Em mensagem dirigida ao blogue, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70) mandou-nos mais uma das suas notáveis estórias. Esta descreve uma situação de ataque ao aquartelamento de Buba, momento em que se vivem situações aflitivas, ridículas, de sorte ou azar, e muita, mas mesmo muita confusão.
Temos também o relato de um encontro amistoso entre inimigos, no HM 241, durante o qual o nosso camarada ficou a saber que teve imensa sorte ao ter sido abortada uma saída para o mato, de um grupo de combate em que ele estava integrado, pois o IN tinha-lhes preparada uma recepção em grande.
Guiné-Bissau> 2005> Zé Teixeira, no Cais de Buba, matando saudades
2. Tuga na tem sorte!
Eram quatro horas da manhã do dia 14 de Fevereiro de 1969, quando acordei com o ruído provocado por um colega, que animado por uma cervejica a mais, se veio deitar. Apesar de estar com o fato que minha mãe me deu no momento em que iniciei a caminhada da vida, o calor era tanto que a transpiração se tinha alojado no lençol, no terceiro andar da camarata onde tinha poiso para dormir.
Em noites assim quentes tinha por hábito, antes de me deitar, meter-me debaixo do chuveiro, deixar correr a água uns minutos e de seguida estender-me no leito, com o corpo bem molhado, à espera que o sono chegasse.
Outros camaradas adoptaram o sistema de encher o estômago com umas
bazookas, bem fresquinhas, deixando que os vapores do álcool os ajudasse a passar para o lado do
morfeu, o deus dos sonhos.
Por mais voltas e reviravoltas que desse na tarimba, o sono recusava-se a voltar, pelo que resolvi repetir a dose de chuveirada e voltei para o leito.
Após dois dias seguidos de saídas para protecção aos trabalhadores, na construção da estrada Buba/Aldeia Formosa, ia ficar um dia no quartel de serviço à Enfermaria se nada houvesse de anormal por parte do IN que exigisse mudança de planos.
Estava uma noite daquelas em que não se vê nada a um palmo do nariz. Só quem por lá passou é que sabe o que são estas noites e o medo que metiam, sobretudo para quem estava de sentinela, emboscado no mato ou em marcha para alguma operação surpresa.
Estendido de novo na cama, agora com o corpo bem fresquinho, tentava conciliar o sono, antes do burburinho da partida para os trabalhos da estrada dos grupos de combate escalonados, previsto paras seis da matina.
Alvorada atribulada
Deviam ser umas cinco horas quando o IN resolveu antecipar a alvorada, com 14 canhões s/recuo, quatro morteiros 120, bazookas e lança rockets, sem faltar as célebres costureirinhas, tudo em simultâneo e a cerca de duzentos metros do aquartelamento.
É fácil adivinhar a estrondosa alvorada, que se estendeu por longos e angustiantes minutos, animada pelo nosso morteiro de 80 mm, mais os de 60 que foram aparecendo, mais os obuses de 10,5 e mais as G3 que não podiam faltar nesta animada festa de alvorada.
Claro que eu, estando acordado, fui dos primeiros a chegar à meta, perdão à vala que se estendia em serpentina pela parada fora, vendo logo de seguida, centenas de corpos vestidos, à moda do pai Adão, mergulharem a grande velocidade, sem pedirem licença a quem tinha chegado primeiro. Foi
um tudo ao molho e fé em Deus que originou alguns arranhões, hematomas e gritos, com palavras pouco agradáveis ao ouvido, à mistura.
Estranha forma de acordar as três Companhias Operacionais e a 15.ª de Comandos, se a memória não me atraiçoa.
Uma das primeiras granadas esmagou-se ali bem perto contra a parede do depósito da água, junto da minha caserna, fez um buraco e rebentou, deixando estilhaços em tudo o que era chão e... água, que rapidamente correu para a vala também, ensopando os corpos que lá se refugiaram. Foi o suficiente para acordar os mais retardatários, pois que os “velhinhos” impulsionados por uma mola invisível, ao ouvirem (acordarem) o som das saídas, lá longe, ou pelo grito “aí vem eles, filhos da puta, saltaram num ápice da cama e foram-se esconder na bendita vala, que tantas vidas salvou. Apenas um, por lá se deixou ficar, impávido e sereno, o colega, que me tinha acordado, cerca de uma hora antes e que só acordou horas depois, sem ter dado por nada do que entretanto aconteceu, tal era a “ramada”.
