quarta-feira, 1 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8356: Parabéns a você (266): Agradecimento de Mário Beja Santos

1. Mensagem de hoje, 1 de Junho de 2011, do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), que ontem esteve de parabéns:

Meus queridos camaradas,
Tive ontem um dia muito feliz, começou logo com as vossas trombetas no blogue. Trabalhei, participei nas jornadas da Comissão Portuguesa de História Militar onde o Dr. Carlos Valentim, oficial da Armada, e que prepara o doutoramento sobre a obra o do almirante Teixeira da Mota me deu a saber que encontrara numa das caixas da correspondência do distinto historiador um maço de correio que eu lhe enviei do Cuor, com poemas e tudo. Fiquei tão emocionado que a minha intervenção reflectiu depois essa notícia. E no final recebi um abraço do Humberto Reis, ele é um dos principais responsáveis por eu ter chegado ao blogue, aquela fotografia com a capela de Bambadinca mudou o curso dos acontecimentos da minha vida, em 2006.

Agradeço oferecendo-vos a todos este textinho que saiu assim, de rajada e que passa a pertencer-vos a todos.

Agradeço o telefonema do Luís e a mensagem do Carlos Vinhal, pelo ânimo que me deram, preparando o caminho para a alegria dos vossos cumprimentos.

Não sei meter este texto no comentário, o Carlos faça como entender.

Com gratidão,
Mário


Guiné-Bissau > Zona Leste > Bambadinca > 1997 : A velha Capela de Bambadinca.
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do (Braima Samá)


Nós, os que viemos depois de Nuno Tristão

Beja Santos

Nuno Tristão chegou numa barca de 40 toneladas, saída de Lagos, em Junho de 1446, ia abrir caminho à primeira colónia moderna do mundo, a última que os portugueses julgavam ter pacificado, em1915. Dobrou o Cabo Verde, numa região que durante séculos foi conhecida por Senegâmbia, estava uma manhã soalheira e calma, as águas tinham uma coloração verde amarelada, o vigia, no cesto da gávea, gritou: almadias à vista!

Não eram embarcações, eram tufos de vegetação, a barca singrou por entre essa vegetação luxuriante, ladeou a costa, progrediu para sul, apontou para um rio largo, aproveitando uma maré favorável, num estuário amplo o tripulante descobriu dois rios. Apontou para a esquerda, foi nisto que se ouviu o fragor de trovões, era Junho o mês dos tornados e dos dilúvios tropicais, ouviam-se estrondos medonhos, estarrecida a marinhagem olhava para um céu umas vezes escuro outras vezes glauco, coriscos e trovões sucediam-se ininterruptamente. Depois tudo acalmou, o rio entrara na vazante, seguiu-se imprevistamente uma ondulação rumorosa, o macaréu. Nuno Tristão chegara ao Geba estreito. O Geba estreito onde vivi dois incomensuráveis anos. E definitivos.

Nós fazemos parte daquela falange que em noites de calor húmido, dentro de rolos de serpentina de vapor, ou no Geba de prata escura, pela manhã, aportámos num local chamado Pidjiquiti e daqui partimos para essa vegetação luxuriante, para aqueles tornados, talvez para ilhas, múltiplos pontos ermos numa Guiné que se transformara, na sua beleza labiríntica de tufos luxuriantes, de florestas tropicais, numa densíssima plataforma de guerra.

Viajámos, acampámos, serpenteámos entre lalas e bolanhas, chapinhámos no lodo viscoso, conhecemos gentes de sorriso largo, de pele escuríssima ou acobreada, subimos e descemos nas peças do mosaico etnográfico mais surpreendente do mundo, conhecemos povos tatuados, adornados de contaria, braceletes em alumínio e ferro, com anéis, amuletos, trabalhando a ráfia, as madeiras perfumadas, imolando animais para aplacar as fúrias dos irãs. Ouvimos tocar o korá, fomos picados por biliões de insectos, vimos os anos reduzidos a duas estações, vimos homens a caminhar como reis e mulheres a saracotearem-se como deusas de um olimpo vegetal. Olhámos a arrozais, campos de mandioca, de fundo, de feijão, vimos viajar as perdizes, as chocas, os flamingos. Dentro do arame farpado ouvimos hienas e onças, até javalis, dizem mesmo o brado dos elefantes. E combatemos rodeados pelas geobotânica mais frondosa dos jardins botânicos que África dispõe. Com espingardas metralhadoras, bazucas e morteiros, cirandámos entre o pau-conta, o pau-sangue e o pau-incenso, rasgámos a pele na alfarroba de lala, subimos e descemos caminhos de saibro assente em laterite pura, daí a Guiné ser um misto de verde que desponta num solo incendiado fendido por água enlameada.

Fomos os últimos viajantes depois de Nuno Tristão, este fora precedido por Gil Eanes, que dobrara o Cabo Bojador, deitando por terra a lenda do mar tenebroso. Fomos intrépidos, lacrimejámos, pusemos cruzes nos dias do calendário, ouvimos o grito dos moribundos e o trovão dos palavrões dos últimos adolescentes da nossa geração. Hoje estamos aqui, confraternizando numa mesa que reunirá mesmo depois do último de nós fechar os olhos. Porque esta mesa é a história e há deveres de memória que não morrem. Ponto final.

[Negrito da responsabilidade do editor do texto]
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Nota de CV:

Vd. postes de 31 de Julho de 2011:

Guiné 63/74 - P8348: Parabéns a você (264): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Tertúlia / Editores)

Guiné 63/74 - P8349: Parabéns a você (265): Pedido de livro emprestado... ou a fome de livros do nosso camarada Beja Santos, em dia de aniversário (Luís Graça)

1 comentário:

Anónimo disse...

Permita-me dizer, Dr, Beja Santos, que adorei este seu texto:

Há nele, uma exaltação de patriotismo,
um orgulho imenso, por termos sido nós a desvendar, aqueles mares, aquelas terras, a conhecer primeiro aquelas gentes.
E, apesar da guerra e das suas consequências, é notório o prazer de ter tido o contacto com os nativos, de ter pisado aquele chão e olhado aquelas florestas luxuriantes, fazendo sentir que a natureza estava presente em toda a sua plenitude, mesmo num tempo, em que a Paz estava ausente.

Herdeiros de Nuno Tristão e Gil Eanes, coube-nos a devolução da terra, porque tantos lutaram, sofreram e amaram...e amam.

Saudações da

Felismina Costa