quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10512: As Nossas Tropas - Quem foi Quem (11): Tenente de 2ª linha Mamadu Bonco Sanhá, régulo de Badora, comandante da companhia de milícia do Cuor (Cherno Sanhá)



Guiné > Zona leste > Sem data nem local > Mamadu Bonco Sanhá. Segundo informação do filho Cherno Sanhá, esta foto deve ser de finais de 1960 ou de 1970, quando o tenenente Mamadu foi condecorado com a cruz de guerra. Deveria ter uns 40 e poucos anos.

Foto: © Cherno Sanhá (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados,


1.  No passado dia 5 de setembro, recebi a seguinte mensagem do nosso leitor, Cherno Sanhá, que presumo viva (ou tenha vivido em Espannha), a avaliar pelo endereço de correio eletrónico: cherno2009@yahoo.es

 Bom dia!

É com grande satisfação que pude hoje ler o vosso blog,é muito importante e enriquecedor.
Sou filho do Mamadu Bonco Sanhá,vou tentar contribuir com mais informações sobre o meu pai e enviar algumas fotografias dele.

Um grande abraço.

Cherno Sanhá


2. Comentário de L.G.:

Na altura eu não associei o nome, Mamadu Bonco Sanhá, ao todo poderoso cabo de guerra e régulo de Badora, homem grande de Bambadinca,  fula, que eu conhecera no meu tempo (1969/71). Hoje, 10 de outubro, recebo um outro mail com uma das prometidas fotografias do pai do Cherno Sanhá (Pelo indicatiivo  do telemóvel, 00 245, vejo que ele afinal vive na Guiné-Bissau):

Caros Luis Graça,

Junto envio uma foto do meu pai Mamadú Bonco Sanhá.
Cumprimentos
Cherno Sanhá
Telemóvel: (+245) 727 6999



3. Comentário de L.G.:

Meu caro Cherno:  De repente, ao olhar esta foto amarelecida pelo tempo, fez-se-me luz no "meu computador central", reconheci de imediato aquela cara: era ele, o tenente de 2ª linha Mamadu, ou simplesmente o tenente Mamadu, como os 'tugas' o tratavam, com deferência e respeito,   comandante da companhia de mílícia do Cuor...

Era ele, fardado, com os respetivos galões, e os óculos escuros que sempre lhe conheci. A farda, branca, devia ser a da administração colonial, a das cerimónias oficiais, a de régulo. Régulo de Badora.

Vestido de farda, branca, como na foto, não me lembro de o ter visto.  Rebobinando os filmes das minhas memórias de Bambadinca, estou a vê-lo, sim, ora de camuflado, ora com as vestes tradicionais dos homens grandes, a chabadora, e quase sempre, se não sempre, montado na sua motorizada de 50 cm3, de marca japonesa (talvez uma Kawasaki), oferta pessoal - segundo se dizia -  do Governador Geral da Província e e Com-Chefe, António Spínola (, facto que nunca pude confirmar).

Habituei-me a vê-lo,com alguma frequência, na parada do quartel de Bambadinca, junto ao comando do batalhão ali estacionado no meu tempo (primeiro, o BCAÇ 2852, e depois o BART 2917), ou seja, no período que medeia entre agosto de 1969 e março de 1971.

Nunca fiz, que me lembre, nenhuma operação com ele. De resto, não era habitual os pelotões de milícias participarem nas nossas operações, apenas os Pel Caç Nat (52, 54, 63)...

Também era voz corrente que tinha uma cruz de guerra, por feitos valorosos em combate, não sei onde nem quando. O que também nunca soube era onde vivia, se em Bambadinca ou nalguma tabanca dos arredores.

Dele também se dizia - seguramente com os exageros próprios das 'bocas'  da caserna  - que o todo poderoso e temido régulo de Badora tinha 50 mulheres, uma em cada aldeia do seu regulado, e que só em cabeças de gado deveria ter umas centenas. Mulheres e cabeças de gado  faziam parte do 'status' de um homem grande.

Dizia-se também que tinha alguns filhos na CCAÇ 12, como seria o caso do nosso infortunado  e saudoso Umaru Baldé, o 'puto' [,foto acima, à esquerda; crédito fotográfico: Benjamim Durães]...

