Guiné > Mampatá > 1968
O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381
©José Teixeira (2005)
1. Comentário de L.G.
Zé Teixeira:
Olha, estou muito sensibilizado pela leitura do teu diário. Apesar da tua juventude, revelaste na guerra, na Guiné, ser um grande homem, um grande português, um grande profissional e um grande cristão... Como homem e como português, eu também tinha as mesmas angústias éticas do que tu...
O meu diário não era tão detalhado. Só escrevia de tempos a tempos... Tenho aqui publicado alguns excertos... Os meus parabéns pela tua postura… Tu transmites, pela escrita, simples, sincera, a quente, em cima dos acontecimentos, muito do que todos nós sentíamos e pensávamos...
Sei que havia mais jovens, como tu e eu, que passavam para o papel as suas perplexidades e angústias, ao longo da comissão na Guiné... Não era fácil: havia um censor em cada de nós, tínhamos medo de expressar, por escrito, o que víamos, ouvíamos, sentíamos e pensávamos... Houve cartas que nunca cheguei a pôr no correio... Eram tempos de castração mental, de repressão política, de intimidação...
Bom, espero que os nossos camaradas hoje saibam contextualizar a tua escrita, e sobretudo tenham sensibilidade para te ler e compreender, sem preconceitos... Podes mandar mais fotos da época se as tiveres: eu vou publicando o teu diário, por meses e lugares…
2. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):
Mampatá, 12 de Agosto de 1968
Mais uma vez mudei de sítio. Agora pertenço ao Destacamento de Mampatá, para onde vim ontem de tarde com o meu pelotão. Cerca de 50 tabancas e alguns abrigos para militares. As camas são colchões pneumáticos colocados no chão dos abrigos. A cozinha e a Enfermaria são tipo estrela.
Não sei o tempo que estarei por aqui. Em princípio será por um mês e isto não me desagrada. Pelo menos estamos mais livres do fogo IN pois os abrigos são muito seguros.
Mampatá, 14 de Agosto de 1968
Hoje acordei ao som do Morteiro e das costureirinhas (2). O IN atacou ao amanhecer. Estava a lavar-me quando ouço um rebentamento perto de mim. Dei um salto, entro no abrigo. Aguardei uns minutos e quando acalmou saí para preparar o Posto de Socorros. Felizmente não houve qualquer azar.
Segundo se apurou estavam emboscados no cruzamento à espera da viatura que ia a Aldeia Formosa e no momento de rebentar a emboscada faziam fogo sobre Mampatá para que não fôssemos em socorro dos colegas. Felizmente um africano localizou-os e ao verem-se descobertos atacaram a povoação sem provocar danos.
Mampatá, 19 de Agosto de 1968
Hoje pelas 20 horas, tivemos a segunda visita do IN a Mampatá. Acabava de chegar da Tabanca com o Rodrigues de Torres Novas quando ouvi a primeira saída. Em cerca de 10 minutos mandou-nos 106 granadas de canhão sem recuo, como confirmámos pelos invólucros que deixaram na mata ao pressentirem a nossa perseguição. Queimaram uma Tabanca (3).
De Aldeia Formosa as NT mandaram algumas granadas de obus que assustaram o IN. Mampatá defendeu-se com os Morteiros 81 e 60 e com a Breda. Montei rapidamente o Posto de Socorros, mas não chegou a ser necessário.
Mampatá, 23 de Agosto de 1968
Mais uma etapa díficil para a CCAÇ 2381. Quem diria que, após uma coluna a Gandembel na qual se levantaram 57 minas A/P e quatro fornilhos depois da passagem por Xamarra (4) e sem ninguém contar, surge a terrível emboscada que provoca cinco feridos.
É sempre assim, onde menos se conta, quando a calma e a confiança volta ao espírito, quando se julga que o perigo já passou, surge de entre o arvoredo, traiçoeiramente o inimigo.
Um viver constante em estado de guerra arrasa o espírito. A parte física ressente-se , as conversas entre camaradas tornam-se por tudo ou nada exaltadas, pequenos quezílias, tornam-se problemas.
O homem é fruto do ambiente em que vive. Se o ambiente é de paz, sente-se a vida nos corações, a calma e a confiança no "outro ", vive-se a paz. Quando o troar dos canhões se ouve longe ou perto, quando existe guerra entre os homens, existe guerra no seu espírito. O espírito torna-se selvagem. Trava-se uma luta entre o antigo e o novo, entre o amor e o sangue. Um jovem que ainda ontem só pensava em amar, hoje não vacila em disparar sobre um inimigo, mesmo ferido inofensivo, inutilizado, a precisar de uma mão salvadora...
Antes de ontem e ontem, Buba foi atacada. Os Páras têm tido um trabalho intenso. Hoje bateram a zona de onde costumam atacar Aldeia Formosa. Há alguns dias que patrulham a zona envolvente de Gandembel e com bons resultados. vários mortos, manga de feridos e material apreendido.
Hoje escrevi para a Metrópole. As minhas últimas cartas não me agradam. Será que o meu amor está a diminuir ?... ou a ânsia de amar mais, me faz julgar que não consigo dar a entender quanto amo ?
Mampatá, 26 de Agosto de 1968
Estou preocupado. Seguiu hoje nova coluna para Buba e o Sector continua infestado de IN. Antes de ontem atacaram Aldeia Formosa, Gandembel e Nhala. Desta vez em Aldeia Formosa destruiram o morteiro 120. Nem os roncos dos Páras conseguem acalmar a situação, bem pelo contrário parecem enfurecidos.
Em Mampatá tudo está calmo. Os espíritos estão voltados para a estrada de Buba. Os ouvidos estão atentos a qualquer rebentamento... São camaradas que atravessam o perigo.
Senti uma enorme alegria aquando do ataque a Xamarra: vi os meus camaradas correrem em socorro dos que estavam em perigo.
Ontem recebi uma carta de um amor em férias. Que bem me fez esta carta...
Mostravas preocupação por estar magro, a mim parece-me o contrário, mas o mais importante foi o que escreveste "se precisares de alguma coisa diz, tua mãe ou eu mesmo te mando". ão preciso de nada a não ser voltar, no entanto não calculas quanto fiquei intimamente satisfeito e feliz com a tua atitude.
Parece incrível, desde manhã que há feridos na coluna para Buba, um dos quais sem um pé e só às 17 horas é que o Hélio fez a sua aparição para a evacuação. Não admira que haja mortos na Guiné.
Vivem-se horas angustiantes na guerra.
Mampatá, 27 de Agosto de 1968
A coluna para Buba passou a noite em Nhala. De lá foi feita a evacuação do Alzira que ficou sem um pé numa A/P que pisou quando saltou da viatura ao cair debaixo de fogo, numa emboscada. Acabou a guerra para ele.
Manga de fogo durante o dia de ontem. A coluna de Buba foi atacada na bolanha, os páras estacionados em Gandembel andavam a patrulhar a zona e encontraram um caminho, seguiram-no e penetraram sem saber num acampamento IN, ainda desconhecido. Apanhados de surpresa , o IN reagiu. Mesmo assim sofreram 29 mortos. Os Páras tiveram dois feridos.
O IN atacou Aldeia Formosa, Gandembel (grande ataque), Guileje e Buba.
Mampatá, 31 de Agosto de 1968
Acabaram-se as colunas para Buba e Gandembel durante uns meses e ainda bem. Era um bom quebra cabeças, pois sempre que havia colunas havia emboscadas e minas A/P e A/C para nossa diversão.
Na última coluna a Gandembel foram detectadas 57 minas A/P [antipessoal] e alguns fornilhos num pequeno espaço. A coluna teve de regressar, sem atingir o objectivo (levar mantimentos à Companhia estacionada em Gandembel e Ponte Balana), depois de duas tentativas de encontro com os camaradas que em sentido oposto tinham vindo montar a proteção à minha Companhia.
Na primeira tentativa, há a lamentar seis mortos e um desaparecido na Companhia de Gandembel. Na segunda tentativa rebentou uma A/P que feriu um colega meu. Tudo porque havia minas na estrada, fornilhos nas bermas e a floresta estava armadilhada.
Mampatá, 7 de Setembro de 1968
Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ?
Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não.
Tenho de encarar as situações com naturalidade. Confiar. Reagir... reagir com todas as minhas forças.
José Teixeira
_____
Notas de L.G.:
(1) Iniciado em 1 de Janeiro de 2006. Vd post > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968
(2) Costureirinha, a célebre pistola-metralhadora PPSH
(3) Julgo que o autor quer dizer uma palhota ou morança (agregado familiar). O conjunto das moranças (diversas palhotas de um agregado familiar) correspondia a uma tabanca (povoação)
(4) Chamarra, a sul de Guebo (Aldeia Formosa), segundo os Serviços Cartográficos do Exército: vd. mapa geral da Província da Guiné (1961)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 6 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P407: Curriculum vitae de um atirador de artilharia (Carlos Marques dos Santos)
O Carlos Marques dos Santos, em 2005. Vive em Coimbra, é professor de educação física (reformado).
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Curriculum Vitae (abreviado) :
Assentou praça em Mafra (EPI) em Setembro de 1966. Especialidade de Atirador de Artilharia em Vendas Novas.
Iniciou a formação da Companhia (CART 2339) no RAL 3, Évora, em 28 de Agosto de 1967.
É natural de Coimbra, da Freguesia de Santo António dos Olivais; estudou no antigo Liceu Normal de D. João III e no Colégio S. Pedro em Coimbra; foi atleta federado de Basquetebol e Andebol, treinador e dirigente desportivo na modalidade de Basquetebol; presidente da Direcção e da Assembleia Geral do Olivais F. Clube e Vice-Presidente da Associação de Basquetebol de Coimbra.
Diplomado em Educação Física, voltou ao Liceu D. João III como professor (hoje Escola Secundária José Falcão, nome alterado depois do 25 de Abril de 74, fazendo parte da Comissão de Gestão). Efectivou na Esc. Sec. de Avelar Brotero, onde integrou como Vice-Presidente o Conselho Directivo.
Foi professor de Mobilidade (técnicas de Orientação e Bengala) de alunos invisuais durante 32 anos. É actualmente aposentado e reside na Rua Gago Coutinho, 17 A-6.ºA – 3030-326 Coimbra (...).
Na Guiné onde chegou a bordo do navio Ana Mafalda (parecia uma traineira!) (1), em 21 de Janeiro 1968, esteve em Fá Mandinga e Mansambo, onde foi rendido pela CCAÇ 2404.
Regressou a casa, em Dezembro de 1969, no navio Uíge, a 13 desse mês, dois anos após a partida para a Guiné.
Realizou treino operacional com a CART1746 (Xime) , entrando em intervenção no Sector L1 (2) até 22 de Novembro de 1969 .
Em 25 de Fevereiro de 1968, participa pela 1.ª vez numa operação de grande envergadura (Op Grão Mongol), com as CART 1646 e 2338, pelkotões de milícia e Pel Caç Nat. Esta acção foi elogiada pelo BART 1904 (Bambadinca) (1).
Guiné > CART 2339 (1968/69) > Brazão
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Em Fevereiro de 1968 inicia-se a construção, de raiz, do futuro aquartelamento sede de Mansambo, com a construção e ocupação programada para operacionais e serviços. O meu Grupo de Combate (o 3º) só em Julho de 1968 se deslocou definitivamente de Fá para este aquartelamento fortificado.
Foi inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969, com a presença de diversas entidades e grande festa. A nova iluminação - até aí era com bazookas [garrfas de cerveja de 0,6 l] e mechas embebidas em óleo – foi inaugurada com "fogo de artifício” – balas tracejantes a serem disparadas de G-3.
O projecto era do BENG [Batalhão de Engenharia] 447.
Mansambo ( a Cart2339)foi atacado em 28 de Junho de 1968, pela primeira de muitas vezes.
Guiné > Mansambo > 1968/69 >
Esquema dos vários abrigos do aquartelamento fortificado, projecto do BENG 447, construído pela CART 2239 ao longo de 1968 e inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969. Baptismo de fogo: 28 de Junho de 1968.
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Nota importante:
Em 3 e 4 de Fevereiro de 1968 estivemos envolvidos no cordão de tropas que, à volta de Bafatá, fez segurança ao Presidente da República, Américo Tomaz. Laranjas apanhadas das árvores e bolachas foi a nossa comida, em dia e meio.
Samba Silate, Demba Taco, Taibatá, Galo Corubal, Salicuta, Dando, Nova Lamego, Che-Che, Canjadude, Enxalé, Mato Cão, Geba, Cantacunda (onde os turras levaram 11 dos nossos – Abril de 1968), Sarabanda, Sincha Setu, Camamudo, Sare Gana (4), Banjara, Sambulacunda, Bantajã, Finete, Satecuta, Xitole, Burontoni, Poidão, Ganguiró, Bissaque, Moricanhe, Mussa Iero, Belel, Sinchã Camisa, Sambulacunda, etc., etc., etc.,: pelo menos um terço do Leste da Guiné (hoje Bissau) foi feita a pé. Sem água, sem comida, com abelhas e formigas, com mortos, feridos e desaparecidos.
É a Guerra. É tempo de haver Paz. Só quem lá esteve é que percebe.
Coimbra, 5 de Janeiro de 2006.
________
Notas de L.G.
(1) Vd pots de A. Mareques Lopes > 27 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
(2) Vd. post de 28 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1);
e post de 3 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XI: O Sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (2)
(3) Julgo ter sido este Batalhão que construiu o aquartelamento de Bambadinca, tendo sido rendido pelo BCAÇ 2852 (1968/70). O BART 1904 tem feito encontros anuais de convívio do seu pessoal: vd. página da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas, ponto de encontro
(4) Vd meu post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu
(2) Vd. post de A. Marques Lopes, de 28 de Maio de 1969 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968)
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Curriculum Vitae (abreviado) :
Assentou praça em Mafra (EPI) em Setembro de 1966. Especialidade de Atirador de Artilharia em Vendas Novas.
Iniciou a formação da Companhia (CART 2339) no RAL 3, Évora, em 28 de Agosto de 1967.
É natural de Coimbra, da Freguesia de Santo António dos Olivais; estudou no antigo Liceu Normal de D. João III e no Colégio S. Pedro em Coimbra; foi atleta federado de Basquetebol e Andebol, treinador e dirigente desportivo na modalidade de Basquetebol; presidente da Direcção e da Assembleia Geral do Olivais F. Clube e Vice-Presidente da Associação de Basquetebol de Coimbra.
Diplomado em Educação Física, voltou ao Liceu D. João III como professor (hoje Escola Secundária José Falcão, nome alterado depois do 25 de Abril de 74, fazendo parte da Comissão de Gestão). Efectivou na Esc. Sec. de Avelar Brotero, onde integrou como Vice-Presidente o Conselho Directivo.
Foi professor de Mobilidade (técnicas de Orientação e Bengala) de alunos invisuais durante 32 anos. É actualmente aposentado e reside na Rua Gago Coutinho, 17 A-6.ºA – 3030-326 Coimbra (...).
Guiné > Mansambo > 1968 > O Fur Mil Atirador de Artilharia Marques dos Santos junto a um dos abrigos do aquartelamento
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Na Guiné onde chegou a bordo do navio Ana Mafalda (parecia uma traineira!) (1), em 21 de Janeiro 1968, esteve em Fá Mandinga e Mansambo, onde foi rendido pela CCAÇ 2404.
Regressou a casa, em Dezembro de 1969, no navio Uíge, a 13 desse mês, dois anos após a partida para a Guiné.
