terça-feira, 1 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4890: Estórias do Fernando Chapouto (Fernando Silvério Chapouto) (2): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – Escolta a barco para Farim

1. Do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426 (1965/67), Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, publicamos neste poste a segunda parte das suas memórias. A primeira parte está no poste P4877 e é referente ao embarque da sua Companhia, no navio Niassa, e à sua tranquila 1ª patrulha em Bissau:


Escolta a um barco com géneros para Farim

Passados uns dias sobre a minha primeira patrulha sem incidentes fui chamado para o cumprimento de uma missão muito delicada, que segundo me foi comunicado era escoltar um barco e dois batelões carregados de géneros, destinados às tropas estacionadas na zona de Farim.

A escolta constava da minha secção com um enfermeiro, um cozinheiro e um radiotelegrafista.
O barco, lá seguiu a “dez à hora” na praia mar, porque na baixa-mar parava completamente. Entramos no rio Cacheu e começaram a surgir os problemas. O rádio não funcionava, talvez por falta de experiência do operador e os alimentos estavam todos estragados.

O arroz estava cheio de bicho, o feijão idem aspas, o azeite rançoso, etc. Além das rações de combate que obviamente não dariam para todo o percurso, restavam-nos em bom estado comestível algumas conservas e chouriços, que tivemos de começar a racionar, pois ainda faltavam muitos dias para chegarmos a Farim.

Quando chegamos à povoação do Cacheu pedimos que nos dessem pão, que nos foi fornecido em grande quantidade. Conseguimos contactar com Bissau, transmitindo que estava tudo a correr bem, excepto no tocante à alimentação. A resposta foi a que esperávamos, que nos desenrascássemos pois mais nada havia a fazer.

E lá fomos rio acima, ao sabor das marés, até S. Vicente, acompanhados de perto por uma lancha da marinha, que entretanto nos veio ajudar na escolta, e que ia e vinha, sempre de “olho” em nós.

Em S. Vicente, permanecemos um dia e meio à espera do barco patrulha, Durante esse tempo dedicamo-nos à pesca no rio e acabamos por pescar um peixe parecido com um tubarão (ou da sua família), que deu para uma ou duas refeições.

Regressado o barco patrulha, o comandante alertou-me para o perigo que íamos enfrentar rio acima.

Voltamos a seguir viagem de noite (o barco patrulha circulava para cima e para baixo) até que o inesperado aconteceu.

Estava eu a passar pelas brasas quando, de repente, ouvi umas rajadas de tiros, aprontei a G3, mas nada mais me chegou aos ouvidos. Um dos cabos chegou junto de mim e disse:

- Furriel que está aí a fazer? - Temos um ferido!

- Mas eles já se calaram! - disse eu.

- Não são terroristas, foi o “preto” (piloto do barco) que adormeceu e deixou o barco entrar pelo arvoredo dentro, e as árvores ao partirem é que pareciam rajadas de tiros. Temos um ferido.

O soldado feriu-se na roldana do mastro, que ao embater nas árvores se soltou e caiu-lhe em cima de uma perna partindo-a. Este soldado não pertencia à minha secção, ia para Farim cumprir mais uma comissão como voluntário.

Tirei o raio do homem do leme do barco e mandei para lá o meu 1º Cabo, que era de Portimão e tinha carta de navegação. Lá seguimos viagem até BINTA, onde deixamos o ferido, e continuamos até Farim, onde chegamos ao meio da manhã.

Depois de cumpridas todas as formalidades habituais, fui ter com o sargento de dia que era um furriel do meu curso, para nos dar uma refeição em condições, contando-lhe a história dos nossos alimentos.

Por ele, furriel, não havia entraves, mas o encrenca do oficial de dia só nos colocou problemas. Perguntei-lhe se era preciso ir falar com o seu comandante de batalhão, para ultrapassar o impasse.

Não foi preciso, lá se ultrapassou este “entrave”, mas perdi nesta “ultrapassagem” mais de uma hora. Acabamos por comer uns restos do tradicional prato da tropa - feijão com chouriço -, mas como a fome é “negra”, ninguém se queixou que era “feijão” como diziam na Metrópole e toca a comer.

Para nossa sorte, Farim tinha sido atacada na manhã anterior com morteiradas e bazucadas, que certamente estavam programadas para nós. Valeu-nos o atraso do tal dia, por causa do barco patrulha, e assim nos safamos desta.

