Nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Esta personagem fui eu, mas penso que, talvez em parte,
também eras tu, que nasceste entre os anos trinta e
cinquenta do século passado ou talvez até antes ou
depois, andaste por aí, sobreviveste e hoje até tens a
pachorra de me estar a ler.
Isto não é impressionante? Sobrevivemos, sendo filhos de
mães que não se alimentavam com todas aquelas
proteínas necessárias para o bom funcionamento do
organismo, comiam queijo e toucinho gorduroso,
andavam de “de barriga à boca”, até ao último dia,
sempre a trabalhar na agricultura, sujas, com as pernas
cheias de “varizes”, que eram umas veias saídas nas
pernas, muito perigosas, devido ao esforço despendido e,
talvez não só, algumas bebiam álcool, enquanto estavam
grávidas, sem nunca fazerem um simples teste de diabetes.
Nascemos. Fomos colocados para dormir, em berços ou
numa simples canastra, cobertos com cobertores,
farrapos ou panos feitos com tintas coloridas, feitas à
base de chumbo, à base de brilhantes, de barriga para
baixo ou para cima, um farrapo borrado e molhado por
horas, chorando, às vezes chupando num pano molhado
em água de açúcar, ou quando as nossas mães queriam
trabalhar sem ouvir o nosso choro, nos colocavam um
pouco de pão molhado em vinho, na boca, para assim,
“adormecermos”.
Ouviam-te chorar. Talvez com dores em qualquer parte
do corpo, embalavam-te por alguns momentos e calavas-te,
não te administrando qualquer medicamento.
Mais tarde. Com a tal baba e ranho no nariz, às vezes
sujo e com pouca roupa no corpo, pois normalmente
usavas o resto da roupa dos teus irmãos, ou até do teu
pai, fazendo chuva, frio ou calor, vias as outras pessoas
andarem de bicicleta, sem capacetes ou outros utensílios
de segurança, os que andavam de carro, não usavam
cintos de segurança, as crianças não tinham assentos
especiais, os pneus estavam carecas, não havia “air
bags” e às vezes nem travões.
Bebíamos água dos ribeiros, das fontes, dos poços ou
das minas e, não da garrafa.
Compartilhávamos um “pirolito” com quatro amigos,
bebendo da mesma garrafa e ninguém realmente morreu
por isso.
Comíamos biscoitos, broa, pão branco, manteiga real,
toucinho, batatas, nabos, couves, feijão, arroz, mal ou
bem cozinhado, bem ou mal lavados, na tal panela de três
pernas, comunitária, que cozinhava para a família, às
vezes para os vizinhos e entalava alguns legumes para
os animais, tudo temperado às vezes com sal “amarelo e
rançoso”, que se tirava da caixa, a que se chamava
“salgadeira”, onde se guardava a carne salgada do porco,
laranjadas ou pirolitos, feitos de água com açúcar, o que
queríamos era “encher a barriga” e, nunca estávamos
acima do peso.
Porquê? Porque estávamos sempre a brincar, ou a
trabalhar na agricultura, lá fora, pois saíamos de casa
pela manhã e andávamos lá fora o dia todo, estávamos
de volta quando o sol desaparecia.
Chegámos até aos dias de hoje, talvez porque
passávamos horas construindo os nossos brinquedos,
como por exemplo carrinhos de madeira com rodas de
toros de pinheiros e, montá-los ladeira abaixo, sem
travões, caindo e levantando-nos sem nunca nos queixarmos,
aprendendo assim a resolver os nossos problemas.
E claro, aprendemos o “a, e, i, o, u”, ou a “a, b, c”, naquela
“lousa” de pedra preta, onde um lápis era um “riscador”,
também de pedra preta, sabíamos a “tabuada” de cor e
salteado, nas salas de aula não havia tecto, víamos as
telhas onde fazia frio no inverno e eram quentes a partir
de Maio e, estava lá, ao lado daquele quadro, que nos
parecia muito grande, uma cana comprida para manter o
respeito, não tínhamos Playstations, Nintendos, jogos de
vídeo, 150 canais na TV a cabo, não havia filmes de vídeo
ou DVDs, com som surround, telefones celulares,
computadores pessoais, com Internet.
Mas tínhamos amigos, era só vir à rua e encontrá-los.
Só havia dois modelos de corte de cabelo, era comprido,
de vários meses, talvez até anos, sem nunca ter sido cortado,
onde havia os tais insectos a que nós chamávamos
“lendias e piolhos”, ou rapado, onde o barbeiro deixava
uma “franginha” na frente a cobrir parte da testa, caíamos
das árvores, ficávamos magoados, quebrávamos os ossos
ou até os dentes e não se ia ao hospital, nem havia
acções contra as companhias de seguros por esses
acidentes.
