quinta-feira, 21 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18762: Fotos à procura de... uma legenda (105): O 'rancho dos pobres'... (Virgílio Teixeira / Luís Graça / Cherno Baldé / Valdemar Queiroz)


Foto nº 1 A


Foto nº 1 B


Foto nº 1 C


Foto nº 1 > Guiné > Região de Cacheu >São Domingos > CCS/BCAÇ 1933 > 1968 > "O rancho dos pobres"

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 

1. Legenda, completa, do autor, Virgílio Teixeira:

"Mais uma vez apresenta-se aqui a vergonha das nossas vidas. ‘O rancho dos pobres’. Eram miúdos indígenas, que vinham no fim das refeições, com as suas latas, à procura dos restos do rancho ou das messes para comerem, eles e famílias. Depois de levarem para as suas palhotas, voltavam novamente para levar o máximo possível. Isto chocava-me muito, mas nada poderia fazer, a não ser facilitar estas operações, a sopa dos pobres. São Domingos,  1968. (*)

2. Comentários dos leitores (*):

(i) Tabanca Grande [Luís Graça]:

Notável,  a foto... Não direi que diz "tudo", mas diz "muito"... O fotógrafo estava lá, milhares de nós assistíamos, quotidianamente, a esta cena, tão "comovedora" quanto "constrangedora",  dos meninos e meninas que viviam nas imediações dos nossos quartéis, com as latas (recuperadas do lixo da tropa) a servirem de marmitas, à cabeça, ordeiramente, pacientemente, à espera dos "restos do rancho da tropa"...

Parabéns, Virgílio,  pela tua sensibilidade e sentido de oportunidade... É uma foto com grande interesse documental...

50 anos depois continua a haver fome na Guiné-Bissau... Ainda há dias falei, ao telefone, com um desgraçado de um camarada nosso, o ex-1º cabo António Baldé, de Contuboel, que regressou à Guiné, sem um tostão, sem uma pequena reforma, e que, aos setenta e tal anos, passa fome em Caboxanque, no Cantanhez... O tal que tinha o sonho de vir a ser apicultor. E que era o pai da infeliz Alicinha do Cantanhez... Trabalhou com o Pepito, no DEPA... Vou ter que fazer alguma coisa por ele, para o ajudar... São situações que nos destroçam o coração... [O António Baldé esteve no CIM, Bolama (1966/69), Pel Caç Nat 57 (São João, 1969/70) e CART 11 (Paunca e Sinchã Queuto, 1970/71): é membro da Tabanca Grande,  nº 610].


(ii) Cherno Baldé:

É verdade que os miúdos iam lá pedir sobras do rancho, eu fui um deles [, em Fajonquito,], mas também, não vamos exagerar ao ponto de afirmar que era para comerem eles e suas famílias,  o que não corresponde à verdade. Primeiro porque, normalmente e por regra, as sobras não eram tão abundantes que dessem para alimentar a população. Em Segundo lugar, a população,  mesmo pobre,  era muito digna e conformava-se com o pouco que tinha em suas casas e, no caso das populações de confissão muçulmana, os adultos não comiam nada que viesse dos quartéis por motivos religiosos. Às vezes as aparências iludem e penso que foi este o teu caso.

A minha experiência de rafeiro de quartel diz-me que a quantidade das sobras dependia mais da qualidade da comida do que da bondade alheia, pois variava em função do prato do dia. Assim, nos dias em que havia carne de vaca ou cozido à portuguesa, não sobrava nada, mesmo para os soldados que se atrasavam a chegar ao refeitório.

(iii) Virgílio Teixeira:

Sobre os teus comentários a esta foto, a única que tenho, apesar de ter presenciado esta cena e outras imensas vezes, e só por vergonha nunca mais tirei nenhuma. Conheces aqueles ex-militares, com uma abraçadeira vermelha no braço esquerdo? Lembras-te ou não? Faziam de Oficial de Dia, os responsáveis por tudo o que acontecia durante 24 horas, incluindo nessa missão, assistir a todas as refeições nos refeitórios das praças e também provar e até muitas vezes também comiam do rancho.
Esses meninos e meninas, cujo exemplo estão aí, não fabriquei essa foto, fui eu o fotógrafo, mas não tenho abraçadeira, não estava de serviço, e quando estava não podia fazer fotografias a tudo. Mas a minha memória visual fenomenal não me deixa esquecer, e sei todos os pormenores de tanta coisa, mas não de tudo. Estes aqui que relatei são autênticos, só não sei se iam levar a comida à tabanca para alimentar os familiares ou se era com outros fins, por exemplo a pecuária.