No regresso tudo foi mais rápido, paramos em Binta para carregar os batelões de madeira, que decorreu célere com a ajuda da maré, após o que continuamos o nosso rumo à capital, sem mais problemas, até à entrada da barra.

Uma vez aí chegados, já noite, instalou-se uma grande tempestade, pois estávamos na época das chuvas, acompanhada de uma estrondosa trovoada e ondas de elevada altura que desamarraram os batelões. Com estes à deriva, permaneci no “meu” barquito com mais dois ou três soldados e a tripulação (constituída por nativos).

Bom, se não morrer de um tiro, morro afogado – pensei -, saber nadar nada me adianta aqui. Pensei que o meu fim tinha chegado, os nativos rezavam, aqueles minutos pareceram-me uma eternidade. Com o clarão dos relâmpagos via o lamaçal da margem, e só pensava como é que nos safamos se o barco se volta. Ficamos ali atolados e… de repente o pesadelo terminou. A tempestade passou.

Ao romper do dia, a primeira tarefa foi detectar e atrelar os batelões, que haviam ficado à deriva distantes um do outro. Os nativos lá os amarraram e fomos atracar no cais de Bissau.

Comuniquei a chegada ao comandante de companhia, que nos enviou viaturas com prontidão, mudamos homens e “tarecos”, para as mesmas, e ala que são horas e a fome já apertava. Um bom banho, mudar de roupa que o “perfume” ganho naqueles doze dias era óptimo, a banhos de balde, chuva e fome.

Conclusão, comecei apreensivo a perceber o que se me iria deparar pela frente, pois isto ainda era o início de uns longos meses de comissão.

Importa referir que este foi o primeiro abastecimento de barco a Farim desde o início da guerra na Guiné.

Pensei que parava por ali, no quartel, uns dias, mas bem me enganei pois fui destacado para mais uns patrulhamentos nos arredores de Bissau, a fim de contactar com as populações e detectar eventuais sinais de anormalidade, entre a buliçosa e animada população.

Militares que fizeram parte da escolta a FARIM. Da esquerda para a direita:
Em baixo: 1º Cabo Vitorino, 1º Cabo Enfermeiro Coimbra, 1º Cabo Alfredo, Soldados Costa e Guerreiro.
Em cima: Eu e os Soldado Matos, Radiotelegrafista, Cozinheiro Júlio, Paixão e Duarte. Na foto faltam dois Soldados, o Leonel e o Valter.

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCaç 1426

Foto e legenda: © Fernando Chapouto Direitos reservados.
_________
Nota de MR:

Vd. último poste desta série, do mesmo autor, em:


Guiné 63/74 - P4889: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (15): Sobreviver no inferno da Guiné

1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos mais um texto do seu baú de memórias:

Camaradas,

No seguimento do envio das minhas estórias para publicação no blogue, seleccionei mais este texto do meu caixote das memórias, porque acho que é matéria do interesse geral e, mais especificamente, dos nossos Camaradas da Tabanca Grande, o qual intitulei de:

"SOBREVIVER NO INFERNO DA GUINÉ"

Na guerra, o factor sobrevivência de um soldado, depende muito da sua inteligência, astúcia, boas preparações física e psíquica, a que se deve juntar uma boa e adequada dose de instrução militar, aliadas a excelentes capacidades de perspicácia e reflexos naturais (ou sexto sentido), tudo isto bem protegido pelo elemento “esquisito”, que ninguém desdenha possuir e que designamos por sorte. Abreviando a ideia numa curta frase: Regressar vivo a casa!

O chamado instinto de sobrevivência é um dom natural propriedade de quase todos os seres vivos, a que o ser humano felizmente não escapa, em maior ou menor escala de valor em cada espécimen, no entanto não mensurável.

Bem se pode dizer que foi esta faculdade humana, que nós mais utilizámos dia-a-dia, na prática, para sairmos vivos das várias armadilhas, patrulhas, colunas, emboscadas, operações, etc. naquele inferno operacional que nos ditou o P.A.I.G.C., as doenças, as más condições alimentares, as condições adversas territoriais e o problemático clima da Guiné.

Depressa nos apercebíamos que a maioria dos “mandantes” na Guerra, preservavam as suas integridades físicas legando o seu mando nos oficiais de patente mais baixa, ou mais novos vulgo "Piriquitos", que operavam no terreno. Era a sua “lei” de sobrevivência.

