sábado, 16 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P10042: Estórias avulsas (62): A minha ida para a Guiné (António Melo)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano, António Augusto Vieira de Melo, ex-1.º Cabo Rec Inf, BCAÇ 2930, Catió e QG, Bissau, (1972/74), com data de 11 de Abril de 2012:

Caro amigo aqui estou de novo.
Já hoje visitei o blogue, o que se tornou um hábito.
Não passo um dia que não o visite. Felicito-vos por tão grande iniciativa.
Os meus parabéns, pois foi o blogue que me ajudou a superar certos traumas que eu tinha desde aqueles tempos idos. Hoje não me envergonho de haver sido militar e ter servido na Guiné porque vocês me deram a força interior para quando em algum sitio que eu esteja presente e surja uma conversa sobre a guerra do ultramar, ou a guerra colonial, digo sem rodeios que eu cumpri o serviço militar na Guiné e quando os que menos sabem do que lá se passou começam a dizer asneiras, e muitas vezes a denegrir a imagem dos ex-combatentes no ultramar, antes eu me calava, mas agora tenho força suficiente para os desmentir e dizer-lhes que calados estariam melhor pois nunca lá estiveram e porque nasceram noutra época e não lhes tocou o que nos tocou a nós.

Por tudo isto o meu muito obrigado.
António Melo


A minha ida para a Guiné

Pertenci ao BC 5 de Campolide mas estava destacado em serviço no Forte do Alto Duque em Algés, e como éramos poucos, o Comandante mandou metade do pessoal passar a casa o Natal e a outra metade o Ano Novo e assim ficaram todos contentes. A mim tocou-me estar de serviço pelo Natal e ir passar o Ano Novo a casa com a família. Por sorte minha chegou a minha mobilização no dia 24 de Dezembro e quando chegaram os que foram passar o Natal, o sargento da secretaria ao ver a mensagem de que eu estava mobilizado para a Guiné calou-se para não me estragar o fim de ano com a família. Ao regressar no dia 4 de Janeiro de 1972 ao destacamento chamaram-me à secretaria e deram-me a notícia de que estava mobilizado e que tinha que preparar todas as minhas coisas para me apresentar no BC 5 que era a minha unidade,

Um pouco tristonho e meio confuso pelo que se estava a passar porque tinha nessa altura um irmão a cumprir o serviço militar na BA 12 de Bissalanca, na Guiné, pensando pelo caminho, se me acendeu uma luz e disse para mim mesmo: - Eu não vou porque dizem que não podem estar dois irmãos ao mesmo tempo no ultramar.

Quando cheguei ao BC 5, cheio de coragem, porque os ia fintar, apresentei-me, eles repassaram uns papéis que tinha na sua frente e disseram-me que eu ia para a casa da rata porque era um desertor. Ali mesmo se me baixaram os fumos e tentei explicar que só havia saído nesse mesmo dia do destacamento do Forte do Alto Duque porque só naquele dia me haviam comunicado a minha mobilização. Por resposta recebi a contestação de que me deveria ter apresentado no dia 25 de Dezembro e que portanto era um desertor. Insisti que não era como eles diziam mas sim como eu lhes estava a contar. Um Primeiro-Sargento que me escutava mandou-me sair um bocado e, não sei se por telefone ou por que meios, comunicou com o Destacamento e confirmou que eu estava falar a verdade. Assim terminou tudo em bem e este rapaz respirou de tranquilidade.

Comunicaram-me que me iriam fazer uma guia de marcha para me apresentar nos Adidos onde me tratariam de tudo, incluindo vacinas, para poder embarcar para a Guiné. Foi então que eu pensei: - Esta é a minha oportunidade, vou atacar agora mesmo. Disse-lhes que tinha um irmão na Guiné a cumprir o serviço militar e que por isso mesmo eu não poderia ir porque estava legislado que não poderiam estar dois irmãos ao mesmo tempo no ultramar, ou na guerra, palavra que a mim me parecia melhor. O tal Primeiro-Sargento que me havia mandado sair um pouco de novo interveio e disse:
- Sim senhor, tens razão, vou-te preparar um documento para que o assines.

Enquanto esperava que preenchessem o documento pensava para comigo mesmo: - Esta partida já a ganhei. Estava contentíssimo pois eu não era um parolo e a mim não se engana facilmente. Que contente estava cá o rapaz até que chegou o momento de me chamarem e me disseram:
- Assina aqui este documento para que vás para casa, e quando o teu irmão regressar, no fim da comissão, tens que te apresentar para ires cumprir a tua missão.

