Louvor colectivo da CCaç 675. O.S. nº 60 do CTIG, de 23 Julho 1965:
De 29 Junho a 24 Dezembro 1964:
• 51 acções de fogo
• 418 casas de mato destruídas
• 80 inimigos abatidos
• 44 prisioneiros
• 107 abatises levantados
A partir de Março 1965 as populações começam a apresentar-se às nossas tropas.


Guiné > Região do Cacheu > Binta > CCAÇ 675 (1965/66) > A Tabanca Nova, 1965. Fotografia de Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, editada por L.G.
A recuperação das populações levada a efeito na Guiné aconteceu
e quem teve a oportunidade de a viver não mais a esqueceu.
É que, efectivamente, depois das operações militares…
em que emboscados,
angustiados, famintos e sequiosos, enlameados…
fizemos a guerra,
também tivemos a paz.
Que construímos com as nossas mãos.
E não interessa a paz…sem população!
Palavras do Comandante da CCaç 675:
«O nosso orgulho de capitães
era termos populações e podermos apoiá-las:
não era termos mais mortos
ou menos mortos, mais tiros ou menos tiros.
E as populações começaram a regressar.
Fizémos um aldeamento,
cuja segurança era feita por eles próprios.
Quando começaram as sementeiras de arroz,
as mulheres vinham entoar aqueles cânticos ao pôr do sol,
que são coisas
que não podemos esquecer"...
Fotos (e legendas): © José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados
1. Texto do novo membro da nossa Tabanca Grande, José Eduardo Oliveira, ex-Fur Mil Enfermeiro, CCAÇ 675, Quinhamel, Binta e Farim (1964/66). Nasceu em 1940, em Alcobaça. Tem 4 anos de serviço militar (1962/66). É jornalista, sub-director do quinzenário regionalista O Alcoa, e autor de Golpes de Mão's - Memórias da Guiné, 2009 (*)
2. Depois da Guerra... o stresse da Paz!
por José Eduardo Oliveira
A quarenta e tal anos da minha passagem pela guerra não consegui arrumar no meu arquivo morto todos os stresses que me acompanharam …depois da guerra. É a tal "guerra sem fim" de que muitos falam.
Mas - assim o penso sinceramente – acho que... nunca a trouxe para casa. Se não dormia... deixava que os outros dormissem!
Nunca passei pelo stress pós-traumático onde... não há tréguas nem acordos de paz!
Guerra dentro da minha cabeça tive algumas. Dentro de casa... tentei sempre não passar as minhas angústias aos outros.
Em momentos de crise fechei-me e aguentei. Com a ajuda de muitos anti-depressivos. E esses, eu sei que serão até ao fim da vida.E sei também dos seus efeitos secundários. É um preço a pagar... Já com muitas prestações liquidadas…
Apesar de tudo, de mal o menos!
Mas sei que muitos tiveram crises. Graves crises. É uma guerra ainda presente em muitas famílias portuguesas.
A sintomatologia é longa. Pesada. Violência física e psicológica. Para si próprios e para os familiares mais próximos.
É dos livros. A agressividade e a passividade. Duas das características mais vincadas nos ex-combatentes que sofrem de stresse pós-traumático. Alguns alternam as duas. Outros são tão absolutamente deprimidos e passivos que não chegam nunca a exaltar-se. A guerra psicológica é intensa. Diária. "O stress de guerra é contagioso e crónico", como afirmam especialistas.
A quarenta e tal anos da minha passagem pela guerra alguns dos meus stresses de paz sobrepõem-se aos de guerra…
Vou tentar explicar:
Vivi em tempo em guerra uma experiência comunitária tão intensa e tão próxima de uma sociedade perfeita que nunca mais encontrei... nada parecido.
Refiro-me, obviamente, à sociedade dita normal, em que tive de me integrar depois do regresso da guerra em 1966.
A minha experiência comunitária foi ainda muito marcado por um chefe. Também não voltei a encontrar ninguém do seu gabarito nos quarenta e tal anos seguintes…
No Norte da Guiné, em Binta e sua região, criámos uma comunidade «ancorada» numa unidade militar que (re)fez uma aldeia, onde chegaram a viver cerca de mil pessoas.
Nessa aldeia e nesse tempo fizemos quase tudo. E com as nossas mãos. Reparação de casas e armazéns, arruamentos, uma pista de aviação, uma capela, um posto de enfermagem. Abrimos poços, instalámos luz eléctrica. Fizemos escolas e creches. Fomos professores, engenheiros, arquitectos, operários especializados. Fizemos hortas. Tivemos um aviário. Demos nomes às ruas e fizemos as respectivas placas toponímicas. Reparámos o cais. Fizemos um campo de futebol, organizámos jogos e competições, fizemos um jornal. Tínhamos o nosso próprio 'totobola'. Capturámos uma manada de vacas. Fizemos uma ferra do gado e organizámos uma tourada. Tivemos uma biblioteca, vimos cinema (com ajuda da Marinha de Guerra), desfiles de Carnaval e marchas populares.
E…mais importante que tudo, ajudámos as populações. Assegurámos-lhes condições de vida que, talvez, nunca tivessem tido anteriormente. Ajudámos nas suas sementeiras e na assistência médica.
Conseguimos o respeito e a estima da população.
