terça-feira, 9 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10507: Antropologia (21): "Molleh" ou corrida de sal, como meio de prevenção da saúde reprodutiva do gado bovino (Cherno Baldé)

1. Mensagem do nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, com data de 3 de Outubro de 2012 com mais um dos seus textos que nos dão a conhecer os usos e costumes dos povos do seu continente, África:

Caros amigos Carlos e Luis Graça,
Junto envio mais um texto,e desta vez, para variar, sobre uma pratica cultural muito antiga dos Fulas que, provavelmente, muito poucos "Tugas" terão tido oportunidade de conhecer ou apreciar in loco.
Esta festa ainda continua a ser celebrada no meio pastoril, mas um pouco ofuscada pela grandiloquência das celebrações religiosas que dominam o meio social e cultural dos muçulmanos.
Como sempre, publiquem se apresentar interesse, caso contrario, também, não haverá lugar para ressentimentos.

Um grande abraço,
Cherno Baldé


MOLLЁH

Todos os anos, no Sahel africano (Agadés) costuma-se realizar o encontro de criadores de gado para celebrar uma prática ancestral que, em Francês, se convencionou chamar de “course salée”, corrida de sal (em português), que reúne todos os povos da região desde Tuaregs, Djermas, Fulbhé Bororos, Aussas e muitos outros.

Os Fulbhé (Peul, Fulani ou Fulas) sobre os quais vamos falar aqui, formam um grupo extenso e heteróclito com mais de vinte milhões de almas, espalhadas entre os diferentes países da região ocidental, central e oriental d’Africa, mas quando se pergunta a um velho Fulani quantos são, na realidade, a resposta pode surpreender pela sua simplicidade e originalidade filosófica, pois ele dirá que há somente dois Fulbhé: um, que herdou e celebra a festa de molléh e o outro, o que não conhece o significado de molléh e, por conseguinte, não sabe como se bebe o cabaz do leite fresco, ainda quente, acabado de ordenhar. Ao primeiro, ele dá o nome de Pullö (singular de Fulbhé), o ser, o que é, e o segundo seria o Al-Pullar (o que fala a língua fulani).

O Molléh encerra um conceito de difícil tradução em outras línguas enquanto actividade original e única da cultura tradicional dos povos pastores. Eu, pelo menos, não tenho conhecimento que tenha sido feita a sua descrição por investigadores ou africanistas que pululavam pelo continente, mas encontra-se no centro da cultura dos povos de Sahel como um dos mais antigos e eficazes meios de prevenção da saúde reprodutiva do gado bovino e logo, da sua própria sobrevivência como comunidades económicas. No essencial, molléh ou corrida de sal, podia definir-se como o processo através do qual os criadores reforçam o organismo dos animais com suplementos essenciais, tirados da natureza em forma de folhas, cascas e raízes de plantas, misturadas com sal iodado. No fundo é isso, mas ao longo dos séculos, essa prática vital, estendeu-se para outros domínios da vida dos povos nómadas, adquirindo uma dimensão socioeconómica e cultural de primeira grandeza. Antigamente, quando eram obrigados a deslocar-se permanentemente e em grupos restritos, os breves momentos de realização dos molléh eram propícios para a reunião das famílias dispersas em grandes extensões territoriais para a renovação de laços e alianças tribais e a definição de novas zonas de pasto. Assim, pela sua importância, a indicação da data e do local da sua realização era rodeada de uma auréola mística tão grande quanto à marcação da data de fanado entre os povos do litoral, de culto animista, cuja realização, não raras vezes, demora por períodos de dez e mais anos (caso dos Felupes). É daí que nasce a metáfora popular entre os fulas segundo a qual, se as vozes da concessão entoam o canto do molléh é porque os mais velhos já tinham fixado a data da sua realização, dito por outras palavras, quando as crianças praticam uma acção que ultrapassa as suas competências é porque contam com o beneplácito dos mais velhos.