Realizou treino operacional com a CART1746 (Xime) , entrando em intervenção no Sector L1 (2) até 22 de Novembro de 1969 .
Em 25 de Fevereiro de 1968, participa pela 1.ª vez numa operação de grande envergadura (Op Grão Mongol), com as CART 1646 e 2338, pelkotões de milícia e Pel Caç Nat. Esta acção foi elogiada pelo BART 1904 (Bambadinca) (1).
Guiné > CART 2339 (1968/69) > Brazão
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Em Fevereiro de 1968 inicia-se a construção, de raiz, do futuro aquartelamento sede de Mansambo, com a construção e ocupação programada para operacionais e serviços. O meu Grupo de Combate (o 3º) só em Julho de 1968 se deslocou definitivamente de Fá para este aquartelamento fortificado.
Foi inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969, com a presença de diversas entidades e grande festa. A nova iluminação - até aí era com bazookas [garrfas de cerveja de 0,6 l] e mechas embebidas em óleo – foi inaugurada com "fogo de artifício” – balas tracejantes a serem disparadas de G-3.
O projecto era do BENG [Batalhão de Engenharia] 447.
Mansambo ( a Cart2339)foi atacado em 28 de Junho de 1968, pela primeira de muitas vezes.
Guiné > Mansambo > 1968/69 >
Esquema dos vários abrigos do aquartelamento fortificado, projecto do BENG 447, construído pela CART 2239 ao longo de 1968 e inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969. Baptismo de fogo: 28 de Junho de 1968.
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Nota importante:
Em 3 e 4 de Fevereiro de 1968 estivemos envolvidos no cordão de tropas que, à volta de Bafatá, fez segurança ao Presidente da República, Américo Tomaz. Laranjas apanhadas das árvores e bolachas foi a nossa comida, em dia e meio.
Samba Silate, Demba Taco, Taibatá, Galo Corubal, Salicuta, Dando, Nova Lamego, Che-Che, Canjadude, Enxalé, Mato Cão, Geba, Cantacunda (onde os turras levaram 11 dos nossos – Abril de 1968), Sarabanda, Sincha Setu, Camamudo, Sare Gana (4), Banjara, Sambulacunda, Bantajã, Finete, Satecuta, Xitole, Burontoni, Poidão, Ganguiró, Bissaque, Moricanhe, Mussa Iero, Belel, Sinchã Camisa, Sambulacunda, etc., etc., etc.,: pelo menos um terço do Leste da Guiné (hoje Bissau) foi feita a pé. Sem água, sem comida, com abelhas e formigas, com mortos, feridos e desaparecidos.
É a Guerra. É tempo de haver Paz. Só quem lá esteve é que percebe.
Coimbra, 5 de Janeiro de 2006.
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Notas de L.G.
(1) Vd pots de A. Mareques Lopes > 27 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
(2) Vd. post de 28 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1);
e post de 3 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XI: O Sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (2)
(3) Julgo ter sido este Batalhão que construiu o aquartelamento de Bambadinca, tendo sido rendido pelo BCAÇ 2852 (1968/70). O BART 1904 tem feito encontros anuais de convívio do seu pessoal: vd. página da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas, ponto de encontro
(4) Vd meu post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu
(2) Vd. post de A. Marques Lopes, de 28 de Maio de 1969 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968)
Guiné 63/74 - P406: A Op Nada Consta vista pelo lado da CART 2339 (Carlos Marques Santos)
Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel miliciano da CERT 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/70)
Amigo Albano:
Li a mensagem de saudação da minha entrada na tertúlia, mas não estou só para ir buscar memórias ao baú das recordações. Interessa-me mais o encadear dos factos ocorridos na guerra colonial.
Acontece que, ao ler um relato de uma operação realizada em conjunto com Paras - CCP 122 e 123 (1), eu me tenha revisto no "outro lado". O que quero dizer? É simples.
A descrição que li, levou-me a perceber que "alguém" das NT esteve a empurrar o IN para o nosso lado, CART 2339, que tinha uma emboscada montada para esse efeito (Op Nada Consta)(2). As emboscadas servem para isso mesmo.
Eu estava lá, atento, atrás de um baga-baga, de arma na mão. Dois IN aparecem à minha frente, a 30 metros. O carregador da minha G-3 cai e não consegui disparar. Hoje penso: ainda bem.
A bazuca da minha secção é disparada, talvez para a linha de progressão da coluna do bigrupo que viria atrás. Informações posteriores dão conta que Mamadu Indjai, o comandante, tinha sido atingido.
Esta acção foi louvada pelos altos responsáveis. Mas, há que regressar a Mansambo e passar um pontão (rio Bissari), que era vital para atingir a sede da Companhia, sob pena de lá ficarmos todos.
No regresso, rápido, porque o tempo era escasso, tendo em vista uma retaliação do IN, leva-nos a descobrir um campo de minas - 10 antipessoais e uma anticarro(?). Esta era redonda como uma roda de um carro de mão. O relato de operações diz que é uma A/P reforçada. Seria ?
Tínhamos passado por cima delas no caminho de ida para a tal emboscada. No dia seguinte (21 de Agosto de 1969) fomos fazer o reconhecimento. Levantámos todas. Eu próprio levantei uma, com uma faca de mato que andava sempre comigo. Recebi 1.000$ por esse feito (que hoje digo, de grande irresponsabilidade).
Um carregador nativo, depois de levantada a mina A/C (?), transportava-a para a sede da Companhia, à cabeça, depois de ter sido desactivada a espoleta. Mas, havia outra (tal como na canção…) espoleta..... E mina estoirou.
Desapareceu parte do carregador nativo, houve feridos (um soldado do meu pelotão ficou totalmente surdo de um ouvido e, até hoje, ainda não foi ressarcido desse trauma, não psicológico, mas físico).
Em suma, vou continuar a ler e a relacionar factos que tenham a ver com a minha vida "vivida".
Um abraço do Marques dos Santos.
Coimbra
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 21 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXIII: Os anjos da morte
(2)Vd post de 30 de Jukho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
Amigo Albano:
Li a mensagem de saudação da minha entrada na tertúlia, mas não estou só para ir buscar memórias ao baú das recordações. Interessa-me mais o encadear dos factos ocorridos na guerra colonial.
Acontece que, ao ler um relato de uma operação realizada em conjunto com Paras - CCP 122 e 123 (1), eu me tenha revisto no "outro lado". O que quero dizer? É simples.
A descrição que li, levou-me a perceber que "alguém" das NT esteve a empurrar o IN para o nosso lado, CART 2339, que tinha uma emboscada montada para esse efeito (Op Nada Consta)(2). As emboscadas servem para isso mesmo.
Eu estava lá, atento, atrás de um baga-baga, de arma na mão. Dois IN aparecem à minha frente, a 30 metros. O carregador da minha G-3 cai e não consegui disparar. Hoje penso: ainda bem.
A bazuca da minha secção é disparada, talvez para a linha de progressão da coluna do bigrupo que viria atrás. Informações posteriores dão conta que Mamadu Indjai, o comandante, tinha sido atingido.
Esta acção foi louvada pelos altos responsáveis. Mas, há que regressar a Mansambo e passar um pontão (rio Bissari), que era vital para atingir a sede da Companhia, sob pena de lá ficarmos todos.
No regresso, rápido, porque o tempo era escasso, tendo em vista uma retaliação do IN, leva-nos a descobrir um campo de minas - 10 antipessoais e uma anticarro(?). Esta era redonda como uma roda de um carro de mão. O relato de operações diz que é uma A/P reforçada. Seria ?
Tínhamos passado por cima delas no caminho de ida para a tal emboscada. No dia seguinte (21 de Agosto de 1969) fomos fazer o reconhecimento. Levantámos todas. Eu próprio levantei uma, com uma faca de mato que andava sempre comigo. Recebi 1.000$ por esse feito (que hoje digo, de grande irresponsabilidade).
Um carregador nativo, depois de levantada a mina A/C (?), transportava-a para a sede da Companhia, à cabeça, depois de ter sido desactivada a espoleta. Mas, havia outra (tal como na canção…) espoleta..... E mina estoirou.
Desapareceu parte do carregador nativo, houve feridos (um soldado do meu pelotão ficou totalmente surdo de um ouvido e, até hoje, ainda não foi ressarcido desse trauma, não psicológico, mas físico).
Em suma, vou continuar a ler e a relacionar factos que tenham a ver com a minha vida "vivida".
Um abraço do Marques dos Santos.
Coimbra
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 21 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXIII: Os anjos da morte
(2)Vd post de 30 de Jukho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
Guiné 63/74 - P405: Capelão, precisa-se, para tertúlia de ex-combatentes (Sousa de Castro)
Mensagem do Sousa de Castro:
Pe. Costa Pereira:
Temos uma tertúlia virtual formada na Net que escreve estórias reais, passadas por cada um de nós, do tempo da guerra colonial na Guiné (e só na Guiné). Somos mais de quarenta ex-combatentes, desde 1963 a 1974, que vai escrevendo e digitalizando fotos da época para publicação no Blogue-fora-nada que é da autoria do ex-Furriel Luís Graça que pertenceu à CCAÇ 12 sediada em Bambadinca [169/71].
Já temos um Cmdt (Coronel), já temos alferes, furriéis, cabos e soldados, precisamos de um Alferes Capelão, função que o Pe. Costa Pereira desempenhou (e bem) no BART 3873 em Bambadinca, de 1972 a 1974.
Por isso, em nome da tertúlia, venho convidá-lo a visitar o nosso blogue e a participar no nosso grupo virtual.
Aproveito para lhe dizer que sou o António Manuel Sousa de Castro da CART 3494 (Xime) que viveu em Baroselas.
Pe. Costa Pereira:
Temos uma tertúlia virtual formada na Net que escreve estórias reais, passadas por cada um de nós, do tempo da guerra colonial na Guiné (e só na Guiné). Somos mais de quarenta ex-combatentes, desde 1963 a 1974, que vai escrevendo e digitalizando fotos da época para publicação no Blogue-fora-nada que é da autoria do ex-Furriel Luís Graça que pertenceu à CCAÇ 12 sediada em Bambadinca [169/71].
Já temos um Cmdt (Coronel), já temos alferes, furriéis, cabos e soldados, precisamos de um Alferes Capelão, função que o Pe. Costa Pereira desempenhou (e bem) no BART 3873 em Bambadinca, de 1972 a 1974.
Por isso, em nome da tertúlia, venho convidá-lo a visitar o nosso blogue e a participar no nosso grupo virtual.
Aproveito para lhe dizer que sou o António Manuel Sousa de Castro da CART 3494 (Xime) que viveu em Baroselas.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P404: Mansambo revisitado (Novembro de 2000) (Albano Costa)
Texto do Albano Costa, o nosso homem de Guidage e de... Guifões!
1. Amigo Luís Graça:
Quero deixar aqui a minha satisfação em termos estado juntos, nas vésperas de Natal, com o Marques Lopes, o José Teixeira, o Allen e o Hugo Costa, numa amena cavaqueira em casa dos teus estimados cunhados (o meu muito obrigado pela simpatia com que eles nos receberam, assim como a tua esposa), mas isto é mesmo assim, a «nossa» Guiné tem destas coisas.
Aquilo que muitos dos nossos camaradas que por lá passaram, e que ainda hoje não conseguem esquecer, aqueles tempos muito difíceis, espero que este blogue (em que és, e muito bem o seu comandante) sirva para fazer com que esses mesmos camaradas ao ter o conhecimento deste invento - cada vez maior - os faça mudar de opinião e possam, a partir do dia em que entrem nele, ver a Guiné, outrora muito má (por causa dos políticos da época), agora com outros olhos, e que sintam o povo guineense e português um só povo. Acho que vale a pena transmitir esta mensagem.
Quem tiver possibilidades em lá ir, e puder passar pela zona aonde esteve, que vá porque vale a pena. Luís, como dizes no blogue e muito bem, em Março o Allen vai à Guiné com o seu jipe e eu, claro, gostava muito de lá voltar, que estas coisas o que custa é a primeira vez, porque depois o «bichinho» está sempre cá dentro e quer lá voltar. Que o digam o Casimiro do Porto, o Armindo de Moreira de Cónegos, o Camilo (algarvio): estes são alguns dos que foram «mordidos», assim como o Hugo Costa que me disse:
- Pai, gostava de fazer uma viagem de jipe à Guiné. - E eu não resisti e já estou a preparar-me para o deixar ir, o Hugo Costa também foi daqueles que ficou apaixonado por aquele povo.
2. Agora para o nosso novo tertuliano Marques dos Santos [ex-furriel miliciano da CART 2339, Mansambo, 1968/70, afecta ao BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70].
Em primeiro de tudo estou a escrever estas letrinhas para te felicitar pela tua entrada neste blogue. É que estas coisas estão a fazer com que nós possamos desabafar aquilo que tem andando dentro de nós e que procuramos esquecer, mas não conseguimos. Foram momentos passados e com o andar da idade mais vai saltando para a nossa mente e, tirando as nossas «caras metades» que lá vão fazendo um esforço para nos aturar, mais ninguém quer saber de nós. E aqui que eu vou encontrando um bom passatempo para relembrar aqueles tempos de menino e moço.
Tenho lido as [tuas] memórias, e fiquei a pensar como está a fazer tão bem ao Marques dos Santos a ir ao fundo do baú buscar todas aquelas recordações. Eu por mim quando vou ao fundo do meu, sinto-me bem.
Agora eu quero informar que quando voltei à Guiné - foram das coisas maravilhosas por que passei na minha vida, e adorava lá voltar, quem sabe - quando estive em Mansambo, andámos atrás do dito quartel e só encontrámos um pequeno monumento à entrada do mesmo.
Só agora é que dá para entender porque não existiam as casernas, é que pela tua descrição eram abrigos, claro, esses ficaram com o tempo todos tapados, e não se via nada. Mas não desanimes, que agora existe lá muita população e muito hospitaleira como vai demonstrada nas fotos que envio, do quartel, e as outras, quem sabe se ainda recordas alguém, os meninos esses são filhos de guineenses do teu tempo. Há imagens muito interessantes, quem sabe talvez um dia as possas ver.
Se tiveres possibilidades de ir à Guiné vai sem qualquer receio: aquele povo adora-nos, eu aqui falo por aquilo que senti. Foi um dilema muito grande dentro de mim para me decidir a ir e confesso que mesmo quando lá cheguei ainda tinha um certo receio mas ao fim de umas horas apercebi-me que aquele povo gosta mesmo dos «irmãos» portugueses.
Albano Costa
Legendas das fotos de Mansambo
Lúcio, Casimiro, Armindo e Carlos [quatro dos camaradas que fizeram a viagem à Guiné com o Albano e mais outros tantos em Novembro de 2000], posando ao lado da placa que indica a povoação de Mansambo, do lado do antigo quartel
A pequena picada que dá, pelo meio das belas tabancas, em direcção ao antigo quartel
A entrada do quartel de Mansambo também tem este monumento, o brazão da CART 2714 ("Bravos e Leais"), pertencente ao BART 2917 (1970/1972). Já em 1996, era o único que restava de pé.
População de Mansambo. Em 1969/71, apenas existia meia dúzia de famílias, ad dos guias e picadores que trabalhavam para as NT.
Um camião avariado na estrada Mansambo-Xitole... Isto faz-te lembrar alguma coisa, ó Marques dos Santos ? Sim, as colunas logístics Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho...
