sexta-feira, 21 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2669: Simpósio de Guileje: Notas Soltas (José Teixeira) (1): Desta vez fui voluntário e estou em paz comigo próprio


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira com a Cadidjatu Candé.

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > 29 de Fevereiro de 2008 > O Zé Teixeira cantando o Hino de Gandembel com o vocalista dos Furkuntunda... A actuação deste grupo musical animou a nossa primeira noite em Bissau, na sequência do cocktail oferecido a todos os inscritos no Simpósio Internacional de Guiledje pela Ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria e Presidente do Comité Interministerial de Pilotagem das Comemorações do 35 Aniversário da Morte de Amílcar Cabral, Senhora Isabel Mendes Correia Buscardini (*).


Fotos: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > Visita dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira fez questão de levar, para casa,. como recordação, uma planta chamada matchundadi di branco (ou pila de branco, em crioulo) (*)... "O silêncio continua a imperar em Gandembel. Ninguém da população ousou recriar vida neste local. Só o machundadi di branco – flor estranha, surgida da terra, que os autóctenes de imediato batizaram, para relembrar aos vindouros que os Portugueses passaram por ali e sofreram duro, pela sua teimosia" (JT).

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados.



1. Mensagem do Zé Teixeira, acabado de chegar da Guiné, por terra...


Caríssimos Editores:

Apesar de já haver muita coisa ecrita sobre o Simpósio [Internacional de Guiledje], nomeadamente graças ao excelente trabalho do Luís, junto uma crónica, que vai ter continuidade, se merecer.
Boa Páscoa para todos

J.Teixeira


2. SIMPÓSIO DE GUILEDGE > Algumas notas soltas, mas sentidas

Felizmente o Luís Graça (*) estava lá. Ninguém melhor que ele para falar do Simpósio. De minha parte, apenas algumas notas soltas.

(i) A RECEPÇÃO

A Canção GANDEMBEL explodiu dentro de mim, cantada de uma forma tão feliz por aquele grupo que animou a recepção.

Foi um recomeçar da guerra, agora com os inimigos bem frente a frente, de olhos nos olhos, com sorrisos de bem estar e felicidade, por se reencontrarem de novo, mas para festejarem a paz. Localizamos frentes de combate em que nos batemos, perigos que ultrapassamos, com sangue, com suor, com medo e quantas vezes com lágrimas de dor ou de raiva. Agora selamos a amizade com um abraço fraterno.

Selamos a amizade dando as mãos e cantando, dançando ao som da música que nos transporta para cenários de sofrimento e morte. Hoje espaços de vida e esperança


(ii) PICADA DE CHAMARRA.

De Chamarra até Balana, passando por Changue Laia, o terrível local onde havia uma placa com a palavra Fronteira, colocada pelo PAIGC. A partir daí entrava-se no inferno dos fornilhos, dos campos de minas e emboscadas. Só se parava em Gandembel ou Cã Dembel, como lhe chama os Fulas. Sem afectar a verdade, poderia dizer-se que o carreiro da morte começava aí.

Escrevi um dia no meu Diário

(...) Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968

Ontem Aldeia Formosa voltou a ser atacada. Três vezes numa semana é muito.

Hoje fui fazer uma coluna a Gandembel. Tudo correu bem. O IN não atacou nem colocou minas na picada. Só tivemos uma tempestade de chuva. Começamos por ouvir um ruido assustador que se aproximava de nós. De repente surge uma forte ventania que nos arrastava seguida de uma tromba de água que transformou a picada num rio. Um quarto de hora depois tudo desapareceu e voltou o sol quente que rapidamente nos secou.

Pouca antes de chegar a Gandembel vimos o IN atacar um Fiat das FAP que se incendiou, tendo o piloto saltado de pára-quedas.

Passei no sítio onde há pouco tempo se deu uma terrível emboscada que roubou seis vidas. Quinze fornilhos colocados em série num local onde a tropa ao sentir as primeiras balas da emboscada se esconde. Doze rebentaram no momento em que se iniciou a emboscada e ceifaram seis vidas. Foi uma sorte não ter lá ficado toda a Companhia.

Quando chegamos a Gandembel fomos saudados pelo IN com um pequeno ataque ao aquartelamento, sem consequências. Os Camaradas que estão aqui estacionados dizem que comem disto todos os dias e mais que uma vez.

Como é terrível...

Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à Fronteira com a Guiné/Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à "estrada da morte" impedindo o IN de fazer os abastecimentos.

-Será verdade que vamos ficar nesta zona por muito tempo ?

(...) Odeio.. Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles...

O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores...

Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de 'bom biaje', se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ?

Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN porque é traiçoeiro, por que mata.


Mampatá, 23 de Agosto de 1968

Mais uma etapa díficil para a Companhia 2381. Quem diria que após uma coluna a Gandembel na qual se levantaram 57 minas A/P e quatro fornilhos depois da passagem por Chamarra e sem ninguém contar, surge a terrível emboscada que provoca cinco feridos.

É sempre assim, onde menos se conta, quando a calma e a confiança volta ao espírito, quando se julga que o perigo já passou, surge de entre o arvoredo, traiçoeiramente o inimigo.

Um viver constante em estado de guerra arrasa o espírito. A parte física ressente-se , as conversas entre camaradas tornam-se por tudo ou nada exaltadas, pequenos quezílias, tornam-se problemas.

