sábado, 1 de outubro de 2011

Guiné 63/74 – P8846: Memórias de Gabú (José Saúde) (7): “Piriquitos” exploram o centro “nevrálgico” da urbe guineense



1.   O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.


 “PIRIQUITOS” EXPLORAM O CENTRO “NEVRÁLGICO” DA URBE GUINEENSE

PASSEIO NA “5ª AVENIDA” DE GABÚ

Suavizavam o ar com o odor de uma “penugem” que os então “piriquitos” lançavam para o infinito de um horizonte inimaginável. A “incubação nos ovos” chegava ao fim. Tínhamos avezinhas. Um esticão de asas, um apalpar no escuro, uma vertigem dos mais fracos, o vociferar dos conteúdos da guerra, o trocar opiniões sobre os estratagemas do inimigo, as emboscadas, as minas, os ataques nocturnos aos quartéis entre tantos outros motes trazidos para a discussão davam azo, na altura, a uma conversa sempre indeterminada entre aquele grupo acabado de chegar ao Leste da Guiné. Cenário: a “5ª Avenida” de Gabú - quais turistas a passearem-se por terras das grandes metrópoles americanas! -. Ao fundo da dita cuja (“avenida”), eis o grupo a abancar no bar da Pensão Mar e a refrescar-se com as aprazíveis cervejolas. Era o princípio de uma jornada por terras de além-mar. Outras fainas se seguiriam.

A Guiné parecia-me apenas um sonho. Aliás, jamais me tinha ocorrido à ideia que o meu futuro militar me reservasse, como virtual conjectura, conhecer um dia a realidade da guerrilha guineense e as suas famosas bolanhas. Falava-se da Guiné como o diabo foge da cruz, recordo. A guerra naquela então província do Ultramar era terrível, afirmava-se. Traçavam-se cenários mórbidos da guerra na Guiné. A rapaziada comentava, a mensagem passava de boca em boca e nós, jovens, bebíamos as infaustas opiniões que entretanto nos chegavam. Porém, o destino contemplou-me e eu, tal como grande parte dos rapazes desses tempos, não fugi ao destino. Fui e voltei tal como parti, restando resquícios de histórias que contemporizam ainda hoje o meu calendário de vida.

Camaradas houve, e foram muitos, que já não usufruem, infelizmente, do prazer de partilhar momentos de convívio e narrar as suas histórias. Uns morreram em combate na densidade de um mato cerrado; outros faleceram numa emboscada; outros encontraram a morte em ataques aos quartéis; outros fecharam definitivamente os olhos em famigerados rebentamentos de minas anti-carro e anti-pessoal e, ainda, aqueles que morreram em momentos de verdadeira infelicidade.

Convivi com situações que me deixaram apreensivo quando em causa esteve a razão do último adeus. Momentos fatídicos, mórbidos, de camaradas que ousaram abusar do facilitismo e se deixaram cair, inadvertidamente, em princípios proibidos. Exemplifico o infeliz que encontrou a morte a limpar a arma esquecendo, entretanto, que tinha uma bala na câmara e outros em estúpidos acidentes com viaturas militares, enfim, todos, ou quase todos, temos histórias desta estirpe para contar.

Olho, atentamente, para duas fotos do meu álbum (Guiné) e revejo um passeio pela rua principal de Gabú, nos primeiros dias que ali “ancorámos”. O clique foi justamente dado em frente a uma casa onde residiam duas irmãs (se a memória não me falha), por sinal cabo-verdianas, comentava-se, que eram professoras na escola local. Vivendo momentos de uma juventude no seu auge, alguns furriéis e alferes, mormente, andavam doidos com as meninas que, por sinal, eram “boas como o milho”. Recordo que a malta andava mesmo“vidrada” de todo com aquele duo de airosas donzelas… mestiças. Parceiro? Não lhes conheci. Passemos à frente…

O grupo de turistas, todos janotas, embevecidos com a beleza natural que os rodeava, e o cheiro a África a inalar as nossas narinas, eis o grupo de “piriquitos” sentado a uma mesa do bar da Pensão Mar. Um nome que nada tinha a ver com a realidade deparada. O mais indicado, na nossa concepção, seria substituir Mar por Bolanha. O mar, lá longe, nem vê-lo. A bolanha era, isso sim, a afrodisíaca verdade constatada em terrenos circundantes. Mas aceitava-se a decisão do seu mentor.

África é, também, sumptuosa no consumo de bebidas, principalmente cerveja. O calor afirma-se como um aditivo determinante pelo prazer de consular as gargantas ressarcidas. Num convívio deveras saudável ficou uma tarde de passeio na apelidada “5ª Avenida” de Gabú, o alforge recheado de cervejas bebidas pelos “piriquitos” e um conhecimento mais profícuo de uma urbe onde as “bajudas” passeavam os seus corpos embrulhados em pedaços de pano garridos que torneavam a preceito os seus joviais e esbeltos corpos. O militar – “piriquito” – apreciava e… imaginava cenários quiçá inexequíveis de alcançar. Coisas de uma juventude irreverente.

