Foto: © A. Marques Lopes (2005)
Texto do Idálio Reis (ex-alf mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1)
Uma carta do Mário de Oliveira. Ontem, do apego à vida, aos traumatizados de guerra de hoje
Caro Luís
Num destes dias, formulaste um convite ao Mário de Oliveira para entrar no blogue (2). Desde logo, ele teve o feliz gesto de nos presentear com um excerto de um dos seus livros, quiçá o mais conforme aos nossos propósitos.
O Mário detém um condão singular, que sempre sabe utilizar com uma rara e fluente intuição, tal o modo como prima a sua descrição narrativa, no enlevo das suas palavras.
Mas, para além da sua dotada craveira que o alcandora a uma justificada posição no campo das letras, de um saber académico que toma vulto, o Mário é uma personalidade de fortes ideais e convicções, de uma frontalidade irreverente a concitar um grande respeito, de uma integridade e singeleza de carácter que o cauciona como exemplo, de uma singular dedicação afectiva com o próximo.
Repleto homem de referências, que lhe confere um estatuto de cidadania ímpar, certamente a merecer um comportamento bem diferente daquela que os Poderes instituídos, a que se agrega uma Igreja enquistada e abstrusa, o vem votando a um infame ostracismo.
Li atentamente a sua magnífica aula. Na clarividência do modo em que a expressa e manifesta, intui em si um propósito, o de sugerir uma certa reflexão.
Neste apanágio que nos é concedido, compraz-me na gratitude deste momento que me é conferido, tecer alguns considerandos, cujos pontos de incidência revestem uma atitude conciliatória, expressos através de ideias que desejo formular numa aberta e clara relação de conformidade.
1. «O Mário coloca uma série de interpelações quanto a um eventual beneplácito dos nossos pais e de nós-próprios, ao terem aceite partir para a guerra de África sem o assumir de qualquer resistência... »
As razões que determinaram a isso, foram tantas, que nós todos as colhemos amargamente, dada a grave situação política e social que grassava no País tirano de então.
Qualquer jovem desse tempo sabia que iria ser apurado para todo o serviço militar, e as hipóteses de a curto prazo não demandar África, eram muito remotas. A prestação desse serviço era pois obrigatório, e desde logo, a cumprir com rígidas regras de procedimento.
(i). Começava pelo dia das sortes, que era um etapa entusiasmante na vida de um moço de 20 anos, pois iria marcar a emancipação perante os pais e mesmo no próprio meio de inserção. A obtenção dessa alforria, até tinha direito a que se promovesse uma festa de arromba, como forma para usufruir de eventuais benesses conseguidas por esta ascensão.
Doutrinados para aceder de bom grado, como préstimo de um dos mais honrosos tributos à grei, esse mesmo dia também era de felicidade para os nossos progenitores, em especial para o pai que se ufanava de ter um filho feito homem, à medida da Pátria que iria servir.
(ii). A grande generalidade de nós provinha do oculto mundo rural, pobre e enegrecido. De parcas posses, saía-se da escola quedado pela 3ª ou 4ª classes, e aí se estagnava a um averso iletrismo, para se iniciar na calejada azáfama do trabalho, em geral na ajuda da casa ou então impelido para aprender um ofício a augurar um melhor futuro.
De horizontes cerrados, isolados, submissos aos ditames do poder paterno, despreocupados por mor de ignorância do que se passava extramuros, vivia-se mais interessado com as façanhas do clube do futebol da sua simpatia, e à medida que os corpos desabrochavam, ia-se esmerando para as manifestações dos fins-de-semana que mais os entusiasmavam: os bailaricos.
Inclusos neste meio, havia outros, muito poucos, oriundos de famílias de maiores recursos, que iam estudar para o colégio mais próximo, que os obrigava a calcorrear alguns quilómetros postados sobre uma bicicleta. E deste grupo, em que se tornava fundamental atingir o então 5º ano do Liceu a fim de se alcandorar a um outro estatuto, só um número muito restrito acaba por conseguir tirar um curso superior.
(iii) . A outra fracção é ou tornou-se urbana, ainda que bastante híbrida, mas assente numa perspectiva de horizontes com outros rasgos. Esta geração, é contudo mais heterogénea, onde é possível encontrar toda uma miscelânea social, concorde ao gabarito das famílias de origem. Um leque multifacetado, de vários graus e condições, que se estende da classe operária mais carente, à da mais alta estirpe com reconhecimento pela distinção no porte e atitudes.
É muito em especial das classes mais favorecidas, gente de bem, seja pelo seu poder financeiro, ou pelas suas ligações tentaculares com o Poder, a quem se propiciava guindar a um outro sistema incomum de valores, e conseguir os preciosos favorecimentos para os filhos.
(iv) . Desta amálgama, o Estado Novo nada descurava, sempre atento e vigilante a tudo reconhecer. E a sua actuação, a propaganda de aliciamento que urdia, tinham destinatários feitos à estrita medida de cada um de nós. A uns poucos tornava-se necessário prestar-lhes atenção, em especial a certos universitários, de forma a coarctar-lhes qualquer ousadia, sem o mínimo pejo de tomar uma atitude de maior agressividade.