Não sabia sequer,  nessa altura, os hábitos dos muçulmanos, palavra que estava longe de pensar que não comiam carne de porco e outras coisas. Por isso em Chão Fula, Nova Lamego,  não era tão gritante esta prática, mas existia na mesma. Mas em especial no Quartel de Brá, nos Adidos, onde se serviam mais de 1000 militares todos os dias, e sobrava muito e as filas eram imensas, eu vi isso, pois estive lá com o meu Batalhão durante o mês de Março de 68 e fiz vários serviços de Oficial de Dia e assistia obrigatoriamente a estas cenas, tanto eu, como os outros. 

A minha sensibilidade não dava para ver isto, por isso tentei esquecer, até ao dia que voltei a ver as fotos, 50 anos depois.

Não queria de modo nenhum alimentar uma polémica sobre este assunto, que não me agrada, mas espero que aceites - tu e os outros - esta minha versão dos acontecimentos, pois esta é a minha versão e não a dos outros, cada um pensa o que sente, e não, nunca faria quaisquer juízos de valor sobre isto. Sabes que eu gosto muito da população guineense, durante a guerra e depois dela, nunca esquecerei.
Quando estive aí, em 1984/85, três vezes, voltei a ver a fome nas populações, eram eles que me diziam, voltem para cá....

(iv) Cherno Baldé: 

As tuas fotografias são excepcionais e muito importantes sob todos os pontos de vista. Não há motivo para vergonha nenhuma nas fotos que, com todo o mérito, conseguiste salvar e conservar em muito bom estado. A pobreza não é uma desgraça em si e, na verdade, ela é sempre relativa, pois, se não existissem pobres, não haveria ricos no mundo.

Também não alimento polémicas, tão só tento corrigir possíveis erros de interpretação, muitas vezes, puramente subjectivos,  que os antigos combatentes metropolitanos podem estar, injustamente, a cometer sem ter a noção completa dos seus erros. A minha função é tentar corrigir os tiros da malta que se embala no entusiasmo das palavras, tal Homem Pereira de Melo, como uma vez disse o nosso amigo Valdemar Queiroz.

Todas as críticas e/ou observações que os bloguistas fizerem dos trabalhos (textos e fotos) publicados, só servirão para testar, enriquecer e consolidar os conteúdos assim expostos à observação e crítica do vasto auditório para uma eventual validação. Por isso, não convém que sejamos muito sensíveis nem que sejamos tentados a defender a todo o custo aquilo que expomos ao público da nossa Tabanca Grande.

Muito obrigado pelas simpáticas palavras de amizade dirigidas ao povo da Guiné-Bissau, em geral, e a mim, em particular. 

(v) Valdemar Queiroz:

Muito interessante a foto nº. 1. Era habitual a 'formatura' das crianças à espera das sobras do rancho da tropa. Também assisti em Bissau a uma 'formatura' destas, mas com muitas dezenas de crianças, quando estive de 'Sargento de Dia' no Quartel dos Adidos. Mas, bem longe daquelas terras, na Europa da abundância, que até deita por fora, e há cerca de uns vinte anos, assisti à porta das instalações militares ou da Academia Militar ou dos Comandos, na Amadora, a uma 'formatura', de lata na mão, que me fez lembrar aquelas que nós muito bem conhecemos na Guiné.

(vi) António Rosinha:

O Cherno esclarece um pouco o que era ir ao quartel apanhar restos, mas ainda não diz completamente tudo sobre o assunto para não melindrar algumas sensibilidades (penso eu)

Aqueles pretos não eram assim tão "coitadinhos", como havia uma tendência para os julgar assim, para quem passava lá 24 meses.

Na África subsariana não havia fome, aquela fome que nos era exibida em Lisboa e Porto e menos em cidades e aldeias mais pequenas do interior.