O homem é fruto do ambiente em que vive. Se o ambiente é de paz, sente-se a vida nos corações, a calma e a confiança no 'outro', vive-se a paz. Quando o troar dos canhões se ouve longe ou perto, quando existe guerra entre os homens, existe guerra no seu espírito. O espírito torna-se selvagem. Trava-se uma luta entre o antigo e o novo, entre o amor e o sangue. Um jovem que ainda ontem só pensava em amar, hoje não vacila em disparar sobre um inimigo, mesmo ferido inofensivo, inutilizado, a precisar de uma mão salvadora....

Antes de ontem e ontem, Buba foi atacada. Os Páras têm tido um trabalho intenso. Hoje bateram a zona de onde costumam atacar Aldeia Formosa. Há alguns dias que patrulham a zona envolvente de Gandembel e com bons resultados. vários mortos, "manga " de feridos e material apreendido.

Hoje, que bom sentir a vida brotando onde outrora, imperava o medo, o silêncio entrecortado pelo troar das armas ou pelo estrondo das mortíferas minas e fornilhos.

Toda a estrada de Chamarra até Balana está cheia de moranças. No rio onde em tempos longínquos rebentavam granadas e bombas hoje existe um lavadouro onde as mudjeres fulas lavam a roupa dos seus filhotes cantando alegremente.

Que bom sentir a paz brotando dos corações dos homens. (...).


(iii) GANDEMBEL, MÍTICO LOCAL , AGORA EM PAZ.

O silêncio continua a imperar em Gandembel. Ninguém da população ousou recriar vida neste local. Só o machundadi di branco – flor estranha, surgida da terra, que os autóctenes de imediato batizaram, para relembrar aos vindouros que os Portugueses passaram por ali e sofreram duro, pela sua teimosia.

Tinha desenhado na minha mente a estrutura arquitectónica, a disposição das casernas em círculo, a parada que a todo o momento servia de campo de tiro, porque do cimo das árvores do lá de lá da fronteiro o inimigo espreitava. A curva a duzentos metros da entrada, que nos fazia sair do corredor da morte, para entrar num novo palco . . . de morte.

Tudo estava lá, como eu imaginava. Os restos das casernas são testemunho vivo de uma presença, de uma luta inglória. De vidas jovens destruídas. De uma força de vontade indómita de vencer, por parte de um inimigo que não dava tréguas, porque acreditava que a vitória era difícil, que a luta poderia ser longa, mas que à razão da força teria de opor a força da razão aliada a força da alma das suas gentes.

Desta vez fui voluntário. Desta vez não tive medo. Bem pelo contrário, senti-me um homem feliz. A emoção tomou posse de mim. A planta que lá deixei, reflectiu a esperança de que a paz é possível sempre que os homens, os políticos, a desejem sinceramente.

Foi a concretização de um sonho que acalentava há vários anos.

Acredito que Gandembel será no futuro um espaço onde a vida humana também brote tão espontaneamente como tem vindo a brotar em tantos espaços, teatros de grandes lutas no passado, hoje centros de vida, de alegria e esperança (*).

(iv) ENCONTRO FELIZ


Ao chegar a Guiledje, cruzo-me com uma bonita mulher, extremamente activa, sempre com um sorriso nos lábios. Na lapela um crachá onde se lia Cadidjatu Candé (**).

Comentei em surdina: Conheci um Candé em Quebo que foi barbaramente assassinado com um prego na cabeça, no fim da guerra

Ouço uma resposta que não só me surpreende, como me emociona profundamente. A Cadi com o seu olhar cândido responde:
-Era meu pai...

O Candé era um alferes de um grupo especial de milícia, em Quebo que posteriormente passou para a CCAÇ 18, estacionada também em Quebo.

Soube da sua triste sorte através do seu primo Mudé Embaló, meu ajudante de enfermeiro, que mais tarde conseguiu vir para Portugal e, soube agora pela família em Chamarra, que faleceu há cerca de dois anos em Espanha


Zé Teixeira

Continua

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

8 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2618: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (1): Regresso a Bissau, quatro décadas depois...

9 de Março de 2008> Guiné 63/74 - P2620: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (2): O Hino de Gandembel, recriado pelos Furkuntunda

9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez

11 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2625: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (4): Na Ponte Balana, com Malan Biai, da RTP África

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel

16 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2650: Uma semana involvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (6): No coração do mítico corredor de Guiledje

17 de Março de 2008 > Guine 63/74 - P2655: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (7): No corredor de Guiledje, com o Dauda Cassamá (I)

17 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2656: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (8): No corredor de Guiledje, com Dauda Cassamá (II)

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2667: Uma semana memorável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (9): O grande ronco de Guiledje


(**) Uma das três mulheres da equipa do Pepito, responsável por toda a logística que permitiu a nossa magnífica visita ao sul... Vd. poste de 28 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2590: Guileje: Simpósio Internacional (1 a 7 de Março de 2008) (24): Pepito e os oito magníficos da sua equipa (Luís Graça)

1 comentário:

Torcato Mendonca disse...

Zé Teixeira:matchundi di branco?Bó tem?Mi Ká tem!Ió...di branco? Nada não...Foram emoções "violentas"...as destes dias...brinquei para abafar o que senti ao ler-te...viveste bem aquilo Camarada e ainda hoje te acompanha e ainda bem. Terra e Gentes a merecerem o melhor do Mundo e...
Um abraço TM