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quarta-feira, 4 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26880: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros




"Diário Notícias  de 31/3/1973  


A notícia da queda do Fiat G-91, nº 5419, pilotado pelo ten cor pilav Almeida Brito, comandante do Grupo Operacional 1201, da BA 12, em Bissalanca, abatido por um míssil Strela, foi dada, surpreendentemente, pelo "Diário de Notícias", em caixa alta. (Não consta, por exemplo, do "Diário de Lisboa".)

Imagem: Cortesia do blogue do Victor Barata > Especialistas da BA12, Guiné 65/74 > Terça-feira, 31 de Julho de 2007 > Ten Cor Pilav Almeida Brito: Única vitíma mortal do Strela, por Arnaldo Sousa

O Comandante Almeida Brito tinha nascido em 1933 e concluído em 1953 o curso de aeronáutica militar na Escola do Exército (antecessora da Academia Militar). O seu desaparecimento (o corpo nunca chegriara a ser encontrado) causou profunda consternação na BA12 e em Bissau, onde era um militar muito conceituado e muito querido entre os seus subordinadas e amigos.


Guiné Bissau > c. 1973 > Cortejo fúnebre para embarque de urnas


Guiné > Bissau > c. 1973 > instalações da UDIB onde havia um cinema cujo salão era utilizado para o Congresso do Povo. (O início da construção da nova sede da UDIB - União Desportiva e Internacional de Bissau data de fevereiro de 1969; a primeira pedra foi lançada pelo então brigadeiro António Spínola.)



1. Continuação da publicação da série do nosso camarada Carlos Filipe Gonçalves (*)

Recordações da Guiné de um Furriel Miliciano. 

No extracto de hoje, o primeiro de grandes acontecimentos que a partir de agora iriam marcar o fim da guerra na Guiné… Hoje, sabemos, que foi assim… mas, no final de março de 1973, vivíamos normalmente o dia a dia no QG em Santa Luzia, eu, completava o meu primeiro mês de Comissão, ainda era um «periquito», ou seja, na gíria militar eu era um «novato» que ainda estava a adaptar-se ao ambiente de guerra e ao clima, como descrevi no post anterior. 

Passados 51 anos, para além da descrição «naïf» de como um jovem de 23 anos viveu os acontecimentos, descrevo o ambiente de guerra que se vivia. Apresento também uma visão do outro lado (afinal sou jornalista), procuro, pois, dar aos nossos filhos e netos uma visão clara dos acontecimentos. 






Carlos Filipe Gonçalves (Kalu Nhô Roque, como consta na sua página no facebook):

 (i) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde; 

(ii) foi fur mil amanuense, QG/CTIG, Bissau, 1973/74; 

(iii) ficou em Bissau até 1975; 

(iv) radialista, jornalista, historiógrafo da música da sua terra, escritor, vive na Praia; 

(v) membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, nº 790;

 (vi) tem 25 referências no nosso blogue.(*)



Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) 

 Parte VII: Os "turras" têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros



Pouco depois da minha chegada a Bissau, a grande notícia foi o derrube de aviões Fiat ! A notícia não foi dada na rádio, mas circulava entre os militares. Dizia-se que um avião não voltou de uma missão, foi outro à procura para ver o que aconteceu, também foi abatido. 

Os "turras", diziam os meu camaradas militares, têm agora um míssil que abate aviões e helicópteros. Na conversa sobre este este assunto na repartição o alferes explicou: o novo míssil procura uma fonte de calor e corre atrás! 

Foi assim que fiquei a saber que os helicópteros tinham uma turbina, para os impelir para a frente e que a grande hélice horizontal apenas servia para os manter no ar. 

Os helicópteros voam agora baixinho a rasar a copa das árvores e não podem deslocar-se a todos sítios! Anos mais tarde depois da guerra, vim a saber que se tratava de mísseis antiaéreos Strela, de fabrico soviético. 

