segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18188: Notas de leitura (1030): A Guiné-Bissau, os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980 e um relatório do CIDAC de Dezembro do mesmo ano (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2016:

Queridos amigos,
Este relatório do CIDAC fala sem complexos de um diagnóstico da doença que estava a vitimar o regime de Luís Cabral. Doença que todos viam e que a todos comprometia. É por vezes radical, excessivo e injusto, quando fala da carga deletéria dos "pides" e "comandos", pondo tudo no mesmo saco, ainda por cima antes e depois da independência da Guiné-Bissau. Vale a pena insistir que não dispomos de nenhum documento válido sobre o alegado comprometimento dos comandos em golpes de Estado.
É um relatório que diagnostica os principais problemas e que, curiosamente, segue de perto a argumentação expendida por um ideólogo do PAIGC ao tempo, Hélder Proença. Documento em que se insiste que continuava por perceber qual o projeto político do Movimento Reajustador, como se iria ver mais tarde não passava de um projeto da tomada do poder, nunca iriam aparecer diretrizes políticas claras para a estafada reconciliação e para a resolução dos problemas prementes do país, que persistem.

Um abraço do
Mário


A Guiné-Bissau, os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980 e um relatório do CIDAC de Dezembro do mesmo ano

Beja Santos

O CIDAC tem um longo historial de cooperação com a Guiné-Bissau, antes e depois do 25 de Abril. Após os acontecimentos de 14 de Novembro de 1980, em que um autointitulado Movimento Reajustador apeou Luís Cabral da direção do PAIGC, uma delegação do CIDAC visitou Cabo Verde e a Guiné tendo produzido um detalhado relatório acompanhado de conclusões. Procede-se a seguir, e abreviadamente, ao alinhamento das principais linhas do documento.

Em jeito de diagnóstico, são referidos os seguintes pontos: esvaziamento das estruturas partidárias, com crescente dificuldade na mobilização popular; para compensar a crise na mobilização das massas, a direção do PAIGC teria reforçado as suas posições autoritárias, recorrendo a medidas de forte censura e ao endurecimento da Segurança (esta praticava tortura e prisões indiscriminadas). De igual modo, observava-se condescendência em relação aos crescentes privilégios da camada dirigente, incluindo a acumulação de erros na política económica. Era patente o descontentamento popular, agravado pelas roturas de abastecimento, o que tinha originado uma situação de fome no país que estava a atingir um ponto explosivo. Aristides Pereira alertara há pouco, e severamente, para tais situações no decurso de uma reunião do Conselho Superior de Luta. Também as FARP já escondiam o descontentamento com a nova hierarquização e a perpetuação dos baixos salários, eram visíveis grandes tensões entre os militares. Mas há dois pontos que não se podem ignorar. Em 10 de Novembro a ANP aprovara uma nova Constituição do país, e os debates tinham sido altamente polémicos, sobretudo à volta das seguintes matérias: ausência de uma referência expressa à obrigatoriedade do Presidente ser cidadão guineense, a concentração de poderes no Presidente, a admissão da pena de morte e as discrepâncias, consideradas negativas e inferiorizantes, em relação à Constituição de Cabo Verde. Por outro lado, assistia-se a um cesarismo em que Luís Cabral despachava direta e exclusivamente os assuntos dos Negócios Estrangeiros, os da FARP e da Segurança, que passavam completamente à margem do primeiro-ministro Nino Vieira. Tudo conjugado, tinham-se avolumado pressões à volta o comandante de Nino para que ele assumisse as suas responsabilidades. A fazer fé no relatório, estaria, por parte de Luís Cabral, a ser preparada uma ação para prender Nino, possivelmente a 16 de Novembro, festa de aniversário da FARP.

Passando aos acontecimentos de 14 de Novembro, vejamos a sua sequência. Foram dadas instruções para deter todos os dirigentes como medida de precaução e para libertar os presos políticos, foram interrompidas as comunicações com o exterior. O único foco de resistência efetivo veio da parte do homem forte da segurança, Buscardini que, cercado, provavelmente se suicidou. Entre os factos relevantes do desencadear dos acontecimentos, há a registar a insólita intervenção de Rafael Barbosa na rádio. Este autoproclamou-se líder e desencadeou um movimento de regozijo nos bairros de Bissau. O seu discurso na rádio foi interrompido por ordem do Conselho de Revolução. Três horas depois discursa Nino. Rafael Barbosa gozava manifestamente de grande popularidade. Deu-se também uma dinâmica anti-cabo-verdiana, manifestou-se descontroladamente, porventura por razões que tinham vindo a ser recalcadas desde a independência: ressentimentos que remontam ao período colonial; desigualdades de condições entre cabo-verdianos e guineenses que pertenceram aos quadros do funcionalismo ultramarino no que respeitava a aposentações e reformas. Mais se adianta no relatório que existiam ao tempo na Guiné-Bissau cerca de 200 funcionários cabo-verdianos em postos de responsabilidades no aparelho de Estado, e escreve-se: nem a Guiné-Bissau pode prescindir destes quadros nem Cabo Verde tem a capacidade para os absorver.