Aprendemos então a adaptar-nos ao novo modo de viver – na guerra -, e, majoritariamente, a saber preservar a nossa integridade física e vida pessoal.

Tal no entanto, jamais poderia implicar, recorrer a actos de traição, fosse de que modo fosse, que implicassem a preservação da integridade física e vida pessoal do(s) nosso(s) outro(s) Camarada(s).

Ainda ouvi um dia alguém dizer: “Mais vale um covarde vivo que um herói morto”. Se calhar, digo eu, em caso muito limite, sem colocar em causa a integridade física de qualquer Camarada e se, o candidato a covarde, conseguir viver posteriormente com a sua consciência tranquila, o problema seria só dele e de mais ninguém!

Na minha opinião pessoal, cobardia, no nosso caso, era sonegar-se às vicissitudes da guerra por simples que fossem. Covardia era não ajudar um, ou mais Camaradas em dificuldades e abandoná-los à sua sorte. Em casos extremos, covardia poderia passar por não se lutar abnegadamente até ao último alento de vida, em defesa da nossa própria integridade e, ou, se necessário, da dos nossos Camaradas.

Claro que não somos todos iguais e cada um de nós, e no conjunto da sua unidade, regeu-se por um código de conduta, mais ou menos aguerrido e heróico conforme a sua educação intelectual.

Obviamente que o facto de se ser mais valente e ousado, nomeadamente debaixo de fogo IN, diminuía seriamente as probabilidades de se sobreviver.

Por exemplo, as tropas Comandos têm como seu lema: “A sorte protege os audazes”.

Mas a sorte muitas vezes era madrasta e os seus destemidos e agressivos Homens pereciam em combate.

Heróis sim mas a que custo!

Quem ingressava nas tropas especiais sabia, à partida, que o seu factor de sobrevivência, dependia muito de si e do espírito de corpo que era incutido à sua equipa, ao seu grupo e, em acções bélicas de maior envergadura e perigosidade, à sua companhia.

Quantas vezes os rasgos heróicos individuais, ou colectivos, de bravura e coragem custaram o mesmo número de mortos.

Para esta minha análise, não interessa se esses rasgos foram, ou não, involuntários e, ou, irreflectidos.

Depois havia aqueles que, em áreas muito massacradas pelo IN, que eram submetidos massiva e consecutivamente à provação do privação, sofrimento, dor e morte, que muito para além da ambição suprema – a manutenção da sua vida -, com o avançar do tempo e a deformação do seu melhor estado psíquico e físico, se deixavam apoderar por um estranho desprezo pelo risco e pelo perigo.

Este estado era tanto mais agravado com as doenças graves entre elas as mais temidas como o paludismo e as disenterias.

Em estrado terminal, haviam os que, atingido o seu mais alto nível de esgotamento psicológico, se suicidavam.

Muitos de nós que andávamos embrulhados nas hostilidades, que mal tínhamos tempo para poisar nos nossos bura… kos, só voltávamos a tomar algumas precauções e cuidados, ao aproximar-se o fim das comissões e o regressar dos sonhos de voltar a casa… vivos e incólumes fisicamente, porque, psiquicamente, meus amigos bem sabeis como andamos, ainda hoje, quase todos.

Resumindo e pesando tudo isto que acabei de vos dizer, no meu balanço e análise geral meramente pessoal, ao fim destes 35 anos sobre a conclusão do conflito na Guiné, creio, sinceramente, que nós, os ex-Combatentes desta contenda, salvo as devidas e raras excepções à “regra”, cumprimos escrupulosamente o que nos foi mandado, salvaguardando o nosso código de conduta, que foi sobreviver com honra, dignidade e respeito pelo nosso opositor.

Por isso, muito contribuiu, quando eram pedidos voluntários para qualquer missão, perigosa ou não, respeitarmos uma máxima muito bem delineada entre a malta da tropa “normal”, que todos conhecemos: “Voluntários?... Só para casa”.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
__________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4888: Estórias do Jorge Fontinha (7): A nossa Casinha

1. Mensagem de Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 28 de Agosto de 2009:

Caro vinhal.
Um grande abraço e me parece que já estava na altura de regressar.
Assim aí vai mais um contributo.

Um abraço para toda a tertúlia.
jorge fontinha


A NOSSA CASINHA

Vou aproveitar o facto de o Luís Faria se ter despedido de Binar e estar a chegar a Teixeira Pinto, para retomar as minhas Estórias, pois as dele e as minhas voltam a estar interligadas a partir desta fase. Aproveito também o facto de ele nesta altura ir de férias, para lhe preparar o terreno, pois quando ele regressar vou eu.