Créditos fotográficos : © Albano Costa (2006)
3. Comentário de Carlos Marques dos Santos, depois de visualizar estas imagens:
Mansambo, antes e agora. Até eu fiquei de boca aberta. Mansambo, aquilo??? Mas está explicado. No meu tempo só havia uma tabanca com meia dúzia de pessoas. O Leonardo era o chefe. O Lali Baló - ou Baldé (?) - e uma mulher lindíssima mais um filho pequenino.
Um Abraço,
Marques dos Santos
(Cart 2339, 1968/69)
1. Amigo Luís Graça:
Quero deixar aqui a minha satisfação em termos estado juntos, nas vésperas de Natal, com o Marques Lopes, o José Teixeira, o Allen e o Hugo Costa, numa amena cavaqueira em casa dos teus estimados cunhados (o meu muito obrigado pela simpatia com que eles nos receberam, assim como a tua esposa), mas isto é mesmo assim, a «nossa» Guiné tem destas coisas.
Aquilo que muitos dos nossos camaradas que por lá passaram, e que ainda hoje não conseguem esquecer, aqueles tempos muito difíceis, espero que este blogue (em que és, e muito bem o seu comandante) sirva para fazer com que esses mesmos camaradas ao ter o conhecimento deste invento - cada vez maior - os faça mudar de opinião e possam, a partir do dia em que entrem nele, ver a Guiné, outrora muito má (por causa dos políticos da época), agora com outros olhos, e que sintam o povo guineense e português um só povo. Acho que vale a pena transmitir esta mensagem.
Quem tiver possibilidades em lá ir, e puder passar pela zona aonde esteve, que vá porque vale a pena. Luís, como dizes no blogue e muito bem, em Março o Allen vai à Guiné com o seu jipe e eu, claro, gostava muito de lá voltar, que estas coisas o que custa é a primeira vez, porque depois o «bichinho» está sempre cá dentro e quer lá voltar. Que o digam o Casimiro do Porto, o Armindo de Moreira de Cónegos, o Camilo (algarvio): estes são alguns dos que foram «mordidos», assim como o Hugo Costa que me disse:
- Pai, gostava de fazer uma viagem de jipe à Guiné. - E eu não resisti e já estou a preparar-me para o deixar ir, o Hugo Costa também foi daqueles que ficou apaixonado por aquele povo.
2. Agora para o nosso novo tertuliano Marques dos Santos [ex-furriel miliciano da CART 2339, Mansambo, 1968/70, afecta ao BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70].
Em primeiro de tudo estou a escrever estas letrinhas para te felicitar pela tua entrada neste blogue. É que estas coisas estão a fazer com que nós possamos desabafar aquilo que tem andando dentro de nós e que procuramos esquecer, mas não conseguimos. Foram momentos passados e com o andar da idade mais vai saltando para a nossa mente e, tirando as nossas «caras metades» que lá vão fazendo um esforço para nos aturar, mais ninguém quer saber de nós. E aqui que eu vou encontrando um bom passatempo para relembrar aqueles tempos de menino e moço.
Tenho lido as [tuas] memórias, e fiquei a pensar como está a fazer tão bem ao Marques dos Santos a ir ao fundo do baú buscar todas aquelas recordações. Eu por mim quando vou ao fundo do meu, sinto-me bem.
Agora eu quero informar que quando voltei à Guiné - foram das coisas maravilhosas por que passei na minha vida, e adorava lá voltar, quem sabe - quando estive em Mansambo, andámos atrás do dito quartel e só encontrámos um pequeno monumento à entrada do mesmo.
Só agora é que dá para entender porque não existiam as casernas, é que pela tua descrição eram abrigos, claro, esses ficaram com o tempo todos tapados, e não se via nada. Mas não desanimes, que agora existe lá muita população e muito hospitaleira como vai demonstrada nas fotos que envio, do quartel, e as outras, quem sabe se ainda recordas alguém, os meninos esses são filhos de guineenses do teu tempo. Há imagens muito interessantes, quem sabe talvez um dia as possas ver.
Se tiveres possibilidades de ir à Guiné vai sem qualquer receio: aquele povo adora-nos, eu aqui falo por aquilo que senti. Foi um dilema muito grande dentro de mim para me decidir a ir e confesso que mesmo quando lá cheguei ainda tinha um certo receio mas ao fim de umas horas apercebi-me que aquele povo gosta mesmo dos «irmãos» portugueses.
Albano Costa
Legendas das fotos de Mansambo
Lúcio, Casimiro, Armindo e Carlos [quatro dos camaradas que fizeram a viagem à Guiné com o Albano e mais outros tantos em Novembro de 2000], posando ao lado da placa que indica a povoação de Mansambo, do lado do antigo quartel
A pequena picada que dá, pelo meio das belas tabancas, em direcção ao antigo quartel
A entrada do quartel de Mansambo também tem este monumento, o brazão da CART 2714 ("Bravos e Leais"), pertencente ao BART 2917 (1970/1972). Já em 1996, era o único que restava de pé.
População de Mansambo. Em 1969/71, apenas existia meia dúzia de famílias, ad dos guias e picadores que trabalhavam para as NT.
Na despedida da população de Mansambo... Era sempre o momento mais triste sentido por todos nós...
Um camião avariado na estrada Mansambo-Xitole... Isto faz-te lembrar alguma coisa, ó Marques dos Santos ? Sim, as colunas logístics Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho...
Créditos fotográficos : © Albano Costa (2006)
3. Comentário de Carlos Marques dos Santos, depois de visualizar estas imagens:
Mansambo, antes e agora. Até eu fiquei de boca aberta. Mansambo, aquilo??? Mas está explicado. No meu tempo só havia uma tabanca com meia dúzia de pessoas. O Leonardo era o chefe. O Lali Baló - ou Baldé (?) - e uma mulher lindíssima mais um filho pequenino.
Um Abraço,
Marques dos Santos
(Cart 2339, 1968/69)
Guiné 63/74 - P403: Estórias cabralianas: Rally turra ? (Jorge Cabral)
Numa tarde de tédio convenci o motorista da viatura existente em Missirá, um humilde Unimog, a dar um passeio. Pretendia visitar o Enxalé, seguindo pela estrada de Mato Cão, pela qual não passava qualquer veículo há muito tempo.
Progredimos alguns quilómetros, e perto de S. Belchior, ouvimos tiros, pelo que retrocedemos, perdendo no regresso um jericã.
E o caso teria ficado por aqui, se oito dias depois não fosse chamado ao Batalhão, onde o Major das Operações me deu conta de uma inquietante informação: os turras possuíam viaturas, com as quais efectuavam abastecimentos, talvez de Mero. Até um jericã tinha sido encontrado. Fiz um ar preocupado como me competia, e afirmei que iria averiguar e fazer explodir o tal jericã, que devia estar minado.
Logo no dia seguinte fui buscar o jericã, e não pensei mais no assunto. Porém, o Major não se esqueceu, e através de mensagem ordenou-me que informasse qual a origem dos indícios encontrados. Lá lhe respondi:
- “Viatura ligeira, presumivelmente soviética, detectados restos de aguardente de cana no jericã destruído”.
Tudo isto se passou a curtos dias do meu regresso pelo que desconheço as consequências da minha tão sábia informação…
Será que ordenaram aos turras que soprassem o balão?
Jorge Cabral
(ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)
Progredimos alguns quilómetros, e perto de S. Belchior, ouvimos tiros, pelo que retrocedemos, perdendo no regresso um jericã.
E o caso teria ficado por aqui, se oito dias depois não fosse chamado ao Batalhão, onde o Major das Operações me deu conta de uma inquietante informação: os turras possuíam viaturas, com as quais efectuavam abastecimentos, talvez de Mero. Até um jericã tinha sido encontrado. Fiz um ar preocupado como me competia, e afirmei que iria averiguar e fazer explodir o tal jericã, que devia estar minado.
Logo no dia seguinte fui buscar o jericã, e não pensei mais no assunto. Porém, o Major não se esqueceu, e através de mensagem ordenou-me que informasse qual a origem dos indícios encontrados. Lá lhe respondi:
- “Viatura ligeira, presumivelmente soviética, detectados restos de aguardente de cana no jericã destruído”.
Tudo isto se passou a curtos dias do meu regresso pelo que desconheço as consequências da minha tão sábia informação…
Será que ordenaram aos turras que soprassem o balão?
Jorge Cabral
(ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)
Guiné 63/74 - P402: Estórias cabralianas: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...
Guiné > Fá Mandinga > Novembro de 1969 > O Alf Mil Art Cabral e parte dos seus feros guerreiros do Pel Caç Nat 63, incluindo a cabra e o cão.
© Jorge Cabral (2005)
1. Amigo Luís,
Continuo diariamente a acompanhar o teu/nosso blogue, o qual me propícia um fantástico manancial de recordações. Agradeço que corrijas a "arma" a que pertencia, a fim de não suscitar a ira dos homens dos obuses. Era Alferes Miliciano de Artilharia, especialidade sofrida em Vendas Novas, onde fui aspirante durante largos meses, sendo então amigo de alguns jovens Tenentes que mais tarde tiveram papel determinante na Revolução de Abril. Foi nessa altura que convivi com o Agordela e com o Passos Marques, os quais na Guiné voltei a encontrar.
Envio três "histórias" e duas fotos, e um grande abraço, extensivo ao Humberto [Reis], magnífico fornecedor das imagens dos caminhos e trilhos, os quais ainda percorro na busca das bajudas...
Até sempre em todos os dias.
Jorge
(ex-Alf Mil Art, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)
2. A grande história da guerra da Guiné nunca se fará sem a petite histoire do Cabral, do Jorge Cabral... Ele acaba de me mandar três estórias, qual delas a mais deliciosa, e que eu vou servir como slow food... Meus amigos, isto são pequenas obras-primas de nosso humor castrense, da irreverência e do non-sense que aprendemos a cultivar na Guiné, longe do Vietname, e que nos ajudou a resistir a tudo (sem esquecer o uísque, com ou sem água de Perrier). O absurdo (daquela guerra, do nosso quotidiano, das patéticas figuras de alguns dos nossos comandantes...) só se podia combater com o absurdo do nosso (quase sempre bom) humor...
Aqui vai a primeira estória. Estou grato ao Jorge, por ter arranjado um bocadinho do seu escasso tempo para nós e de se ter lembrado destes gourmands da Guiné...
A mulher do Major e o castigo do Cabral
Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso.
Desta personagem, que depois passou a ordenança do Polidoro Monteiro (1), papel gordo do Biombo, ex-soldado na Índia, falarei um dia.
Feitas as contas, bem acompanhadas de várias libações e seguindo uma hierarquia ascendente, passava ao Bar dos Sargentos, onde continuava a "matar a sede" e só por fim aterrava no Bar dos Oficiais.
Naquele dia quando entrei fiquei surpreendido. Além do simpático e solícito barman, apenas uma branca jovem senhora ali se encontrava. Desconhecendo em absoluto de quem se tratava, reparei que a mesma ficou espantada com a minha aparição. (Na verdade o meu aspecto não era muito civilizado. Enlameado até ao peito – havia atravessado a bolanha de Finete, ostentava um estrambólico bigode e amparava-me num pingalim-bengala prateado).
Logo da porta encomendei:
- Rapaz, uma sandes de chocolate e um whisky quádruplo - e, vendo pelo canto do olho a reacção da dama, iniciei um absurdo monólogo sobre a minha dieta alimentar:
- Ando cheio de fome, os presuntos de macaco não me sabem a nada, a sopa de formigas causa-me azia, até a vinagrada de orelhas de turra me provoca urticária...
O espanto da jovem dera lugar ao pânico, até que entrou o Major, que vendo a mulher pálida e aterrada, se afligiu:
– Que tens querida? Estás mal disposta? Olha, apresento-te o Alferes Cabral, de Missirá.
Não me estendeu a mão, nada balbuciou, saiu quase a correr…
Logo nessa noite recebi uma mensagem:
- Alferes Cabral proibido de se deslocar a Bambadinca, durante sessenta dias.
Cumprido o "castigo" voltei, mas nunca mais vi a mulher do Major. Contaram-me que a avisavam logo que eu entrava no quartel...
_______
Nota de L.G.
(1) Tenente-coronel, spinolista, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) na altura em que os quadros metropolitanos da CCAÇ 12 foram rendiidos individualmente (Fevereiro/Março de 1971).
Esta figura já aqui foi evocada, neste blogue, duas ou três vezes, pelo David Guimarães e por mim:
Vd post de 26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)
Vd post de 29d e Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)
© Jorge Cabral (2005)
1. Amigo Luís,
Continuo diariamente a acompanhar o teu/nosso blogue, o qual me propícia um fantástico manancial de recordações. Agradeço que corrijas a "arma" a que pertencia, a fim de não suscitar a ira dos homens dos obuses. Era Alferes Miliciano de Artilharia, especialidade sofrida em Vendas Novas, onde fui aspirante durante largos meses, sendo então amigo de alguns jovens Tenentes que mais tarde tiveram papel determinante na Revolução de Abril. Foi nessa altura que convivi com o Agordela e com o Passos Marques, os quais na Guiné voltei a encontrar.
Envio três "histórias" e duas fotos, e um grande abraço, extensivo ao Humberto [Reis], magnífico fornecedor das imagens dos caminhos e trilhos, os quais ainda percorro na busca das bajudas...
Até sempre em todos os dias.
Jorge
(ex-Alf Mil Art, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)
2. A grande história da guerra da Guiné nunca se fará sem a petite histoire do Cabral, do Jorge Cabral... Ele acaba de me mandar três estórias, qual delas a mais deliciosa, e que eu vou servir como slow food... Meus amigos, isto são pequenas obras-primas de nosso humor castrense, da irreverência e do non-sense que aprendemos a cultivar na Guiné, longe do Vietname, e que nos ajudou a resistir a tudo (sem esquecer o uísque, com ou sem água de Perrier). O absurdo (daquela guerra, do nosso quotidiano, das patéticas figuras de alguns dos nossos comandantes...) só se podia combater com o absurdo do nosso (quase sempre bom) humor...
Aqui vai a primeira estória. Estou grato ao Jorge, por ter arranjado um bocadinho do seu escasso tempo para nós e de se ter lembrado destes gourmands da Guiné...
A mulher do Major e o castigo do Cabral
Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso.
Desta personagem, que depois passou a ordenança do Polidoro Monteiro (1), papel gordo do Biombo, ex-soldado na Índia, falarei um dia.
Feitas as contas, bem acompanhadas de várias libações e seguindo uma hierarquia ascendente, passava ao Bar dos Sargentos, onde continuava a "matar a sede" e só por fim aterrava no Bar dos Oficiais.
Naquele dia quando entrei fiquei surpreendido. Além do simpático e solícito barman, apenas uma branca jovem senhora ali se encontrava. Desconhecendo em absoluto de quem se tratava, reparei que a mesma ficou espantada com a minha aparição. (Na verdade o meu aspecto não era muito civilizado. Enlameado até ao peito – havia atravessado a bolanha de Finete, ostentava um estrambólico bigode e amparava-me num pingalim-bengala prateado).
Logo da porta encomendei:
- Rapaz, uma sandes de chocolate e um whisky quádruplo - e, vendo pelo canto do olho a reacção da dama, iniciei um absurdo monólogo sobre a minha dieta alimentar:
- Ando cheio de fome, os presuntos de macaco não me sabem a nada, a sopa de formigas causa-me azia, até a vinagrada de orelhas de turra me provoca urticária...