Manuel Amante explicou que, depois da entrada desta nova arma do PAIGC, “passou-se a utilizar muito mais o transporte terrestre e marítimo, eu sei disso, porque o meu pai tinha barcos nessa altura, que faziam o transporte de coisas… principalmente para Xime e Bambadinca. (…) A navegação no rio fazia-se, com alguma precaução principalmente de noite porque havia sempre ataques em Mato Cão. Aliás um dos navios de transporte do meu pai, foi atacado nessa altura a uns 20 minutos antes de chegar a Xime.” 

Manecas Santos, comandante do PAIGC, em entrevista à rádio DW,  comentou anos mais tarde esta situação: 

“Em 1973, eu era o chefe de um grupo que foi treinado na União Soviética para manusear armas antiaéreas eficientes: foguetes. (…) A partir do momento que nós começámos a usar estas armas antiaéreas, o exército colonial português ficou completamente na defensiva.(…).”  (##)

Depois da minha chegada a Bissau, aprendi com os veteranos a distinguir o som dos bombardeamentos/flagelações lá longe e se ouvia perfeitamente em Bissau. Aconteceu numa noite, estava eu no Café Império ao lado da Praça de mesmo nome (atualmente Praça dos Heróis Nacionais); depois de se ouvir bombardeamentos ao longe, disse-me um amigo, militar mais experiente: 

“Quando se ouve «Buuum" depois de uma breve pausa, «Buuum» um pouco mais longe, são obuses da tropa, ou canhão dos «turras». Quando se ouve simplesmente «Buuum» e não há retorno, são mísseis dos «turras».” 

Os veteranos colocavam a palma da mão no ouvido para orientar e diziam: 

“Daquele lado é Bula… ou, Binar? Deste lado, é muito perto só pode ser Tite… Cumeré?”

Quando os helicópteros passavam insistentemente, já se sabia, houve feridos em combate, estão a decorrer evacuações. 


Guiné > Bissau > 1974 > Café Império, já na antiga Praça do Império, ao cimo da Av da República, do lado direito de quem subia...


Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guine]



Sentado no Café Império em dias de folga, fui algumas vezes surpreendido pela passagem de cortejos militares fúnebres, a caminho do cais para o embarque de restos mortais para a metrópole. À frente, ia um jipe com soldados de luvas brancas, todos perfilados, atrás os camiões com as urnas, tudo em silêncio, devagar…. Então, levantávamos e ficávamos em sentido, aqueles que estavam fardados faziam continência.

Um dia, a propósito do ataque a uma localidade qualquer, o Demba contou a sua história. Antes, de vir para a ChefInt trabalhava numa enfermaria algures mato, num quartel como ajudante de enfermeiro. Teve azar, quando uma granada atingiu a enfermaria, explodiu um garrafão de álcool, o líquido incandescente atingiu-o! Com queimaduras graves, foi evacuado para Bissau, depois evacuado para o Hospital Militar em Lisboa. Esteve meses em coma! Felizmente – dizia – muitas pessoas lhe deram pedaços de pele que lhe foram sendo enxertados. E apontava para a cara: 

“Estão a ver! Tenho pele de muitos brancos… e também de pretos! Deram pele e me ajudaram! Passei mais de dois anos no hospital em Lisboa. Graças a Alá, sobrevivi!” 

Arregaçou as mangas para vermos os braços todos queimados, abriu a camisa e mostrou o peito, onde se viam manchas brancas entre a pele preta e múltiplas cicatrizes.

Fiquei impressionado, mas não comentei. Percebi, agora,  porque tinha a cara desfeita! Começava a ter contacto com os horrores da guerra.

Naquele mês de Abril de 1973, houve uma reunião da Assembleia Legislativa , foi acontecimento badalado na rádio. Aqui, chama-se Congresso do Povo, reúne deputados locais, chefes tribais e régulos de diferentes etnias.