Aquela fome que as guerras provocavam foram uma excepção, assim como a fome e carências primárias de algumas independências com total desorganização.

Ainda há três ou quatro dias uns repórteres entrevistaram uns jovens gambianos que,  rejeitados pelos italianos, vieram para Valência, e o problema deles não era a fome nem a guerra, estavam bem tratados e bem dispostos, e um deles apenas queria uma oportunidade de poder jogar à bola.

As carências africanas nunca foram a  alimentação, tal como a conhecíamos aqui, antes de haver os peditórios à porta dos supermercados para as pessoas e para os animais.[Referência ais bancos alimentares].

Ao contrário das nossas tribos,  as tribos na África "partem" tudo entre si, dá para todos, aqui,  como cantava o Zeca Afonso, :eles comem tudo e não deixam nada.

______________
Notas do editor:
(*) Vd. poste de 19 de junho de 2018 > Guiné 61/74 - P18758: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXXVI: História e imagens de São Domingos: fotos de 1 a 8

(**)  Último poste da série > 18 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18432; Foto à procura de...uma legenda (104): O caso da mulher fula amamentando, com o leite do seu próprio peito, a "sua" cabrinha... O João Martins queixa-se de escesso de zelo censório por parte do Facebook...

10 comentários:

António J. P. Costa disse...

Bom dia Camaradas

O Cherno esclarece um pouco o que era ir ao quartel apanhar restos, mas ainda não diz completamente tudo sobre o assunto para não melindrar algumas sensibilidades.
Pois claro! E eu que saiba que há alguém melindrada com estes comentários do Cherno. Armo aqui uma paeixeirada... que vai tudo num fole!

Aqueles pretos não eram assim tão "coitadinhos", como havia uma tendência para os julgar assim, para quem passava lá 24 meses.
Pois claro eram milionários. Estavam era a brincar aos pobrezinhos. E nós todos um bando de ceguetas que andávamos para ali.

Na África subsariana não havia fome, aquela fome que nos era exibida em Lisboa e Porto e menos em cidades e aldeias mais pequenas do interior.
Pois não. Mas o arroz, na Guiné, era vendido nas tabancas a 5$00 por ordem da administração, senão era uma desgraça. E às vezes era "distribuído"...

Aquela fome que as guerras provocavam foi uma excepção? Interessante opinião que fala por si mesma.
Concordo que a fome e carências primárias de algumas independências com total desorganização são um facto, mas isso são contas de outro rosário. Estamos a falar do "nosso tempo".

Interessante também, mas altamente "suspeita" aquela situação de um jovem gambiano que, rejeitado pelos italianos, veio para Valência. Sofreu imenso e ia morrendo, mas o problema dele não era a fome, nem a guerra, estava bem tratado e bem disposto, e (...) apenas queria uma oportunidade de poder jogar à bola. Se calhar, se lhe dessem uma bola com a assinatura do Ronaldo ele tinha ficado na terra dele a treinar... (digo eu) e daqui por 2 anos participava no Mundial a marcar golos ao Rui Patrício. Quem sabe?
Acredito que um jovem subalimentado de corpo e espírito sonhe. Ninguém lhe pode retirar esse prazer, mas considerá-lo como exemplo de bem-estar... é no mínimo redutor.

As carências africanas nunca foram a alimentação. Pois não eram de tudo ou quase tudo.

Ao contrário das nossas tribos, as tribos na África "partem" tudo entre si, dá para todos. É evidente! Todos nós o vimos. Mas quando não há nada para repartir, há uma impossibilidade matemática: zero a dividir por qualquer número e nesse quase o valor obtido é sempre zero.
Conclusão: antigamente é que era bom e então "nas tribos de África" um verdadeiro paraíso.

Afinal o que é que estamos aqui a fazer, com tão boa vida em África? Ora deixemo-nos de organizar peditórios à porta dos supermercados e emigremos para a África. e até podemos aproveitar os aviões low-cost, que ainda há, em vez de irmos em semi-rígidos de má qualidade e que se afundam na primeira onda...

Um Abraço e sede felizes. Tá bem?
António J. P. Costa

Anónimo disse...