O espanto da jovem dera lugar ao pânico, até que entrou o Major, que vendo a mulher pálida e aterrada, se afligiu:
– Que tens querida? Estás mal disposta? Olha, apresento-te o Alferes Cabral, de Missirá.
Não me estendeu a mão, nada balbuciou, saiu quase a correr…
Logo nessa noite recebi uma mensagem:
- Alferes Cabral proibido de se deslocar a Bambadinca, durante sessenta dias.
Cumprido o "castigo" voltei, mas nunca mais vi a mulher do Major. Contaram-me que a avisavam logo que eu entrava no quartel...
_______
Nota de L.G.
(1) Tenente-coronel, spinolista, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) na altura em que os quadros metropolitanos da CCAÇ 12 foram rendiidos individualmente (Fevereiro/Março de 1971).
Esta figura já aqui foi evocada, neste blogue, duas ou três vezes, pelo David Guimarães e por mim:
Vd post de 26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)
Vd post de 29d e Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)
quarta-feira, 4 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P401: Pensando... A Guiné que em (re)(vi)vi (2005) (José Teixeira)
Guiné > Mampatá Foreá > Rescaldo de ataque do IN à hora do almoço (3 de Novembro de 1968)
© José Teixeira (2005)
Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970).
Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu, um quarto de século depois, é relatado nesta II parte... A Guiné que eu re(vi)vi (2005) (*):
Durante estes anos passados era esta a imagem que eu retinha da Guiné. Devorava todas as notícias que foram marcando aquela terra vermelha. Mas o sonho mantinha-se.
Precisava de voltar e apreciar as mudanças. Família e amigos apelidavam-me de "doido". Rompi barreiras, aceitei o desafio de um amigo e voltei.
Atravessei Espanha, Marrocos, Mauritânia e Senegal para entrar na Guiné por Pirada (1) e ser recebido como um amigo que volta a sua casa. De facto, senti-me em Portugal.
É verdade que hoje continuo a sonhar acordado e a dormir, com a Guiné, mas uma visão muito mais sadia. Pensava que uma ida aos locais onde vivi, me curaria da sodade ... a Guiné sair-me-ia do pensamento.
Se antes, sentia necessidade de ir buscar "paz" para o meu espírito, agora sinto uma vontade ainda maior de voltar, voltar sempre. Hoje, continuo a sonhar, mas com a outra Guiné. A de 2005 com o mesmo povo, franco, aberto, comunicativo e sobretudo alegre e acolhedor.
Os tempos da guerra passaram e, se deixaram marcas negativas, estas foram abafadas pelo que de bom lhe levamos. Formas de estar, de pensar e agir diferentes. Apesar de levarmos a guerra e o sofrimento, também levámos uma nobreza de alma.
Guiné-Bissau > Buba > 2005 > Chefe da Tabanca Lisboa, a 5 Km de Buba, um antigo centro de treino do IN...
O chefe da tabanca, onde vivem vários antigos combatentes do PAIGC, é por sua vez um antigo paraquedista, formado em Tancos, e que lutou ao lado dos portugueses...
© José Teixeira (2005)
A maior parte dos portugueses que foram chamados à Guiné, eram oriundos do interior de Portugal. Gente humilde e honrada. Gente que soube separar as águas e não ver nos Guineenses um inimigo a abater, mas pessoas que apenas tinham outra cor, outras culturas e hábitos, outra forma de vestir.
A simbiose fez-se naturalmente, sem dificuldades e a imagem que ficou, mantem-se. Somos queridos e bem vindos:
– Tu Português de Portugal, eu Português de Guiné - ouvi dizer algures na nova Guiné que visitei em 2005. Ou:
- Branco ê na volta ! Branco ê na volta mesmo – como me dizia a velhinha mulher do falecido Sambel, Homem Grande de Contabane (1) quando comovida me abraçava.
A visão panorâmica das aldeias locais (tabancas) mudou completamente e também mudou, felizmente, na minha mente.
Vi pistas de aviação foram transformadas em locais de habitação e de produção de Caju, vi casernas transformadas em escolas, por todas as tabancas por onde passei. Os espaços que mantínhamos capinados à voltas das tabancas por questões de segurança, são zonas de habitação e produção de cajueiros (2). As tabancas cresceram, romperam as barreiras de arame farpado, aproximaram-se umas das outras. Não há medos nem silêncios, há vida.
A estrada de Quebo a Mampatá Forea, outrora deserta e minada, quantas vezes, onde havia duas tabancas, Afia e Bacardado, esta última abandonada no meu tempo depois de incendiada pelo IN, é hoje uma passerelle contínua de pessoas em movimento, que se alonga por Uane, Sare Donhã e Samba Sábali. A estrada de Saltinho, Contabane a Quebo, fechada, após a destruição de Contabane(2), é outro corredor de interligação de pessoas.
Guiné-Bissau > 2005
... "Em Abril de 2005 tal como em 1968"...
© José Teixeira (2005)
Buba voltou a ter a vida que nos anais da história retratam como cidade comercial (transformada no tempo da guerra numa pequena povoação com um forte contingente militar – duas Companhias da tropa macaca, uma de Comandos ou Páras e uma de Fuzileiros). Banhada pelo Rio Grande Buba, braço de mar. Porto de ligação com a zona de Tombali. Centro comercial pela sua posição estratégica, cresceu imenso, gerando uma grande avenida que ultrapassa o fim da pista de aviação, actualmente transformada em zona habitacional e de comércio.
A picada para Fulacunda foi activada, dando acesso à tabanca de Sare Tuto, a cerca de 5 Km de Buba, conhecida por Tabanca Lisboa. Outrora base e centro de treino IN. Daí partiam para nos "incomodar" na estrada em construção, nas colunas para Quebo e nas tabancas onde estacionávamos (Buba, Nhala, Samba Sábali, etc.).
Insólito é que o Chefe de Tabanca actual é um antigo paraquedista das FAP [Força Aérea Portuguesa], talvez mais português que qualquer um de nós, até no português que fala sem sotaque local.
Os seus habitantes são ainda, na sua maioria antigos IN. O nosso amigo que se orgulha de ter servido Portugal tirou o Curso em Tancos e seguiu para a sua terra onde durante anos serviu Portugal nos Paras. No fim da guerra viveu clandestinamente durante dois anos e depois voltou... para a mulher que tinha do outro lado da barreira e vivia nesta linda tabanca de Sare Tuto (ou Lisboa), onde ainda hoje, quase só se fala Crioulo ou francês. As suas bases culturais depressa o guindaram ao lugar de Chefe de Tabanca. Tem em funcionamento uma escola de Português e está a criar outra no outro extremo da Tabanca. Conhecedor da mata como ninguém, é um excelente pisteiro, procurado pelos caçadores brancos que vão à Guiné e se instalam no Saltinho.
Aqui neste cantinho escondido da Guiné, tive o meu reencontro oficial com o IN. Quatro homens e mulheres, manga delas, observavam-nos à distância de 2 a 3 metros. Perguntei quem eram e tive como resposta:
- Turras!- Dirigi-me a eles:
- A bó bandido qui taka Buba, tempo di guera ? - Começaram se a rir e um deles retorquiu:
- A bó turra branco qui firma na Buba ? djobe. Manga di tempo qui guera na kaba. Parte mantanhas.
Demos um abraço e eu senti-me um homem feliz!
___________
Notas do autor:
(1) História que também merece ser contada, mais tarde.
(2) Contabane é uma tabanca que fica entre Quebo e Saltinho (Sinchã Shambel).
O Régulo Shambel teve a visita do IN na noite de São João de 1968. A tabanca foi incendiada e destruída, o Pelotão da CCAÇ 2382 teve de retirar com a roupa que trazia no corpo e a população refugiou-se em Quebo.
Actualmente a sua mulher vive em Sinchã Sambel do outro lado da ponte do Saltinho, cujo chefe é seu filho. Este era milícia em Mampatá Forea e casou com a Nana, filha do Alferes de milícia Aliu Baldé, régulo de Mampatá no meu tempo.
Tive o prazer de conviver de novo com esta mulher que era uma das mais belas bajudas que conheci, e continua a sê-lo, a par da sua amiga e futura cunhada Famara Baldé (minha lavandera).
_____
Nota de L.G.
(*) Vd a I parte > post de 4 de janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVIII: Pensando... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) (José Teixeira)
Guiné 63/74 - P400: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá (Carlos Marques Santos)
Guiné > Fá Mandinga > 1968 > Depois do ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1968, o Gr Comb do Fur Mil Santos - Os Solitários - é destacada para defender a Ponte do Rio Undunduma (que o IN tentou dinamitar); lá viveu duas semanas em tendas de campanha; mais tarde é destacado para reforçar Fá Mandinga. Ei-lo aqui, em diligência...
© Carlos Marques Santos (2005)
Texto do Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/70), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).
Sabendo que andámos pelos mesmos caminhos - cruzados, concerteza, sem o sabermos -, é hoje bom ver que aquilo que vivemos não esquecemos. É importante não esquecer!
Li no Blogue (Luís & Camaradas) uma referência ao pontão do Rio Undunduma (2). Eu e os meus camaradas da CART 2339 estivemos lá.
Em 28 de Maio de 1969 ouvimos rebentamentos para aqueles lados e pensámos ser na tabanca Moricanhe. Afinal, para nosso espanto, era mesmo em Bambadinca, sede do Batalhão (3).
Dia 29, pela 05.30 da manhã, seguimos para reforço da sede de Batalhão. 15 dias. Salvo erro com o Pel Caç Nat 63 estivemos em tendas (panos de tenda com botões), em vigília constante, àquela que era uma passagem importante [, a ponte sobre o Rio Undunduma, na estrada Xime-Bambadinca].
Guiné-Bissau > Estrada Bambadinca-Mansambo > Novembro de 2000 > Cruzamento em Bambadinca que dá para Xime e Bafatá, e Mansambo) . Foto tirada já na estrada que dá para Mansambo...
Placa rodoviária: Xime, 10 km; Bafatá, 28 km.
© Albano Costa (2005)
Depois disso, outros, e até da nossa CART 2339, estiveram lá. Nós, CART 2339, abandonámos em 12 de Julho de 1969.
Entretanto dali, e depois de uma série de ataques, em Amedalai, Mansambo e Xime, Bambadinca e outra vez Bambadinca, fomos para reforço a Fá (Mandinga), nosso aquartelamento de acolhimento, pois havia indicações de que poderia ser atacado.
Guiné-Bissau > Mansambo > Novembro de 2000 > A pequena tabanca de Mansambo à beira da estrada (alcatroada) de Bambadinca-Xitole-Saltinho-Quebo... Segundo lo fotógrafo, " estas tabancas ficam mais ou menos a 100 metros da porta do antigo aquartelamento de Mansambo (...) O quartel quase desapareceu, só ficou a entrada do destacamento, o resta (os abrigos) está tudo tapado".
O Albano e os seus amigos foram lá encontrar, na sua viagem à Guiné, em Novembro de 2000, um antigo soldado da CCAÇ 12.
© Albano Costa (2005)
O meu pelotão - e eu era o furriel mais velho e por ausência quase sistemática do Alferes, competia-me o comando - intitulou-se de "Os Solitários", pois por norma estava em diligência. Que palavra tão bonita.
Carlos Marques dos Santos
Coimbra
____
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 28d e Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCIX: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (1): a água da vida
(2) Vd. post de 3 de Janeiro de 2005 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma
(3) Sobre o célebre ataque a Bambadinca, de 28 de Maio de 1968, vd. post de 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
Guiné 63/74 - P399: Pensando... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) (José Teixeira)
Guiné > Ingoré (Cacheu) > Noite de São João > "Cá vai a marcha da tabanca"...
Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (Buba, Empada, região de Quínara))...
Apenas ensombrados pelo brutal episódio do 1º Cabo S... e do prisioneiro senegalês. Na foto, o enfermeiro Teixeira, de óculos, é o primeiro da direita
© José Teixeira (2005)
Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970) (1).
Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu nessas duas épocas diferentes (1968/70 e Março de 2005) é objecto deste texto ("Pensando...") que ele faz questão de partilhar connosco:
Pensando ... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) - I Parte (José Teixeira)
Arame farpado a rodear as tabancas (aldeias). Primeira fiada, segunda fiada. Garrafas vazias penduradas duas a duas para com o seu tilitar servir de aviso aos sentinelas nocturnas. Área capinada, armadilhas de fogo . . .. Recolhas ao interior da tabanca, ao pôr do Sol, silêncios...
As festas naturais da comunidade, momentos de alegria, convivências, partilha de amizades, como festas de nascimentos, casamentos, aniversários, convívios, tudo abafado no silêncio aterrador do medo.
Os ataques às tabancas, as correrias para os abrigos, o dormir com as crianças amarradas às costas para poder salvá-las ao mais pequeno sinal de perigo, os feridos, os mortos, as crianças a chorar...
As colunas sem fim, debaixo de sol abrasador, as emboscadas, as balas a assobiar por cima das nossas cabeças, as granadas com o característico som da saída da boca do canhão, que originava o grito: Aí estão eles !... e vida parava...
Saídas temerárias à bolanha (áreas de cultivo) para a labuta do ganha pão, nos arrozais, mancarrais, milheirais ou pesca, com medo de encontros desagradáveis. Os nacionalistas do PAIGC apelidados de Bandido, para os nativos (e Turras para a tropa branca), podiam surpreender com o Ágára ! ágára! é nosso ! (Agarra! Agarra!, que é nosso). Precisavam de alimentar as suas fileiras com combatentes, com transportadores e mão de obra para a produção de riqueza e sobretudo alimentos (trabalho nas bolanhas controladas). De nada servia dizer que tem família, tem minino prá cuidar.
Assim se vivia na Guiné que eu conheci.
O risco tornava-se maior se o encontro se dava com os tuga (tropa portuguesa), se esta os confundisse com bandido. Possivelmente de nada lhe serviria dizer amigo di tropa ou nem tempo teria para o fazer....
Recordo os dois jovens irmãos cuja captura testemunhei em Ingoré (2), suponho que para lá da fronteira, dentro do Senegal, numa das patrulhas que a minha Companhia fez. Recusaram-se ou não sabiam falar Português ou Crioulo, apenas francês que, julgo, ninguém do comando sabia o suficiente para os entender. O mais velho foi metido numa masmorra com a sua altura, dois metros de comprido por um de largo (vergonha nossa). Tinha apenas uma janela, com chapa em lugar de vidros, por onde entrou e depois se fechou.
Assim ficou no escuro alguns dias à espera de ser enviado para Bissau como turra. Apenas via a luz do sol, quando lhe levavam comida, duas vezes ao dia. Para as necessidades fisiológicas, um balde, que lhe possibilitava uns momentos de luz e ar ao ir despejá-lo à retrete, dia sim, dia não. Até que, cansado de tanto sofrer tentou a sua sorte. Quando lhe foram levar comida, atirou-lhes com o conteúdo do balde à cara. Era a última esperança. Liberdade ou morte. Esta vida, não... Foi barbaramente assassinado pelo Cabo S... com um tiro na boca, dentro da masmorra, momentos depois.
O Cabo S... regressou a Lisboa, passado um mês com a sua Companhia. Não houve processo, inquérito. Tudo tão natural. Aconteceu... Eu estava lá a cinco metros. Suponho que no relatório oficial da sua morte, se o houve, devia constar "morto ao tentar fugir".
O irmão, mais novo (17 anos), não cabia na masmorra. Ficou junto ao refeitório amarrado e guardado por dois soldados, até ir habitar o lugar que seu irmão deixou vago.
