Quando comandou a Op Lança Afiada, algumas vezes a pé (já que o Spínola ou a Força Aérea não lhe dava um helicóptero em exclusivo para ele poder ter, a tempo inteiro, o seu PCV - Posto de Comando Voador), o coronel Hélio Felgas ia fazer 49 anos. Tinha a idade do meu pai. Talvez, por isso, é que eu fico com o coração mole, abstendo-me de fazer juízos de valor sobre o seu desempenho nesta mítica operação. Pelo relatório da operação que aqui publicámos não se fica saber quantas noites ele dormiu no mato, ao lado dos seus soldados, se é que dormiu alguma, no período que de decorreu entre 8 e 19 de Março de 1969.
Nunca fiz nenhum operação com ele, pelo que não me permito criticá-lo, como militar. Fiz uma operação com um tenente coronel, misturado com os nossos nharros, embora de um dia. Isso foi o suficiente para passarmos a ter-lhe respeito. Seu nome: Polidoro Monteiro.
Sei que alguns milicianos do nosso tempo (do meu e do Humberto) não apreciavam o então coronel Hélio Felgas, como pessoa e como militar. A mim só me interessa hoje o que ele escreveu, as suas ideias, o seu testemunho como combatente na Guiné que ele também foi, em duas comissões (1963/64 e 1968/69). O resto fica para os historiadores...
Por outro lado, como velho combatente da Guiné, ele merece o mesmo respeito que qualquer um... Ele estava num quadrante político-ideológico completamente oposto ao meu e, inclusive, defendeu ideias sobre a guerra total na Guiné que ainda hoje me horrorizam. Se algum dia ele tivesse chegado a Com-Chefe, seria tentado a "passar tudo a ferro"...
Em finais de 1968, ele estava em rota de colisão com Spínola. Como comandante da Op Lança Afiada é desautorizado e humilhado por Spínola: reveja-se o episódio das Lanchas de Desembarque no Rio Corubal... Em todo o caso deram-lhe a Torre e Espada, em 1970. Os seus amigos da ala dura do regime, pois claro. Ele faz questão de sublinhar que foi o Chefe de Estado, o Almirante Américo Thomaz, quem o condecorou no 10 de Junho de 1970.
Mas vamos ao que interessa. Eu e o Humberto Reis seleccionámos algumas partes do depoimento do nosso brigadeiro (e nosso comandante, enquanto coronel) sobre a guerra da Guiné... Recorde-se a fonte: o livro com o título "Os últimos guerreiros do império", editado pela Erasmo (Amadora, 1995). Hoje publicamos a segunda parte que é sobre as emboscadas (ele diz que sofreu 26 só na Guiné).
As emboscadas
As emboscadas eram feitas quer a colunas motorizadas quer a tropas que se deslocavam a pé Nas primeiras, a explosão de uma mina anticarro sinalizava o começo da cilada (1).
Tenho uma fotografia que mostra o que se passou logo após ter rebentado uma mina sob a roda de um Unimog dos grandes (2). A viatura ficou destruída e sofremos dois mortos e dezasseis feridos. Tirei a fotografia porque o meu jipe também passara por cima da mina sem a fazer rebentar. O lugar do condutor da primeira viatura de uma coluna motorizada era especialmente perigoso (3). Por isso, além dos sacos de terra que se amontoavam ao lado dos pedais e por baixo do assento, havia uma escala de condutores, também chamada «escala de condenados». Não raro vi o condutor de serviço a rezar, antes de a sua viatura começar a rodar à frente da coluna.
As emboscadas começavam sempre por uma rajada repentina de metralhadora. Seguia-se o característico «rasgar» das pistolas-metralhadoras, escondidas sabe-se lá onde; os tiros isolados das armas de repetição; as explosões das bazucas, dos morteiros ou das granadas de mão. Enfim, aquele inferno que poucas vezes durava mais do que uns minutos, mas parecia sempre durar horas.
Quando tudo se calava surgia a preocupação das baixas, transmitidas pelos postos-rádio dos pelotões: «Tínhamos tido baixas? Havia feridos?» . Se a contagem terminava sem novidades, nada se comparava ao optimismo dos nossos soldados, já então lançados na perseguição de fan-tasmas. Sim, porque só raramente se via quern causara toda aquela barulhenta confusão.
Mas, se alguém tivera azar, que raiva e que dor se podiam ler nos semblantes carregados dos companheiros. Não mais poderei esquecer a palidez mortal do portador do meu posto-rádio no dia da sua «estreia».
Por vezes, nas emboscadas tínhamos baixas que era necessário transportar em macas, durante quilómetros. Só quem passou por isso tem ideia do sofrimento e do cansaço que atingiam tanto as vítimas como os seus transportadores. E quando havia mortos, carregá-los às costas durante horas era um factor desmoralizante, que só acabou quando a Força Aérea passou a dispor de meios para os ir buscar (4). Os helicópteros salvaram muitas vidas devido a oportunidade da sua presença.
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Notas de L.G.
(1) Sobretudo nos primeiroa anos de guerra. No meu tempo (1969/71), ia um sempre um numerosa equipa de picadores, com um grupo de combate a protegê-los, a "abrir caminho"... Mesmo assim, havia minas que não eram detectadas... No tempo das chuvas, a detecção das minas tornava-se um pesadelo...
(2) Unimog 404, sendo o 411 o mais pequeno (conhecido por "burrinho").
(3) O lugar ao lado do condutor, ocupado em geral por um graduado, era também conhecido como o "lugar do morto". Era onde eu ía, em 13 de Janeiro de 1970, quando a nossa GMC deu um coice que terá durado uma eternidade (5)
(4) Nunca vi nenhum helicóptero a transportar os mortos do nosso lado.
(5) Vd. pots de 23 de Setebro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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