O cap Cristo terá sido pouco "oficial e cavalheiro" no trato com as senhoras, dirão alguns... No livro é irónico, para não dizer sarcástico e até truculento, na descrição e apreciação que faz da visita (é certo que muitos anos depois, talvez 30 anos depois):
Primeiro "hipotecaram um avião" (sic), um recurso sempre escasso e dispendioso naquela época e, para mais, no sul da Guiné, e depois "os resultados da visita foram menos que nulos porque foram negativos".
(...) Depois da visita ficaram convencidos de que as senhoras quiseram ver, com
os seus próprios olhos, uns macacos que levavam vida de cão, algures no sul da Guiné, sem as mínimas condições e péssima alimentação (...) [ Negritos nossos].
Num aquartelamento onde faltava tudo ou quase tudo, abastecido penosa e perigosamente uma vez por mês, por via fluvial, a visita das senhoras do MNE, de mãos vazias, podia parecer um insulto gratuito. E, para a tropa nativa, deveria ser algo de intrigante e exótico:
(...) Quanto a frescos, muito raramente os comiam. Combatiam os guerrilheiros, dia e noite, sendo mais os dias de contacto com a guerrilha do que o contrário. Não por acaso dizia-se que Bedanda era uma ilha cercada pela guerrilha. Na opinião dos oficiais da Companhia de Bedanda as senhoras queriam levar no seu palmarés, para contarem às amigas durante os chás-canastas, que tinham estado no sul da Guiné, numa Companhia onde o perigo era constante. Para elas isso era bom, para a tropa era um frete (...) (pág. 340).
"Frete": eis talvez o termo mais apropriado, para caracterizar a atitude dos homens de Bedanda face à visita meteórica das duas senhoras do MNF. Esta opinião seria compartilhada por alguns comandantes de subunidades no mato, comandantes operacionais como o cap Cristo que davam o "litro e meio" e pouco ou nada recebiam em troca, dos seus superiores hierárquicos (comando de setor, comando de agrupamento e senhores de Bissau).
O cap Cristo, pessoa civilizada e militar aprumado, mas frontal, beirão, cumpriu naturalmente os seus deveres de hospitalidade, "oferecendo-lhes o que tínham: cerveja, uísque e conservas", sem esquecer a água... que era ingerível. Em contrapartida, elas nada tinham para ofecerer, para além das palmadinhas nas costas, dos sorrisos postiços e da exibição... da cor da pele:
(...) A visita tinha sido mal planeada. Uma visita deste tipo deve ser acompanhada de algumas lembranças, bolas de futebol, por exemplo, ou rádios, jogos de damas, isqueiros, cartas, algo que possa servir para atenuar o isolamento destes homens. Nada disso foi oferecido à Companhia pela delegação do MNF.
As ofertas foram exclusivamente bate-estradas [aerogramas, na gíria da tropa, LG] que divididos pelo efectivo, davam três exemplares a cada militar. Era muito pouco para uma visita que se supunha ter por finalidade dar alguma alegria e apoio aos militares. O capitão pediu outros materiais ao MNF que nunca foram recebidos (...) [Negritos nossos] .
No decurso da visita, o cap Cristo verificou que "uma das senhoras era mais extrovertida do que a outra. Falava muito com toda a gente, e na sala de oficiais sentou-se em cima duma mesa com as pernas a baloiçar e a saia um pouco subida, parte das coxas à mostra" (...) (pág. 340).
Este diálogo entre os dois (a senhora só pode ser a Cilinha que, nessa altura, em fevereiro de 1966, já tinha 45 anos), reconstituído muitos anos depois, merece ser transcrito (pág. 341). É um belo naco de prosa castrense:
(...) "- Senhor capitão, há quanto tempo está aqui?
─ Onze meses, minha senhora. [Ele queria dizer sete meses, desde julho de 1965, fez mal as contas. LG ]
─ Já foi à metrópole depois de ter chegado à Guiné?