 As sessões decorriam no salão do cinema da UDIB , um clube desportivo com belíssimas instalações sociais na avenida principal da cidade. Claudino tinha um radiozinho que ele colocava sobre a mesa, ouvíamos baixinho a ERG que fazia as reportagens em direto, ou transmitia discursos, uns em crioulo, outros em línguas das etnias, mas para mim, era tudo igual ao litro… não entendia nada.

Pouco depois, foi a morte de um líder muçulmano em Nova Lamego, Gabú para os locais. Spínola ordenou um funeral com pompa e circunstância. Demba andava entusiasmado e quando os discursos eram em «fula»,  ele comentava nessa língua com o Issa e com o Claudino. No dia do funeral do tal imã, o Demba não compareceu no serviço. Dias depois, quando regressou, contou o que se tinha passado nas exéquias, falou do discurso de Spínola etc. etc. 

________________

Notas do autor:


(#) Um primeiro avião Fiat foi abatido em 25 de Março de 1973 por um míssil. O segundo avião do mesmo tipo foi abatido em 28 de Março de 1973 também por um míssil. Foram abatidos mais aviões deste tipo em 1 de Setembro de 1973, 4 de Outubro de 1973 e 31 de Janeiro de 1974.

Fonte: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné > 21 de junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1867: Força Aérea Portuguesa: Seis Fiat G.91 abatidos pelo PAIGC entre 1968 e 1974 (Arnaldo Sousa)

(##) Manuel Santos, "Manecas", nascido em S. Vicente, Cabo Verde, 1943. Estudante de Engenharia em Lisboa, aderiu ao PAIGC em 1964. Foi ministro em vários Governos na Guiné-Bissau.

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)

10 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Kalú, se (re)leres os postes do ex-ten pilav António Martins de Matos, do teu tempo, ficas no final com uma outra ideia do que foi a guerra, e nomeadamente aérea, até ao fim...Tu estvas em BIssau, não em Bissalanca...Era bom que o teu conterrâneo Manuel dos Santos, "Manecas", também os lesse, antes de fazer declarações, para alemão ouvir, deste teor, que cheiram (não leves a mal) a basófia e a autoelogio (os "senhores da guerra" em todo o lado e em todos os tempos têm egos muito grandes).

“Em 1973, eu era o chefe de um grupo que foi treinado na União Soviética para manusear armas antiaéreas eficientes: foguetes. (…) A partir do momento que nós começámos a usar estas armas antiaéreas, o exército colonial português ficou completamente na defensiva.(…).”

Claro que em todas as guerras há bravata, basófia, propaganda, mentira, etc., de um lado e do outro. Mas é bom que, cinquenta anos depois (em que, feito o balanço da História, todos perdemos a guerra!), a gente se preocupe agora, antes de dar o peido mestre, com a reconciliação, a paz e a verdade... Infelizmente, o Manecas é "um dos últimos moicanos"...E, lamentavelmente, não vai contar por escrito, em livro de memórias, po que viu e viveu...

Na 23ª das nossas vidas de antigos combatentes, de um lado e do outro, saibamos ao menos ouvir-nos uns aos outros. É o meu voto (e tu sabes quanto eu gosto da "nossa" Guiné e do "nosso" Cabo Verde, sem falar da terra que me viu nascer, em 1947, no pós-guerra, e já sem esperança de Portugal voltar a recuperar a liberdade e a democracia, mas isso é outra história ...). Mantenhas, Luís

1 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16152: FAP (95): de Gadamael a Kandiafara… sem passaporte nem guia de marcha (António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

Antº Rosinha disse...

Já há uma biografia de Manuel dos Santos, Manecas, escrito por uma sobrinha.

Manuel dos Santos , deve ter talvez uma história colonial e anti colonial e pós colonial, mais interessante que qualquer caboverdeano, mesmo mais interessante que o próprio Luís Cabral.

Donde lhe virá a "coragem" para não precisar de dar de frosques, quando no 14 de Novembro/80 todos os caboverdeanos se puseram ao fresco, para fora de Bissau, que seriam muitas centenas ou talvez mais de mil, e a maioria sem culpa qualquer, só por ser Caboverdeano?