Bom dia a todos,

Gostei de ler estes comentários todos, e fiquei com a certeza que se aprende alguma coisa todos os dias.
Em geral todos têm razão, eu é que não sei, se aqueles miúdos tinham ou não fome!
E se essa fome se deve à nossa guerra - de todos - ou se a fome já estava instalada há muitos séculos, e isso então é da responsabilidade do país administrante - Portugal, do qual eu faço também parte. Sou também de alguma forma 'um culpado'.
Um titulo para o Poste, concordo com o que já foi aqui dito: «Os restos do rancho da tropa» por exemplo.
Agora pergunto, porque é que eu lanço fotos que dão sempre tanta polémica, no bom sentido do termo? Esta apaixonante discussão da problemática da fome, e dos pedidos à porta dos supermercados, por favor, alguém se anda a governar com isto.

Mas eu já adivinhava esta polémica, tinha a certeza que não passaria ao lado, por isso lá coloquei a foto nº F01.

Vamos tentar ser felizes, como disse o António Costa.

Um abraço a todos, e comentem à vontade, porque isso faz bem ao 'ego'.

Virgílio Teixeira


Tabanca Grande Luís Graça disse...


Fome, passei, no TO da Guiné, sede, sim, terrível, de dar em doido... Cheguei a estar sem comer, dois ou três dias, porque as nossas rações de combate eram simplesmente... "intragáveis"!... Mas, de vez em quando, a gente "desforrava-se", em Bafatá, desde que houvesse dinheiro no bolso... E havia...

Nunca vi um levantamento de rancho contra... as "nossas miseráveis rações de combate"... Alguém deve ter feito uma fortuna fabulosa com elas!... Pelo que me foi dado observar, no meu tempo, éramos lídimos representantes de um povo habituado, durante séculos, "a comer e a calar", ou mais a calar do que a comer....

Fome na Guiné, camaradas ? Não brinquem comigo!... LG

__________________

Até o nosso saudoso Manuel Vieira Moreira "brincou", em verso, com a nossa "fome"...


Letra do fado Canção da Fome

[Adpat. de Tempos que já lá vão, de Manuel de Almeida, n. 1922; música do Fado Corrido]

CANÇÃO DA FOME

Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês.
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.

A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da Guiné.

Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.

Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos turras à cabeça,
Não sei que será de mim.

Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.

A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:
Manuel Vieira Moreira.

Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968



9 DE DEZEMBRO DE 2011
Guiné 63/74 - P9165: O nosso fad...ário (6): Fado Canção da Fome: Livrou o autor de levar uma porrada do célebre Pimbas (Manuel Moreira, CART 1746, Bissorã, Xime e Ponta do Inglês, 1967/69)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2011/12/guine-6374-p9164-o-nosso-fadario-6-fado.html

António J. P. Costa disse...

Calma, oh Magnífico editor!

Não é bem disso que estamos a falar.
Mas "elas" são como as cerejas e estamos no tempo delas... não é?

A nossa alimentação era... monótona (digamos assim) e podia ter sido em muitas situações, bastante melhor. Claro que não era Kaviar, mas era o Kavia.
As nossas rações de combate eram uma desgraça, mas tal deve-se ao embaratecimento da guerra que é um dado adquirido, na alimentação e noutras "frentes". Claro que, de vez em quando, a gente "desforrava-se", onde quer que fosse possível, desde que houvesse dinheiro no bolso... E havia, às vezes...

Também nunca vi um levantamento de rancho contra as "nossas miseráveis rações de combate"...
Assim como só vi recusas ao embarque depois do 25ABR e bem estúpidas foram.
Mas, se calhar foi melhor assim... mas isso são outros Caminhos da História.
Confirma-se que "no meu tempo, éramos lídimos representantes de um povo habituado, durante séculos, "a comer e a calar", ou mais a calar do que a comer... e hoje, se calhar, continuamos a ser. O pior é que comíamos e comemos dos nossos e dos estrangeiros, ou tens dúvidas?
E a confirmá-lo temos um inexplicável poema para cantar ao fado em que se celebra a fome!
Sei que nas situações mais difíceis o humor não abandona os homens e especialmente os portugueses

É espírito Zé Povinho com que nos deliciamos, mas não nos traz nada de novo, antes pelo contrário, faz apelo ao conformismo.