Tratei-o de um furúnculo que tinha no peito. Tive oportunidade de conversar algumas vezes com ele em francês. Criei alguma relação de amizade e cumplicidade. Continuei a visitá-lo a pretexto do tratamento. Nas conversas que tivemos confrontei-me com um jovem que tinha bases académicas avançadas para um jovem aldeão do interior da Guiné. As conversas que tivemos sobre vários temas, no meu parco francês confundiram-me.
Comecei por ver nele um possível IN que merecia ser tratado como pessoa, pois estava doente. Com o desenrolar dos contactos, comecei a gostar de conversar com ele. Foi como que uma realidade nova para os meus dois meses de Guiné, alguém que se afirma cidadão do Senegal, que rejeita a guerra e não sabe porque foi preso, pois ia para a sua bolanha no Senegal trabalhar com o irmão. Mas alguém que demonstra conhecimentos de geografia e história.
Isto tudo me leva hoje a acreditar na sua versão de estudante em Dakar – Senegal, a passar férias na aldeia. Foi ocupar a masmorra que o irmão deixara livre depois de ser assassinado. Acompanhei-o até à prisão. Despedimo-nos com um caloroso aperto de mão, como sempre o fazíamos quando a pretexto de "dar mezinho ao prisioneiro" o ia visitar. Uma lágrima teimosa percorreu a minha face, o coração comprimui-se. Não tive a coragem de lhe dizer o que aconteceu ao irmão.
No dia seguinte a masmorra estava aberta. Julgo que o levaram para Bissau para ser interrogado pela Pide.
Perdoem-me, os camaradas tertulianos, este relembrar de situações dolorosas que poderão incomodar. São marcas que ficaram e não se podem esconder, para que a verdadeira história se faça (3).
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
(2) Ingoré: no norte, junto à fronteira com o Senegal, na estrada entre Sedengal e Bigene. Pertence à actual região do Cacheu.
(3) O Teixeira e eu decidimos não identificar o militar português aqui referido. Que fique claro: não era da CCAÇ 2381, era dos "velhinos". Chamámos-lhe apenas S..., que tanto pode ser Silva, como Santos, Sousa ou Silvestre.
Eis a mensagem que mandei ao autor:
"O cabo S... era da tua companhia ? É pseudónimo ? Estará ainda vivo ? Como vão reagir os teus camaradas da CCAÇ 2381 ? O que tu relatas é grave, mas o cabo tinha um furriel acima dele, o furriel um alferes, o alferes um capitão e pró aí fora... Acho bem que estas páginas negras da guerra vejam a luz do dia: julgo que muitos de nós nos comportámos com honra e dignidade, mas também tivemos camaradas que praticaram crimes de guerra e crimes contra a humanidade... O mesmo se terá passado no outro lado... Nem eles nem nós éramos meninos de coro... Louvo a tua coragem ao abordar este assunto delicado, mas não tens que pedir desculpa a ninguém: tu estavas lá. E como homem e como cristão, e até como português e como militar, não podias ficar indiferente...
"Temos,contudo, que ter algum cuidado com a identificação dos camaradas: o cabo S... era apenas uma peça da engrenagem, provavelmente um tipo a quem entregavam os trabalhos sujos... Se S... é pseudónimo temos que dizer isso... Se não é, temos que ver se ainda é fácil a sua identificação... Pode estar vivo, ter mulher e filhos... A solução é não identificar a companhia... Mas tu é que vês qual a melhor solução. O episódio deve ser factualmente relatado e comentado, como tu o fizeste, e bem".
Eis a resposta do José Teixeira:
"O 1º O Cabo S... era da companhia dos velhinhos que fomos substituir. Eu era periquito e não escrevi no Diário com medo de poder ser apanhado.
"Posso informar-te que não [fomos nós], um grupo da minha companhia que estava por perto, junto a mim, não lhe demos um tiro [ao 1º Cabo S...] porque foi logo protegido e afastado, mas houve quem chorasse de raiva.
"(...) Os colegas da CCAÇ 2381, se se lembrarem, concerteza que vão reflectir de novo sobre o assunto, que na altura nos dividiu. Uns diziam "era turra, teve o que merecia". Outros, como eu, interrrogavamo-nos e perguntavamos como se sabia se era turra ou não, dado que não falava português e [fora] capturado sem armas e longe da povoações nativas da Guiné, dentro do Senegal. Aliás, houve outra saída em que também entrámos no Senegal e depois tivemos de fugir a correr, porque o Alferes do meu grupo viu pessoas ao longe e mandou avançar para elas. O capitão mandou regressar ao grupo principal e ...(ouvi eu) disse:
- Você não sabe que estamos dentro do Senegal?! Vamos regressar já à base antes que haja sarilho.
"O Cabo S... acompanhava o soldado que levava comida ao prisioneiro. Iam desarmados, pois a janela estava alta e não era fácil sair.
Os dois apanharam com a penicada e o S... foi buscar a G-3 e disse mais ou menos isto:
- Não queres comer ? Vais comer de qualquer maneira!... - Apontou-lhe a arma à boca e disparou. Creio que o prisioneiro queria dizer qualquer coisa, mas ficou engasgado mortalmente com a bala.
"Pensas bem em não identificarmos a Companhia, que não sei qual era. Podes também [omitir o apelido do cabo], para evitar possíveis dissabores.
"Quanto às consequências possíveis, na altura para o Cabo, tudo foi abafado e fez-se constar que o abatido fora identificado como um perigoso turra.
"Claro que eu, simples cabito enfermeiro, não andava por dentro dos meandros do Comando, pelo que tudo o que possa dizer seria mera especulação. Apenas relato o que vi e senti.
"Há outros casos conhecidos e passados perto de mim, mas que não vivi, logo não posso nem devo falar deles".
Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (Buba, Empada, região de Quínara))...
Apenas ensombrados pelo brutal episódio do 1º Cabo S... e do prisioneiro senegalês. Na foto, o enfermeiro Teixeira, de óculos, é o primeiro da direita
© José Teixeira (2005)
Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970) (1).
Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu nessas duas épocas diferentes (1968/70 e Março de 2005) é objecto deste texto ("Pensando...") que ele faz questão de partilhar connosco:
Pensando ... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) - I Parte (José Teixeira)
Arame farpado a rodear as tabancas (aldeias). Primeira fiada, segunda fiada. Garrafas vazias penduradas duas a duas para com o seu tilitar servir de aviso aos sentinelas nocturnas. Área capinada, armadilhas de fogo . . .. Recolhas ao interior da tabanca, ao pôr do Sol, silêncios...
As festas naturais da comunidade, momentos de alegria, convivências, partilha de amizades, como festas de nascimentos, casamentos, aniversários, convívios, tudo abafado no silêncio aterrador do medo.
Os ataques às tabancas, as correrias para os abrigos, o dormir com as crianças amarradas às costas para poder salvá-las ao mais pequeno sinal de perigo, os feridos, os mortos, as crianças a chorar...
As colunas sem fim, debaixo de sol abrasador, as emboscadas, as balas a assobiar por cima das nossas cabeças, as granadas com o característico som da saída da boca do canhão, que originava o grito: Aí estão eles !... e vida parava...
Saídas temerárias à bolanha (áreas de cultivo) para a labuta do ganha pão, nos arrozais, mancarrais, milheirais ou pesca, com medo de encontros desagradáveis. Os nacionalistas do PAIGC apelidados de Bandido, para os nativos (e Turras para a tropa branca), podiam surpreender com o Ágára ! ágára! é nosso ! (Agarra! Agarra!, que é nosso). Precisavam de alimentar as suas fileiras com combatentes, com transportadores e mão de obra para a produção de riqueza e sobretudo alimentos (trabalho nas bolanhas controladas). De nada servia dizer que tem família, tem minino prá cuidar.
Assim se vivia na Guiné que eu conheci.
O risco tornava-se maior se o encontro se dava com os tuga (tropa portuguesa), se esta os confundisse com bandido. Possivelmente de nada lhe serviria dizer amigo di tropa ou nem tempo teria para o fazer....
Recordo os dois jovens irmãos cuja captura testemunhei em Ingoré (2), suponho que para lá da fronteira, dentro do Senegal, numa das patrulhas que a minha Companhia fez. Recusaram-se ou não sabiam falar Português ou Crioulo, apenas francês que, julgo, ninguém do comando sabia o suficiente para os entender. O mais velho foi metido numa masmorra com a sua altura, dois metros de comprido por um de largo (vergonha nossa). Tinha apenas uma janela, com chapa em lugar de vidros, por onde entrou e depois se fechou.
Assim ficou no escuro alguns dias à espera de ser enviado para Bissau como turra. Apenas via a luz do sol, quando lhe levavam comida, duas vezes ao dia. Para as necessidades fisiológicas, um balde, que lhe possibilitava uns momentos de luz e ar ao ir despejá-lo à retrete, dia sim, dia não. Até que, cansado de tanto sofrer tentou a sua sorte. Quando lhe foram levar comida, atirou-lhes com o conteúdo do balde à cara. Era a última esperança. Liberdade ou morte. Esta vida, não... Foi barbaramente assassinado pelo Cabo S... com um tiro na boca, dentro da masmorra, momentos depois.
O Cabo S... regressou a Lisboa, passado um mês com a sua Companhia. Não houve processo, inquérito. Tudo tão natural. Aconteceu... Eu estava lá a cinco metros. Suponho que no relatório oficial da sua morte, se o houve, devia constar "morto ao tentar fugir".
O irmão, mais novo (17 anos), não cabia na masmorra. Ficou junto ao refeitório amarrado e guardado por dois soldados, até ir habitar o lugar que seu irmão deixou vago.
Tratei-o de um furúnculo que tinha no peito. Tive oportunidade de conversar algumas vezes com ele em francês. Criei alguma relação de amizade e cumplicidade. Continuei a visitá-lo a pretexto do tratamento. Nas conversas que tivemos confrontei-me com um jovem que tinha bases académicas avançadas para um jovem aldeão do interior da Guiné. As conversas que tivemos sobre vários temas, no meu parco francês confundiram-me.
Comecei por ver nele um possível IN que merecia ser tratado como pessoa, pois estava doente. Com o desenrolar dos contactos, comecei a gostar de conversar com ele. Foi como que uma realidade nova para os meus dois meses de Guiné, alguém que se afirma cidadão do Senegal, que rejeita a guerra e não sabe porque foi preso, pois ia para a sua bolanha no Senegal trabalhar com o irmão. Mas alguém que demonstra conhecimentos de geografia e história.
Isto tudo me leva hoje a acreditar na sua versão de estudante em Dakar – Senegal, a passar férias na aldeia. Foi ocupar a masmorra que o irmão deixara livre depois de ser assassinado. Acompanhei-o até à prisão. Despedimo-nos com um caloroso aperto de mão, como sempre o fazíamos quando a pretexto de "dar mezinho ao prisioneiro" o ia visitar. Uma lágrima teimosa percorreu a minha face, o coração comprimui-se. Não tive a coragem de lhe dizer o que aconteceu ao irmão.
No dia seguinte a masmorra estava aberta. Julgo que o levaram para Bissau para ser interrogado pela Pide.
Perdoem-me, os camaradas tertulianos, este relembrar de situações dolorosas que poderão incomodar. São marcas que ficaram e não se podem esconder, para que a verdadeira história se faça (3).
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
(2) Ingoré: no norte, junto à fronteira com o Senegal, na estrada entre Sedengal e Bigene. Pertence à actual região do Cacheu.
(3) O Teixeira e eu decidimos não identificar o militar português aqui referido. Que fique claro: não era da CCAÇ 2381, era dos "velhinos". Chamámos-lhe apenas S..., que tanto pode ser Silva, como Santos, Sousa ou Silvestre.
Eis a mensagem que mandei ao autor:
"O cabo S... era da tua companhia ? É pseudónimo ? Estará ainda vivo ? Como vão reagir os teus camaradas da CCAÇ 2381 ? O que tu relatas é grave, mas o cabo tinha um furriel acima dele, o furriel um alferes, o alferes um capitão e pró aí fora... Acho bem que estas páginas negras da guerra vejam a luz do dia: julgo que muitos de nós nos comportámos com honra e dignidade, mas também tivemos camaradas que praticaram crimes de guerra e crimes contra a humanidade... O mesmo se terá passado no outro lado... Nem eles nem nós éramos meninos de coro... Louvo a tua coragem ao abordar este assunto delicado, mas não tens que pedir desculpa a ninguém: tu estavas lá. E como homem e como cristão, e até como português e como militar, não podias ficar indiferente...
"Temos,contudo, que ter algum cuidado com a identificação dos camaradas: o cabo S... era apenas uma peça da engrenagem, provavelmente um tipo a quem entregavam os trabalhos sujos... Se S... é pseudónimo temos que dizer isso... Se não é, temos que ver se ainda é fácil a sua identificação... Pode estar vivo, ter mulher e filhos... A solução é não identificar a companhia... Mas tu é que vês qual a melhor solução. O episódio deve ser factualmente relatado e comentado, como tu o fizeste, e bem".
Eis a resposta do José Teixeira:
"O 1º O Cabo S... era da companhia dos velhinhos que fomos substituir. Eu era periquito e não escrevi no Diário com medo de poder ser apanhado.
"Posso informar-te que não [fomos nós], um grupo da minha companhia que estava por perto, junto a mim, não lhe demos um tiro [ao 1º Cabo S...] porque foi logo protegido e afastado, mas houve quem chorasse de raiva.
"(...) Os colegas da CCAÇ 2381, se se lembrarem, concerteza que vão reflectir de novo sobre o assunto, que na altura nos dividiu. Uns diziam "era turra, teve o que merecia". Outros, como eu, interrrogavamo-nos e perguntavamos como se sabia se era turra ou não, dado que não falava português e [fora] capturado sem armas e longe da povoações nativas da Guiné, dentro do Senegal. Aliás, houve outra saída em que também entrámos no Senegal e depois tivemos de fugir a correr, porque o Alferes do meu grupo viu pessoas ao longe e mandou avançar para elas. O capitão mandou regressar ao grupo principal e ...(ouvi eu) disse:
- Você não sabe que estamos dentro do Senegal?! Vamos regressar já à base antes que haja sarilho.
"O Cabo S... acompanhava o soldado que levava comida ao prisioneiro. Iam desarmados, pois a janela estava alta e não era fácil sair.
Os dois apanharam com a penicada e o S... foi buscar a G-3 e disse mais ou menos isto:
- Não queres comer ? Vais comer de qualquer maneira!... - Apontou-lhe a arma à boca e disparou. Creio que o prisioneiro queria dizer qualquer coisa, mas ficou engasgado mortalmente com a bala.
"Pensas bem em não identificarmos a Companhia, que não sei qual era. Podes também [omitir o apelido do cabo], para evitar possíveis dissabores.
"Quanto às consequências possíveis, na altura para o Cabo, tudo foi abafado e fez-se constar que o abatido fora identificado como um perigoso turra.
"Claro que eu, simples cabito enfermeiro, não andava por dentro dos meandros do Comando, pelo que tudo o que possa dizer seria mera especulação. Apenas relato o que vi e senti.
"Há outros casos conhecidos e passados perto de mim, mas que não vivi, logo não posso nem devo falar deles".
terça-feira, 3 de janeiro de 2006
Guine 63/74 - P398: A nossa tertúlia e a RDP África (Luís Graça)
Mensagem enviada, por e-mail, em 11 de Novembro de 2005, à RDP África divulgando a nossa tertúlia. Não obteve resposta ou comentário (pelo menos, por por e-mail).
