1. Texto do A. Marques Lopes:
Caros camaradas:
Para intervalar nesta salutar polémica do quem disse o que disse, envio-vos alguns textos de um autor ainda desconhecido. Faz-nos recordar muitas das nossas vivências.
«...Manhã cedo em Canhagina. A bolanha! Quem diria que a bolanha é um pântano... Após os primeiros dias da época das chuvas é maravilhosa. Estávamos a 23 de Junho. Com uma precisão quase matemática, as chuvas começaram a cair aí por volta do dia 15. Do solo, da vegetação luxuriante desprende-se um vapor que paira sobre as águas e envolve o ambiente. É o calor acumulado durante o período seco. Há quem lhe chame cacimba e quem diga que é prejudicial à boa saúde das vias respiratórias... mas, aos 23 anos, não há cacimba que impeça os pulmões de respirar poesia. Se há coisas belas que eu tenho visto na minha vida, uma delas, é, sem dúvida, a bolanha da Guiné, cercada por palmeiras, cibos e tufos de capim.
" (...) A bicha de pirilau, ao longo de quase trezentos metros, pondo em relevo, na paisagem verde, todas as sinuosidades do antigo carreiro já quase totalmente coberto, movia-se como um réptil enorme, segmentado e escamoso. O silêncio profundo e agradavelmente sombrio da mata era apenas cortado pelo roçar das botas de lona e dos camuflados pelas ervas e folhagens que acompanhavam o carreiro. Ambiente para piqueniques e amor. Na hora em que o intenso sol tropical só conseguiu ainda afastar e diluir a luminosidade doentia libertada durante a noite por aquela vegetação farta de clorofila, mantinha-se o meio termo da frescura agradável que faz da Guiné um dos locais mais belos e repousantes às sete horas da manhã.
"(...) Enterrei os galões no sítio onde jazem tantas noites de amor africano. Achei que não me servia ali a Convenção de Genebra, que o meu futuro de prisioneiro seria melhor se não soubesse o meu posto... Estranho, agora, como é que fui assaltado por essa estúpida ideia de avaliar nesses termos a enrascada em que me encontrava.
"Ali, deitado sobre a terra, desejoso de nela me afundar, como quem dorme com mulher, deixei a minha condição humana. Ali fiquei, alapado como um coelho que segue os passos do caçador à espera do momento oportuno para fugir.
"Levantei a cabeça e espreitei por cima do capim alto. Tendo abandonado as suas posições de combate, os turras avançavam em linha ao longo da clareira, lançando rajadas curtas de costureirinhas e kalashs. Estou a vê-los, numa imagem de ocasião, sem saber ainda se é real se imaginária: fortes, atléticos mesmo, em passadas decididas, senhores da vitória. Despertou em mim o animal cujas reacções são comandadas pelo instinto de sobrevivência e, ao mesmo tempo, o animal especial que eu era: o animal domesticado que eu era para reagir a determinados sinais e estímulos. Mais do que um naturalista, estou agora apto a compreender todo o mecanismo de comportamento do animal encurralado por numerosos caçadores. Não há computador electrónico, por mais perfeito e programado, que consiga dar a solução tão acertada e rapidamente como o maquinismo instintivo da sobrevivência, aliado ao treino para reagir às mais variadas situações.»
2. Já dei os parabéns ao futuro autor de um best seller sobre a guerra da Guiné! O nosso jagudi anda inspirado, criativo e produtivo… Parabéns, coronel! ....Só não sei ainda onde fica Canhagina... ! Também não importa: fica-me a poderosa impressão de, como há trinta e tal anos, atravessar uma bolanha da Guiné... Sém dúvida: com a cacimba (substantivo feminino), às sete da manhã, era um dos lugares mais perturbantes e fascinantes do mundo... Não gostaria de morrer sem voltar a... Canhagima! ... Ou talvez não: estão a matar as bolanhas da Guiné, um dos lugares mais belos da terra. O assassino chama-se... caju. (L.G.).
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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