Guiné, um país do qual guardo imensas recordações e que me levam agora, com 60 anos já feitos, trazer à estampa incontornáveis pequenas histórias intituladas “Memórias de Gabú”.


Refastelados à volta de uma mesa o grupo de furriéis ressarciam-se das cervejolas bem fresquinhas

À civil, os então “piriquitos” desbravavam o ambiente da “avenida”. Da esquerda para a direita: o Cardoso, Operações Especiais/Ranger, Eu, o Santos, Armas e Armadilhas, (?) e o Rui, Operações Especiais/Ranger



Um abraço a todos os camaradas,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

29 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 – P8837: Memórias de Gabú (José Saúde) (6): A notícia infeliz do desaparecimento da menina de Gabú

 

12 comentários:

Luis Faria disse...

José Saude

Gostei deste teu "desenho" sobre a "Periquitagem" assimilando a novidade.

Um abraço
LuisFaria

Hélder Valério disse...

Caro camarigo José Saúde

Tenho acompanhado as tuas recordações e também os temas que acabaste por introduzir neste espaço e que já tantas opiniões originou.

Este relato com a descoberta do espaço que rodeava os novatos, descoberta feita à própria custa, é bem interessante.

Pelas fotos percebe-se a boa disposição e também o relativo pouco tempo que ainda tinham de Guiné.

Abraço
Hélder S.

Cherno Baldé disse...

Caro josé Saude,

As minhas felicitacoes pelo excelente texto que me pareceu muito bem inspirado.

Olhando para a foto dos Rangers na 5.a Avenida, vieram-me a memoria recordacoes dos filmes de Cowboys do faroeste de que era grande adepto. Repare na posicao das maos dos tres, parecem posicionadas ao lado do coldre e prontas a puxarem dos revolveres...

Sera que os Rangers portugueses se inspiravam dos seus homonimos americanos?

Mudando de assunto, quero manifestar, também, a minha dor e consternacao pela morte prematura da menina de Gabu, fim menos desejado mas que nao surpreende muito tendo em conta as circunstancias e condicoes reais de vida no nosso pais.

A mim, é exactamente isto que me revolta mais, saber que se ela nao fosse abandonada, as suas hipoteses de sobrevivencia e de educacao seriam muito maiores, a todos os niveis.

Um grande abraco a todos e em especial ao amigao Helder S. por mais um aniversario.

Cherno Baldé

Torcato Mendonca disse...

Parece que o Cherno tem razão.
Mas isto de presunção e água benta cada um toma a que quer.
Não é M.R.?

Os graduados da minha Companhia,e todos,os que tiraram a Especialidade de Atirador bem Janeiro de 67 (?),tendo como Instrutor - Mor o então Cap. Comando (hoje Ten-General)Victor Oliveira, quando foram para Lamego...pois...as instalações eram piores...o resto, era o resto.
AB T.

Eduardo J.M. Ribeiro disse...

Amigos Cherno e Torcato,

Andei por lá por lá, em Lamego, em 1973, subindo a serra das Meadas com um frio de rachar e descendo aos esgotos, em provas que nada tinham de cowboyadas.

O que se pretendia então, 1960/74, no Centro de Instrução de Operações Especiais, era treinar, o melhor que podiam e sabiam, Homens para a dura guerra de guerrilha em África, contra os movimentos de libertação.

Jamais ouvi nas longas e extenuantes, quer físicas quer psíquicas, 11 semanas que duravam o curso, qualquer referência aos cow-boys, nem a qualquer instituição ou doutrina relacionada com a vida, costumes e usos dos americanos.

E, quer vocês creiam quer não, tal como dizem todos os RANGERS que eu conheço, o meu curso bem como o deles, foi o pior, mais exigente e rigoroso de todos os tempos da existência das Operações Especiais em Portugal.

Eheheheheheh...

Só vos recordo que o nome de RANGERS, para os Homens das OpEsp em Portugal, surgiu porque os primeiros formandos, foram frequentar o curso como mesmo nome nos EUA e depois, em Penude/Lamego resolveram adaptar/"melhorar", triplicando as dificuldades encontradas, ou mais, e surgiu assim esta "terrível" especialidade.

Um abraço para ambos,
Magalhães Ribeiro

Carlos Vinhal disse...