Quando finalmente, o resto da Companhia se junta a nós, em Teixeira Pinto, passámos efectivamente a uma acção mais envolvente e efectiva no apoio às Forças Especiais do CAOP 1: Comandos, Páras e Fuzileiros.

De início era apenas um Bi-grupo. O 2.º e o 4.º, e todo o staff da Companhia, com o Capitão Mamede de Sousa, o 1.º Sargento Guerreiro e os restantes Especialistas e os inestimáveis apoios logísticos, muito úteis para quem, dia sim, dia não, prestava apoio à abertura da estrada Teixeira Pinto/Cacheu, intervalado com Operações de grande envergadura ao Balangarez, com as referidas Companhias de Tropas Especiais do CAOP 1. O 3.º Grupo só se juntaria à Companhia, já em Bula, aquando dos Reordenamentos, e o 1.º ao fim de uns dois meses, em Teixeira Pinto, pois manifestamente dois Grupos começava a ser demasiado cansativo para os 2.º e 4.º Grupos. Como diria o Luís Faria, eles abusaram de nós, não sabíamos passar despercebidos!

Todavia este Grupo mais alargado de amigos e camaradas de outros carnavais, passou a ser mais unido e já com os 3 Grupos de Combate Operacionais a revezarem-se, o espaço dentro do quartel começou a ser mais reduzido, para as nossas mais frequentes folgas.

Assim nasce a nossa casinha.

De frente: Gaspar, Jorge Fontinha e Luis Faria. De perfil: Cap. Mamede Sousa. De costas: Chaves e Madaleno

A alguns metros do quartel, ao fundo da Av. Principal de Teixeira Pinto, eu mais um grupo de compinchas, alugámos uma vivenda, onde poderíamos passar umas horas de descompressão e de puro lazer.

Nessas instalações passou a realizar-se alguns momentos de boa degustação de belos camarões e ostras, mas também de amena cavaqueira entre camaradas de armas. Por vezes juntavam-se a nós alguns intrometidos locais, juntamente com alguns convidados, já por mim referenciados, noutras Estórias, como o Chefe de Posto Júlio e outros amigos.

Ali, não havia guerra apenas umas belas cervejas que curiosamente também eram bazucas.

Esta casa era uma espécie de multiusos. Como tinha, para além da sala e da cozinha, uma bela casa de banho, onde dava para refrescar várias vezes ao dia e 4 quartos, não era difícil arranjar ocupantes para eles. As nossas queridas bajudas e ou caboverdianas não se faziam rogadas.

Chaves, Freitas Pereira, Rebocho, Luis Faria, Jorge Fontinha e Guerra Madaleno

Por aquela casa, para além de nós e os nossos amigos, passaram também alguns convidados do Comando do CAOP da altura, alguns elementos semi-incógnitos do PAIGC e vários graduados e praças de todas as forças estacionadas em Teixeira Pinto: Comandos, Fuzas e Páras, para além da anfitriã CCAÇ 2791.

A ideia que nos norteou, ao alugar aquele espaço, foi tão só promover um lugar de convívio entre pessoas de bem e de paz.

Guerra era guerra, lazer era confraternizar sem perguntas.

Nunca houve o mais pequeno problema.

Jorge Fontinha e Antonino Chaves

Um abraço para a tertúlia.
JORGE FONTINHA
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4237: Estórias do Jorge Fontinha (6): O 4.º GCOMB / CCAÇ 2791, destacado no CAOP 1 - Teixeira Pinto

Guiné 63/74 - P4887: Em busca de... (87): Pessoal do Pel Mort 2138, Mampatá (1969/71) (José Teixeira / Bruno Ramos)

1. Mensagem do nosso tertuliano José Teixeira com data de 31 de Agosto de 2009:

Carlos
Reporter de serviço
Boa tarde
Junto mail de um filho de antigo combatente que pretende contactos sobre antigos combatentes em Mampatá.

No meu tempo não havia pelotão de morteiros, pelo que não conheci o pai do jovem que escreve.
Por favor põe no blogue.