Mais rebentamentos se seguiram na parada, junto à Messe, junto à Enfermaria, na cozinha, etc. Depois foram-se perdendo por outras direcções que em nada nos afectaram, mergulhando a maioria no rio e na floresta em frente.
Perante tão poucos estragos, perguntei a mim próprio se de facto o IN estava ali para nos fazer guerra, ou apenas nos queria acordar. Da refrega tivemos um ferido ligeiro.
Sair de imediato, sim ou não?
Iniciadas as tréguas, são de imediato mobilizados dois Grupos de Combate (os que iriam ficar no Quartel durante o dia), para iniciarem a perseguição, tendo como enfermeiro de serviço, a minha pessoa.
Formados junto à saída para a pista de aviação, aguardávamos ordem de partida, quando o seu Comandante, o saudoso Alferes Barbosa (já falecido), repensa a estratégia e decide ir junto do Major Carlos Fabião, propor que a nossa saída se fizesse um pouco mais tarde, depois da aviação bater o terreno, pois o dia estava ainda a clarear. O risco de o IN estar emboscado por perto, a proteger tão grande arsenal, era evidente e uma perseguição desacautelada podia ser fatal.
Foi então a força dispensada.
Ao nascer do sol, veio a aviação, explorou o terreno e lá seguiu um Grupo de Combate a fazer o reconhecimento.
Verificou-se no local de onde partiu o ataque os indicadores do equipamento utilizado, com marcas de sangue, o que quer dizer que, no retribuir pouco amistoso de cumprimentos, acertámos no alvo. Regressaram com umas dezenas largas de invólucros, para registo histórico da festa de alvorada tão despropositada.
Os trabalhos na estrada nesse dia começaram mais tarde.
Eu segui para a Enfermaria, tratar arranhões, hematomas, unhas dos pés partidas ou arrancadas, uma ou outra ferida mais grave em resultado do conflito entre um corpo humano em fuga para vala protectora e um obstáculo mais agressivo, que lhe fazia barreira.
Os caixotes onde guardávamos os nosso parcos haveres, eram metidos debaixo da cama e à noite serviam de suporte (escadote) para os camaradas que tinham de subir para as tarimbas do 2.º e 3.º andares. Em caso de ataque nocturno, tornavam-se num perigoso impecilho na fuga apressada para a vala ou abrigo.
Feridos graves, houve um. Da parte da população houve alguns bem graves, tendo morrido carbonizada uma criança e foram queimadas nove moranças.
Encontro imediato com o IN
Um ano depois, já em Bissau a aguardar a embarque de regresso, fui ao Hospital Militar visitar o querido amigo Dr. Azevedo Franco e acompanhei-o na visita clínica aos seus doentes de ortopedia, entre os quais os IN aí internados em enfermaria própria. Um doente especial chamou-me a atenção pela sua história. Tinha sido ferido pelas nossas forças com uma rajada na perna que lhe atingiu também a barriga, ficando de intestino a céu aberto. Aguentou três dias enterrado no tarrafo de uma bolanha, até ser feito prisioneiro e enviado para o HM 241 em estado crítico. Estava safo, apesar de manco para toda a vida. Era apresentado como referência, pela sua capacidade de resistência.
Tentei entabular conversa e obtive como resposta: - “A mim ká sibe portugué, a mim ká miste papeia cum tuga”. Ao que eu ripostei: - Ká na tem probleminha, e, fui dar duas de conversa com o vizinho.
No dia seguinte ao entrar na enfermaria, notei-lhe um sorriso e fui cumprimentá-lo. Fiquei por ali cerca de meia hora, a falar em crioulo, das “nossas guerras”. Por onde andámos, onde nos cruzámos sem nos ver e nos cumprimentámos, nas linguagem da guerra maldita que nos separou até aquele momento. Talvez, não o afirmo, tivéssemos falado das razões que nos assistiam e fizeram de nós inimigos sem nos conhecermos tão pouco. A sua história de guerrilheiro começava com o início da guerra. Tinha corrido já a Guiné toda, mas nos últimos três anos estacionara no Sul, onde foi ferido e feito prisioneiro, precisamente o chão por eu andei também.
