domingo, 17 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20357: Blogues da nossa blogosfera (114): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (30): Palavras e poesia


Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

A MARIA

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


Os olhos vindos do outro lado do mundo, fundos de ausência, casavam o branco e o negro para dizerem o que a boca não conseguia.
O nariz afilava de um só traço o rosto magro, e os cabelos errantes fugiam da testa cada pedaço para seu lado.
A pele transluzia uma imagem por detrás dos vidros, imagem baça do avesso da vida.
Uma dor subtil desenhava os lábios maduros, finamente trémulos, como se estivessem prestes a chorar.
Nunca alguma lágrima por eles correu ou voou algum beijo, apenas o cigarro acendia e consumia a sua virgindade.
A Maria olhava-me sempre fixamente, olhos cravados nos meus, como que a dizer: tu entendes-me tu és capaz de me compreender.
Ela percebia o sim do meu silêncio por baixo dos olhos vencidos.
Conheci duas mulheres iguais à Maria, fotocópias da Maria, ambas se chamavam Maria, uma brasileira e outra francesa, uma pisava o teatro outra o anfiteatro.
Inquilina de soleiras e vãos, a Maria pisava a grande cidade da noite.
As mulheres da fama e da ciência derivavam a vida por entre a lanugem dos cardos e a tangência do sentimento, a mulher da vida era vertical e secante como folha de piteira.
A Maria mijona não tinha idade nem tempo, nem antes nem depois, era apenas instante.
Nunca se sentara na mesa do canto fugindo de si mesma, escolhia sempre a mesa central, desafiando os olhares e vidrando o espaço em seu redor.
Comia a sopa, o prato de sempre, como quem tocava violino.
Apesar da mão trémula, nem um pingo deixava cair no desbotado regaço, sumido de cores pelo uso e abuso.
Se moedas cresciam da sopa, não dispensava o brande, sua única bebida.
Por detrás do corpo sujo de Maria mordiscava uma beleza intrigante, tivesse ela banheira e emergiria da espuma como sereia das águas.
Penso que nunca vi a Maria fora deste retrato, para cá da sombra.
Por outro lado, tenho a certeza de que já dormi com ela... ou terá sido um sonho?
A Maria nunca mais apareceu.
A última vez que a vi não tinha olhos nem boca nem cigarro, não tinha sopa nem brande, apenas falta de ar. Engolira o violino, e a música era uma dispneia sibilante, cântico fúnebre gemido pelas entranhas.
Toquei-lhe no ombro e ela percebeu que eu queria levá-la.
Levantou a ponta de um sorriso e esboçou um gesto negativo com a mão.
Afastei-me, com a sensação de que tinha profanado um sacrário.
A Maria nunca mais apareceu.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20308: Blogues da nossa blogosfera (113): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (29): Palavras e poesia

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