─ Ainda não. Quando cheguei vim logo para Bedanda e daqui só tenho saído para o mato. Nem a Bissau fui.
─ Então hoje está cheio de sorte.
─Não sei porquê. Só se for por ter visitas. Para quem está isolado da civilização como nós estamos, as visitas são sempre bem-vindas e dão-nos muito prazer e alegria.
─ Era disso que eu estava a falar. E as de hoje são visitas especiais. Desde há onze meses que não via uma branca e hoje teve oportunidade de ver duas.
─ É verdade, minha senhora. Nesse ponto tem razão. Já não via uma mulher branca há onze meses e daqui a pouco nem sei como elas são. Hoje vejo duas brancas e duma delas vejo as pernas até às coxas. Mas como deve calcular, isso é muito pouco. Quem está aqui no mato, na situação em que nós estamos, precisa e merecia mais do que ver brancas. E a esse respeito, como sabe, estamos a zero.
─ O senhor capitão é muito exigente.
─ Não, minha senhora. Primeiro não exijo nada, nem sequer a vossa visita. Segundo, tenho trinta anos e sempre ouvi dizer que um homem é um homem e um bicho um bicho. Além disso não sou de pau. Tenho as minhas necessidades como todos os homens e o instinto mais apurado pelas dificuldades por que tenho passado no que a nossa conversa subentende.
─ Compreendo a sua situação mas mais nada posso fazer.
─ De qualquer maneira muito obrigado pela intenção e pela boa vontade.
─ Senhor capitão, está na hora de me ir embora e acredite que deixo Bedanda com pena, e também sofro com a vida de isolamento que vocês aqui levam. Tudo o que puder fazer por vocês, farei. Gostaria, se me permitisse, de me despedir dos seus soldados à moda do MNF. (...)
A despedida da líder do MNE, perante a companhia formada na parada, foi, para surpresa de todos, feita com um valente assobio à cabreiro da Serra da Estrela:
(...) ─ Pedi ao vosso capitão para me despedir de vocês. Gostei de estar aqui convosco, estas horas, tenho pena de não poder estar mais tempo. Daqui a pouco é noite e o avião não pode levantar voo. Tenho que estar hoje em Bissau. Sei que são uma boa tropa, valentes combatentes. Estou contente por isso e deixo-vos a minha solidariedade, amizade e respeito, bem como a de todas as mulheres portuguesas que se sentem felizes por saberem, que mesmo em más condições, os soldados portugueses cumprem com eficiência as suas missões. Se me permitirem vou-me despedir “à MNF”. (...)
E o autor não deixa o leitor com água no bico, descreve o modo da despedida com detalhe e sentido de humor:
(...) Ao dizer isto, a senhora leva dois dedos à boca e solta um assobio que faria inveja a muitos pastores. Toda a companhia ficou sem saber com reagir. Esperavam tudo menos os assobio. Conseguiu surpreender. O mais surpreendido parecia ser o capitão que olhou para a senhora com uma cara de basbaque que metia aflição (...) [ Negritos nossos].
A seguir, o capitão e os restantes oficiais acompanharam as senhoras até à pista, como mandavam as boas regras da etiqueta militar. Embasbacados, "ele e os alferes ficaram na pista até o avião desaparecer no horizonte". (...) (pág. 342).
Caros leitores, digam lá se não é um texto de antologia? Parabéns ao autor. Não estamos habituados a esta lhaneza e desassombro na escrita, por parte dos militares da sua geração, oriundos da Escola do Exército... Tiro-lhe o quico, meu general!...
Guiné > s/l > Fevereiro de 1966 > Cecília Supico Pinto, então com 44 anos, na sua primeira viagem à sua "Guinezinha", falando para um grupo de militares; em segundo plano, um dos seus "braços direitos", também elemento da comissão central do MNF, [Amélia] Renata [Henriques de Freitas] da Cunha e Costa.
Fotograma do vídeo (6' 43'') da RTP Arquivos > 1966-02-01 > Cecília Supico Pinto visita Guiné (Com a devida vénia...)
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