Abraço fraterno do
José Teixeira


2. Mensagem de Bruno Ramos, filho do nosso camarada Hernâni da Silva Ramos, com data de 31 de Agosto de 2009:

Boa tarde,

Daqui é o Bruno Ramos, falo em nome do meu pai, ex 1º cabo Hernâni da Silva Ramos, do Pelotão de Morteiros 2138 que esteve na Guiné entre 1969 e 1971. O pelotão foi divido por várias localidades, e o meu pai esteve em Mampatá. Segundo o que pesquisei, o Batalhão (*) de Caçadores 2381, 2382, 2834 esteve na Guiné na mesma altura com o Pelotão de Morteiros 2138. Estou a contactar pelo seguinte, caso tenha conhecimento de algum camarada desse pelotão, ou até mesmo conheça o meu pai, por favor contacte ou então forneça algum tipo de contacto de qualquer camarada que julgue que tenha alguma informação importante.

Muito obrigado pela atenção,
Bruno Ramos

Telefone: 916 209 000
e-mail: b_ramos@portugalmail.pt


3. Em mensagem posterior, Bruno Ramos informou que criou um Blogue em nome de seu pai, pedindo a devida divulgação.

Aqui fica o endereço da página:

http://pelotaodemorteiros2183.blogs.sapo.pt/
__________

Notas de CV:

(*) CCAÇs 2381 e 2382, e BCAÇ 2834

Vd. último poste da série de 31 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4886: Em busca de... (86) Informação sobre Américo dos Santos Alves, Sold At NIM 2161/63, da CART 565 e BCAÇ 599 (Fernando Chapouto)

Guiné 63/74 - P4886: Em busca de... (86): Informação sobre Américo dos Santos Alves, Sold At NIM 2161/63, da CART 565 e BCAÇ 599 (Fernando Chapouto)


1. O nosso Camarada Fernando Chapouto, que foi Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426 (1965/67), Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, enviou-nos o seguinte apelo em 29 de Agosto de 2009:

Camaradas,

Lanço-vos o seguinte apelo, solicitando qualquer informação sobre a morte de um militar nosso.


O seu nome era Américo dos Santos Alves Onde, era Soldado Atirador NIM 2161/63 e pertencia à CART 565 e BCAÇ 599.


Vivia em Ferrugende, freguesia de Friões no concelho de Valpaços.


Eu sou da mesma freguesia e como era da mesma idade do falecido, fomos no mesmo dia à inspecção.


Sei que ele morreu em 27/08/64, segundo consta em combate, e foi sepultado no cemitério de Bissau na campa nº 1058.


Nestas férias estive na aldeia com uns sobrinhos, que sabem que eu também estive na Guiné, e me perguntaram se eu sabia a causa da sua morte. Eu disse que não, pois ainda não tinha ido sequer para a Guiné, quando ele morreu.


Fiquei de lhes dar notícias, caso consiga alguma através deste nosso blogue.


Espero que alguém se recorde do sucedido e me informe para o e-mail: fchapouto@gmail.com

Desde já muito agradecido por qualquer esclarecimento prestado.


Um abraço,
Fernando Chapouto
Fur Mil da CCAÇ 1426
_________
Nota de MR:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P4885: Relembrando o nosso querido capelão, Arsénio Puim, no Xitole (David Guimarães)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1970 > O Alf Mil Capelão Arsénio Puim, capelão militar, de origem açoriana (à esquerda), com o furriel Guimarães da CART 2716 (à direita). Devido presumivelmente às suas homilías, o capelão do BART 2917 (Bambadinca , 1970/72) teve problemas com as autoridades do CTIG, acabando por ser detido em Bambadinca, em Maio de 1971, levado para Bissau e, ao fim de um semana, repatriado e demitido de capelão miliar. Terá havido outros casos: o caso talvez mais famoso foi o do Padre Mário da Lixa, também membro da nossa Tabanca Grande.

Até há três meses atrás, era a única foto que possuímos do nosso camarada, hoje enfermeiro reformado, a viver em Vila Franca do Campo, Ilha de São Miguel, Região Autónoma dos Açores, donde é natural (Ilha de Santa Maria).(*)
Por seu turno, , David Guimarães é o membro nº 3 da nossa Tabanca Grande, ex-Fur Mil At Atilharia e Minas, Xitole, sede da CART 2716 / BART 2917 (1970/72). Está reformado da Segurança Social e vive em Espinho.
Foto: © David Guimarães (2005). Direitos reservados.

