer conheciam os locais por onde eles andavam. Sei que os homens [, da CCAÇ 1585,] o admiravam e gostavam muito dele, porque ele os tratava como homens, e não como carne para canhão.

Mas, depois de muito pensar, achei que não seria mal nenhum publicitar as homenagens que lhe fizeram. Como eu própria as publiquei no semanário "Linhas de Elvas", penso que as datas devem lá estar.


A última, a que a Sara (filha mais nova) te mandou e a mais completa, saiu no semanário "Linhas de Elvas" a 31 de dezembro de 2012. A do soldado de Pinhel foi publicada no boletim paroquial "O Falcão", em outubro de 1967. A foto da lápide deve ter sido enviada ainda em junho de 1967. A carta do furriel Joaquim Pedrosa, em 6 de junho de 1967, assim como muitas mais, mas são muito extensas, por isso só referi algumas frases mais marcantes.



Cemitério de Elvas: Lápide funerária de José Jerónim da Silva
Cravidão (4-6-1942 / 4-6-1967). Cortesia do portal Linhas de Elvas
Afinal estou com a foto da lápide, de 20 de agosto de 1967. Também há outros depoimentos, como o do capitão miliciano que o foi substituir [, cap mil inf  Vitor Brandão Pereira da Gama], assim como um alferes com quem ele se dava bem e que o tentou convencer a não ir a essa operação (, visto fazer 25 anos nesse dia), mas ele teimou e disse que iria com eles e foi.

A operação chamava-se Cacau, deslocaram-se de lancha toda a noite, até atingirem o objectivo: Bricama, uma base pesada dos turras. Estes, emboscados na outra parte da bolanha, deixaram que destruíssem as moranças e as queimassem e, já na retirada, quando se iam deslocar, para outro local, rebentou um violento tiroteio e foi quando ele foi atingido.

Segundo o alferes, quando se propagou a notícia, entraram em loucura [, os militares da CCAÇ 1585,] e, se ele não tivesse segurado os homens, seria uma carnificina, muitos mais teriam morrido. 


Foi uma única bala, entrou na parte da frente, atravessou o fígado, causando hemorragia interna e saiu nas costas. Era a hora dele. Conforme ele dizia, estava escrito.

Para não te incomodar com todas estas coisas e, visto vires para baixo no fim do mês, estava a pensar enviar directamente as coisas para o teu amigo, pois tenho o mail dele. Diz-me o que queres que eu faça. O livro do teu amigo [, não sabemos de quem se trata... (LG)] deve chegar amanhã, pelo correio, à cobrança. 


Quando fico mais em baixo, digo para mim mesma "não penses nisso, pensa nos momentos bons que viveram" e tu faz o mesmo, umas vezes resulta, outras não, mas cada um carrega a cruz à sua maneira. Não é uma questão de catolicismo, mas acredito mesmo que nada acaba aqui. Só a carne morre, o espírito vive, se algum dia pudermos falar, verás que é assim.

Vou escrever ao Luís Graça, só para lhe agradecer a disponibilidade e a gentileza que tem mostrado. Fotos, vão muito poucas, porque as muitas outras que possuo, são pessoais e essas não se publicam. 


Podes reencaminhar o mail, para o teu amigo, para não escreveres tanta coisa, ou então sintetiza,mas eu queria saber se mando o que está digitalizado, para ele ou para ti. 


Um abraço grande para ti e para a Dina (minha homónima, pois também há muita gente que me chama Dina - é a terminação dos nossos nomes.). 

Beijinhos. (***)


3. Comentário, de 3/6/2017, 00h15,  de Carlos Alberto Alves Soares  ao poste P11691 (****) [, infelizmente, ainda não consegui contactá-lo, mas é amigo do Facebook da Tabanca Grande].


Amigo Luis Graça, eu sou Carlos Alberto Alves Soares, ex-Furriel Miliciano da Companhia  de Caçadores 1585, gostaria de saber o seu contacto telefónico para o contactar e falar da situação que a minha Companhia viveu na Guiné de Agosto de 1966 a Maio de 1968 e levar-lhe o livro verdadeiro que contém toda a vida da 1585, pois fui eu próprio que a escrevi e a cópia da que foi enviada ao Ministério do Exército,sou eu que a tenho.

No passado dia 27 de Maio de 2017 efectuámos mais um almoço convívio em Caldas Rainha, correu tudo bem. Duas semanas antes escrevi á Srª D.Claudina Cravidão a convidá-la para assistir ao convívio, já que no próximo dia 4 de junho [de 2017] faz 50 anos que o esposo faleceu. A Srª escreveu-me,  dizendo da sua impossibilidade. A Companhia tem um "site" no Google com alguma atividade (,muito pouca). O meu contacto telefónico é 918 245 449 e o email é : carlitosarelho@gmail.com. 


(**) Vd. poste de 10 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11688: In Memoriam (152): Cap inf José Jerónimo Manuel Cravidão, cmdt da CCAÇ 1585 (Nema e Farim, 1966/68), morto em combate há 46 anos, em 4 de junho de 1967; natural de Arraiolos, os seus restos mortais repousam em Elvas; nunca foi condecorado (Claudina Cravidão / Jaime B. Marques da Silva)