quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15732: Os nossos seres, saberes e lazeres (140): O ventre de Tomar (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Nesta deambulação por interiores (ou entranhas) da aprazível cidade de Tomar, foi-se ao barbeiro, revisitou-se a sinagoga, uma das principais igrejas e vários estabelecimentos. Não escondo o culto pelo pormenor: a lápide judaica, as pias de água-benta, a pose quase majestática de um barbeiro de gentil atendimento, um antigo lava-loiças de taberna, hoje detalhe incontornável de uma casa de pasto que tem um magnífico ambiente típico.
Infiro que esta coletânea de pormenores só é possível porque há uma exuberância ditada pela história de ricos vestígios. Casos há em que essa exuberância é patente na epiderme dos edifícios e simultaneamente no seu interior - é o caso do Convento de Cristo, magnificente no seu manuelino, magnificente nos seus interiores, recordando que naqueles tempos de riqueza não se poupava dentro e fora, era naturalmente tudo feito em grande, havia dinheiro à farta de escravos, especiarias e ouro.
São sinais interiores de riqueza de diferentes níveis que aqui se desvelam.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (4)

Beja Santos


Naquele fim de manhã, o viajante passou a mão pelos cabelos e sentiu que chegara a hora de uma tesourada, desde muito novo que não aprecia andar com uma farta cabeleira, e não são só as motivações higiénicas. O que para o caso interessa é que viu uma barbearia sem clientela, foi bem agradável conversar com aquele profissional que foi desbastando e contando histórias, até ao momento da última escovagem e do pagamento da prestação, o viajante nunca desarmou, não confundiu papéis. No final, apresentou-se e pediu licença para o fotografar com o seu meio de locomoção ao fundo e o seu resto de cabelo ali no chão. Este senhor tem pinta de filósofo, um falar fluido, consistente e sapiente, tem um nome daquele fadista do Embuçado, estivemos ali em maré de confidências, gosto muito do jeito natural com que pousou para esta falsa eternidade. Assim nos aproximamos, damos e deixamos um pouco de nós, sem nenhuma certeza de repetências, e é nessa fragilidade que assenta uma das grandezas do género humano.


A zeladora da sinagoga já me conhece de ginjeira, nunca me deixa sair do templo sem eu botar assinatura da visita, venha sozinho ou acompanhado. O que é belo, tudo aquilo que franqueia as fronteiras do extraordinário, revê-se sem cansar, o mais poderoso são estas divinas proporções entre a altura, o comprimento e a largura, e, passe a retórica do amador de arte, estas colunas esguias, que se encaminham para o céu, aquele teto imaculado de onde saem dedos gigantes que parecem que parecem suportar as colunas e dão a ilusão de que esta imagem está a baloiçar, ou quase.


Naquele largo aprazível onde outrora esteve instalado um quartel de onde saiu gente para várias guerras, agora erguem-se ali instâncias de cultura: um museu dos fósforos, que embasbaca qualquer visitante, e um ateliê de ceramistas, aqui pesponta o talento artesanal, das muflas saem rincões de génio, coisas muito belas, a ligação a Tomar é uma constante em azulejos, potes e tudo mais. É um lugar apetecível, também. Dá gosto meter conversa e fazer perguntas, são senhoras devotadíssimas sentadas como em escritório da vida monástica, daquelas mãos sai mais calor do que das muflas, perdoem a expressão, há entusiasmos esplendentes, e ainda bem.




Temos aqui três imagens de devoção. Olho para aquela lápida na sinagoga como boi para palácio, não entendo nada, mas é certo e seguro que está ali o fervor da memória: ó tu, caminheiro, que por aqui passas, lembra-te que me entreguei ao meu deus misericordioso… Temos depois duas pias de água benta, e aqui a memória vai para aquele pedido de unção dos crentes que confiavam que aquelas gotas ajudavam a lavar o pecado, eram um passaporte para a remissão, ajudavam ao arrependimento. Dizem que o nosso tempo está indiferente a Deus, mas a verdade é que a gente contrita não fica indiferente a todo este poder simbólico, a água que nos encaminha para a Vida.


A cozinha conventual é impressionante pelas dimensões e a natureza dos preparos que aqui se faziam. Aqui está a marca da inclemência do tempo, uma perigosa erosão, fica-nos a certeza que um dia destes por aqui vai entrar uma equipa de arqueólogos que fará uma intervenção desejável. A ironia disto tudo é que para além dos riscos do desabamento (salvo seja!) a imagem ganha força, pela simples razão de que todos nos impressionamos tanto com as inclemências do tempo como com as da natureza.


Aqui se devem ter vendido uma infinidade de tonéis em vinho a copo. Depois deu-se a reciclagem do espaço, empinam-se as pipas gigantescas, em vermelho vivo, há um corredor e depois mesas onde aparecem iguarias servidas em loiça de barro. Prova provada que do velho se faz novo, que todos os espaços têm encanto, basta harmonizar o que já foi funcional com o gosto em bem conviver e bem comer. Olarila!

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15701: Os nossos seres, saberes e lazeres (139): O ventre de Tomar (3) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Obrigado, Mário, estás um perfeito guia da cidade dos templários, a tua segunda nova terra... Mas quantas "segundas terras" não tiveste já, desde Missirá, no regulado do Cuor, Guiné, onde te conheci ?

Obrigado pela partilha de conhecimento sobre o "ventre" de Tomar, incluindo essa fabulosa peça do nosso património, a sinagoga... É bom lembra que é o único templo judaico proto-renascentista existente hoje no nosso país.

Confesso que a última vez que lá estive, foi uma "visita de médico", a correr. Prometo lá voltar com tempo e vagar, relendo o livro do Samuel Schwarz sobre os cristãos-novos em Portugal, com um notável prefácio do Ricardo Jorge... (A 1ª edição é dos anos 20).

Nunca é demais lembrar ou sinalizar que se trata de um monumento nacional (desde 1921) e que o edifício foi comprado em 1923 por Samuel Schwarz, engenheiro de minas, investigador da cultura hebraica e cristã nova, polaco de origem judia, mais tarde naturalizado português, avô do nosso saudoso Pepito (Carlos Schwarz da Silva) e pai da nossa Clara Schwarz, a decana da npssa Tabanca Grande, que vai comemorar os seus 101 aninhos, no próximo dia 14...

Em 1939 Samuel dou o edifício ao Estado Português para nele ser instalado um museu luso-hebraico... É hoje o Museu Luso-Hebraico Abraão Zacuto.

Sitografia:


https://pt.wikipedia.org/wiki/Sinagoga_de_Tomar

http://www.cm-tomar.pt/index.php/sinagoga

http://www.desgensinteressants.org/samuel-schwarz/synagogue-de-tomar.html


Já em tempos tinha deixado uma nota a sinagoga de Tomar, num outro poste teu (*). Abraço grande, Luis
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(*) Vd. poste de 17 DE JUNHO DE 2015
Guiné 63/74 - P14758: Os nossos seres, saberes e lazeres (101): Tomar à la minuta (4) (Mário Beja Santos)

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/2015/06/guine-6374-p14758-os-nossos-seres.html