1. Mensagem de L.G. dirigida ao David Guimarães, com data de 16 de Janeiro de 2008:

Convivi pouco com o capelão Puim. Já não ia missa nessa idade, e muito menos na Guiné, em Bambadinca. Além disso, a malta da CCAÇ 12 tinha uma intensa actividade operacional, ao serviço do comando do do batalhão, sobrando pouco tempo para conviver com a malta da CCS. Levei-o, a ele, Puim, uma vez, numa das nossas colunas logísticas ao Xitole, a ele e à mulher do Carlão... (Ainda me recordo de a ver, de camuflado, e de sapatos de salto alto, vermelhos, à guarda do angélico Puim... Não sei se te recordas: o Carlão era um dos alferes da CCÇ 12, estando na altura destacado no reordenamento de Nhabijões... Alguém se recusou, por razões de segurança, a levar a mulher do Carlão. Deve ter sido o comandante da coluna, um dos nossos alferes ou talvez o Beja Santos, do Pel Cal Nat 52, já não me recordo ao certo... Julgo que a coluna ia mesmo até ao Saltinho. Já não tenho a certeza se ela acabou por ir ou por ficar. O Puim foi dessa vez, e terá sido essa uma das quatro vezes que ele te visitou, no Xitole)...


E posteriormente, a 29 de Janeiro de 2008:

David: Foi nesta altura que conviveste mais com o Padre Puim... Ele ficou no Xitole, duas semanas...Vê se te lembras de mais pormenores, incluindo esta cena da mina e dos picadores de Mansambo... Vou perguntar também ao Humberto, que ia nesta coluna... Julgo que o Vacas de Carvalho também foi... Terá sido no 2º semestre de 1970... O BART 2917 chegou a Bambadinca em meados de 1970 (Junho), tinha a CCAÇ 12 já um ano...


2. Resposta do David Guimarães, com data de 29/1/2008, e até agora inédita:

E pronto, aqui está um problemazinho que nos diz respeito: foi há muito tempo... no tempo da guerra... mas foi, aconteceu. Aquela estrada Bambadinca-Xitole era fértil em tudo e até em minas... Contei há dias algo sobre a Coluna que nos reabasteceu nas alturas do primeiro Natal nosso... 10 de Dezembro de 1970, fixei-me em memória porque efectivamente estive presente na protecção desta e mais tarde no armadilhamento da Mercedes 322 que ficou com a parte da frente destruída quando caiu numa mina reforçada na ponte do Jacarajá e quando regressava a Bambadinca...

Efectivamente houve um com muita gravidade, o 1º Cabo Armindo, da CCS do BART 2917... Este história contei-a já, ainda estamos muitas testemunhas do facto e a apoiar esta informação incluindo os militares da CCaç 12 a que pertenciam o Carlão, o Humberto [Reis], o Henriques (Luís Graça) e tantos outros, claro... Mais testemunhas foram o Major de Operações do BART [2917, o major B.B.] e uma secção onde eu estava - que foi a responsável pela protecção por armadilhamento do que sobrou da Mercedes com três granadas defensivas com arames de tropeçar...

Tudo isto se passou como disse na ponte do Jagarajá - zona de raio de acção das CART 2716, aquartelada no Xitole, e da 2714, aquartelada em Mansambo. Apoiei-me agora em datas, não em factos porque os tenho bem de memória e estão confirmados pelo livro do BART 2917 e inserida esta acção nas pág. 41 de 75 HU-CAP II.

Também creio que não foi esta a coluna onde aconteceu esse guias terem lerpado enfim, na coluna que o nosso capelão seguia... e se deu para além da zona a que eu estava inserido, quer dizer que foi para lá do Jagarajá, quem do Xitole se desloca para Bambadinca...

Claro que, consultando o livrinho, ele poderá avivar, ela foi outra que não essa... mas a data será menos importante que o acontecimento...

A relação com o Capelão do Batalhão - o Padre Puim (**)...

Os quinze dias de convívio com o nosso capelão no Xitole foi importante naturalmente - o Padre Puim era uma pessoa que transmitia paz e segurança, era ouvido atento, conselheiro e amigo e camarada também...

Sei que na Cart 2716, durante aqueles 15 dias, ele foi pessoa bastante importante, o mensageiro da paz dentro da guerra e, curioso, aquela linda Capela que existia testemunhando decerto as nossa crença, foi nessa data usada para celebração de Eucaristia... Há boa maneira portuguesa e em honra a todas as aldeias que representávamos tivemos missa, no Xitole rezada pelo nosso Pároco afinal - o nosso querido Capelão...