Nunca lhe perguntei, ao Umaru,  nem nunca lhe perguntaria...Lidei, privei com os fulas, fiquei nas suas tabancas, mas também respeitei a sua privacidade, a sua cultura, o seu modo de ser e de estar... Com os balantas, infelizmente, não consegui criar qualquer empatia... A barreira da língua e da farda, além da pertença a uma companhia fula (, a CCAÇ 12,), eram obstáculos intransponíveis...

Havia tensão entre os fulas e os balantas de Badora... Julgo que desgraçadamente "ajustaram contas" entre eles depois da nossa saída... Os malditos demónios étnicos ficaram na "caixinha de Pandora" que entregámos ao PAIGC... (E os guerrilheiros tinham uma caixinha destas, com outros ingredientes)...

Eu, que sempre lidei com fulas, e fiz amigos entre eles, também tive que gerir sentimentos contraditórios, em relação a este povo e aos seus filhos... Sempre fiz uma distinção entre os seus "chefes" tradicionais, de um modo geral aliados das NT, e os seus pobres "súbditos", a grande maioria dos quais eram também  meus/nossos soldados.

Desgraçadamente o aliado dos 'tugas', o nosso Tenente Mamadu,  foi fuzilado em Bambadinca depois da independência, já em 1975: o seu "crime" terá sido apenas o de ter apostado no "cavalo errado" do jogo de xadrez geopolítico que se travava na Guiné... Não sei em que circunstâncias foi julgado, condenado e executado. Talvez o Cherno Sanhá nos possa (e queira) esclarecer melhor este último e trágico episódio da vida do seu pai e nosso camarada de armas.

Quanto às autoridades militares de Bambadinca do meu tempo,  faziam dele quase um mito... Veja-se por exemplo o que se pode ler na história do BART 2917 (1970-72):

(...) "No Sector L1 podemos considerar duas raças (sic) distintas: para Leste da estrada Bambadinca-Xitole onde predomina a raça Fula, e para Oeste da mesma estrada onde predominam as raças Balanta e Beafada.

"A população Fula de um modo geral é nos favorável, sendo de destacar o regulado de Badora, que tem como Chefe / Régulo um homem de valor e considerado pela população como um Deus. Esse homem é o Tenente Mamadu, já conhecido do meio militar pelos seus feitos valorosos e dignos de exemplo. Da outra população, fortes dúvidas se tem, especialmente as dos Nhabijões, Xime e Mero" (...).

Enumera-se depois o seu currículo, apresentado em termos grandiloquentes e laudatórios:

(i) Régulo do Badora; 

(ii) Vogal do conselho logístico da Província; [, ao lado, por exemplo, de outro grande aliado dos portugueses, o régulo manjaco Joaquim Baticã Ferreira]

(iii) Comandante da Companhia de Milícias do Cuor; 

(iv) "Intitulando-se Fula, é considerado pelos Mandingas e Beafadas como Beafada, em virtude da ascendência materna"; [, segundo Beja Santos, devia ser parente dos Soncó do Cuor, "os mais ardorosos guerreiros da Guiné";  em carta ao comandante Avelino Teixeira da Mota, ele escreveu o seguinte: (...) "Quando tiver tempo e paciência, gostava muito que me indicasse literatura sobre este dinamismo da islamização, que foi animada pela presença europeia, pela submissão dos infiéis beafadas e dos fula-pretos animistas. Também no estudo do Carreira descobri que Boncó Sanhá (seguramente familiar do actual tenente Mamadu Sanhá, régulo de Badora) era sobrinho de Infali Soncó. (...)]



(v) "Pelos seus actos de valentia é condecorado com a Cruz de Guerra"; 

(vi) "Régulo justo e especialmente preocupado com a segurança das suas populações"; 

(vii) O seu prestígio parece ir muito "para além dos limites do regulado de Badora"; 

(viii) "É um excelente colaborador das NT, parece representar o movimento dos Fulas Nativos" (...).