Amigos:
1. As minhas felicitações à magnífica equipa da RDP África, não só pela excelente música que passa, mas também pelas notícas, entrevistas e reportagens de qualidade, referentes aos países lusófonos. Mais concretamente, felicito-vos por dedicarem um programa à guerra colonial (que, contudo, não cheguei a ouvir).
Sou ouvinte, da 2ª circular, da RDP África. Infelizmente o programa não sempre se consegue ouvir on line, em boas condições no meu gabinete de trabalho, no alto da Av Padre Cruz, frente a Telheiras. E fora de Lisboa, não consigo sintonizá-lo quando em estou em viagem. Eu sugeria, à administração da RDP, que apostasse mais seriamente na lusofonia... A língua portuguesa é um trunfo estratégico que não sabemos que temos
2. Aproveito para vos dar conhecimento da existência de um tertúlia virtual sobre a guerra colonial que é já, modéstia à parte, uma referência incontornável para qualquer ex-combatente da guerra colonial na Guiné. Cerca de 40 pessoas [ hoje 60 ], que não se conhecem (a maior parte delas, tendo no entanto estado na Guiné), partilham através de e-mail e da Net, fotos, estórias, emoções, sentimentos e outras memórias. E nem todos foram combatentes. Alguns são naturais da Guiné. Mas todos acreditam , de uma maneira ou de outra, que - como alguém disse - salvaguardar a memória é a melhor maneira de a vida acabar por triunfar sobre a morte: em Bambadinca, em Guileje, em Barro, em Mansambo, no Xime, no Xitole, em Geba, em Bafatá, em Bissau, em Cansissé, em Banjara, em Cantacunda, e em tantos outros lugares que estão na nossa memória, e onde nos batemos, de armas na mão, mas onde ainda hoje se calhar não chegou a paz, a saúde, a educação.
A geração que fez a guerra colonial (como eu, na Guiné, entre 1969/71) ainda não liquidou as contas com o passado e vê, com apreensão, que os jovens lusófonos pouco ou nada sabem deste terrível e longo período, de 1961 a 1974, para não falarmos da outra tragédia que foi o período pós-colonial.
O blogue Luís Graça & Camaradas > Blogue-Fora-Nada e as páginas que dedicamos às memórias dos lugares em Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (1963/74) são apenas um modesto contributo para que os nossos jovens, de Lisboa a Bissau, não digam, quando inquiridos: "Guiné ?... Guerra colonial ? ... Não, nunca ouvi falar!"... E pretendem também ser uma pequena ponte para o futuro dos nossos dois países que a história e a língua uniram indelevelmente.
Mantenhas pa tudus
Luís Graça
Amigos:
1. As minhas felicitações à magnífica equipa da RDP África, não só pela excelente música que passa, mas também pelas notícas, entrevistas e reportagens de qualidade, referentes aos países lusófonos. Mais concretamente, felicito-vos por dedicarem um programa à guerra colonial (que, contudo, não cheguei a ouvir).
Sou ouvinte, da 2ª circular, da RDP África. Infelizmente o programa não sempre se consegue ouvir on line, em boas condições no meu gabinete de trabalho, no alto da Av Padre Cruz, frente a Telheiras. E fora de Lisboa, não consigo sintonizá-lo quando em estou em viagem. Eu sugeria, à administração da RDP, que apostasse mais seriamente na lusofonia... A língua portuguesa é um trunfo estratégico que não sabemos que temos
2. Aproveito para vos dar conhecimento da existência de um tertúlia virtual sobre a guerra colonial que é já, modéstia à parte, uma referência incontornável para qualquer ex-combatente da guerra colonial na Guiné. Cerca de 40 pessoas [ hoje 60 ], que não se conhecem (a maior parte delas, tendo no entanto estado na Guiné), partilham através de e-mail e da Net, fotos, estórias, emoções, sentimentos e outras memórias. E nem todos foram combatentes. Alguns são naturais da Guiné. Mas todos acreditam , de uma maneira ou de outra, que - como alguém disse - salvaguardar a memória é a melhor maneira de a vida acabar por triunfar sobre a morte: em Bambadinca, em Guileje, em Barro, em Mansambo, no Xime, no Xitole, em Geba, em Bafatá, em Bissau, em Cansissé, em Banjara, em Cantacunda, e em tantos outros lugares que estão na nossa memória, e onde nos batemos, de armas na mão, mas onde ainda hoje se calhar não chegou a paz, a saúde, a educação.
A geração que fez a guerra colonial (como eu, na Guiné, entre 1969/71) ainda não liquidou as contas com o passado e vê, com apreensão, que os jovens lusófonos pouco ou nada sabem deste terrível e longo período, de 1961 a 1974, para não falarmos da outra tragédia que foi o período pós-colonial.
O blogue Luís Graça & Camaradas > Blogue-Fora-Nada e as páginas que dedicamos às memórias dos lugares em Luís Graça & Camaradas > Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (1963/74) são apenas um modesto contributo para que os nossos jovens, de Lisboa a Bissau, não digam, quando inquiridos: "Guiné ?... Guerra colonial ? ... Não, nunca ouvi falar!"... E pretendem também ser uma pequena ponte para o futuro dos nossos dois países que a história e a língua uniram indelevelmente.
Mantenhas pa tudus
Luís Graça
Guiné 63/74 - P397: Herr Spínola na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Estrada Xime - Bambadinca > 1997 : Ponte (velha) do Rio Udunduma.
Em 1969/71, a segurança desta ponte era vital para as NT. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No célebre e pavoroso ataque a Bambadinca, em 31 de Maio de 1969, o IN tentara dinamitá-la.
Desde Junho de 1969 a ponte era defendida por duas secções da CART 2520 (Xime). A partir de 16 de Dezembro de 1969 a segurança permanente passou a ser feita pelos Gr Comb da CCAÇ 12 e pelos Pel Caç Nat 63 e 52 (Bambadinca). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá). Todos os direitos reservados.
1. Excertos do Diário de um Tuga (L.G.)
Ponte do Rio Udunduma, 3 de Fevereiro de 1971
De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande, o Caco Baldé). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi.
Mas o que é que faz correr este velho soldado, como ele próprio gosta de se chamar ? É difícil adivinhar-lhe a sua paixão secreta, o seu móbil, sob a sua impassibilidade de samurai (ou de figura de cera?): a mitomania, o culto da personalidade ou, hélàs!, a presidência da república ?
Há qualquer coisa de sinistro na sua voz de ventríloquo, no seu olhar vidrado ou no seu sorriso sardónico: talvez seja a superioridade olímpica do guerreiro.
Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba…
A visita-surpresa do Deus-Todo-Poderoso foi o meu único monumento de glória em toda esta guerra… Ao fim de vinte meses!... Só quero regressar, são e salvo, a casa, daqui a um mês e, se possível, levar comigo a barba que deixei crescer… na Guiné, longe do Vietname.
Guiné 63/74 - P396: Antologia (35): A missão do velho Ali (Luís Graça)
Guine-Bissau > As velhas canoas começam a dar lugar a embarcações motorizadas...
© Jorge Neto (2005) (com a devida vénia)
__________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
© Jorge Neto (2005) (com a devida vénia)
A Pesca
De manhã muito cedinho Ali vai na canoa para a pesca.
Ali é um velho que nunca está cansado.
Ele pesca nos pequenos rios
que levam as suas águas ao Rio Cacine.
Ele sai à procura de mafé
para os seus valentes filhos – os guerrilheiros.
Nada pode levar o velho Ali a não cumprir a sua missão.
Ele não tem medo do rio com os seus jacarés.
Nem dos colonialistas com os seus canhões e bombardeiros.
O velho Ali sabe que tem uma missão a cumprir.
E que vai cumprir a sua missão com orgulho.
Texto extraído de O Nosso Primeiro Livro de Leitura, edição do PAIGC (Apanhado num acampamento do Poidon/Ponta Varela, região do Xime, Op Pato Rufia, 7 de Setembro de 1969)(1).
Transcrito em Diário de um Tuga, Setembro de 1969, s/d. L.G.
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
segunda-feira, 2 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P395: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968
Guiné > Empada > 1969 > Desdobrável de propaganda, distribuído pelas NT, com apelo do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné Portuguesa para o IN e para a população sob o seu controlo se apresentarem às autoridades portuguesas.
© José Teixeira (2005)
Transcrição:
Legenda da imagem de cima:
"Faz como eles. Eles eram população que terrorista guardava no mato e que fugiu. Foge também e apresenta-te à autoridade civil ou à tropa que dá ajuda, comida, mezinho, paz e liberdade".
Legenda da imagem de baixo:
"Faz como eles. Eles são terroristas arrependidos. Apresenta-te também à tropa. Também terás paz, comida, mezinho e liberdade. Se levar arma, tropa dá prémio. Bandeira portuguesa é bandeira de nós todos! Autoridade Portuguesa ajuda toda a gente! Tropa dá protecção. Apresenta-te com esta guia"
__________________________________________________________________________________
Continuação da publicação do diário que o José Teixeira, 1º cabo enfermeiro da CCAÇ 2381, foi escrevendo durante a sua comissão na Guiné (1968/70). É um notável documento humano onde também vêm ao de cima as dúvidas e a angústia do cristão. Nesse Agosto de 1968, em Aldeia Formosa (hoje, Quebo), o 1º Cabo Enfermeiro Teixeira escreve, dilacerado pelo absurdo daquela guerra: "Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo".
O meu diário (cont.)
Aldeia Formosa, 1 de Agosto 1968
É dia de correio, mas pelos vistos o avião já não vem. Ontem aterraram dois Dakotas com páras e espera-se outro hoje. Mau sinal. Ou me engano muito ou em breve vamos ter "manga de chocolate".
No dia de S. João, enquanto me divertia em Ingoré nas marchas improvisadas do S. João, o pessoal da Companhia 2382 viu arder tudo o que trouxeram da Metrópole, aqui ao lado em Contabane, num ataque inimigo. Felizmente só tiveram 4 feridos. Que rico S. João !
Aldeia Formosa, 2 de Agosto 1968
A guerra é triste... Na estrada da Xamarra ia-se dando mais um drama. Vinte e sete abrigos de três homens e dois fornilhos a serem montados, eram a espera para a Secção que vem todos os dias a Aldeia buscar víveres. Quatro milícias passaram perto e avistando o IN abriram fogo. Três acabaram as munições e fugiram, o quarto, sozinho pôs o IN em fuga. Não fora os milícias e nesse dia a Secção podia ser apanhada à mão.
Pouco tempo antes o IN tinha tentado a sorte no mesmo local. Dizem que um nativo de 12 anos ao ver um branco com farda diferente da do nosso exército lhe apontou a Mauser e matou-o. Era um cubano que junto com outros tinha uma emboscada montada. O miúdo tentou avisar Xamarra e conseguiu-o, mesmo depois de ter apanhado um tiro de raspão no nariz.
Crianças na guerra, será possível ? Que futuro para esta gente que cresce no ódio, na guerra ?.
Aldeia Formosa, 4 de Agosto 1968
Ontem foi comemorado pelo IN o V Aniversário da implantação da luta pela independência da Guiné. No sector de Buba a festa começou cerca das 22 horas com um ataque a Mampatá com quatro canhões sem recuo e terminou às 3.30 horas em Aldeia Formosa (1).
Às 22 horas iniciaram em Mampatá. Às 22.30 acordaram Aldeia Formosa com algumas morteiradas e continuaram em Gandembel, Guilege e Buba. Às 24 h recomeçaram em Aldeia Formosa com pequenos intervalos até as 3.30 h.,não fazendo feridos.
Hoje o Senhor concedeu-me a graça de ouvir a missa pela telefonia. Sinto-me outro, mais [?]... Hoje é dia de correio. Para completar esta boa disposição é preciso que venhas também até mim com a tua confiança.
Ouvi o Spínola dar as boas vindas à tropa vinda da Metrópole. Segundo ele, o tempo de Comissão é de 21 meses.
Buba, 8 de Agosto de 1968
A Guerra e . . . a minha "paz"
Avisto a Selva,
Do outro lado, o mar...
Corpos negros,
Corpos brancos.
Almas assassinas
Que destroem, matam.
Não sabem amar.
Quando entro na guerra,
Esqueço quem sou.
Deram-me uma arma
Tenho que lutar...
Que coisa terrível !
Marca espíritos,
Destrói sentimentos,
Origina ódios.
Mais que tudo isto,
Ensina a matar !...
Mas se eu matar
E a "pátria" o afirma,
Em defesa dos "inocentes"
Buscando a "paz",
Porquê este remorso
Se quero somente amar !?
Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968
Cheguei à uma da madrugada de Buba. Tinha partido para baixo em coluna no dia 6. Desta vez o IN não apareceu. Fomos e voltámos pela estrada de Nhala.
Estava com medo desta coluna, depois do que aconteceu na última, mas o Senhor protegeu-me, a mim e aos meus colegas de aventura.
Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem.
Os homens não ouvem a voz de Deus, abafam a tua voz com o matraquear das armas. Matar pessoas, porquê ? ... E aquele corte de orelhas, vitorioso !?... Como se fosse um animal ! E se fosse, quem deu ao homem tal direito ?!...
Que faço eu nesta guerra ?... Curo uns e procuro matar outros para salvar a pele? Que culpa tenho eu que os homens não se amem ?!... Me queiram matar sem eu lhes fazer mal nenhum ?!...
Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo.
____
Nota de L.G.
(1) Em Aldeia Formosa vivia 0 Cherno Rachid, a autoridade máxima do Islão na Guiné. Eis po esc´revoi do Diário de um Tuga, Bbamdainca, 10 de Janeiro de 1970:
"De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sedeado urn batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo".
Vd. post de 15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás,Quebo)
Guiné 63/74 - P394: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (3): Aldeia Formosa, Julho de 1968
Guiné > Buba> 1968> Domingo de Páscoa > 1º Cabo Enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
© José Teixeira (2005)
O meu diário (continuação)
Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968
Ontem Aldeia Formosa voltou a ser atacada. Três vezes numa semana é muito.
Hoje fui fazer uma coluna a Gandembel. Tudo correu bem. O IN não atacou nem colocou minas na picada. Só tivemos uma tempestade de chuva. Começamos por ouvir um ruido assustador que se aproximava de nós. De repente surge uma forte ventania que nos arrastava, seguida de uma tromba de água que transformou a picada num rio. Um quarto de hora depois tudo desapareceu e voltou o sol quente que rapidamente nos secou.
Pouca antes de chegar a Gandembel vimos o IN atacar um Fiat das FAP que se incendiou, tendo o piloto saltado de pára-quedas.
Passei no sítio onde há pouco tempo se deu uma terrível emboscada que roubou seis vidas. Quinze fornilhos colocados em série num local onde a tropa ao sentir as primeiras balas da emboscada se esconde. Doze rebentaram no momento em que se iniciou a emboscada e ceifaram seis vidas. Foi uma sorte não ter lá ficado toda a Companhia.
Quando chegamos a Gandembel (1) fomos saudados pelo IN com um pequeno ataque ao aquartelamento, sem consequências. Os Camaradas que estão aqui estacionados dizem que comem disto todos os dias e mais que uma vez. Como é terrível...
Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné/Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à "estrada da morte" impedindo o IN de fazer os abastecimentos.
-Será verdade que vamos ficar nesta zona por muito tempo ?
Odeio... Odeio os homens que se guerreiam e matam. No entanto eu também sou um deles...
