segunda-feira, 27 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4749: Álbum de memórias de Bafatá, 1968/70 (2): A vida é feita de pequenos nadas (Regina Gouveia)



1. No decorrer do IV Encontro Nacional do nosso blogue, em 20 de Junho passado, na Quinta do Paul, Ortigosa, Luís Graça convidou a Regina Gouveia, esposa do nosso Camarada Fernando Gouveia (Alf Mil Pel Rec Inf - Comando de Agrupamento 2957 -, Bafatá, 1968/70), a escrever para o nosso blogue histórias desse tempo.

Respondendo ao desafio eis mais uma bem simples e bonita:




A vida é feita de nadas

A vida é feita de nadas
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;
De casas de moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;
De poeira ;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

Bucólica, Miguel Torga

Nos últimos tempos, mais concretamente a partir do momento em que o meu marido se tornou membro da Tabanca Grande, várias memórias da Guiné têm vindo a emergir à tona do consciente, volvidos que são cerca de quarenta anos. Algumas são pequenos nadas mas a vida é feita de nadas…

Verão de 1969. Bafatá. Enquanto o Fernando está no quartel eu tento ocupar o meu tempo. Acompanham-me entre outros, Hemingway, Jorge Amado, Eça, Fernando Pessoa, António Gedeão, Manuel Bandeira.

Para além da leitura, a música: Mozart, Beethoven, Korsakov, José Afonso, Chico Buarque, no meu leitor de cassetes de fraca qualidade…

Há também as crianças que, começando por vir no fim da refeição para levar o muito que sobrou (o quartel envia-nos excesso de comida), criaram o hábito de aparecer várias vezes ao longo do dia. Com elas aprendo algum crioulo que infelizmente já esqueci.

Há ainda um dos filhos dos vizinhos, com os seus quatro anitos, que aparece logo pela manhã (O “alfer” já foi?) mas que regressa a casa sempre que pressente aproximar-se a hora do Fernando chegar, seja para almoçar, seja ao fim do dia (vou embora; o “alfer” está a chegar). Nunca consegui perceber estas reacções do miúdo.

Talvez em casa ouvisse comentários negativos à tropa, não sei… Um dia, varria eu a varanda, ele chegou e comentou de imediato: Hoje até pareces uma senhora…

Ao fim da tarde, quando o Fernando regressava do quartel, passeávamos. Vêm-me à memória a Tabanca da Ponte Nova, o Geba, a ponte sobre o Colufe, a piscina, a estrada de Bambadinca, a estrada do Gabu, a vereda junto à mãe de água…

À noite, sempre que possível, o cinema. Se o Fernando estava de serviço acompanhava-o até ao agrupamento. Foi aí que conheci o Cabo Gomes.

Rodeado de livros, aproveitava todos os momentos livres para se preparar para o exame do então 5º ano liceal.

Converso com ele e apercebo-me de que as suas maiores dificuldades residem na Física e na Matemática. Passo a ajudá-lo diariamente.

Na última sessão de ajuda, quando em fins de Setembro me preparo para regressar à metrópole, propõe-se pagar-me as lições. Se algum de nós tivesse que pagar algo, era eu a si. Ajudou-me a preencher o meu tempo fazendo aquilo de que tanto gosto - ensinar, muito em particular, ensinar Física.

Regresso próximo do Natal. O Gomes espera-me com uma prenda que ainda conservo. Uma folha seca onde, por entre as nervuras, estão gravados o meu nome e o do Fernando.


No dia 24, como habitualmente, o soldado (não me recordo do seu nome, apenas sei que era da Beira Alta) chegou com o almoço. À despedida desejei-lhe bom Natal.

Não conseguiu conter as lágrimas que começaram a rolar-lhe pela face. A senhora desculpe mas hoje, particularmente, sinto muitas saudades da minha mulher e da minha menina. Já vai para dois anos que as não vejo.

Senti-me muito mal. Ali estava eu, privilegiada, a passar o Natal com o meu marido, após uma curta separação de dois meses e meio. Imaginei, apesar de na altura ainda não ter filhos, quão dura deveria ser para ele aquela separação.

Ainda o dia 24. À noite o Tenente Coronel Teixeira da Silva apareceu em nossa casa. Era uma pessoa muito afável. Como era também professor de Física conversávamos muitas vezes sobre essa área. Mas nessa noite a conversa foi essencialmente sobre a falta de sentido daquela guerra.

A dada altura reflectíamos sobre o pouco que, como colonizadores, tínhamos feito pelas colónias em geral. Recordo-me que então contou um episódio interessante. Numa das comissões tinha estado em Timor onde, em todo o território, havia 8 quilómetros de estrada (creio que era esse o número).

Um americano que, entretanto encontrou lá (já não sei por que razão), comentou: Os portugueses não estão aqui há cerca de 400 anos? Se tivessem feito 1 km de estrada por ano, já existiriam 400 km…

Num dos dias que se seguiram ao Natal, estando eu sentada na varanda, passou uma idosa que muito simpaticamente me cumprimentou, numa algaraviada por vezes ininteligível. A dada altura percebi que me perguntava qualquer coisa relacionada com néné.

Respondi: Cá tem néné. Pôs um ar muito pesaroso e com uma voz triste repetiu Cá tem néné. Seguiu rua afora e lá longe ainda a ouvia repetir. Cá tem néné… Cá tem néné…

Eis alguns dos pequenos nadas que fui encontrar perdidos no labirinto da memória.

Regina Gouveia

Foto: Regina Gouveia (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

Vd. primeiro poste da série em:

1 comentário:

Carlos Vinhal disse...

Neste Blogue tenho feito algumas coisas insignificantes, mas que tiveram resultados espantosos. Não preciso enumerá-los, porque os directamente implicados sabem a que me refiro.

Quando conheci o Fernando Gouveia, em minha casa onde se deslocou, estávamos a dias do nosso IV Encontro. Perguntei-lhe por que ia sozinho, por que é que a esposa não participava. Que não a tinha conseguido convencer, ela achava que não se iria integrar, etc. Fiz ver ao Fernando que o ambiente nos Encontros é excelente, as pessoas do melhor que há, etc. Mostrei-lhe as fotos dos Encontros anteriores onde as nossas bajudas apareciam em franca convivência, tão graciosas como quando as conhecemos. O Fernando comprometeu-se a meu pedido a voltar a falar com a esposa. Passados dois dias telefona-me a inscrevê-la.
Resultado, temos mais uma tertuliana, daquelas que com a sua escrita nos atinje no que mais fraco um homem tem, o coração. Traz-nos de volta a saudade e a nostalgia daquela terra. Descreve momentos vividos em Bafatá, em dois períodos de férias escolares, com tal intensidade, que nos leva a reviver a nossa própria passagem por aquelas bandas. Retrata as pessoas de tal modo que parece que as estamos ainda a ver. Como falavam, como agiam e como conviviam connosco.

À Regina o meu muito obrigado por fazer parte da família deste Blogue, e saiba que sinto alguma vaidade por ter alguma culpa por hoje ser nossa tertuliana.

Carlos Vinhal