Fica aqui o nosso gesto de apreço pela memória de um homem  que foi um importante aliado das NT, na zona leste, e que pagou com a vida essa aliança.  Um abraço para o Cherno Sanhá que ao fim destes anos todos nos vem surpreender com uma foto do seu pai, seguramente rara e indiscutivelmente valiosa para todos aqueles de nós que, em Bambadinca, conheceram o "tenente Mamadu".  LG

4. Nota posterior de L.G.:

Em conversa com o Cherno Baldé (que teve a gentileza de me telefonou de Bissau e aceitou o meu convite para integrar o nosso blogue), soube mais o seguinte acerca de Mamadu Bonco Sanhá: (i) a residência oficial do tenente Mamadu era em Madina Bonco; (ii) muitos dos papéis dele perderam-se, ficaram nas  mãos das mulheres, mas a foto deve ser de 1970 ou por aí; (iii) o Cherno deve ter uns 20 irmãos; (iv) o tenente Mamadu nunca teve "50 mulheres", embora tivesse bastantes como régulo que era, mas algumas delas eram dos irmãos que faleceram antes dele; (v) o Umarau Baldé não era filho do Mamadu Bonco Sanhá: (vi) o Cherno Sanhá, que tem 56 anos, fez a 4ª classe em Bambadinca, foi aluno da profª Dona Violeta, residia em Bambadinca nessa altura, mas tinha nascido em Madina Bonco; (vii) fez o liceu em Bissau;  (viii) formou-se em Cuba, em 1983, em engenharia de telecomunicações; (x) trabalhou na rádio nacional durante uns 3 anos; (xi) andou por Espanha na sequência da guerra civil em 1998/99; (xii) vive hoje em Bissau, e trabalha numa empresa de telecomunicações: (xii) conhece alguns dos nossos grã-tabanqueiros de Bissau: o Pepito, o Patrício Ribeiro, o Cherno Baldé... Aguardo que ele me mande uma foto sua, atual. Aprecio a coragem dele por dar a cara e vir aqui recuperar a memória e a honra do seu pai.
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6 comentários:

Anónimo disse...

As actas do Conselho Legislativo da Província da Guiné em que participou Mamadu Bonco Sanhá podem ser consultadas em
http://www.fmsoares.pt/aeb_online/inep/inep.php?tempo=1300421638&criterio_1=INEP&criterio_2=A7-Fundo+Gabinete+do+Governador&criterio_3=2-Cons.+Legislativo+e+de+Governo&criterio_4=Actas&tab=ACTAS

Fundação Mário Soares.

Um abraço,
Carlos Cordeiro

Cherno Baldé disse...

Caro Luis Graca,

Saudo, com satisfacao, a chegada do Cherno Sanha, que é da minha geracao e Eng. de formacao.

Conheci-o, quando ha dois anos atras a casa do seu irmao foi destruida por uma ventania e precisavam de ajuda. Telefonou-me apresentando-se e pelo apelido, instintivamente, preparei-me para ouvir o chorrilho e um longo discurso, habitual nos nossos primos mandingas/beafadas. Com a minha grande surpresa, ele falava impecavelmente a nossa lingua. No fim tudo ficou esclarecido quando disse que era da familia Bonco Sanha de Badora que eu ja conhecia por meio de colegas ainda no Liceu de Bafata nos anos 70.

Quanto aos Sonco de Cuor, amigos do MBS, provavelmente, terao vindo habitar esta regiao apos o inicio das guerras fulas da segunda metade do sec. XIX, primeiro com a destruicao de Berécolom (1852), no Sancorla (cuja designacao se manteve com os fulas) e que era a capital dos Sonco com o mui célebre Ghalen Sonco, morto na batalha final em Cansala (1864). No Cuor, teriam restabelecido um novo regulado com o mesmo nome.

Um grande abraco,

Cherno Baldé

alma disse...

Também o conheci e muito bem. Creio que ficou um pouco melindrado por não ter sido convidado para a Companhia de Comandos Africanos.Os meus Soldados tinham por ele grande respeito.

Em 1973,encontrei-o em Lisboa.Queria falar com o Cor.Felgas.Dei-lhe a respectiva morada.


J.Cabral

Luís Graça disse...