Os preparativos da realização do molléh, começam na véspera do dia marcado, com a operação da colecta das folhas, raízes e partes epidérmicas de plantas, conhecidas só dos mais velhos. Mas, os primeiros sinais da festa começam mesmo quando as mulheres, encarregadas de pilar (esmagar) os materiais orgânicos se organizam em grupos de idades e enchem o ar com o barulho ritmado dos “pilons”, entoando canções coloridas com cenas triviais de amor, ciúme e traição da malta jovem, no quotidiano da vida nas aldeias improvisadas ao longo dos trilhos da caminhada sem fim, em direcção ao sol poente.

Os mais velhos partem de manhã cedo à procura do local da celebração, atentos aos possíveis sinais premonitórios, no seu trajecto, que deverão contribuir para a decisão final. Na tabanca, por volta da meia-noite, já só ficaram os mais novos em especial as raparigas solteiras com os braços cansados e gargalhadas sonoras que se encarregarão de finalizar e entregar o produto que servirá para a preparação da beberagem milagrosa já com as tonalidades vermelhas da cor das árvores donde foram extraídas as cascas.

O molléh é uma festa total, partilhada por todos, da mesma forma que o gado é, antes de mais, uma propriedade conjunta onde todos e cada um, a semelhança de uma bolsa de acções nas sociedades modernas, detém a sua quota-parte, o activo bruto ou capital de reserva para fazer face aos imponderáveis da vida. A criança quando nasce já tem aberta uma conta poupança (cornuda?), a mulher quando se casa leva, consigo, o seu dote para alicerçar a sua futura casa e o mais velho quando deixa este mundo precisa da carne e do sangue do animal para alegrar a partida na longa caminhada até a sua ultima e eterna morada. Tudo tem sentido num mundo que se encontra em equilíbrio perfeito. Branco, azul, castanho, vermelho e preto são as cores dos animais e da bandeira Fulani, cada grupo totémico com suas cores de herança de acordo com principios predeterminados na origem. A nossa família, por exemplo, assim como a maior parte dos Fulas da zona da Guiné e da Casamança, estava ligada aos animais de cor branca e, de preferência, sem manchas ou chifres retorcidos. Os velhos regressam ao anoitecer para anunciar a boa nova com grande pompa, cabeças e corpos cobertos com folhas jovens de ramos de palmeira, gritando: Amanhã é molléééh!... Amanhã é molléééh!... Amanha haverá comida e leite em abundância, a vida dos animais será assegurada e a riqueza da comunidade multiplicada.

O local da celebração, situado na cabeça de uma bolanha é agora o epicentro das atenções, mas ainda nem tudo esta pronto, é preciso cortar os arbustos, deslocar os pequenos montículos de bagabagas, escavar sulcos na terra em forma de um cabaz grande, proteger o fundo com produtos impermeáveis para evitar a infiltração d’água, deitar a farinha de cor vermelha, composto de raízes e cascas de árvores, juntar o sal iodado na mistura aquosa assim obtida e mexer com as mãos, transformando tudo numa massa pastosa e salgadinha que os animais irão sorver com o prazer único de um acto que se realiza uma vez no periodo de mais de um ano. No centro de um espaço igual ao de um campo de futebol, com dezenas de sulcos no solo, encontra-se o cabaz da sorte e da vitória, aquele que vai ditar a escolha da vaca do ano.

Ainda os preparativos no local não terminaram e eis que a equipa de estafetas voluntários que vai conduzir os animais, está de partida, dela farão parte os melhores atletas. Saúde, inteligência, vigor e rapidez serão os atributos de base para a sua composição. Momento crucial na vida dos jovens pastores e candidatos, uma grande oportunidade para a revelação de dotes e capacidades, mas que não esta isenta de perigos. Os velhos estão atentos e não hesitam em refrear ânimos exaltados. Os membros da equipa, sem desconfiar que já são portadores da notícia através dos cheiros que transportam na roupa e no suor dos corpos aquecidos pelo calor e pela ansiedade do momento, vão retirar as amarras dos animais, dar sinal de partida e orientar a corrida, num percurso de 3 a 5 quilómetros, até ao local do molléh.

- Góóh Saraél-âmen, góh!... Góóh Daneél-bêssel, góh!... Góóh, Siraél-kumáh, góh!... [1]

De início e durante os primeiros quilómetros a corrida é pausada, os animais estão desorientados e entrechocam-se gravitando a volta dos homens-guias, cabeças erguidas, farejando no ar. O momento exige alguma agilidade e concentração e, sobretudo, é preciso posicionar-se para a recta final.