O Inimigo também tem namorada, mulher, filhos... também se agarra aos seus santos protectores...
Pergunto-me se quantas vezes ao sair para o mato as portas das Tabancas se abrem e surgem caras, um sorriso, um braço no ar ... um desejo de "bom biaje", se não serão essas mesmas caras com o ódio estampado que nos esperam no meio da bolanha, prontos a matar quem não quer fazer guerra, mas foi obrigado pelo sentido de Pátria em que foi educado ?
Toda a cara preta me parece um IN. Odeio o IN porque é traiçoeiro,porque mata.
Aldeia Formosa, 30 de Julho 1968
Ontem o IN voltou a atacar Aldeia Formosa. Meia dúzia de granadas de morteiro, que caíram bem longe. Que quererá o IN com estes pequenos ataques ?
As Mãos de minha mãe
As mãos de minha mãe!
Mãos belas e puras,
Mãos de santa.
Mãos que sofreram, trabalharam,
Mãos que se sacrificaram,
... Para que não me faltasse o pão.
Mãos calejadas, doridas,
Sangrentas, mesmo.
As mãos de minha mãe !...
Era pequenino,
Talvez ainda não compreendesse
As mil carícias que me faziam,
Todo o amor que me dedicavam
Mas já sentia o calor dessas mãos.
Já sentia o seu amor,
O seu carinho.
Parece que sentia mesmo,
O enorme esforço dessas mãos.
Os sacrifícios de minha mãe.
O trabalho a que se votava,
A fome que passava
Para que nada faltasse
À criança
Que no berço dormia feliz,
Embalada com tanto amor.
... Como são belas
As mãos de minha mãe !...
_____________
(1) Vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel
Guiné 63/74 - P393: Tabanca Grande: Patrício Ribeiro, empresário, mais um amigo em Bissau
Guiné- Bissau > Bissau > Novembro de 2000 > O actual hospital civil [Hospital Nacional Simão Mendes]
© Albano Costa (2005)
1. Há dias o A. Marques Lopes recebeu uma mensagem alertando para o facto de uma foto de sua autoria, na nossa página sobre Bissau, estar mal identificada: aparece como sendo referente ao Hospital de Bissau, qaundo se trata "provavelmente, dum lapso já que a foto apresentada é a do antigo Grande Hotel, situado na Av. Mousinho de Albuquerque e cujo gerente foi, durante largos anos, o sr. Luís Marques. Caso se pretendam quaisquer esclarecimento complementares, poderei ser contactado pelo telefone 21 922 9058 pelo telemóvel 96 269 6155)". António Estácio
O fotógrafo reconhece o erro: "É possível que tenha sido um lapso meu. Foi uma passagem muito rápida por Bissau [em 1998], que eu até não conheço bem. No meio de outras fotografias deu-me para pensar que seria o hospital. As minhas desculpas e obrigado. A. Marques Lopes". Por nossa parte, também já procedemos à correcção da legenda.
O Albano Costa, por sua vez, que esteve na Guiné na Guiné-Bissau, com um grupo de camaradas em Novembro de 2000, envia-nos gentilmente uma foto do hospital em causa (que agora se chama Hospital Nacional Simão Mendes), além do tristemente famoso, no nosso tempo, Hospital Militar de Bissau, hoje em ruínas...
Guiné- Bissau > Bissau > Novembro de 2000 > O antigo Hospital Militar de Bissau
© Albano Costa (2005)
2. Mensagem de Patrício Ribeiro:
Caros Ex-Combatentes
Tenho estado a ler neste final de ano, um pouco de tudo que vem na vossa tertúlia, gosto!...
Sou um apaixonado por tudo o que seja relacionado com a Guiné. Há mais de 20 anos que percorro todos os caminhos e canoas da Guiné, desde Sucujaque até Campeane, das Ilhas do Poilão e Unhucomo até Buruntuma, em trabalhos profissionais.
Como já visitei milhares de tabancas, encontro muitos antigos quartéis e desde há muito que me interrogo: como seria isto em outros tempos ? Agora encontro as respostas, formidável!
É verdade que não fui militar na Guiné, mas fui em Angola de 69 a 72 e desconhecia como tinha sido por cá a vida. Embora falando com muitos amigos e antigos combatentes portugueses, naturais da Guiné, e com outros tantos do PAIGC e percorrendo o mato, verifiquei que a vida não era fácil.
Agradeço o lançamento na Net das cartas militares, que estão actualizadas, já que são as últimas a serem feitas, que me facilitam a vida no meu trabalho. As existentes para venda em Bissau, com a guerra de 1998, arderam.
Poderei indicar alojamento em hotéis ou pequenas pensões, por toda a Guiné, às pessoas que queiram visitar a Guiné.
Estou em Águeda na 1ª semana de Janeiro; viajo para Bissau na 2ª semana e vou para ao Norte, Varela; 3ª em Bolama e Bubaque; 4ª em Bissau e Farim. Fevereiro: Xitol, Rio Buba, Cacine, Catio.
Em Bissau, não tenho a mesma facilidade de contacto com a Net, nem em muitos locais há o telefone. Os telemóveis estão agora a ser lançados. A única forma de estar contactável é ser rádio amador. Mas através do Jorge Neto ou do Patrício Ribeiro.
Comentário de L.G.
Fico sem saber, concretamente, qual é a actividade profissional que o Patrício desenvolve na Guiné, mas presumo que trabalhe na área da cooperação, saúde ou educação. Ou que seja empresário, como é mais provável. Eu e o resto da nossa tertúlia ficamos muito gratos pela amabilidade das suas palavras e pela disponibilidade para futuros contactos e "appoio em Bissau".
Ficamos satisfeitos por saber que o nosso trabalho (a começar pelas cartas militares que estão disponíveis on line) também é apreciado por (e é útil a) aqueles que trabalham e vivem hoje na República da Guiné-Bissau. Creio que ganhámos mais um amigo, a somar àqueles que jká temos em Bissau.
Desejamos-lhe, ao Patrício, bom regresso à Guiné-Bissau, boa saúde e bom trabalho. E, já agora, pedimos-lhe que divulgue também a nossa tertúlia, o nosso blogue e as nossas páginas sobre a Guiné-Bissau de ontem e de hoje...
© Albano Costa (2005)
1. Há dias o A. Marques Lopes recebeu uma mensagem alertando para o facto de uma foto de sua autoria, na nossa página sobre Bissau, estar mal identificada: aparece como sendo referente ao Hospital de Bissau, qaundo se trata "provavelmente, dum lapso já que a foto apresentada é a do antigo Grande Hotel, situado na Av. Mousinho de Albuquerque e cujo gerente foi, durante largos anos, o sr. Luís Marques. Caso se pretendam quaisquer esclarecimento complementares, poderei ser contactado pelo telefone 21 922 9058 pelo telemóvel 96 269 6155)". António Estácio
O fotógrafo reconhece o erro: "É possível que tenha sido um lapso meu. Foi uma passagem muito rápida por Bissau [em 1998], que eu até não conheço bem. No meio de outras fotografias deu-me para pensar que seria o hospital. As minhas desculpas e obrigado. A. Marques Lopes". Por nossa parte, também já procedemos à correcção da legenda.
O Albano Costa, por sua vez, que esteve na Guiné na Guiné-Bissau, com um grupo de camaradas em Novembro de 2000, envia-nos gentilmente uma foto do hospital em causa (que agora se chama Hospital Nacional Simão Mendes), além do tristemente famoso, no nosso tempo, Hospital Militar de Bissau, hoje em ruínas...
Guiné- Bissau > Bissau > Novembro de 2000 > O antigo Hospital Militar de Bissau
© Albano Costa (2005)
2. Mensagem de Patrício Ribeiro:
Caros Ex-Combatentes
Tenho estado a ler neste final de ano, um pouco de tudo que vem na vossa tertúlia, gosto!...
Sou um apaixonado por tudo o que seja relacionado com a Guiné. Há mais de 20 anos que percorro todos os caminhos e canoas da Guiné, desde Sucujaque até Campeane, das Ilhas do Poilão e Unhucomo até Buruntuma, em trabalhos profissionais.
Como já visitei milhares de tabancas, encontro muitos antigos quartéis e desde há muito que me interrogo: como seria isto em outros tempos ? Agora encontro as respostas, formidável!
É verdade que não fui militar na Guiné, mas fui em Angola de 69 a 72 e desconhecia como tinha sido por cá a vida. Embora falando com muitos amigos e antigos combatentes portugueses, naturais da Guiné, e com outros tantos do PAIGC e percorrendo o mato, verifiquei que a vida não era fácil.
Agradeço o lançamento na Net das cartas militares, que estão actualizadas, já que são as últimas a serem feitas, que me facilitam a vida no meu trabalho. As existentes para venda em Bissau, com a guerra de 1998, arderam.
Poderei indicar alojamento em hotéis ou pequenas pensões, por toda a Guiné, às pessoas que queiram visitar a Guiné.
Estou em Águeda na 1ª semana de Janeiro; viajo para Bissau na 2ª semana e vou para ao Norte, Varela; 3ª em Bolama e Bubaque; 4ª em Bissau e Farim. Fevereiro: Xitol, Rio Buba, Cacine, Catio.
Em Bissau, não tenho a mesma facilidade de contacto com a Net, nem em muitos locais há o telefone. Os telemóveis estão agora a ser lançados. A única forma de estar contactável é ser rádio amador. Mas através do Jorge Neto ou do Patrício Ribeiro.
Comentário de L.G.
Fico sem saber, concretamente, qual é a actividade profissional que o Patrício desenvolve na Guiné, mas presumo que trabalhe na área da cooperação, saúde ou educação. Ou que seja empresário, como é mais provável. Eu e o resto da nossa tertúlia ficamos muito gratos pela amabilidade das suas palavras e pela disponibilidade para futuros contactos e "appoio em Bissau".
Ficamos satisfeitos por saber que o nosso trabalho (a começar pelas cartas militares que estão disponíveis on line) também é apreciado por (e é útil a) aqueles que trabalham e vivem hoje na República da Guiné-Bissau. Creio que ganhámos mais um amigo, a somar àqueles que jká temos em Bissau.
Desejamos-lhe, ao Patrício, bom regresso à Guiné-Bissau, boa saúde e bom trabalho. E, já agora, pedimos-lhe que divulgue também a nossa tertúlia, o nosso blogue e as nossas páginas sobre a Guiné-Bissau de ontem e de hoje...
domingo, 1 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P392: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968
Guiné > Empada > 1969> 1º Cabo Enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
© José Teixeira (2005)
Texto de José Texeira (ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
O meu diário (continuação)
Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968
Comecei a Guerra. Saí de Buba dia vinte e quatro, às seis da manhã, e cheguei a Aldeia Formosa dia vinte e cinco, às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades.
A estrada (picada) está num estado lastimoso: buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros foram percorridos em oito horas e meia.
O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo sentado na berma, entre os arbustos, a conselho de um africano que estava a meu lado e não sofri uma picada. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada, um tanto hilariante. Se o IN tivesse atacado nesse momento era um desastre total, tal foi a desorganização gerada.
Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo... Inimigo cobarde !... Frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.
Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas mãos, que os homens não se amem ? Que culpa tenho eu ?
A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...
Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer.
Esperávamos que o IN atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu, entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçámos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.
Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate mal chegou para o primeiro dia. À frente havia IN, "manga dele", havia buracos, pontes interrompidas. Havia minas, só não havia comida.
Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bigrupos esperavam-nos. Felizmente a Milícia que protegia os flancos, descobriu-os e, sem compaixão, todas as máquinas de guerra funcionaram. O meio e a rectaguarda da coluna embrenhados no mato aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da rectaguarda ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.
A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento (três obuses 14, entre outro material). A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de héli. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.
Agora que sinto o barulho do matraquerar das armas, que sinto o silibar das balas assassinas sobre a minha cabeça, começo a sentir um tremendo ódio a tudo o que seja guerra. Sim. Odeio os homens que, em vez de se amarem, se guerreiam. Que culpa tenho eu que os homens não vivam o amor ?
Quando abriu a emboscada escondi-me debaixo de uma viatura e senti bem perto as balas a assobiarem, pois um IN estava em cima de uma palmeira à minha frente, a fazer fogo. Ainda tentei usar a arma que tinha comigo, mas esta encravou à primeira tentativa e ainda bem. Fui apenas um espectador
Que eu jamais faça guerra... Que eu ame sempre.
Hoje, 26, recebi uma carta, a que tanto precisava para acordar o meu espírito.
Aldeia Formosa, o meu novo poiso, também foi atacada ao anoitecer . O IN teve fraca pontaria e não meteu uma dentro do quartel. A mesma sorte não foi para Gandembel há cerca de quinze dias: quando atacaram aquele destacamento com 11 canhões s/recuo, mataram um alferes e feriram vários militares.
© José Teixeira (2005)
Texto de José Texeira (ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
O meu diário (continuação)
Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968
Comecei a Guerra. Saí de Buba dia vinte e quatro, às seis da manhã, e cheguei a Aldeia Formosa dia vinte e cinco, às vinte e uma, depois de durante dois dias batalhar com o IN, com o tempo e ultrapassar outras dificuldades.
A estrada (picada) está num estado lastimoso: buracos de minas, pontes destruídas e outros obstáculos que a muito custo se venceram. Os primeiros sete quilómetros foram percorridos em oito horas e meia.
O primeiro ataque foi de abelhas. Eram tantas que mais pareciam uma pequena nuvem e era ver quem mais corria a fugir da sua picada. Eu fiquei quedo como um penedo sentado na berma, entre os arbustos, a conselho de um africano que estava a meu lado e não sofri uma picada. Assustado e perturbado pelo zumbido à minha volta e pela côr que o meu corpo foi tomando na medida em que se fixavam à minha roupa, na cara e na cabeça. Neste estado pude apreciar a confusão de uma fuga precipitada, um tanto hilariante. Se o IN tivesse atacado nesse momento era um desastre total, tal foi a desorganização gerada.
Depois... veio aquela mina roubar mais uma vida e pôr duas em perigo... Inimigo cobarde !... Frente a frente não consegue atingir os seus objectivos e ataca à traição, num pequeno descuido dos picadores.
Que culpa terá aquele jovem que me morreu nas mãos, que os homens não se amem ? Que culpa tenho eu ?
A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra...
Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer.
Esperávamos que o IN atacasse de noite pois tinha sido detectado pela aviação durante o dia. Felizmente durante a noite não houve surpresas e eu, entregue totalmente ao ferido que sobrou para mim, o condutor da viatura sinistrada, um pouco mais conformado recomecei, melhor recomeçámos a marcha com toda a cautela, pois no dia anterior, além da mina que rebentou, foram localizadas mais três.
Para alimentação deste dia não tínhamos nada. A ração de combate mal chegou para o primeiro dia. À frente havia IN, "manga dele", havia buracos, pontes interrompidas. Havia minas, só não havia comida.
Ainda não tínhamos percorrido três quilómetros, quando caímos na primeira emboscada. Dois bigrupos esperavam-nos. Felizmente a Milícia que protegia os flancos, descobriu-os e, sem compaixão, todas as máquinas de guerra funcionaram. O meio e a rectaguarda da coluna embrenhados no mato aguardavam prontos a intervir o que não foi necessário. Quinhentos metros à frente é a vez da rectaguarda ser flagelada e obrigar o soldado português a mostrar as suas capacidades de luta. Deste segundo encontro há registar dois feridos.