A grande generalidade dos outros, estavam arrebanhados em tenro pascigo.
Neste diferenciado e estratificado caldo cultural em que só uma substantiva parte era miscível, não foi seguramente por mero sortilégio ou porque ousasse tomar uma atitude mais revel, que me coube a especialidade de atirador de infantaria, que era aquela que nenhum desejava. Hoje reconheço que não poderia ter outra, pois as minhas origens eram demasiado rasas para obter qualquer outra benesse: a mínima da menor.
(v). Mas todos nós, não tínhamos conhecimento que havia uma guerra em África? Sem qualquer dúvida que sim, onde até haviam amigos e familiares, que de vez em quando nos mandavam um aerograma a narrar algumas facetas, onde as saudades mais se sublinhavam, e em que um mais ousado deixava transparecer algum ai mais lamentoso de algumas situações mais atribuladas.
Quantas vezes, estivemos presentes a funerais de conterrâneos ou companheiros, ou a ficar lidar com outros que regressavam em situação de estropiados da guerra? E ante tais tragédias, ficávamos indiferentes? Claramente que não.
Mas mais uma vez, o Estado Novo quase que tinha o condão de nos narcotizar, pois propalava que tais sacrifícios eram feitos em nome de uma Pátria una e indivisível, e que o nosso contributo seria essencial para a vitória certa. E para os que davam a vida, a melhor forma de lhes prestar homenagem, assentava no testemunho de fidelidade a que não nos poderíamos furtar.
E se no dia de hoje, nesta aldeia se testemunhava à sofrida dor da morte, porventura amanhã, num lugar próximo, já estralejavam foguetes e soavam acordes de uma banda de música, a vitoriar o que regressava na protecção da Senhora de Fátima. Procedimentos pessoais inextricáveis, que uma avara e cavilosa acção governativa sabia ardilosamente temperar a seu gosto.
E a guerra, o que era? Para espíritos inscientes, era melhor não julgar. Ficava por aclarar, sentindo-a. E África, até não era um lugar de fixação de muitos Portugueses em busca do seu sustento?
(vi). E cegos partimos. E para a grande generalidade dos que demandaram a Guiné, só sentiram no metralhar no lodo da bolanha ou mesmo no antro de uma trincheira, então que ficavam à mercê de um fadado destino, rogando que a Fortuna o bafejasse.
Aos que tiveram a ventura de chegarem salvos, se por absurdo se vissem confrontados quanto a um eventual regresso, então julgo que a grande generalidade engendraria usar um qualquer estratagema para que experiências penadas não tivessem eco. À primeira todos caem!
2. « O Mário refere-se aos que não obedeceram, apontando os que fugiram, alguns por medo ou covardia, mas a maior parte por convicção, porque estariam mais politizados... »
(vii). Mas quantos desertaram? Muito poucos, mesmo os que viriam a conhecer que o destino próximo era a Guiné. Os rurais não tinham qualquer hipótese, pois que uma fuga era uma aventura a requerer ter como posse uma teia de fortes conhecimentos e a exigir um substancial suporte financeiro, pois não podia fracassar. Os mais urbanizados não necessitavam dessa fuga, pois estavam bem enquadrados no xadrez militar, com boas especialidades que os faziam deter nas cidades. Na Guiné, houve uns tantos, que fizeram a sua comissão em Bissau, sem ouvirem um tiro ao perto, sem lhes ocorrer qualquer perigo.
Mais do domínio dos não-graduados, tentava-se a compra de comissões de serviço, por troca entre colegas, ou então através de suborno, nos bastidores das secretarias.
(viii). Dos poucos que fugiram, se alguma vicissitude se lhes deparasse, haveria o aconchego financeiro bastante até à sua real inserção no País que lhes ofertasse guarida. E porque foi graças ao 25 de Abril, que a grande generalidade acabou por regressar, pergunte-se-lhes pela razão da sua saída do País.
Mas não me apontem que o fizeram por objecção das suas consciências, que os contrariava a participar na guerra fratricida de África. Que me desculpem todos os meus concidadãos que se furtaram à guerra colonial, mas eu só encontro uma razão. Temor.
Fizeram-no por medo, instigados por familiares ou amigos mais próximos, que estavam conscientes da sujeição às ciladas e aos riscos que num qualquer imprevisto momento poderiam incorrer. E se detinham todos os meios para deles se libertarem, por que não utilizá-los como fiança de maior segurança e salvaguarda das suas vidas?
Não me move qualquer ressentimento à tomada dessas posições, pois até julgo crer que se o meu berço fosse mais prendado, também poderia vir a tomar idêntica resolução.
