quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Guiné 63/74 - P2073: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (8): O Fula, a galinha e o vestido

Mais um estória do Rui Felício, um dos baixinhos de Dulombi (1):

1. Há imensos testemunhos da simpatia e amizade que o povo da Guiné-Bissau nutre pelos ex-combatentes portugueses.

Vários nos nossos camaradas tertulianos, que foram ou vão regularmente a este país irmão, (a empatia entre povos é que torna os países irmãos e não os tratados oficiais entre governos) trazem notícias comovedoras de guineenses que, apesar dos anos já volvidos, ainda os reconhecem e recebem como amigos.
Fazem-lhes pequenas ofertas, de algo que retiram ao pouco que têm, como prova da sua alegria por nos verem voltar ao seu país, hoje soberano e livre de guerras.

Mais importante do que termos feito a guerra contra o PAIGC, foi cuidar das populações, auxiliando-as nas suas necessidades, apesar das nossas próprias limitações, independente de estarem ou não do nosso lado. Hoje temos a recompensa.

É um orgulho para qualquer ex-combatente, que por imposição esteve envolvido naquela guerra, ser visto hoje como um amigo e poder voltar à Guiné-Bissau sem temer represálias.

É de salientar que até os nossos inimigos de ontem, então combatentes do PAIGC, se encontram entre os amigos com quem podemos contar hoje.
Contam-se mutuamente histórias de guerra, passadas em lados contrários das espingardas que então empunhávamos.

Segue-se a estória que o nosso camarada Rui Felício nos enviou, ocorrida numa das suas idas à Guiné-Bissau, depois da guerra, mais uma prova entre muitas, do que atrás foi dito.
CV




2. Mensagem de Rui Felício, ex-Alf Mil Inf, (CCAÇ 2405, Guiné 1968/70) para Luís Graça em 29 de Agosto



Meu Caro Luis Graça,

Retomando uma longa ausência, lembrei-me de te enviar mais uma historieta da Guiné, aproveitando para desejar que te encontres bem.
Um abraço

PS: A ausência não significa que não tenha vindo ao blog com regularidade, para ler o que vai sendo publicado. Está cada vez mais participado e conhecido. Parabéns!
Rui Felício

Lisboa, 29 de Agosto de 2007

Agora que me apresto para viajar de novo à Guiné, desta vez em trabalho, lembrei-me de uma pitoresca estória que ali se passou comigo há alguns anos atrás, já depois da independência daquele território onde os portugueses, apesar de tudo, deixaram marcas indeléveis.

Aqui vai ela:

O Fula, a galinha e o vestido

Galomaro, Maio de 1981

Passados 11 anos após o regresso da CCAÇ 2405, retornei à Guiné, em 1981, naturalmente já civil, e passei alguns dias em Galomaro onde esteve sediada a Companhia antes da sua deslocação final para o Dulombi.

Percorri, de jeep ou de bicicleta, toda aquela região que tão bem conheci por força dos patrulhamentos militares efectuados entre 1968 e 1970.

Visitei as tabancas de Pate Gibel, Dulo Gengele, Samba Cumbera, Sinchá Lomi, em que estive destacado com o meu pelotão, e também as de Campata, Cansamba e Mondajane onde estiveram o Paulo Raposo, o Jorge Rijo e o Vitor David, igualmente destacados com os respectivos grupos de combate que comandavam.

Em todas, em especial aquelas onde tinha estado destacado, se recordavam de mim e me receberam com manifestações de regozijo, coisa que me surpreendeu porque, após o nosso regresso no fim da comissão, muitos outros militares por ali passaram.

Como era possivel que aquela gente ainda retivesse na memória o meu nome e os dos meus camaradas, e recordasse situações comezinhas que naquele tempo tinham ocorrido, demonstrando que as manifestações de alegria não eram de mera circunstância?

Certo dia, ao acordar manhã cedo em Galomaro, depois de uma noite de forte trovoada e intensas chuvadas tropicais, vieram-me dizer que estava à minha espera o chefe de tabanca de Samba Cumbera que fica a alguns quilómetros de Galomaro.

Fui ao encontro do velho homem, esguio e de rosto anguloso, de seu nome Samba, que sorridente me cumprimentou, tentando no seu incipiente crioulo que mal dominava, traduzir por palavras, a sua alegria em me reencontrar.

Correspondi aos seus cumprimentos e mantivémo-nos abraçados durante largos momentos.
Fiquei comovido quando, a um seu sinal, uma criança que o acompanhava me ofereceu uma galinha viva que trouxera como presente para o antigo alfero que estivera hospedado com a sua tropa na tabanca de que ele era chefe.

Mal me ficaria não retribuir a gentileza...

E por isso, de imediato, pedi a um alfaiate, que com a sua máquina de costura se encontrava no alpendre da tabanca perto da qual esta cena se desenrolava, que costurasse um vestido para o fula que tão atenciosamente me tinha vindo visitar.

O Samba agradeceu repetidamente a prenda que lhe ofereci e, mais tarde, regressou a Samba Cumbera, com o vestido que, em três tempos, o alfaiate lhe confeccionou.
O que iria agora eu fazer com a galinha viva?

Pedi à D. Maria, viúva do comerciante Regala, homem excepcional entretanto falecido e que tão boas relações tinha mantido com a tropa da CCAÇ 2405, que guardasse a galinha para mais tarde ou no dia seguinte a mandar matar e assar à cafreal.

Fiquei espantado quando a D. Maria, ao fim do dia, me veio mostrar a galinha.

O animal cambaleava, contorcia a cabeça e mal se aguentava de pé.
Não havia dúvidas que estava atacado por alguma doença, pelo que não era aconselhável comê-lo. Naturalmente, seguindo a sugestão da D. Maria, resolvemos matar a galinha e enterrá-la...

Ainda hoje não sei ao certo se o velho e astuto Samba conhecia o estado da galinha quando decidiu dar-ma de presente, mas mais importante que isso foi ter recebido a simpatia que me manifestou por saber da minha presença em Galomaro, palmilhando a pé vários quilómetros para me ver e saudar.

Só por isso, valeu a pena a despesa feita com o vestido que lhe ofereci...

Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405

____________

Nota de C.V.:

(1) Vd posts anteriores desta série

8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral

1 comentário:

Anónimo disse...

de António Rosinha,
nos anos 80, português que chegasse à Guiné, e permanecesse alguns dias, era assediado a toda a hora, tanto por mais velhos como por mais novos, com perguntas sobre militares ou comerciantes, indicando o nome das terras, alguns tinham fotos e mostravam, outros escreviam cartas, para trazermos e entregar se os encontrassemos, muitos faziam esse assédio disfarçadamente, pois os discursos oficiais não eram muito simpáticos para "os amigos do colon", ...esse povo, ninguem tenha dúvida, era uma maioria, e do outro lado via-se uma minoria, principalmente quando se deu o 14 de Nov. de 80.
Aquele povo ficou no meio de vários fogos...a história está difícil de ser escrita sem isenção.
Cumprimentos