Camaradas
Nunca entendi porque gastava o Exército dinheiro a preparar Rangers, dando-lhes cabo do físico e da mente para nos TO os misturar com a tropa macaca. Se cada Companhia tinha só um Furriel e um Alferes Ranger, que diferença faziam entre nós, pobres básicos?
Na minha Companhia, o Furriel Ranger, como era Regente Agrícola, sempre aplicava os seus conhecimentos na horta da CART 2732.
O Alferes saía para o mato armado só com a Walter, bem contra os conselhos dos mais sensatos, até ao dia em que numa emboscada, bem falta lhe fez uma... MG42.
Bons tempos, boa malta.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Hélder Valério disse...

Caros camarigos

A observação do Cherno está bem apanhada. Curiosamente, quando olhei para a foto, também me pareceu ter qualquer coisa de familiar, no entanto 'passei à frente' pois havia outros assuntos.

Agora, incentivado pela observação, acho que me veio à ideia a 'imagem de marca' do filme "os 7 magníficos", por sinal uma adaptação do romance 'os 7 samurais'. É claro que ali só vão cinco, mas aguarda-se que os outros dois se juntem ao grupo dentro em breve....

Abraço
Hélder S.

Torcato Mendonca disse...

E eu não passei por lá M.R., Passei.
E eu não estou de acordo com o que o C.Vinhal diz no comentário.Estou.

E eu e os que comigo tiraram a especialidade, só sabíamos de equipas de cinco, sentido em punho fechado e etc. Assim formamos a Companhia e essa instrução dura foi fundamental para o nosso quotidiano lá e para eu estar a escrever-te agora...eu e muitos estamos vivos porque fomos treinados com dureza e pela vida fora a disciplina manteve-se. Lamego era duro e eu sei a história das Operações Especiais. Tropa demasiado "esquecida". Mas, também não dar não dar nas vistas era ponto de honra... e o alferes ou o soldado básico comiam,dormiam sem diferenças...paro e fico aqui...
Um abraço para ti e para todos T.

Joaquim Mexia Alves disse...

Caro Carlos Vinhal

Julgo que estás enganado na tua apreciação.

Em primeiro lugar cada Companhia deveria ter um Alf e três Fur de O.E.

A ideia era formar um Pelotão, treinado por estes e que fosse de algum modo um pelotão mais "operacional" de intervenção rápida e especifica.

Infelizmente o entendimento da maioria esmagadora dos comandantes de companhia foi, quanto a mim, errada e decidiram distribuir "o mal pelas aldeias", ou seja colocar o Alf num Pelotão e cada Fur. nos outros Pelotões.

Logicamente nada se conseguiu assim, até porque obviamente nos Pelotões onde estavam os Fur quem comandava eram os Alf.

No entanto alguns, (eu por exemplo), tentaram dar aos seus homens uma instrução, digamos, mais especial, do que eles se queixavam, mas vieram mais tarde na Guiné a agradecer.

Tenho orgulho na especialidade que tirei, (embora voluntário à força), mas não me sinto nem mais nem menos do que todos os outros que por lá andaram.

Ah, e como diz o Magalhães Ribeiro, o meu curso foi sem dúvida o pior ... eheheh

Grande abraço para todos

Carlos Vinhal disse...

Caro Mexia Alves
Falo pela minha Companhia que não devia ser diferente das outras, só se fosse para melhor. Esta foi boa.
Reafirmo que só tínhamos um Alferes de Op Especiais, o camarada Rodrigues de Torres Vedras, e um Furriel, o camarada Pires de Macedo de Cavaleiros. O único cuidado que houve foi não os incluir no mesmo pelotão. O Rodrigues comandava o 2.º GCOMB e o Pires estava integrado no 1.º, comandado pelo Alferes Casal.
Um abraço para todos.
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Joaquim Mexia Alves disse...

Caro Carlos

Repara que eu disse que «cada Companhia deveria ter um Alf e três Fur de O.E.»

Deveria, o que nem sempre acontecia.

E depois dás razão ao que eu afirmei, ou seja, apesar de terem só um Fur O.E. ainda o separaram do Alf.

Claro que isso, segundo o que foi pensado para os O.E. e quanto a mim era um erro.

Mas que se lixe! A verdade é que a minha Companhia era melhor do que a tua ... ora essa!!!

Um abraço
Joaquim Mexia Alves
Monte Real, que tem Termas e Leça da Palmeira não!!!!

José Pedro Neves disse...

Boa Noite camarigos.
Sobre a "dotação" de Rangers, por Companhia, a minha C.Caç. 4745, Àguias de Binta, apenas tinha um Alf. e um Furr(eu), conforme descrevo no Blogue, no P-7277, em 13 de Novembro de 2010.
Um Abraço Amigo, a todos os membros do Blogue.
José Pedro Neves
ex- Fur. Mil. Op. Especiais
C.Caç. 4745 - Àguias de Binta
Guiné 73/74