Respondi ao meu queridíssimo sargento que para ir depois do regresso do meu irmão preferia ir já. Retorquiu o sargento que não havia necessidade de o ter chateado tanto quando afinal a minha vontade era ir. Calei-me porque a minha vontade era mandá-lo a um sítio que agora não digo.

Deram-me a guia de marcha e lá fui apresentar-me nos Adidos. Depois de cumpridas as formalidades e andar de um lado para o outro e tudo o mais que tocava a todos e de que pouco me recordo, deram-me uma licença para ir para casa e apresentar-me em determinado dia.

No dia seguinte à apresentação foram as vacinas da praxe que todos nós conhecemos, mas quando estava para embarcar surge o inesperado, dizem que eu não estava vacinado. Eu de novo a insistir que estava e eles a dizerem o contrário. Escusado será dizer que a minha palavra não valeu de nada e de novo mais vacinas. Dizia para mim mesmo: - Como é possível isto estar a acontecer, mas cala-te porque se vai passar igual ao que te aconteceu no BC 5. Come e cala.

Quando estava de novo vacinado é que foi tudo muito rápido. Fui informado que no dia 26 de Fevereiro tinha que estar cedo no Aeroporto de Figo Maduro ou então 2 horas antes aqui nos Adidos, ao que respondi que me apresentaria no aeroporto no dia seguinte.

Levantei-me às 5 da manhã, preparei as minhas coisas despedi-me da pessoa que tinha ao meu lado, a minha esposa, pois havia casado há pouco mais de um ano. Não me despedi de mais ninguém porque as despedidas sempre me custaram. Apresentei no aeroporto e, cumpridas as formalidades, meteram-me num avião, um Boeing da Força Aérea que cá para mim estava muito bem, mas a verdade, vista agora, que entendia eu de aviões para dizer que estava bem? Ainda porque, acima de tudo, era a primeira vez que eu ia andar de avião.

Chegou a hora e o aparelho levantou voo. A partir daí já só pensava na Guiné e no que havia deixado para trás. Levava comigo uma mágoa, deixava a família e a esposa por dois anos. - Vamos lá que sou jovem.

Quando levávamos algum tempo de viagem fomos informados de que iriam servir a comida. Pensei: - Nada mais acertado pois já levo algo aqui dentro que necessita ser aconchegado.

Começa o movimento e vejo vir uma hospedeira que pesava uns cento e vinte quilos e usava farda da Força Aérea. Tinha bigode e não cabia no corredor de tão gorda. Eu que pensava que ia ser servido, como ouvia dizer, por uma senhorita modelo, e toca-me só hospedeiros. Mas que é isto?

Eu queria era uma hospedeira não cabos especialistas da Força Aérea mas, enfim, vamos a isto. Põem-me um pacotezito que parecia os que nos dão nos cafés com açúcar, eu sem saber nada daquilo, olhei para o lado pois aí ia também um cabo especialista que tinha vindo de férias e era do Montijo. Conhecia-o bem, era o Dimas, embora creio, ele não me conhecia. Eu sabia que ele era cabo especialista porque o conhecia e ao ouvir a conversação com outros que viajavam ao seu lado dei conta de que tinha vindo de férias. Vamos lá ver como fazem os outros porque não sei o que isto é. Espero e, como eles fizerem, faço igual. Assim foi, quando eles abriram o tal pacote e começaram a lavar as mãos, eu também. A esperar, a ver e a imitar, lá me fui desenrascando, mas qual no foi a minha surpresa, ao olhar para o lado vejo um parceiro a comer o guardanapo perfumado que era para lavar as mãos. Calei-me como se não me desse conta mas por dentro estava a rebentar de riso ao ver a cena. Quando deu conta da asneira, teve o bom censo de esperar, ver e repetir como fazia cá o macaquinho de imitação.

Com tudo isto lá chegamos ao aeroporto de Bissalanca e para mim o baptismo de voo, pois foi a primeira de muitas e longas viagens que já fiz na minha vida e que por certo me encantou. Desembarcámos e, quando estávamos na sala de desembarque para sair, começou o que não sabíamos ser o coro de periquito, periquito!!!. Começaram todos a recuar pois ninguém queria ser o primeiro a sair. Diz o tal amigo que viajou ao meu lado, pois já nos tínhamos feito amigos durante a viagem:
- Oh, pá não saias porque é só, periquito, periquito!!!
- Eu quero lá saber, que se f…. porque eu estou ali a ver o meu irmão.

