A nossa passagem como antigos combatentes numa Guiné que escondia numerosos percalços, revesti-se de pequenos/grandes detalhes onde a aventura noturna tantas vezes predominava. Aliás, esta pequena introdução leva-me, em particular, a muitas noites passadas debaixo de um calor intenso, ou sob o frio enérgico pela madrugada fora, na época do cacimbo, mas cuja prioridade passando ministraram pelo resguardar de um proficiente descanso de camaradas que, em suas camas, descansavam as suas almas.
Mantenho comigo, para além dos habituais sonhos da guerrilha, pedaços de vida que ainda hoje guarda num baú, embora carunchoso, que, amiúde, me assaltam a memória. Eis, pois, um relato de uma noite de luar cujo objetivo passar por verificar se as secções de tropas guineenses estavam, ou não, atentas a eventuais entradas de intrusos em Nova Lamego.
Uma narrativa que trago no meu livro -GUINÉ/BISSAU 1973/1974 UM RANGER NA GUERRA COLONIAL -, Edição Colibri, Lisboa.
Noites em que os estridentes filhos da velha Daimler acordavam o pessoal.
O vigiar noturno à população e, naturalmente, ao quartel, de seções de camaradas que garantem a segurança
As entradas, ou saídas, das estradas que ligavam Nova Lamego a Bafatá, a Pirada e a Piche, eram vigiadas por secções de camaradas que ao longo da noite asseguravam a segurança dos companheiros que no seu “santo” descanso de almas, não obstante a certeza de que ao longo da noitada estes eram, de quando em vez, subidas pelos estridentes filhos que o velho Daimler lançava para o infinito.
Esta missão, obviamente estendível à competência taciturna a um breu que escondia incertezas, concorrência ao sargento-dia que utilizou amiúde essa tal obsoleta Daimler para se deslocar às frentes operacionais que, entretanto, tinham sido previstas para o cumprimento do dever militar.
E se a entrada de Pirada era da competência de uma secção de milícias guineenses, o mesmo não sucedia com as vigílias das estradas de Bafatá e Piche, sendo estas da competência de uma secção de camaradas pertencentes ao grupo que normalmente eu e o Rui, ambos rangers, comandávamos.
Claro, porém, é que a maior parte da noite a vigia se concentrava na estrada que tinha como rumo Bafatá. No lado oposto, ou seja, na saída para Piche, precisamente onde se localizava a Fonte da Várzea do Cabo, local de abastecimento de água ao nosso quartel, as vigilâncias eram mais espaçadas.
Mas as prevenções noturnas do sargento-dia estendiam-se, também, pelos limites da povoação. Ora era para prevenir alguma incursão à pista velha de aviação por parte de um qualquer endiabrado prevaricador, local onde o pessoal das antiaéreas se instalavam, ora com uma visita surpresa ao âmago do burgo civil tendo em vista o garantir uma maior segurança à população.
A vigilância da estrada que se dirigia a Pirada era da competência das milícias locais. Aliás, a este corpo militar transmitiu o Jaló, o tal soldado dúbio, pachorrento e pedinchão e que após a tomada do poder territorial pelo PAIGC logo caiu bem alto e de viva voz “aqui d'el rei” e lá se safou a uma presumível chacina de que foram vítimas muitas das suas anteriores camaradas.
Aconteceu que uma bela noite pediu ao condutor da Damler que deixou uma máquina de guerra antiquada longe do lugar onde essa seção de milícias se concentrava de vigilância, e lá fomos a pé ao encontro dos soldados guineenses que, em princípio, estariam alerta para um qualquer movimento estranho que porventura ocorresse.
Alertei para a delicadeza aventura, pois o breu da madrugada escondia eventuais percalços, logo impunha-se uma proximidade de cuidadosa. Passos e mais passos em frente e uma presumível ocorrência das milícias nada. Agora, a imprevisibilidade de tamanho silêncio dava aso a um rol de cuidados redobrados.
O certo é que chegámos ao local e qual não foi o nosso espanto quando todo o pessoal ressonava, sonhando, quiçá, com a santa paz dos anjos e nada se apercebendo da nossa aproximação. De facto, tinham as armas ao seu lado, é certo, mas estas, tal como os seus “patronos”, descansavam na paz dos anjos e em completa deserção. Tive para sacar uma e pirar-me de imediato, todavia recebi que o atrevimento desse presumível e ocasional resvalasse disparate para o torto. Recei e “travei” a intenção que, entretanto, me ia na alma.
Falando baixinho com a camarada que me acompanhou eis que num repente o Jaló acordou e de olhos entre abertos, mas assustando-se com a nossa presença imprevisível, logo disse: “furrié disculpe”! Entretanto os outros camaradas deram uma volta ao corpo e apoiaram a navegação no mundo da utopia.
Claro que não houve estrilhos, apenas alertei que a situação por mim observada jamais voltaria a acontecer, uma vez que aquela entrada que exigiava a Pirada, apresentava-se algo arriscado. Com a voz embargada o Jaló penitenciou-se e o perdão foi aceito.
Neste contexto, o assunto “morreu” ali, mas a camarada onde o pessoal da milícia dormitava se apresentou, naquela noite, como um sublime palco onde os “anjinhos descansavam numa profunda serenidade”.
O Jaló atrapalhado, acordou os camaradas e botando palavra em fula, lá fez a sua palestra aos companheiros que entrementes abriram as pestanas e depararam-se com a visita inesperada do furriel numa noite em que o luar iluminava e o imprevisto merecia um cuidado literalmente redobrado.
Coisas da guerra numa Guiné onde a imprevisibilidade do instante seguinte se apresentou sempre como uma incógnita!...
1 comentário:
Pois, isso tudo é verdadeiro, pois também passei, por essas seguranças. A nossa C.Art.2479/C.Art.11, nos anos 69/70, com sede no quartel de Baixo, em Nova Lamego, era a Companhia, que fazia , com o Pelotão que lá estava em " Descanso", pois os outros estavam em Pirada ou Canquelifá, a segurança próxima a Gabú. As posicões tinham todas o nome de mulheres, como Beatriz etc. Até ao dia em que eles no atacaram com foguetes 120, e foi uma coboiada das antigas. Recordo como se fosse hoje, estava eu com vários camaradas a comer mum tasco de um libanês, e ia começar na sobremesa, um bruto gelado, e ouvimos aquele cagaçal, sobre as nossa cabeças, corremos, para o quartel, eu estava de chinelos, e cheguei lá com os pés,numa desgraça. Só para recordar, e pensar, como eu cheguei, até hoje, depois de tanta desgraça a que assisti. Vamos aguentando camarada.
Abílio Duarte- C.Art.2479-C.Art.11
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