O Presidente da Câmara de Binta – leia-se Comandante da 675 - governava com segurança e justiça, e era receptivo a todas as ideias de quem queria fazer alguma coisa. Pode-se dizer que todos -uns mais que outros, obviamente –se empenharam no crescimento e valorização dessa comunidade. Até com obras de arte, como foi o caso da «estrela», desenhada com garrafas de cerveja na Avenida Capitão de Binta, que teve o traço do Campo de Ourique, cenógrafo na vida civil.
O Governo de então só terá falhado nas Secretarias de Estado ligados ao ramo alimentar, o que motivou algumas remodelações no que respeita a vago-mestres.
Quando saímos de Binta…tivemos direito a lágrimas de saudade… dos que ficaram.
Tínhamos sido importantes para eles e... para nós próprios .
O último ano em Binta aconteceu n’outro mundo! Quase que tínhamos esquecido o mundo para onde regressámos em Maio de 1966!
Quando regressámos à Metrópole e à vida civil chocámos com um mundo onde a nossa importância anterior rapidamente se esbateu.
Já estava tudo feito - éramos apenas um pequeno parafuso de uma máquina gigantesca que girava sem cessar – e à nossa volta já não tínhamos a malta da Companhia. Todos tinham partido para as suas vidas. Para longe.
Nos nossos novos empregos aparecem-nos novos chefes, de pequena estatura!
Onde estavam Chefes como o Capitão de Binta!
Os primeiros tempos do regresso foram terríveis. Foi (era)uma luta desigual ! Poucos nos entendiam. Poucos nos podiam ajudar!
Só a família mais próxima conseguia entender um pouco do nosso drama.
Nos primeiros meses corríamos sempre há chamada de cada camarada que se casava. Viajávamos de norte a sul do País para nos voltarmos a encontrar.
Naquelas horas que estávamos juntos voltávamos lá! E o nosso Capitão normalmente estava por perto!
Depois tínhamos que voltar ao mundo dito normal ,onde ninguém falava a nossa linguagem!
Que tempos amargos. Trabalho. Trabalho. E ... solidão.
Lembro-me de há noite, depois do trabalho, no meu quarto da Pensão, em Leiria (trabalhava então no Banco Pinto & Sotto Maior) passar minutos, horas a olhar para um mão, a mirar as unhas. O tempo corria lento e... as noites eram compridas na passagem para um novo dia. Chato, desinteressante... que os outros pensavam que era bestial! Empregado bancário, que bom! Às seis da tarde, fechavam-se os estores e ia-se trabalhar para o 1º. Andar. Às escondidas da fiscalização. À borla, pois claro. Colonialistas eram os da Casa Gouveia, da CUF, na Guiné. Pois!
Quando vinha ao fim de semana a casa, em Alcobaça, o sorriso da minha mãe (sempre a minha Mãe), animava-me um pouco. Os seus mimos, as comidas especiais, o seu amor incondicional, conseguiam encorajar-me a enfrentar mais uma semana da... outra guerra!
Foram longos meses de uma vida adiada, que me consumiu por dentro…
Sentia-me à deriva!
Tive em casa dos meus Pais alguns camaradas da Guiné: O Tenente Pedro Cruz (**), o ex-Alferes Santos, o Rato. Escrevia-me com outros. Chegou a data do 1º. Convívio. Em Lisboa. Pouca gente, por dificuldades de contacto. Mas um dia grande.
Tenho uma foto desse primeiro convívio em Maio de 1967. Já lá vão uns anitos!!!
De vez em quando sabíamos alguma coisa do nosso Capitão que…já era Major. Promovido por distinção. Para orgulho de todos nós.
E …depois o tempo passou… Casamento, nova vida profissional, família aumentada, realização pessoal e profissional, novos Chefes, com nível, casa nova, carro novo, e vitórias nas lutas…do dia a dia!
O retorno de alguma importância…na vida a que me tinha habituado em Binta …na tal vila de Binta…na pequena comunidade do Norte da Guiné onde «o céu era o limite»!
O tempo…o passar dos anos… atenuou as memórias daquele tempo excepcional.
Mais tarde, muito mais tarde…na idade do condor, maduros pela passagem dos anos e com netos por perto…percebemos que…afinal a guerra, a nossa guerra foi uma experiência única quando conseguimos construir a paz.
Se calhar fomos uns privilegiados. Nós conseguimos…com as mãos que fizemos a guerra …fazer também a paz!
Essa experiência única nas nossa vidas perdura ainda.
Não foi fácil ultrapassar o streess da paz…mas conseguimos.
Por alguma razão o emblema da Companhia referia que a 675 nunca cederá.
Não cedeu.
A acreditar em João Turé, natural de Binta, que ao tempo da passagem da 675 pela sua aldeia tinha 8 anos, e é actualmente presença habitual nos convívios da Companhia, ainda hoje os mais velhos falam do bem que a tropa do Capitão de Binta fez na sua região…
Acreditamos que sim… agora com direito às nossas lágrimas de saudade…
Em Binta….no Norte da Guiné…vivemos alguns dos melhores tempos da nossa vida. Lá longe…junto ao Cacheu… nos idos de 60!
José Eduardo Reis de Oliveira
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4686: Tabanca Grande (162): José Eduardo Oliveira, ex-Fur Mil, CCAÇ 675, Binta, 1965/66
(**) A CCAÇ 675 teve dois comandantes: Cap Inf Alípio Tomé Pinto (ferido em combate, hoje Ten Gen Ref), o Ten Inf José Pedro da Cruz.