Cherno, como vez, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Espero que me ajudes agora a convencer o teu primo Cherno Sanhá a ingressar na Tabanca Grande onde cabemos todos, dos fulas aos beafadas, dos tugas aos caboverdianos, com todas as idissioncrasias, semelhanças e diferenças…
Vejo que na tua terra por sua vez todos (ou quase todos) são primos, irmãos, irmãos primos... Ainda ontem, na RTP1, no 25º episódio "A Guerra", dedicado à conspiração que matou o Amílcar Cabral (e deu um golpe mortal no PAIGC), o defunto 'Nino' veio falar (e defender a inocência de) o seu "irmão primo" Osvaldo Vieira, um dos homens de cúpula do PAIGC que deve ter ido parar ao inferno dos guerreiros... (Só por um grande cinismo, este homem, mais do que suspeito de ser um dos principais autores morais da morte do "pai", pode ter os restos mortais ao lado de Amílcar Cabral, na Amura, no Panteão dos "heróis da Pátria"...).

Grande parte dos testemunhos apresentados, pelo lado de antigos militantes e dirigentes do PAIGC, o incriminam... E o próprio 'Nino' Veira não fica bem na fotogfrafia da história...

Sabes, fiquei triste e deprimido... Não fazia ideia do clima de "caça às bruxas" que se seguiu à morte do grande líder africano, e sobretudo ao desnorte de muitos dirigentes que deixaram o “povo”, as “bases”, lavar a honra com sangue, procedendo-se a pseudo-julgamentos revolucionários e à execução sumária (mais de 170!) em três ou quatro sítios diferentes (Kandiafara, Boé…).
Neste desvario total, morreram seres humanos inocentes cujo desaparecimento físico serviu para
eliminar de vez todos os indícios suspeitos que recaíam sobre altos dirigentes do PAIGC (e porventura da "entourage" de Sékou Touré)...

Enfim, também cá temos, na nossa história de Portugal, episódios que nos envergonham, como o processso dos Távoras, no tempo de D.José e do seu valido, o Marquês de Pombal (que não deixa, por isso, de ser um dos "grandes políticos" deste país velhinho como-ó-caraças!)...

De qualquer modo, amigo e mano Cherno Baldé, um programa de televisão não é, nem nunca poderá ser, em democracia, um sucedâneo de um julgamento realizado em sede de justiça...

PS - Sou (e sempre fui) contra a pena de morte, em qualquer circunstância… Desta cultura da “violência revolucionária” foi também vítima o Mamadu Bonco Sanhá e todos os demais guineenses executados nestes anos de independência…

Um abraço. Luis

Torcato Mendonca disse...

Conheci e era um homem respeitado. Falei com ele mais do que uma vez. Não sei se não seria, devido ao nome Bonco, familiar do Régulo António Bonco Baldé de estava em Candamã.

Em Outubro de 68 ficou com os seus homens, certamente parte deles,em Mansambo. Nós fomos, a três grupos, fazer a operação "Meia-Onça" - assalto ao Baio/Burontoni. Saimos de Taibatá com o Pel Caç 52 que embarcou em Banbadinca,. Do Xime saíram a 1746 (Cap Vaz),Pel. Caç. 53, 1 Gc/2401 e a Art. do Xime a postos.O M.Beja Santos deve ter participado nesta aventura.
Não descrevo a operação mas o IN sabia bem...
Por volta das 12H Mansambo foi atacado fortemente como represália. Repeliram o In os militares que ficaram da 2339 e os do Ten. Mamadu.
Nós ouvíamos bem a "nossa pesada" a funcionar a mais de um dúzia de Quilómetros. Esta pesada era uma G3 a trabalhar dentro de um bidão de 200 L, todo aberto de um lado e só meio no outro...
Regressamos a Mansambo ainda nesse dia, creio eu, pois o ambiente fervia.

O Luís Graça fala na "GUERRA" e o episódio que passou ontem. Não me agradou. Contra a pena de morte sou visceralmente contra. A morte de Cabral foi o inicio de algo muito complexo e ainda não resolvido. =Para um dia=

Ab. T.

José Botelho Colaço disse...

Pena de morte! Ontem 9-11-2012 no programa na RTP 1 A guerra de Joaquim Furtado o comandante Pedro Pires disse simplesmente (não podia-mos perder tempo com essa gente) solução fuzila-los.
Tanto no período da guerra, como a seguir ao da paz se assim lhe podemos chamar.