De qualquer modo isto é lateral ao tema do post que trata dos miúdos pretos que iam aos quartéis buscar comida, certamente para variarem da "vianda à fula" que, temos que convir, era um bocado monótona... embora muito alimentícia. E isso não era muito dignificante para a nossa acção pacificadora, protectora e engrandecedora à luz dos valores gloriosos da Pátria de Camões...

Olha, toma lá um Ab. e não vás gastar todo em caramelos e rabussados!
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não havia estudos na época sobre a alimentação, a fome, a desnutrição... na província portuguesa da Guiné, no nosso trempo... Honestamente, não posso afirmar que havia "fome" na Guiné, quando por lá passei... Houve situações que me chocaram, nas tabancas...

Desnutrição, sim, seguramente que havia... E as crianças e as mulheres eran provavelmente as que se alimentavam pior. As monoculturas comerciais impostas por nós, com a colonização (oleaginosas...) não ajudavam a criar a necessária segurança alimentar...

A produção de arroz decaiu com a guerra e já era caro em 1969... A guerra, por sua vez, afetou o cultivo dos campos e a manutenção de hortas...A situação no leste era já preocupante... Mesmo a caça era limitada. A base da alimentação era o arroz. A economia de guerra ajudou, temporariamente, a melhorar o "poder de compra" dos guinenses... Nas chamadas "zonas libertadas" suspeito que se passasse fome... a avaliar pelo estado nutricional da população civil que aprisionámos...

Depois da independência, a economia afundou-se, os "armazéns do povo" não tinham capacidade de resposta... Mas sobre isso, não me devo pronunciar porque não estava lá nem nunca estudou o porblema... Organizações como a AD - Acção para o Desenvolvimento e líderes como o Pepito precupavam-se muito no início do séc. XXI com a segurança alimentar da população guineense... A situação da Guiné-Bissau, que hoje exporta caju e imoorta arroz, é preocupante...

Oxalá estes nossos comentários também possam ter eco no Guiné-Bissau... LG

alma disse...

Nas Tabancas que melhor conheci,Fá e Missirá, nunca deparei com situações de fome.Nos anos 50 e 60, vi Crianças e Adultos, à Porta dos Quartéis,perto da minha casa, Eng 1 e EPAM, recolhendo sobras...Abraço. Jorge Cabral

António J. P. Costa disse...

Olá Camarada

Na época havia estudos sobre a alimentação, a fome, a desnutrição... mas as colónias portuguesas não estavam visitáveis para tal efeito. Lembro o professor Josué de Castro (brasileiro) que escreveu a "Geopolítica da Fome", que a PIDE impediu de circular.
Na província portuguesa da Guiné, no nosso tempo... testemunhei (em 1968) um caso gravíssimo de desnutrição de uma criança que talvez tenha vindo Quitáfine.
Também a mim houve situações que me chocaram, nas tabancas: as hérnias umbilicais das crianças que chegavam ao tamanho de punhos, as mal-formações congénitas - caso do "cabo 18" do Xime. Testemunhei também um caso de sucessivos partos em que a parturiente "tinha rasgado" e não foi cozida no pós-parto. Daí que a vagina e o ânus comunicassem. Até o médico não queria acreditar no que via...

Desnutrição, sim, seguramente que havia e todas as doenças que lhe vêm na sequência. Quando as crianças e as mulheres são (provavelmente) as que se alimentavam pior, falta algo. Neste caso as sobras de rancho podem atenuar o problema.
Nem nos apercebemos das distorções motivadas pelas monoculturas comerciais impostas pela colonização, nem sabíamos o que isso era. Mas existiam. Mas o pior de tudo foi a guerra que determinou a queda (ou desaparecimento) do cultivo de arroz, o que obrigou ao fornecimento de arroz a "preços políticos". É óbvio que a guerra afectou o cultivo dos campos e a caça e por isso tínhamos que intervir, mas sempre com meios insuficientes, como era de esperar...
Afinal não havia fome, as havia uma certa dificuldade em arranjar que comer...

Como sempre, a economia de guerra ajudou, temporariamente, a melhorar o "poder de compra" dos guineenses...
Nas chamadas "zonas libertadas" tenho a certeza de que se passava fome... a avaliar pelo estado nutricional da população civil que recolhi no Xime.