Ele que sobreviveu a todas as golpadas do PAIGC, que foram umas históricas outras domésticas meio desapercebidas, mas muitíssimas, ele que teve ministérios importantes na mão, e sempre sobreviveu a todas as mudanças e a todas as "guerrilhas" internas do PAIGC, tem que haver alguma explicação para se passear entre os pingos da chuva sem se molhar.

Talvez a sua força venha de ter pisado o tchon da Guiné ao lado de balantas e outras etnias, de arma na mão, e que poucos caboverdeanos tenham chegado a pegar numa arma?

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Rosinha, obrigado, por mo recordares: de facto, há uns tempos atrás, em novembro passado, demos a notícia do lançamento, em Lisboa, no Grémio Literário, do livro da Rosário Luz, "Manecas Santos: uma biografia da luta" (editado em Cabo Verde).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Por outro lado, o nosso Rosinha continua sempre atento, arguto, intuitivo e, por vezes, misterioso... Ele tem pistas para explicar a razão por que o Manecas Santos foi sempre um "intocável" em Bissau... O Rosinha conheceu bem a Guiné-Bissau dos tempos de chumbo, o regime de Luís Cabral e depois o do 'Nino' Vieira... Mas respeito as suas "reservas": nem sempre somos livres para poder contar tudo o que sabemos, vimos e lemos... 'Nino' Vieira levou, por certo, para o inferno, muitos dos seus segredos de "senhor da guerra"... O Rosinha também levará um dia, mas neste caso para o céu, este e outros dos seus "pequenos grandes segredos" de africanista...que conheceu (e amou), além do Portugal onde nasceu, Angola, Brasil, Guiné-Bissau...

Anónimo disse...

A morte do Imane a que se refere o Carlos Filipe é a do bem conhecido chefe religioso de Quebo (aldeia formosa), Cherno Racide, que morreu em Setembro de 1973 e não Gabu como ele refere. E , ao contrario do que muitos militares portugueses da época pensavam ele nunca foi um agente duplo, era sim um prestigiado sábio muçulmano, versado em letras coránicas entre outros conhecimentos esotéricos assim como não era o chefe hierárquico de nenhuma comunidade de religiosos como acontece em outras confissões religiosas, pois nesta religião existe uma reconhecida descentralização que faz de cada comunidade e de cada mesquita uma entidade quase autónoma, sendo que é a força da sua dinâmica em movimento em permanência assim como é a sua grande fraqueza enquanto entidade que deveria ser unida e coesa no seu todo, o que não acontece no seu caso dai a diversidade e pluralidade nas tomadas de decisões que muitas vezes a afectam e dividem, contrariamente a muitas outras confissões monoteístas.

Dizem que o Cherno Rachide morreu em 1973 para não assistir ao advento da independência com o Paigc como poder dominante no país. Sorte foi a sua que teve essa visão reservada só aos sábios e visionários, também eu se tivesse dom e essa capacidade preferiria morrer a assistir a essa "heresia" que, na Guiné-Bissau, chamaram de libertação nacional. Liberdade teve o grande Cherno Rachide que preferiu partir desta para melhor para não ter que aturar com a brutalidade do partido "libertador". E foi um bom amigo do General Spinola, embora a sua familia fosse originária do Futa-Djalon.

Um abraço amigo,

Cherno AB

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Cherno, obrigado. O Cherno Rachide morreu no Quebo em setembro de 73. Antes da declaração unilateral da independência. E já o gen Spínola tinha batido com a porta ao Marcelo Caetano .

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A tropa organizou transportes gratuitos para levar o pessoal ao Quebo. E até se diz que houve uma trégua na guerra.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O Carlos está, pois, equivocado. O Spínola já estava noutro comprimento de onda, a milhares de km de distância.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Conheci em 1969 o Cherno Rachide, em Bambadinca. Rodeado de honrarias.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Temos que voltar a falar deste homem influente.