Saí e corri para o meu irmão, abraçámo-nos, beijámo-nos e, num abraço demorado, choramos os dois. Um que era eu, com a farda verde, e ele de farda azul da Força Aérea.
As vozes de periquito, periquito, calaram-se e fez-se silêncio porque nesse momento dois militares choravam banhados em lágrimas. Os que chamavam periquitos quiseram saber o que se estava a passar. Com o meu irmão estava um amigo que era da Moita com quem se dava muito bem e que eu conhecia de o ter visto duas vezes antes de irem para a Guiné. Foi ele que fez saber que éramos irmãos e por isso chorávamos. Pois por mentira que pareça, não mais se ouviu a palavra periquito.

Tocou-me aquela gente, mais negros que brancos, que me deram imediatamente uma lição, porque eu levava metido na cabeça que os negros não eram gente como eu, e ali me demonstraram que eram humanos e sensíveis, por isso os respeitei e respeitarei porque souberam compreender a dor de dois irmãos que naquele momento se sentiam alheios ao mundo que os rodeava. Só queríamos saber um do outro e o meu irmão perguntar coisas dos nossos pais, dos nossos irmãos e restante família.

Passado o momento de glória que foi abraçar o meu irmão, cumprimentei o Moita ou mais correctamente o Piedade que é o seu nome, em seguida fui para os Adidos onde o meu irmão e o amigo me acompanharam.

Depois da formatura da ordem, apresentações e de mais coisas que já nem recordo, eles que já eram batidos, falaram por mim e na verdade após me acomodar na caserna fui com eles para a BA 12 comer uns bons enchidos e outras coisas mais que a minha querida mulher me havia metido no farnel. Foi tudo bem acompanhado de boa cerveja e, já com o meu irmão bem tratadinho, fomos comer ao refeitório da Base. Nessa noite dormi na base.

Meus caros amigos, por hoje não vos vou molestar mais.
Um abraço para todos os camaradas da tertúlia, em especial para o Carlos Vinhal.

Nota: - Peço desculpa pela falta de ortografia mas o meu computador é espanhol e por vezes não posso escrever como quero. Sou também muito novato nestas andanças.
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 – P9711: Tabanca Grande (328): António Augusto Vieira de Melo, ex-1.º Cabo Rec Inf do BCAÇ 2930, Catió e Quartel General, Bissau (1972/74)

Vd. último poste da série de 24 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9792: Estórias avulsas (58): Fotos de Bedanda (Luís Gonçalves Vaz/Mário de Azevedo)

2 comentários:

antonio barbosa disse...

Bem vindo companheiro Melo
Passados que são 38 anos do fim da Guerra na Ex- Guine Portuguesa ainda hoje pergunto como é que alguém ainda pode sentir vergonha ou constrangimento de ter cumprido o seu dever para com a Patria, ou seja defender o territorio Nacional esteja ele onde estiver
Um Abraço
Antonio Barbosa Ex- Alf.Mil Op. Esp
Cabuca 73/74

Henrique Cerqueira disse...

Caro Camarada António Melo
Li a tua descrição da ida para a Guiné e senti que era mesmo neste teu artigo que deveria fazer o meu comentário.E porquê?
Bom embora a minha situação fosse diferente em termos de irmão,encontro algum paralelismo na tua estória.Ou seja amanhã dia dezanove relembro o dia do meu embarque para a Guiné em 19/06/1972.E tal como o tu eu tambem já era casado e com um filho e para agravar a situação nesse "famigerado dia 19/06 eu fiz 22 aninhos .Como entenderás e sabes logo que o avião (TAM)Boing 707 levantou e após uma pequena escala na ilha do Sal em Cabo Verde lá aterramos em Bissalanca e mal o avião abriu as portas de desembarque eu senti aquela terrível baforada de calor húmido,pois que era já época das chuvas.Quanto ao serviço VIP das hospedeiras ,pois...os tais bigodaças lá distribuiram um belo serviço de lanche composto por meia duzia de rebuçados e o tal guardanapito para limpar as mãos.
O meu comentário não tem pés nem cabêça ,mas eu queria mesmo assinalar esta "Gloriosa data"e o teu artigo veio mesmo a geito.
Camarada Melo recebe um abraço e lá nos vamos encontrando por aqui.
Henrique Cerqueira