A coluna recompôs-se e continuou a sua marcha de 30 viaturas carregadas de mantimentos e armamento (três obuses 14, entre outro material). A meio da manhã chegaram os Fiat. Com a aviação sentimo-nos mais seguros e confiantes. Os feridos foram evacuados de héli. Uma coluna que normalmente se faz em oito horas, demorou dois dias.
Agora que sinto o barulho do matraquerar das armas, que sinto o silibar das balas assassinas sobre a minha cabeça, começo a sentir um tremendo ódio a tudo o que seja guerra. Sim. Odeio os homens que, em vez de se amarem, se guerreiam. Que culpa tenho eu que os homens não vivam o amor ?
Quando abriu a emboscada escondi-me debaixo de uma viatura e senti bem perto as balas a assobiarem, pois um IN estava em cima de uma palmeira à minha frente, a fazer fogo. Ainda tentei usar a arma que tinha comigo, mas esta encravou à primeira tentativa e ainda bem. Fui apenas um espectador
Que eu jamais faça guerra... Que eu ame sempre.
Hoje, 26, recebi uma carta, a que tanto precisava para acordar o meu espírito.
Aldeia Formosa, o meu novo poiso, também foi atacada ao anoitecer . O IN teve fraca pontaria e não meteu uma dentro do quartel. A mesma sorte não foi para Gandembel há cerca de quinze dias: quando atacaram aquele destacamento com 11 canhões s/recuo, mataram um alferes e feriram vários militares.
Guiné 63/74 - P391: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968
Guiné > Ingoré > 1968 > O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381 (1968/70), posando em cima de uma autrometralhadora Daimler.
© José Teixeira (2005)
Damos hoje início à publicação do diário que o José Teixeira foi escrevendo durante a sua comissão na Guiné. Além de ser um notável documento humano - escrito por um homem dos serviços de saúde militares, um enfermeiro de campanha, que estava sujeito aos mesmos riscos que qualquer operacional -, tem um grande interesse documental para melhor se conhecer o quotidiano dos militares portugueses no sul da Guiné:
"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional. Seguimos depois para Buba e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968].
"Aí a CCAÇ 23881 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.
"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico/emocional fomos enviados, a partir de 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão".
Guiné - O presente no passado > O MEU DÁRIO
PRÓLOGO
Buba, 20 de Julho de 1968
Após dois meses e vinte dias de vivência em estado de guerra na Guiné, inicio o meu DIÁRIO que não é "diário". Nele apontarei somente os casos ou situações mais importantes do meu dia a dia para a história da minha vida .
NOITE
Buba, 20 de Julho de 1968
Noite escura...
A chuva cai fortemente,
Atiçada pelo vento impiedoso.
O Capim dobra-se
Em homenagem àquele grupo de valentes
Que, esgotados pela longa espera,
Sedentos e esfomeados,
Aguardam impacientes
A ordem de retirar.
Os donos da Selva surgem,
Traiçoeiros, em massa.
Por largos momentos, o matraquear das automáticas,
O rebentar das granadas.
Os gritos de algum ferido .
Tudo fazem esquecer.
Trava-se uma luta de vida ou de morte.
Até que as armas se calam.
O Inimigo foge,
Protegido pela escuridão.
... E vinte jovens,
Valentes, decididos,
Dedo firme no gatilho,
Ouvido atento,
Lá se vão a caminho do Quartel,
Com mais uma missão cumprida.
Buba, 21 de Julho de 1968
Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado.
22 de Julho de 1968
Começou a guerra a sério para mim. Ainda esgotado pelo esforço de ontem, saí às seis da manhã para esperar a coluna vinda de Aldeia Formosa (Quebo). Às oito embosquei junto à "ponte interrompida" e por volta das doze recebi ordem para avançar. A coluna aproximava-se. Ouvi dois rebentamentos e fiquei preocupado... Será que a coluna foi atacada ?...
Cerca das dezassete deu-se o encontro de forças e soube então que detectaram cinco minas anti-carro, duas das quais rebentaram.
Todos alegres, voltamos a Buba com o simples café, a camisa molhada de chuva e suor à mistura.
Ainda mal tinhamos chegado quando o IN apareceu a baptizar a Companhia, atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". Tentou durante alguns minutos arrasar Buba, o que não conseguiu por fraca pontaria ou porque não quis.
Deitado na vala e a aguentar uma tempestade de chuva, completamente nu ( fui apanhado a tomar banho) assim esperei que acabasse a "festa", para ir jantar.
Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos deles nus) encharcados, mas alegres, saíam das valas... Mais uma vez escaparam...
Encontrei três colegas da recruta. À noite, vieram-me procurar. Encharcados pela chuva, cansados da coluna, com receio de novo ataque, queriam dormir e não tinham onde...
Também eles estão nesta Guerra. Nove meses já se passaram, a meta final aproxima-se, mas quantos sacrifícios lhes vão ser exigidos ainda ?
_________
(1) Vd post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
© José Teixeira (2005)
Damos hoje início à publicação do diário que o José Teixeira foi escrevendo durante a sua comissão na Guiné. Além de ser um notável documento humano - escrito por um homem dos serviços de saúde militares, um enfermeiro de campanha, que estava sujeito aos mesmos riscos que qualquer operacional -, tem um grande interesse documental para melhor se conhecer o quotidiano dos militares portugueses no sul da Guiné:
"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional. Seguimos depois para Buba e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968].
"Aí a CCAÇ 23881 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.
"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico/emocional fomos enviados, a partir de 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão".
Guiné - O presente no passado > O MEU DÁRIO
PRÓLOGO
Buba, 20 de Julho de 1968
Após dois meses e vinte dias de vivência em estado de guerra na Guiné, inicio o meu DIÁRIO que não é "diário". Nele apontarei somente os casos ou situações mais importantes do meu dia a dia para a história da minha vida .
NOITE
Buba, 20 de Julho de 1968
Noite escura...
A chuva cai fortemente,
Atiçada pelo vento impiedoso.
O Capim dobra-se
Em homenagem àquele grupo de valentes
Que, esgotados pela longa espera,
Sedentos e esfomeados,
Aguardam impacientes
A ordem de retirar.
Os donos da Selva surgem,
Traiçoeiros, em massa.
Por largos momentos, o matraquear das automáticas,
O rebentar das granadas.
Os gritos de algum ferido .
Tudo fazem esquecer.
Trava-se uma luta de vida ou de morte.
Até que as armas se calam.
O Inimigo foge,
Protegido pela escuridão.
... E vinte jovens,
Valentes, decididos,
Dedo firme no gatilho,
Ouvido atento,
Lá se vão a caminho do Quartel,
Com mais uma missão cumprida.
Buba, 21 de Julho de 1968
Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado.
22 de Julho de 1968
Começou a guerra a sério para mim. Ainda esgotado pelo esforço de ontem, saí às seis da manhã para esperar a coluna vinda de Aldeia Formosa (Quebo). Às oito embosquei junto à "ponte interrompida" e por volta das doze recebi ordem para avançar. A coluna aproximava-se. Ouvi dois rebentamentos e fiquei preocupado... Será que a coluna foi atacada ?...
Cerca das dezassete deu-se o encontro de forças e soube então que detectaram cinco minas anti-carro, duas das quais rebentaram.
Todos alegres, voltamos a Buba com o simples café, a camisa molhada de chuva e suor à mistura.
Ainda mal tinhamos chegado quando o IN apareceu a baptizar a Companhia, atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". Tentou durante alguns minutos arrasar Buba, o que não conseguiu por fraca pontaria ou porque não quis.
Deitado na vala e a aguentar uma tempestade de chuva, completamente nu ( fui apanhado a tomar banho) assim esperei que acabasse a "festa", para ir jantar.
Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos deles nus) encharcados, mas alegres, saíam das valas... Mais uma vez escaparam...
Encontrei três colegas da recruta. À noite, vieram-me procurar. Encharcados pela chuva, cansados da coluna, com receio de novo ataque, queriam dormir e não tinham onde...
Também eles estão nesta Guerra. Nove meses já se passaram, a meta final aproxima-se, mas quantos sacrifícios lhes vão ser exigidos ainda ?
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(1) Vd post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
Giné 63/74 - P390: Cancioneiro de Mansoa (5): Para além do paludismo (Magalhães Ribeiro)
Dos cadernos (1) do Magalhães Ribeiro, ex-furriel milicano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612 , que teve o seu momento de glória em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974 (2).
Para além do paludismo
Escrever sobre a guerra d’África,
Fiel aos factos e à verdade,
É além de uma questão de honra,
Um dever, justiça e lealdade.
Assim, sobre diversos aspectos
Já se falou, debateu e escreveu
Sobre políticas e estratégias,
Mas algo um pouco se esqueceu.
Por isso dedico estas linhas
Aos seis sentidos d’um combatente,
Aos actos vivos que o atormentam
N’um passado sempre presente.
Àquele que penou na picada,
Que ficou marcado p’ra toda vida...
Como traduzi-lo em palavras
Sem lhe abrir de novo a ferida ?!
Que conste na nossa História ,
Sem salamaleques, com coragem,
Que ali, na guerrilha, no mato
Cada dia... é uma contagem.
Nas folhas dum calendário
Risca-se mais um dia que passou,
Mede-se assim o pesadelo
E, ali, o fim... mais se aproximou.
Lá se foi uma porção da vida
Nos longos dias até ali riscados,
Esfumou-se de vez a juventude
Em factos na memória cicratizados.
Porque a guerra é muito mais...
É a lenta progressão na lama,
É o mistério da mata densa,
É o pressentimento do drama.
É sobreviver no lodo do rio,
É o calor... a chuva... o vento,
É o suor e o pó no rosto,
É o odor do corpo... nojento.
É o peso das armas e munições,
É a mochila, o cantil e o bornal,
É o comer, o dormir nos covões,
É as rações de combate... sabem mal .
É o chilrear da bicharada,
É sentir os mosquitos a picar,
É o cintilar das cobras e dos lagartos,
É as sanguessugas no corpo a sugar.
É o pousar das botas no solo,
É o terror de tropeçar na mina,
É o abandono do ser racional,
É o poder da adrenalina.
É o emperrar do pensamento,
É o cheiro diferente no ar,
É a observação... olhos atentos,
É um subtil movimento notar.
É um galho fresco partido,
É um ruído anormal captar,
É uma pegada... um objecto caído,
É um brilho fugaz detectar.
É dado o alerta e, de repente,
É o romper do silêncio... tolhe,
É o cheiro da pólvora queimada,
É a morte que chegou... e escolhe.
É logo saltar, correr, rastejar,
É o som da metralha infernal,
É o explodir seco das bombas,
É o deflagrar das granadas...mortal.
É o turra? Quantos?... Não se vê!
É algo que no capim se esconde,
É responder aos tiros, cuidado!
É uma armadilha ali... Onde?
É a sina; morrer ou matar!
É o alvo que surge numa fracção,
É premir o gatilho, o tiro certeiro,
É o momento da redenção.
É quando as armas se calam,
É ouvir os gemidos... regelar!
É a agonia dos feridos tombados.
É o assistir à carne a rasgar.
É o sangue do amigo...irmão!
É os buracos dos estilhaços,
É a angústia... o desespero,
É o vê-lo morrer... nos meus braços.
É aquele eterno minuto a escoar,
É a impotência, a frustração,
É mais um’eterna noite d’insónia,
É tempo de mais uma oração.
É um pedaço meu que morre também,
É a família, um breve recordar,
É a revolta das emoções,
É um lamento mais... escutar.
É um inacabar de missões,
É a incerteza do fim... que sorte?
É passar ao lado das balas,
É viver a par com a morte!
É contar o tempo que falta,
É o sonho com o regresso ao lar,
É recontar os dias que passam,
É uma contagem... por acabar!
RANGER Magalhães Ribeiro
Furriel Miliciano da CCS do Batalhão 4612/74
Mansoa - Guiné
______________
Notas de L.G.:
(1) Vd. pos de 21 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1):o esplendor de Portugal
(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
Para além do paludismo
Escrever sobre a guerra d’África,
Fiel aos factos e à verdade,
É além de uma questão de honra,
Um dever, justiça e lealdade.
Assim, sobre diversos aspectos
Já se falou, debateu e escreveu
Sobre políticas e estratégias,
Mas algo um pouco se esqueceu.
Por isso dedico estas linhas
Aos seis sentidos d’um combatente,
Aos actos vivos que o atormentam
N’um passado sempre presente.
Àquele que penou na picada,
Que ficou marcado p’ra toda vida...
Como traduzi-lo em palavras
Sem lhe abrir de novo a ferida ?!
Que conste na nossa História ,
Sem salamaleques, com coragem,
Que ali, na guerrilha, no mato
Cada dia... é uma contagem.
Nas folhas dum calendário
Risca-se mais um dia que passou,
Mede-se assim o pesadelo
E, ali, o fim... mais se aproximou.
Lá se foi uma porção da vida
Nos longos dias até ali riscados,
Esfumou-se de vez a juventude
Em factos na memória cicratizados.
Porque a guerra é muito mais...
É a lenta progressão na lama,
É o mistério da mata densa,
É o pressentimento do drama.
É sobreviver no lodo do rio,
É o calor... a chuva... o vento,
É o suor e o pó no rosto,
É o odor do corpo... nojento.
É o peso das armas e munições,
É a mochila, o cantil e o bornal,
É o comer, o dormir nos covões,
É as rações de combate... sabem mal .
É o chilrear da bicharada,
É sentir os mosquitos a picar,
É o cintilar das cobras e dos lagartos,
É as sanguessugas no corpo a sugar.
É o pousar das botas no solo,
É o terror de tropeçar na mina,
É o abandono do ser racional,
É o poder da adrenalina.
É o emperrar do pensamento,
É o cheiro diferente no ar,
É a observação... olhos atentos,
É um subtil movimento notar.
É um galho fresco partido,
É um ruído anormal captar,
É uma pegada... um objecto caído,
É um brilho fugaz detectar.
É dado o alerta e, de repente,
É o romper do silêncio... tolhe,
É o cheiro da pólvora queimada,
É a morte que chegou... e escolhe.
É logo saltar, correr, rastejar,
É o som da metralha infernal,
É o explodir seco das bombas,
É o deflagrar das granadas...mortal.
É o turra? Quantos?... Não se vê!
É algo que no capim se esconde,
É responder aos tiros, cuidado!
É uma armadilha ali... Onde?
É a sina; morrer ou matar!
É o alvo que surge numa fracção,
É premir o gatilho, o tiro certeiro,
É o momento da redenção.
É quando as armas se calam,
É ouvir os gemidos... regelar!
É a agonia dos feridos tombados.
É o assistir à carne a rasgar.
É o sangue do amigo...irmão!
É os buracos dos estilhaços,
É a angústia... o desespero,
É o vê-lo morrer... nos meus braços.
É aquele eterno minuto a escoar,
É a impotência, a frustração,
É mais um’eterna noite d’insónia,
É tempo de mais uma oração.
É um pedaço meu que morre também,
É a família, um breve recordar,
É a revolta das emoções,
É um lamento mais... escutar.
É um inacabar de missões,
É a incerteza do fim... que sorte?
É passar ao lado das balas,
É viver a par com a morte!
É contar o tempo que falta,
É o sonho com o regresso ao lar,
É recontar os dias que passam,
É uma contagem... por acabar!
RANGER Magalhães Ribeiro
Furriel Miliciano da CCS do Batalhão 4612/74
Mansoa - Guiné
______________
Notas de L.G.:
(1) Vd. pos de 21 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1):o esplendor de Portugal
(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
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