Existe para aí uma foto em que eu estou com o Puim junto a uma bananeira - sim, será possivelmente a única foto que temos no blogue - mas é isso, ele procurou estar em todo o lado e esteve - tivemos dias diferentes...

Estava uma pessoa do Batalhão e que nos era querida a todos... Já tanto não seriam outras pessoas ligadas ao Comando, como é óbvio… que tomáramos nós vê-los sempre longe e muito longe - mas isso passou e o tempo ensinou-nos a isso e resta-nos dizer que a guerra era assim e por certo modo entender que efectivamente seria necessária aquela disciplina, mas isso é outra coisa...

O Puim foi uma pessoa que muito cedo se relacionou connosco... Colocados os quadros para formar Batalhão na Pesada 2 logo nos veio ter um Capelão...portanto logo começamos os quadros a relacionarmo-nos com o Padre Puim - curioso que não usávamos o termo Capelão... Creio também que nunca dissemos Meu Alferes, era o Sr. Padre e pronto...

Mas como dizia foi uma como que longa - a tropa era sempre muito - a nossa a estadia com o Padre Puim e portanto existia confiança e lealdade entre nós num relacionamento fraterno, menos militar e muito mais humano... Vi que a tropa aí era um acidente... Não a consegui reprovar contudo razões se impunham, talvez genéticas, sendo que contudo saberia que meu pai tudo faria para me livrar a atropa e ele era profissional - só por isso... Isso está escrito...

Assim o Padre Puim esteve na Pesada 2 (Vila Nova de Gaia), Viana do Castelo, um tempo largo e depois na Guiné... Ele e nós quadros do BART tivemos oportunidade de nos conhecermos muito bem e, como o IAO foi enorme, também os todos os militares que compunham o Batalhão o conheciam bem, a partir de Viana onde estivemos todos. Daí que houve uma grande e sã convivência entre todos - sendo que os Serviços religiosos, inúteis para a maioria, se tornavam essenciais quando apareciam Puims...

Teve o cuidado de visitar todas as Companhias, de ouvir toda a todos os cuidados e paciência de ouvir a todos e mais teve o cuidado de se fazer ouvir também... Assim esteve sempre perto de todos... Creio que se essa era a missão de um Capelão, pois se era ele cumpriu até ao fim, tempo em que deixou saudades a todo o Batalhão, como sabemos (**)...

E por ter sido apóstolo a tempo inteiro, os fariseus não lhe perdoaram...


Um abraço David Guimarães

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)

5 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1925: O meu reencontro com o Arsénio Puim, ex-capelão do BART 2917 (David Guimarães)

16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2444: Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão, CCS/BART 2917, hoje enfermeiro reformado e um grande mariense (Luís Candeias)

18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4372: Convívios (131): CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), com o Arsénio Puim e os filhos do Carlos Rebelo (Benjamim Durães)

19 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4378: Arsénio Puim, o regresso do 'Nosso Capelão' (Benjamim Durães, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72)


(**) Vd. postes de:

14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4521: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (1): No RAP 2, V.N. Gaia, onde fez mais de 60 funerais

10 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4666: Memorias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (2): De Viana do Castelo a Bissau

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4665: Memória dos lugares (33): A minha visita a Missirá, na passagem de ano de 1970, com o médico Mário Ferreira (Arsénio Puim)

domingo, 30 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4884: Estórias do Juvenal Amado (22): O que será na verdade a coragem

1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 27 de Agosto de 2009:

Caros Carlos, Luis, Virginio. Magalhães e restante Tabanca Grande

Era para ser um comentário ao poste 4865 do camarada Carlos Adrião Geraldes que li e reli pois achei muito saborosa.
O Cabo Mqueiro Abel era na verdade aquilo que se pode chamar um desenrascado.

Lembrei-me dos ajuntamentos à volta da minha Berliet, onde os Maqueiros ou Enfermeiros tratavam alguma ferida mais ligeira de algum popular. Era comum aparecerem nas aldeias mais recondidas, mulheres e crianças com sarna que eram tratadas logo no local. Entretanto, nós trocavamos os comprimidos de sal por fruta. Eles ficavam contentes e nós ainda mais.

