sexta-feira, 18 de novembro de 2005

Guiné 63/74 - P278: Projecto Guileje (5): contra o demónio étnico (Lui´s Graça)

1. Há tempos escrevi ao Carlos Scharwz, da AD - Acção para o Desenvolvimento, transmitindo-lhe algumas reticências e dúvidas (legítimas) dos nossos amigos e camaradas de tertúlia (Sousa de Castro, Humberto Reis, David Guimarães, entre outros), relativamente ao projecto Guileje. Eis as questões que eu lhe pus:

"Era bom dares mais detalhes sobre um dos subprojectos, a reconstrução do quartel... Alguns camaradas torceram o nariz: será viável (do ponto de vista técnico, ambiental e financeiro) reconstruir o aquartelamento ? tens contactos com a antiga companhia acçoreana que lá estava em Maio de 1973 ? que valor simbólico tem hoje Guileje para os guineenses ? não haverá outras prioridades ? Enfim, são perguntas legítimas"...

2. Responde-nos agora o Carlos Scharwz, a quem agradeço:

Luís,

Vou procurar responder às questões levantadas sobre a pertinência da reconstrução do quartel de Guiledje.

(i) Viabilidade técnica, financeira e ambiental:

Quando se fala em recuperar o quartel, estamos a referir-nos a utilizar as antigas instalações para actividades viradas para o futuro e não como simples depositários de memórias e recordações.

Por exemplo:

- as messes serão usadas como salas de aula do futuro CENAR (Centro de Aprendizagem Rural), onde os jovens adquirirão conhecimentos profissionais (electricidade, carpintaria, pedreiros, ferreiros, etc.) ou de artesanato (construção de camas, armários e mesas em bambú, tara e mampufa; recuperação e produção de máscars e esculturas nalús; etc.);

- a secretaria será a sede do Parque Transfronteiriço de Cantanhez;

- as casas da população será o local onde serão construídos os futuros bangalows para acolher as pessoas que visitem e turistas;

- a cantina será o museu; e assim sucessivamente.

É importante que se diga que não vamos contratar nenhuma empresa para a reconstrução do quartel. Ela será gradualmente feita utilizando o apoio comunitário e pagando a jovens carpinteiros e pedreiros locais. Os custos serão, por isso, muito baixos e evita-se ter infraestruturas luxuosas. Não se pense que se trata de retórica nossa, pois ao longo dos 14 anos a AD tem construído centros de saúde, escolas, centros culturais, casas de ambiente e cultura, etc., sempre com esta metodologia. Com resultados muito bons.

Ambientalmente a reconstrução preservará integralmente todas as árvores que existem e que dão um clima e tranquilidade muito agradáveis. A procura de um arquitecto paisagista é já o reflexo desta nossa opção.

(ii) Valor simbólico para os guineenses:

Para os mais velhos e os de meia idade, Guileje continua a ser um marco decisivo para a conquista da independeÊncia da Guiné-Bissau e o voltar da última página da luta. Foi o momento determinante que decidiu a guerra.

Poucos restam dos que participaram nesse acontecimento. É uma responsabilidade actual e urgente não os deixar morrer sem que nos transmitam o seu testemunho.
Para a concretização da iniciativa Guileje, fizemos apelo a várias pessoas dentro e fora da AD. A resposta deixou-nos absolutamente surpresos pelo entusiasmo e entrega.

(iii) Não haverá outras prioridades?

Claro que, se perguntarmos à população local, eles enumerarão as suas actuais prioridades: saúde, escola, água, meios de transporte.

Para a AD também estas são prioridades suas, não só claramente expressas nos seus estatutos, como na prática dos seus 14 anos e também no projecto que envolve a componente Guileje e que compreende o apoio ao Centro Materno-Infantil de Iemberém (análises clínicas, assistência às mulheres ante e pós-parto, campanhas de vacinação, etc.), a construção de escolas primárias (nos últimos 2 anos construímos 11 escolas, todas elas com latrinas e poços de água).

No entanto, para a AD, são tão importantes estas prioridades como a da sua sustentabilidade futura. Nenhuma escola ou centro de saúde funciona quando se instala uma lógica tribal, tanto a nível nacional como local. O demónio étnico que agora conquista terreno na Guiné-Bissau (e não só), leva a que se priorize o combate a esta lógica, sob pena das tais outras iniciativas prioritárias morrerem logo à partida.

Para a AD a recuperação da memória da luta de libertação, que é pertença de todos, independentemente das respectivas etnias, pode desempenhar um papel importante na coesão nacional e na procura de consensos nacionais.

Por outro lado, há que aliar o passado ao sentimento de progresso futuro, para que a identificação e coesão nacional não tenha um cunho passadista e saudosista, mas seja dinâmica e aglutinadora. Incrementar o ensino profissional onde ele nunca foi feito e onde os jovens estão entregues a si próprios e a repetir exclusivamente o percurso dos seus pais, ou então a emigrar para o estrangeiro ou centros urbanos, é uma iniciativa prioritária.

O ecoturismo vai permitir às associações locais de jovens e mulheres, beneficiarem financeiramente através de guias turísticos locais, venda de artesanato, esculturas, restauração e alojamento. O ambiente permitirá a defesa da biodiversidade, especialmente da fauna selvagem e da flora que é utilizada para medicamentos naturais.

Daí que a recuperação do quartel (que nunca será um quartel, mas um polo de desenvolvimento) se justifique plenamente.

Basta ver o entusiasmo que a população local está a emprestar às primeiras iniciativas já em curso (limpeza e demarcação da zona geográfica do quartel).

Sei que, quando se escreve, dificilmente se consegue explicar bem o que uma conversa ajudaria a esclarecer melhor.

Daí que insista na minha disponibilidade em encontrar-me, quando aí for em Fevereiro de 2006, com as pessoas interessadas nesta iniciativa para batermos um papo e tirarmos as dúvidas restantes.

abraços
Carlos

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