segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8798: Memórias de Gabú (José Saúde) (3): “Filhos do vento”: reflexos de uma guerra que deixou marcas no tempo


 1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos a 3ª mensagem desta sua série.


REFLEXOS DE UMA GUERRA QUE DEIXOU MARCAS NO TEMPO: “FILHOS DO VENTO”

Era linda! Por ironia do destino não consigo lembrar-me do seu nome. Sei, e afirmava o povo com certezas absolutas, que era filha de um camarada, furriel miliciano, que anteriormente esteve em Nova Lamego. Era uma criança dócil. Meiga. Recordo que a sua mãe era uma negra, muito negra, com um rosto lindo e um corpo divinal. Conheci-a e verguei-me perante a sua sensibilidade feminina. Da menina, agora feita senhora, nunca mais soube.

Os seus cabelos eram loiros. Maravilhosos. De cor morena, e de olhos negros, a criança, ainda de tenra idade, era de facto graciosa. Simpática, e de sorriso aberto, a menina espalhava simpatia nos braços de um qualquer soldado… desconhecido. Perdi algum tempo a deliciar-me com a sua meiguice. Dei-lhe o carinho dos meus braços e o seu sorriso tenro transmitiu-me um infinito afecto. Hoje, lamento a ausência do seu nome. Ficou retida na minha memória a sua pequena fisionomia. A sua imagem dócil deixou-me saudades. A menina foi, afinal, mais um dos “filhos do vento” que marcaram os conflitos em África.

Não importa ir ao encontro dos factos reais. Importa, isso sim, sublinhar as virtuais razões de uma guerra que sublimava momentos de encontros e desencontros. Encontros de amores factuais e de desencontros de amores ressacados. Discrepâncias nos campos de batalha. Frutos do acaso. Salvaguardar, também, a razão de actos porventura nunca pensados. Desculpados. A senhora sua mãe, uma jovem encantadora, jamais ousaria imaginar que a sua fertilidade feminina exibiria um fruto tão bonito. Curioso era a sua dicotomia face à originalidade da progenitora. A menina, linda, possuía um ar tremendamente europeu. Quem não conhecia o seu cruzamento de sangues, talvez que não imaginasse a sua originalidade.

Do pai nada se soube. Partiu. A mãe, uma cidadã comum de uma tabanca, conviveu de perto com uma menina nada parecida com outros meninos com os quais partilhava brincadeiras de crianças. E assim terá crescido. Com a minha saída de Nova Lamego perdi-lhe o rasto. Não sei qual terá sido o seu futuro. Será, hoje, uma mulher ilustre na Guiné? Terá procurado futuro num país distante? Ter-se-á encontrado com o seu pai? Será que ele a reconheceu como filha? Será que sua mãe, outrora esbelta e linda, fez dela uma mulher digna no seio do seu clã? Será que estamos agora na presença de uma cidadã guineense com nome internacional? Enfim, um rol de interrogações que me conduz à decência de procurar no infinito do horizonte alvíssaras da sua presença. Fica o pedido!

Ex-Furriel Miliciano José Saúde, tmn 961 482 269 - Nova Lamego (Gabú) 1973/74 (resido em Beja)

Um abraço,

José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. primeiros postes desta série em:

13 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 – P8772: Memórias de Gabú (José Saúde) (1): No declinar da nossa presença em terras guineenses… A despedida!

18 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 – P8788: Memórias de Gabú (José Saúde) (2): Os conflitos tribais e a acção da tropa portuguesa. A “Psicó”!

8 comentários:

Luís Graça disse...

"Filhos do Vento", uma expressão poética, melancólica mas que também encerra um significado crítico, depreciativo, um tom de censura social... Não ?

Parece que passou na RTP, em 1997, uma telenovela portuguesa, com este título, da autoria de Durval Lucena e Francisco Moita Flores…

Socorro-me da Wikipédia:

"(…) O seu enredo anda de volta do conflito entre duas famílias ricas ribatejanas, os Vieira a e os Abrantes.