Ao saber que eu tinha estado em Buba, perguntou. Estavas lá naquele ataque que fizemos antes do sol chegar? (1)
Ao responder-lhe afirmativamente, continuou: - Logo que nosso ataque terminou, a tropa ia sair pelo portão da pista e recuou. Que pena! Eu estava logo ali à frente, emboscado, na curva da estrada, (para Sinchã Cherno) junto à berma da pista, à vossa espera. Tínhamos muito material a proteger e vocês tinham a mania de vir logo a correr atrás de nós... ia ser “manga de ronco”.
Pois... e eu estava lá, nesse grupo !
Tuga na tem manga di sorte! Um sorriso e um abraço talvez tenha selado este feliz momento.
A conversa continuou, enquanto o médico fazia a sua visita clínica.
Houve ainda outro dia em que pude voltar a falar com ele. Como gostava de ter gravado as nossas conversas, já que estes momentos jamais sairão da memória. Já com muito pó, a memória recusa-se a deitar cá para fora, tantos momentos, dias, horas, minutos marcantes, bons ou menos bons daquela vida de “guerrilheiro à força”.
Guiné-Bissau> Sare Tuto> 2005> Hoje, tal como ontem, encontro com o ex-IN. Na foto, ex-combatente do PAIGC que actuava em Buba.
Dantes era penoso reviver estes momentos, a mente recusava-se sem o espírito saber porquê. Traziam dor, amargura e sofrimento.
Hoje torna-se gratificante deixar a memória recuar e patinar naquele pântano, reviver, re-analisar ponto por ponto, acção por acção, gesto por gesto e redescobrir-me de novo.
Notas do Zé Teixeira:
(1) - De recordar em Outubro seguinte houve um ataque a Buba muito mais perigoso, com tentativa de assalto desenvolvido do lado da pista, precisamente pelo local onde este “nosso amigo” tinha estado emboscado, enquanto do lado do rio atacavam com artilharia pesada.
Este sim era para arrasar Buba com tentativa de penetração por parte do IN.
Pelos documentos que foram apanhados ao Capitão Peralta, (um croquis muito bem elaborado) foi possível verificar que este fez um estudo aprofundado de Buba e esquematizou o ataque de forma (aparentemente) tão bem organizada, que seriam “favas contadas” e Buba seria o seria o principio do fim, como o foi posteriormente Guiledje e Guidadje. Alguns pormenores, no entanto, segundo o Major Carlos Fabião (a) deitaram tudo a perder:
a) - O estudo do terreno pelo Peralta foi feito com a maré cheia. Um rio só, grande e largo. O ataque foi desenvolvido em noite de maré vaza, logo em vez de um rio só e grande apareceram-lhe também vários braços de rio. Foi a confusão total, pois tinha mandado avançar as tropas pelo meio do capim e montar o equipamento em determinado sítio junto à água, no meio do capim, em vez de água, havia muita terra à frente, sem capim, o que provocou a confusão.
b) - O Peralta ao fazer o reconhecimento deixou vestígios de passagem de pessoas que foram detectados pelas nossas forças. Foi decidido pelo Comando Militar de Buba, chefiado pelo Carlos Fabião, que um Grupo de Combate ficasse no exterior durante a noite.
Quando iniciaram o ataque, as tropas IN que se preparavam penetrar na povoação, viram-se confrontadas com um ataque pela retaguarda e fugiram.
Por outro lado, os fuzileiros reagiram a quente e contra-atacaram rapidamente junto ao rio, o que originou a debandada geral do IN.
Pregaram sim, um grande susto à nossa gente.
Seria interessante recolher o testemunho do comandante Júlio de Carvalho, que acompanhou o Capitão Peralta no estudo e comandou este ataque.
Felizardo fui eu, que entretanto já me tinha retirado para Empada e apenas ouvi lá de longe, o “manga de sakalata” em Buba.
(a) - Carlos Fabião em “A Guerra de África” por José Freire Antunes, Volume I, edição do Círculo de Leitores
José Teixeira
ex-1.º Cabo Aux Enf
CCAÇ 2381
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Nota do editor:
Vd. Último post desta série de 2 de setembro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2078: Estórias do Zé Teixeira (22): Saiu-lhe a sorte grande (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)