Depois da independência...
Não quero, não posso, nem devo pronunciar-me sobra a economia da Guiné. Perdi a guerra e os que a ganharam que se responsabilizem perante os seus compatriotas pela gestão do país que fazem.
Louvo as diversas ONG e os particulares que ajudam e revolta-me cada vez que se sabe das falcatruas que são feitas com os donativos e apoios. Não tenho paciência! Miséria pode ser mau governo, mas gamanço não aceito.
Já disse várias vezes que a última coisa que quero é dar razão ao Salazar que dizia que "os pretinhos não têm cabeça para se governar". Não me obriguem a ter de aceitar essa afirmação como verdadeira.

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Contextualizemos e contemos a aquilo a que assistimos

Eu vi com os meus olhos muita fome em Bissau com a política de Luís Cabral, porque os armazens do povo sabotavam as dádivas dos "nossos amigos" como os Cabrais diziam, e o povo negava-se a produzir agricultura, porque estavam proibidos de comercializar directamente, só atravez dos armazens do povo.

Com o Nino, melhorou.

Dizia-se que no interior havia mais hipótese de arranjar produtos da terra.

As obras onde trabalhei (porto, aeroporto,estradas) chegaram a trabalhar a meio gaz, porque os trabalhadores guineenses tinham que faltar para ir à procura de arroz ao interior, ou mesmo porque chegavam a estar sem alinmentação mais que um dia.

Até que as empresas arranjaram licenças para importar arroz, e complementava-se o salário com 1 saco de arroz de 40 ou 50 quilos.

Ora como o PAIGC de um lado e o exército português do outro, durante a guerra, confinavam, controlavam e deslocavam as populações estrategicamente, as populações deixaram de poderem governar-se tradicionalmente.

Daí esse pormenor das populações à volta dos quarteis, esse problema não existia em Angola, caso contrário nunca haveria tropa suficiente para tantas tabancas.

Comparando a produção alimentar no mundo rural antes de 1961 em África (Guiné e Angola)com a vida rural de Portugal e Espanha...porque não conheci nem conheço mais na Europa:

Enquanto os mares os canais e os rios africanos com simples canoas ou a pé se extraía peixe, camarão, ostras, com rudimentares meios, com fartura, que alimenta(va) com custos baixíssimos as populações, em Portugal os custos desta exploração é muito mais dispendiosa pela alguma escassez do pescado e por maior densidade populacional a alimentar.

Sem armas de fogo, a caça era abundante, um habilidoso caçador por tabanca (sanzala) com uma rude armadilha apanhava um veado ou um javali, e na europa disso não há.

Produtos riquíssimos como a mandioca, a batata doce, o inhame e o milho, manga e banana, criados em abundância sem prudutos químicos, substituiam com vantagens a batata inglesa o pão e o macarrão "ignorados" pelo africano rural antes de 1961.

Só o facto de na Europa, os animais de leite e carne, precisarem de pastagens e rações tratadas, aumentavam custos, que eram dispensáveis em África.

Foi um pena termos ido para África alterar os hábitos alimentares àquela gente, e agora querem viver à europeia.

Quem não queria esta vida era o Gungunhana, mas nó teimosos...!







Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Em Africa, no decurso dos sec. XIX/XX, todos os Lideres que se levantaram para dizer nao ao sistema Colonialista e Neocolonialista e tentar orientar os povos para outros horizontes, foram brutalmente afastados e/ou barbaramente assassinados. Os donos do mundo nunca deixaram a Africa para se auto governar e sempre inventaram mentiras para seu proprio proveito.

Dizer que os africanos nao se podem governor equivaleria, de certa forma, a acreditar, também, que os Europeus do Sul sao menos capazes que os do Norte. Estas ideias so podem sair da cabeça de individuos retrogrados e criminosos contra a humanidade, como foi Salazar e seus acolitos fascistas.