A partir dos últimos quilómetros, com a ajuda do vento e do seu portentoso faro, os animais já localizaram o local e agora é cada um por si, a corrida é desenfreada em direcção ao molléh, é o momento de todos os perigos. Do local da celebração também já gritam o “góóh!...góóh!”, agora é preciso correr… correr, trata-se de uma competição, não se pode fraquejar, os mais fortes serão glorificados, os fracos podem ser esmagados pela fúria de uma ou duas centenas de animais sedentos de sal e endiabrados pelo chamamento do molléh. A distância é cada vez menor e eis que no recinto entram as primeiras vacas. As crianças estão empoleiradas em cima das árvores e soltam gritos animados.

No grupo da frente estão as meninas, quão gazelas voando ao vento, deve ser a primeira vez que participam no molléh e, por inexperiência, passam ao largo sem saber o que fazer, são seguidas de perto pelos rapazes (machos) e por fim o resto da manada.

Mas, dentre a equipa dos voluntários os resultados são surpreendentes, antes da chegada dos animais, pelo menos dois ou três deles já se encontravam no recinto, a espera de felicitar a vaca do ano, munidos de ramos de palmeiras e, os primeiros a chegar ao local são sempre os mais velhos. A primeira vista, torna-se difícil perceber como é que homens tão frágeis, no auge da idade, embrulhados nos seus amplos vestidos brancos, agora cinzentos pela acção do tempo e do uso, conseguem realizar tamanha proeza no meio de um matagal de árvores e arbustos, desafiando a força e o brio dos mais novos. No fim, a festa é de todos, haverá comida (sem carne), farinha de milho, leite e muita alegria a mistura.

No caso dos animais, como já se viu, chegar primeiro ao molléh não é sinónimo de vitória na corrida e, quase sempre, são aqueles que chegaram em último lugar os que vão por a boca no cabaz que dá direito a vitória. Compreenda quem puder. E a vaca do ano é, invariavelmente, uma vaca mãe já experiente, com as tetas cheias que serão ordenhadas no local e cujo leite será, primeiro, absorvido pelos guias, vencedores da corrida, num cabaz especialmente preparado para o efeito, de joelhos e com os rostos virados para o sol nascente, donde os seus antepassados saíram um dia, para procurar novas pastagens e enfrentar a marcha rumo ao ocidente desconhecido. Assim, Molléh deve ser visto como uma tradição que os Fulas trouxeram da costa leste donde saíram há muitos séculos atrás e cuja prática os seus irmãos das montanhas da Etiópia, das planícies do imenso Sudão ou das colinas do Ruanda até Quénia, esqueléticos, longilíneos e incansáveis, souberam conservar e valorizar, transformando-se simplesmente nos melhores atletas d´África e do mundo.

Em Fajonquito, lembro-me de o meu pai ter convidado o seu amigo branco Tintim, um Cabo da companhia metropolitana estacionada em Fajonquito por volta de 1969/70. Ele assistira e observara de longe toda a encenação sem interferir. Em contrapartida, no fim, parecia ter gostado do jogo de hóquei no capim, com golpes de pau em frutos secos e redondos servindo de bola de arremesso. Esta modalidade depois foi abandonada, porque quando se falhava a bola, muitas vezes, acertava-se nas pernas dos adversários.

Nota: 1- Corre pequeno Saráh, corre!...Corre branquinha linda, corre!...Corre Siráh, filha de Kumba, corre!... (pelos vistos trata-se de uma formula onomatopeica para incitação e encorajamento dos animais durante a corrida da celebração do molléh.
Era frequente e normal, na altura, atribuir aos animais nomes dos seus proprietários. De notar que antes da islamização, os fulas tinham nomes próprios que identificavam os seus laços de parentesco e a posição de cada um na hierarquia e ordem sequencial do nascimento dos filhos.
Na linha masculina eram: Saráh, Samba, Demba, Patê, Dulô etc. e na linha feminina: Siráh, Takôh, Djabú, Kumba, Ainéh. Verifica-se claramente a predominância de nomes bissílabos.