Comíamos vermes, terra e lama, enquanto brincávamos
em terreno sujo e, os vermes não continuavam a viver em
nós por toda a vida.
Pelo nosso aniversário nunca nos deram brinquedos, tais
como cópias de armas modernas, como pistolas e
metralhadorasdo último modelo, mas sim brinquedos feitos
por familiares, com paus ou bolas de trapos.
Aprendíamos a lidar com a decepção, se não éramos
escolhidos para a equipa de futebol da nossa rua ou
bairro.
Era inédita a ideia que os nossos pais iam socorrer-nos
se por acaso quebrássemos a lei, pois eles realmente
estavam sempre do lado da lei.
A nossa geração passou, entre outras, pela Segunda
Guerra Mundial, por aquela maldita Guerra do Ultramar,
produziu alguns dos melhores inventores, tendo sido em
parte, uma explosão de inovação,
nasceram líderes, claro, com algumas excepções, que
têm solucionado a maior parte dos problemas que vão
afectando o mundo de hoje, num mundo onde cada vez
existem mais facilidades para alguns, mas muito mais
dificuldades de sobrevivência, pelo menos para nós, os
tais que nascemos entre aquelas datas, alguns até antes
ou depois e, tanto no fracasso como no sucesso, sempre
assumimos a nossa responsabilidade, os nossos
compromissos, a palavra dada, para nós conta e
aprendemos a lidar com tudo isso, embora agora, como já
mencionámos antes, com muito mais dificuldade.
Se tu, que me estás a ler, és um deles, PARABÉNS. Tenta sobreviver, companheiro de jornada.
Tony Borie, Abril de 2014
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Nota do editor
Último poste da série de 15 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14368: Libertando-me (Tony Borié) (8): Retire da Terra o que é necessário para viver e nada mais
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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6 comentários:
Camarada ex Combatente Tony Borié, também sou, em parte, um desses, como tu foste, mas como vivi sempre em Lisboa, foi um pouco diferente, mas na essência foi igual. Um Abraço Amigo.
Caro Tony
Em parte fui mais "bem tratado", pois já era filho de emigrante nos States, mas a vida saudável ao ar livre era quase igual. Com os vizinhos nas correrias, em todos aqueles jogos do passado que já ninguém sabe que existiam, pelas terras de semeadura a apanhar "catarinas" para assar enquanto os donos as lavravam com as charruas puxadas pelos bois. No tempo das maçarocas de milho leitoso a surripiar algumas para assar barradas com manteiga que se surripiava em casa.
Enfim, outros tempos, outra forma de vida.
Abraço
JPicado
Tony
Este foi o fim de semana dos Passos aqui na nossa Águeda.Penso que te lembras bem destas cerimónias da Quaresma.
Grande abraço
Paulo Santiago
Tony, já naquele tempo eramos um país de "Doutores".
Hoje é pior, repetem-se as estatísticas que ser "Doutor" virá a ter mais sucesso na vida do que aquele que começa a dar massa ao pedreiro aos 11 anos.
Ora, se começar a dar massa ao pedreiro só com 26 anos, quando terminar o curso, é melhor já nem começar a trabalhar, já chegou à idade da reforma.
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Tony, agora mudando de assunto, ando muito preocupado (nem durmo) com o problema do Obama e dos americanos.
Então aquela de os afro-americanos levarem porrada a toda a hora dos polícias euro-americanos, nunca mais acaba?
Se vires o Obama, diz-lhe da minha parte que nós os colonialistas tugas já tínhamos resolvido esse problema racial há mais de 100 anos.
Simples, os cipaios eram também afros.
Portanto, só polícias afro-americanos, e acabou o racismo na américa.
É de graça o concelho.
Cumprimentos
A franjinha na minha terra chamavam-lhe melena.
Caríssimo Tony
Sou um regular leitor das tuas crónicas.
Gosto de ler, gosto de conhecer, gosto de aprender.
Hoje trazes à colação as vivências de muitos da nossa geração e aproveitas para fazer algumas comparações com os dias de hoje.
É claro que a roda da história não anda para traz e é natural que hajam hoje vivências novas, diferentes, com problemas e soluções(?) novas.
Claro que concordo contigo em como o estilo de vida, em termos de espaços de convívio, de interacção "ao vivo", em termos de actividade, que foram apanágio dos anos das nossas infâncias e juventude eram (foram), sabemos hoje por comparação, muito mais saudáveis, muito mais motivadores, muito mais indutores para a vida colectiva em vez do isolamento e individualismo que se vive hoje, pelas camadas mais jovens.
Nós sabemos isso, porque comparamos, mas terão que ser 'eles' a perceber e a decidir, pois caso contrário haverá sempre a natural reacção dos novos aos 'velhos', que costumam de classificar de conflito de gerações.
Abraço
Hélder Sousa
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