sexta-feira, 8 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25251: Blogpoesia (798): No Dia Internacional da Mulher - "A Mulher que amanha o peixe", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



A MULHER QUE AMANHA O PEIXE

Sempre que a vejo
no supermercado onde vou
reconheço que não é por acaso.
Muito bonita a mulher que amanha o peixe
(não sei se amanha se amanhece).
Rosto combatido
dorido
olhar sofrido e manso
não sei o que faz desta mulher um poema
se os olhos negros e fundos
se o desenho rasgado da face
se um gesto brusco da natureza
revoltada de cansaço.
Um vale profundo entre o cá e o lá
banca de peixe
mar imenso
mar morto
do outro lado um peixe vivo no céu
tocando o mar
estripando com mãos invisíveis
entre lágrimas e sangues
as entranhas da vida
nas elegâncias difíceis dos plásticos
cobertos de escamas.
Passos molhados
encharcados
pesados
cheirando a algas
ondas de tempestade
no lindo rosto marcadas
pela ânsia de voar.
Com tantos apetrechos de borracha
botas altas
luvas e avental
não sou capaz de adivinhar
o corpo que tem por baixo
nem quero que aconteça o tal.
A mulher é segredo
a mulher é sonho
sonho de si mesma
no olhar dos outros
sonho de ventre liso
crescente de imensidão
fonte de pão e de leite
eternidade e sorriso
dança de movimento
para além das formas
e da imaginação.
Trepadeira de vida e de morte
olhos que se abrem no céu
e repousam no mar
mãos de todas as direções
ainda que vestidas de plástico
amanhando o peixe.
Não sei se é casada ou mãe
se é tudo ou nada
no reduto escasso do dia-a-dia
nem me interessa.
Bastam-me os olhos infinitos
a boca seca de beijos
a dor-desenho dos lábios
a doçura-criança que não cresceu
por falta de uso
tempo e espaço.
O corpo desta mulher está na face
oculta e sedenta
na ânsia fervente do impulso
na mais íntima agitação do mundo
e da dimensão
que pode caber numa banca de peixe.
Difícil acertar ideias e olhares
quando só olhares fazem ideias...
Enfeita-se a beleza desta forma estranha
criando beleza no amanhar do peixe.
Cruel seria descobri-la a dançar
pesadamente etérea e volátil
nos salões de púrpura da mulher vulgar
entre rendas e espumas
que não são espuma do mar.
Como sempre, tenho de dizer até amanhã
sou forçado a serenar as ondas
a desnavegar meu barco.
Muito obrigado.
Não tem de quê.
Você é das mulheres mais lindas que já vi.
Muito amável, um exagero...
Faça o senhor o resto das compras
e depois passe por cá.
Buscar o peixe... ou voltar a vê-la?
Sei lá!


adão cruz

____________

Nota do editor

Último post da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25158: Blogpoesia (797): "Mãos de hoje que foram de sempre", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

1 comentário:

Eduardo Estrela disse...

Magnífica homenagem às mulheres do mundo, num poema cheio de ritmo e beleza alusivo ao mistério feminino.
Obrigado Dr. Adão Cruz.
Abraço
Eduardo Estrela