"Existem também aproximações a grandes obras da literatura portuguesa, tais como Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco; Os Maias, de Eça de Queirós e, Cerromaior, de Manuel da Fonseca" (...).

Que aproximação se pode fazer a um tuga e uma futa-fula ? Ou uma saracolé ? Uma mulher do Gabu, seguramente "destribalizada" ?... Amores de guerra, amores em tempo de guerra, filhos da guerra... é uma fileira que a literatura e o cinema têm explorado... LG

Luís Graça disse...

Esqueci-me do mais importante: que é saudar o autor do texto, e a a sua grande sensibilidade sócio-cultural!

Anónimo disse...

Caro José Saúde
Parabéns pelo sentimento que demonstras pelo ser humano, que atesta bem a tua fina sensibilidade e doação de amor ao próximo… Obrigado pelas reflexões que deixas ao comum dos mortais!

Um abraço

José Corceiro

Cherno Baldé disse...

Caro José Saude,

Pessoalmente, conheci muitos casos de "Filhos do vento" nascidos de "pais cabecas de vento" que nunca quiseram saber ou se responsabilizar dos seus irreflectidos actos, salvo rarrissimas excepcoes, marcando assim, de forma indelevel, o inicio das suas vidas que, na verdade, nao tinham o valor a eles devido ou que é devido a cada ser humano.

No caso do chao Fula, que conheco melhor, a maior parte desses filhos abandonados foi integrada e educada no seio das familias, mas nao teve nem o afecto nem o respeito que merecia, pois tratava-se de filhos nascidos de um erro, uma falha impossivel de camuflar e uma vergonha ou da sua falta, ainda mais dificil de explicar.

Mais tarde e ja adultos, muitos imigraram para as cidades, onde sao conhecidos pelo nome de "Brancu Mpelélé" ou seja, branco pobre como o resto da populacao, uma anormalidade social.

Muitos conseguiram passar a muralha da Europa e estao por ai, mais perto do que poderao supor, provavelmente, a procura das suas raizes violadas ou, quem sabe, dos seus direitos negados.

Um grande abraco a todos,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

ÉS RANGER...E BASTA.
José Carvalho
Ranger

Anónimo disse...

Em 98 vi muitos mulatos em Gabú, que me olhavam com ar curioso e distante, seriam "filhos do vento".
Do meu "vento" tenho a certeza que não eram..até porque mesmo que quisesse, não sei se felizmente ou infelizmente,nunca tive essa oportunidade na minha guerra..até nisso foi muito sofrida.
Este é um tema que poderia ser desenvolvido, nomeadamente em termos históricos, mas parece que é um assunto "tabu".

C.Martins

Anónimo disse...

Caro Cherno Baldé

Apesar de concordar inteiramente com o conteúdo do teu comentário, não posso deixar de esclarecer que temos que nos enquadrar no espaço-tempo e meio.
Éramos jovens com as hormonas a ferver, a dita "coisa", sim o preservativo, muitas vezes não existia,na esmagadora das vezes as relações sexuais eram consentidas, independentemente dos motivos, só o que condeno e acho inqualificável eram as violações, que certamente também existiram.

C.Martins

José Pedro Neves disse...

"Filhos do vento", nascidos devido ás "Cabeças de Vento", que nós eramos, na nossa juventude e quantos de nós, na solidão da mata, na angustia e incerteza de como e se no dia seguinte, estariamos vivos, não cometeu actos que deram origem a casos, como o narrado pelo meu amigo e camarada José Saude.
Não querendo "inocentar" as "Cabeças de Vento", todos sabemos que muitas vezes a permanencia, por vezes fugaz de Companhias e/ou Pelotões, em certas zonas, davam origem aos "Filhos do Vento", sem os "Cabeças de Vento", algum dia, por razões de vária ordem, virem a saber o resultado desses encontros amorosos.