Bissau, 27 de Setembro de 2012.
Cherno Abdulai Baldé
____________

Vd. último poste da série de 9 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10505: Antropologia (20): Funeral Fula / Funeral Islâmico (Luís Borrega / Luís Encarnação)

7 comentários:

Anónimo disse...

CHERNO

Gostei muito de ler, não só a informação que aqui nos é trazida sobre esta prática cultural do povo fula (Molleh), mas também a forma como vem apresentada, aproveitando sempre para recorrer a explicações através das tradições e das origens étnicas e geográficas.
Um abraço
Alberto Branquinho

Torcato Mendonca disse...

Olá Cherno,

Gostei do que li. Tive a sorte de em Candamã ter conhecido o Régulo António Bonco Baldé e de com ele ter aprendido bastante. Ele só regressou a Candamã depois da morte do pai. Estava em Bissau na Casa Ultramarina ou Gouveia. Passaram muitos anos.
Não tinha muito tempo para conhecer os Povos, Etnias e a sua cultura. Mas lera, antes de ir para África alguns livros. De um já aqui falei "Grandeza Africana" -Lendas da Guiné Portuguesa de Manuel Belchior. Fala das lendas dos Povos Fula e Mandinga.
Um abraço, T. (escreve mais sobre estes temas)

Anónimo disse...

Caro Amigo Cherno:
Já aqui disse que a tua admissão e participação neste areópago veio conferir-lhe uma valorização enorme. Trata-se de um contributo que enriquece o conhecimento (infelizmente muito superficial) que tenho da Guiné e das suas culturas.
Continua a ensinar-nos... mais vale tarde do que nunca.
Muito obrigado.
Um abração
Carvalho de Mampatá

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Carlos Vinhal,

A decoração está uma beleza, mas trata-se de raparigas da zona costeira (da etnia Manjaca ou Bijagó) na companhia das quais, porém, não me importava de atravessar a mata do Cantanhês ou a floresta da cobiana com ou sem montada.

Um abraço amigo para si, extensivo aos Camarigos Torcato, Branquinho e Carvalho de Mampatá, a terra de mulheres bonitas.

Cherno

PS: Um dia vou contar ao Carvalho como foi o meu namoro com uma Foreanca de Mampatá bonita mas impossivel que não chegou ao fim mas deu para escrever um poema.

paulo santiago disse...

Cherno

Muito interessante este post sobre o Molléh,de que não tinha conhecimento,
apesar de perto do Saltinho haver uma
tabanca, Cansamange,com muitas cabeças de gado bovino.Como dizes,é
uma prática cultural,mas com bases
científicas.Durante vários anos,
trabalhei com bovinos produtores de
leite,não praticava o Molléh,mas tinha que lhes dar sal.Este gado tem normalmente carências de sal,nota-se quando os animais bebem urina uns dos outros.Assim,no
estábulo,colocavam-se uns blocos que os animais lambiam,constituídos
por cloreto de sódio,e nas silagens
também se adicionava sal.
Os Fulas sabem empiricamente como
bem tratar os bovinos.
Abraço

Manuel Carvalho disse...

Caros Amigos

O comentário do Paulo Santiago fez-me lembrar, que vi o meu pai, que tambem tratou de bovinos, a pregar uma cortiça numa tábua junto ao lugar onde tinha as vacas e onde esfregava sal para elas passarem a lingua.Julgo que o meu pai fazia isto quando elas estavam com fastio e tinham a lingua muito branca. que ele primeiro examinava.O meu irmão (Carvalho de Mampatã) não se deve lembrar disto porque ainda era muito pequeno.
Um abraço para todos

Manuel Carvalho

paulo santiago disse...

Manuel Carvalho

Essa da cortiça,que não conheço,mas atendendo aos sintomas(fastio,língua branca)devia ter outro fim,talvez minorar efeitos de febre aftosa.Seria sal que o teu pai esfregava na cortiça,ou seria sulfato de cobre?Isto é uma suposição minha.
Já agora,na Guiné,vacinava-se contra a febre aftosa,pelo menos houve uma vez que um técnico pecuário andou lá pela zona do Saltinho a inocular bovinos.
Abraço