Numa segunda fase do golpe, divulga-se a sigla “Movimento Reajustador”, reafirmando sempre a permanência da linha política de Amílcar Cabral e chega-se a convidar Aristides Pereira a vir até Bissau. Com o maior mediatismo possível, fez-se a denúncia dos fuzilamentos dos guineenses e mostraram-se valas comuns, denúncia que terá provocado um autêntico e sincero traumatismo coletivo.

O Movimento Reajustador, à data da elaboração do relatório do CIDAC ainda não tinha revelado claramente qual o projeto político que o corporizava. A expressão reajustador tornou-se rapidamente simpática, incluía nos seus objetivos prioritários o combate às injustiças, a determinação em resolver a crise económica, em satisfazer as necessidades mais prementes do povo, e não deixando de propor a revisão do processo da unidade Guiné-Cabo Verde. A adesão ao movimento foi maciça e espontânea, quer dos poderes regionais (a exceção do presidente do Comité de Estado do Gabu) quer da população quer mesmo da generalidade dos quadros dirigentes. O relator carateriza este movimento como uma revolução nacionalista e populista que não evitou o despoletar de reações racistas contra os mestiços. Para tranquilizar toda a classe política afeta ao PAIGC, foi proclamada uma linha política de continuidade e fidelidade às orientações do PAIGC, particularmente às do III Congresso. Sékou Touré reconheceu o regime escassas horas depois da sua implatanção, enviou a Bissau uma forte delegação governamental e fez uma oferta de mantimentos de primeira necessidade. Podem-se explicar estas atitudes pelas seguintes razões: antigo contencioso pessoal de Sékou Touré contra Luís Cabral, fundado em preconceitos racistas, e um recente conflito fronteiriço tinha azedado as relações entre os dois regimes, à volta de uma zona de águas territoriais onde prosseguiam as prospeções petrolíferas.

A posição oficial cabo-verdiana foi de condenação, trocaram-se cartas ao mais alto nível, o seu conteúdo dava para perceber que a rotura caminhava para o irreversível. O relator não deixa de apontar os aspetos que ele considera negativos: prisão de Luís Cabral, bem como a de alguns membros do Conselho Superior de Luta e de Conselho Executivo de Luta; a indefinição da direção política; a condenação emocional dos fuzilamentos e da descoberta de valas comuns não podia iludir que os “pides” e os “comandos” tinham sido os maiores criminosos ao serviço de opressão colonial, “mesmo depois da independência”; os ataques a Aristides Pereira, envolvendo-o na responsabilização por desvios; a libertação e a intervenção espalhafatosa de Rafael Barbosa; o bloqueamento das estruturas supranacionais do PAIGC.

Mas já na fase das conclusões, comenta-se que a reação nacionalista só terá frutos políticos positivos se for acompanhada pelo combate às forças de orientação política antipopular, comentando-se também que deve ser analisado o frequente apelo ao retorno ao país dos guineenses no estrangeiro, particularmente os quadros técnicos incluindo aqueles que têm estado organizados em movimentos de oposição ao PAIGC como a FLING e a UPANG. A este respeito diz-se que não se pode esquecer que estas organizações representam interesses bem específicos de camadas privilegiadas. O comunicado público do CIDAC apela à libertação dos atuais presos políticos, justificando: “A libertação dos detidos seria um passo fundamental para o diálogo interno e externo, além de não parecer fundamentado que continuem presos os camaradas que, sem prejuízo de erros e desvios, dirigiram as lutas de libertação e de reconstrução nacional, no momento em que são acolhidos e integrados elementos da oposição”.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18175: Notas de leitura (1029): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (16) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antonio Rosinha disse...

O incansável BS traz-nos tudo sobre o que outros dizem da Guiné. Não perco uma, porque vivi ou conheci algumas dessas histórias.
Foi este o caso. Foi assim que eu vi o inicio da golpada do "14 de Novembro", e repito:
Num Sábado após uma visita de Sekou Touré fazer uma visita a Bissau, Luís Cabral arranca para a Ilha de Bubaque, a instância de férias de Spínola e seus oficiais, e pelas 11 meia noite (?)os brancos e mulatos cooperantes da Tecnil acordámos com estrondo de tiros vindos de lugar indefenido, e pensámos para nós, devem estar a fuzilar alguém na Amura.
Parou o tiroteio e após a alvorada aparecem-nos os Guineenses nossos chauferes, operadores e mecânicos, com algumas novidades.
Refiro uma das várias novidades e palpites, uma que retratava um ponto de vista de um trabalhador fula: A "independência vai acabar".

Era um reflexo do mal estar do povo da Guiné com a governação de Luís Cabral.

Pois que era inadmissível e para mim incompreensível, como Luís Cabral um afro-luso-caboverdeano, que eu conhecia tantos e tão sensíveis e inteligentes em Angola, mantinha uma governação tão estranha, tão cega, tão "socialista" e tão desumana.

Claro que em Moçambique e em Angola os governos foram piores e mais sangrentos que em Bissau, mas qualquer "berdiano" fazia muito melhor que Luís Cabral.