(ix). Todavia, passados mais de três decénios sobre estes acontecimentos, torna-se-me particularmente difícil aceitar, porque nos é hostil, perverso, penalizador, que a grande generalidade dos trânsfugas viessem a ser aureolados de heróis, pelas putativas firmeza e arrojo que então cometeram.
Ao invés, nestes últimos anos, quedo-me taciturno e complacentemente, ao reconhecer que uma substantiva parte dos verdadeiros combatentes das frentes da guerra, subjugados a ferro e fogo impiedosamente, e que se encontram algures por este País, anónimos cidadãos, entregues a si-mesmos, atormentados por uma série de maleitas do foro psicossomático, compulsivas, destrutivas, atrozes, que a nossa sociedade está avessa por omissão, e que só encontram algum lenitivo quiçá nas suas famílias.
Ao constatar que ninguém quer dar a mão a estes desgraçados homens, cingidos a uma teia burocrática sem um vintém, nesta avalanche progressiva e inconsequente dos que sofrem o martírio dos stresses de guerra, sentimo-nos estarrecidos ante tal processo de aviltamento. Que madrasta Pátria é esta, que degreda os seus filhos a tais situações, só porque sobre eles impedem um estigma que mais parece pecado capital, de terem a desdita de doar uma pequena fracção das suas vidas à mais abjecta das submissões. Quão triste conclusão esta. Ao vociferar contra esta tamanha iniquidade, reclamo-lhes uma digna e merecida justiça.
3. « O Mário frisa que foi na Guiné que iniciou o seu êxodo para a liberdade, responsabilidade e cidadania... »
(x). Quase é dado a entender, porventura aos menos complacentes, que tal asseveração no modo em como aqui se insere, se pretexta parecer ser preconcebida. Contudo, subjaz na sua fundamentação, uma reconhecida perspectiva apaziguadora, depurada, que a Vida claramente soube envolver e que só a posse desse bem supremo consegue reconhecer.
Pois assim é.
Qualquer um de nós, em plena flor da vida, que durante quase 2 anos se viu despojado de todo o tipo de privações, impiedados pela perfídia de um minúsculo estilhaço de metralha mortífera, macerados por envolvimentos horrendos, desde o doloroso sofrimento das feridas até ao tombar inerte de tantos companheiros, e que foram e se mantêm, a causa de tantas angústias, consternações, medos, pesadelos, é jus reconhecer que suportou um extenuante, convulso, inclemente e violento embate de sobrevivência.
E é neste impetuoso turbilhão de compadecimentos continuados, que se geram arreigadas razões para pulsões conflituais, consubstanciadas pelo instinto de conservação. Torna-se um sentimento que mais se exacerba quanto maior é a antevisão do perigo, quando nos faz proclamar veementemente que somos detentores de um bem único, inalienável, mas que dada a vulnerável gravidade de risco a que está exposto, o mesmo poder-se-á esvair num súpito instante e tudo acabar inexoravelmente.
E este marcante apego à vida, toma um velado efeito multiplicador, pois que se alapa de forma bem sôfrega por todos. E foi nas ocasiões mais crispadas, e no vagaroso passar das noites desmedidas, que disformes carapaças se adoptavam para a coragem, na frieza, no comedimento, na atenção, na prudência, no desvelo, no que ela nos parecia requerer para aquele instante.
Seguramente que era na manutenção incessante dessa acesa chama, que mais sentíamos o valor infindo da riqueza desse tesouro. Talvez por isso, mesmo encafuados nessas grilhetas, debatíamo-nos por um outro tipo de luta conglobada, assente numa segredada esperança de um aferro obstinado à Vida.
E é nesta forte determinação, que nos forjámos homens mais autênticos, buscando veredas que nos levassem a atingir os propósitos que cá tínhamos deixado, em encomendas por aviar.
Que não restem dúvidas, a ter havido salvo regresso, outro tipo de homem ressurgia inteiramente diferente, cidadão pronto a arrostar contratempos para alcançar os seus reais anseios, pois mais dignos e responsáveis.
Profundamente conscientes do valor da Vida.
Idálio Reis
___________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69 )
(2) Vd. post de 17 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXV: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira )
A propósito da entrada do Padre Mário de Oliveira na nossa tertúlia, o A. Marques Lopes escreveu o seguinte, com data de 17 de Maio último:
(...) "Aproveito para manifestar a minha satisfação pela entrada do Mário de Oliveira na nossa companhia. Quando trabalhei no Campo das Letras fiz o primeiro contacto com ele, creio que em 1994, e ainda bem, pois esta editora já tem publicados vários livros dele. É boa a vinda dele, pois, com a sua experiência de vida própria e a abertura que tem na visão que faz da sociedade e das outras pessoas, estou convencido que será um bom contributo para a nossa tertúlia".
Recorde-se que o Mário de Oliveira, mais conhecido por Padre Mário da Lixa, foi capelão militar em Mansoa: vd. post de 14 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCL: Capelão militar por quatro meses em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
1 comentário:
Recomenda-se tratamento de foro psiquiátrico!!!
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