A. Cabral, um dos Portugueses mais proeminentes do sec. XX e que conhecia melhor que ninguem a realidade colonial portuguesa, questionado uma vez sobre as suas ligacoes e fundamentos da unidade da Guiné e Cabo-Verde, disse numa entrevista dos anos 60: "...Eu vi gente morrer de fome em Cabo-Verde....Vi gente inocente a ser maltratada pelos agentes colonialistas na Guiné...". As suas palavras sao bem esclarecedoras, fome havia em Cabo-Verde nos anos 40/50, fome de verdade, fome assassina, criminosa, fome engendrada pelo Sistema colonial para assim melhor subjugar, oprimir e escravizar seres humanos. Na Guiné havia maltratos.

Na Guiné sempre houve fome, melhor subnutriçao, porque na Guiné sempre existiam alternativas junto da mae natureza que ainda hoje constitui o maior recurso alimentar das populaçoes. Eh disso, penso eu, que se refere o A. Rosinha quando diz que os indigenas nao tinham fome, pois existiam varios recursos naturais e existiam redes de solidariedade e, sempre que o Sistema colonial portugues o permitiam trabalhar para si, conseguia o minimo para o sustento das familias.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

Olá camaradas.
Vou ser breve, para já.
O titulo para o Poste poderia ser menos chocante:
«AS SOBRAS DO RANCHO DAS TROPAS».
Quando vinha a abrir este tema, estava já com uma ideia de derreter todos estes comentários sobre a fome. E deparei logo com o comentário do nosso camarada que se intitula 'alma' que eu ainda não tinha visto.
Quando eu coloquei aquele titulo na foto, tinha alguma coisa cá no disco rígido que me levou a escrever aquilo. O Rancho dos Pobres.
Ontem numa cerimónia do fim de curso do meu neto, não me saia da cabeça este tema, dada a tão grande fartura de tudo.
E então, puxei pela minha 'excepcional' memória fotográfica, e lembrei-me das cenas a que assisti, precisamente no Regimento de Engenharia 2 no Porto, Vale Formoso, bem perto da minha casa. Eu nasci em 43, e ainda nesta década assisti às filas na porta do RE2 de gente, homens, mulheres e crianças, com as tais latas, até me recordo de ver as latas do chouriço Isidoro, para receber as sobras, ou os restos, o que queiram chamar, do rancho do dia. Isto duas vezes por dia. Foram os meus olhos que viram isso, e agora com estes comentários, recuperei o 'disco' e fui buscar estas cenas, fins dos anos 40, inícios de anos 50. Todos os dias.
Porquê que sei isto tudo, o meu pai era militar no RE2, e eu muito menino ainda, ia para lá, e convivi com a tropa de então, por isso os quarteis, as fardas, exercícios, os juramentos de bandeira, os camiões das cozinhas quando se faziam os exercícios finais, as tropas a percorrerem a Rua de Vale Formoso e Rua do Amial a caminho dos montes da Maia e outros locais. Vi as casernas, assisti às refeições, por isso eu digo que o serviço militar para mim era uma fatalidade, eu já lá andava ainda sem ir à escola.
Amigo Cherno, não precisas de ficar com complexos, nós aqui nesta época durante e depois da 2ª guerra mundial, também se passava muita fome, ou então, muita miséria.
à volta da minha casa haviam os campos dos grandes lavradores, o Rocha, o Vieira e o Martins, era assim que a malta lhes chamava, e era para lá que ainda sem ir à escola íamos brincar. Hoje é a VCI do Porto.
Os lavradores tinham os empregados, digamos os escravos, que iam para lá trabalhar pela sopa, comiam o que chegava para terem a força de trabalho para os campos, e os seus aposentos, eram os mesmos dos bois e das vacas, dormiam nos palheiros e nem se lavavam, porque logo iam para a bosta, e assim sucessivamente. Tinha tanta coisa para contar, mas este espaço não dá para mais, fico-me por aqui, e quem quiser falar nisto, eu já estou com muita coisa na minha mente, as lembranças do passado longínquo. A minha memória vai quase ao dia em que nasci, tinha então 2 anos de idade, quando dei com a minha irmã com 6 meses, morta no seu berço, e fui eu que acordei os meus pais para eles verem aquilo. Isto é verdade, ela era um anjo, e ainda tenho umas sombras da sua imagem, não havia Penicilina...
Vou terminar porque as lágrimas já estão a cair!

Um Ab, Virgilio