Um abraço para todos
Juvenal Amado


O que será na verdade a coragem

O André era de compleição robusta, transmontano de gema cedo puxou pelo físico nos campo e possivelmente na construção civil. Se bem me recordo, os baldes, em madeira e chapa de zinco, cheios de massa eram acartados ao ombro dos garotos serventes, que ainda em idade escolar tinham que ajudar os magros rendimentos das famílias. Muitos chegaram às fileiras do Exército só com as 2.ª e 3.ª classes do ensino obrigatório.

O peso dos baldes era hoje muito para a maioria dos adultos e estamos a falar de crianças.

Isto repetia-se por todo o País e não só na terra do André.

Quando chegaram à idade militar, uns foram utilizar essa força, construir as cidades de países já livres de disputas coloniais, que utilizaram os seus meios económicos para se modernizarem e darem bem estar ao seu povo.

De forma indirecta ajudaram a perpetuar com as suas remessas monetárias o regime e a guerra, que os obrigou a procurar sobrevivência por toda essa Europa livre.

Outros tiveram que utilizar a mesma força, incorporando os contingentes que foram sendo despejados em África nos principais teatros de operações.

Mas voltando ao André, quis a sorte que ele fosse escolhido para Maqueiro.

Penso que ele se sentia mais à vontade a usar a espingarda do que a seringa. Gostava da acção, e a provar foi a forma em como no ataque a Galomaro utilizou o morteiro 60 mm pondo a zona de onde o IN atacava a ferro e fogo.

Mas, os maqueiros tinham uma especialidade em que a primeira coisa a fazer era prestar socorro aos feridos, e mesmo debaixo de fogo, tentar ajudar quem deles precisava, esquecendo que também eles eram alvo das balas inimigas.

Era pois uma coragem em que se escolhia os outros primeiro.

Assim, 15 dias antes do ataque a Galomaro, o André esqueceu as possíveis minas e de um salto já estava ao pé do Teixeira que lançava gritos lancinantes de dor e de espanto.

Ninguém lá chegou primeiro que ele, tal era o seu espírito solidário.

Medicou, fez torniquetes e deu esperança ao nosso camarada gravemente ferido. Finalmente as lágrimas correram-lhe pelo rosto em sinal de revolta, quanto fechou aqueles olhos que já não viam.

O André quando regressou também emigrou e foi construir as cidades dos outros, cumpriu assim o destino luso.

Conseguiu o bem-estar, que até aí lhe tinha sido negado. Construiu na sua terra uma maison com garage e terá assim feito planos para que os filhos não passassem o mesmo que ele passou, quando finalmente regressasse.

Que outra maneira poderia ser?

Homem que não aprende com o passado não tem futuro.
Juvenal Amado

Pessoal de Saúde de prevenção no decorrer de uma Operação. Da esq. Fur Graça, Médico, André e Catroga

Tratamento em ambulatório - Cabo Enfermeiro Catroga

Vacinação

O Alf Vasconcelos e o Médico Vieira Coelho

O Alf Vasconcelos e o Médico Vieira Coelho

Furriel Graça com população

Fotos: © Juvenal Amado (2009). Direitos reservados.

__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4854: Estórias do Juvenal Amado (21): O dia de Alcobaça e a Feira de S. Bernardo, dia 20 de Agosto

Guiné 63/74 - P4883: Notas de Leitura (19): Sobre o legado teórico de Amílcar Cabral (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 27 de Agosto de 2009:

Camaradas,

Aqui vai uma recensão sobre uma obra que apareceu em 1974. Em correio separado, vou novamente enviar-vos, também com o pedido de publicação de um texto e imagem sobre uma edição igualmente histórica da obra política de Amílcar Cabral publicada em França, em 1970.
A seguir remeto-me ao silêncio, tereis notícias das minhas leituras em Setembro. Recebei a minha estima e elevada consideração.


Sobre o legado teórico de Amílcar Cabral

Imediatamente após o 25 de Abril de 1974, as Edições Afrontamento deram à estampa várias publicações alusivas à história dos movimentos de libertação operantes nas colónias portuguesas. No conjunto dessas iniciativas é de ressaltar uma antologia organizada pelo Luís Moita e Maria do Rosário Moita relativa ao pensamento de Amílcar Cabral: “Textos Políticos”, assim se intitula esta antologia abreviada que permitiu ao leitor português conhecer o pensamento do antigo secretário-geral do PAIGC.

É sobre essa raridade histórica que iremos à frente falar. A antologia aparece organizada em torno de três temas fundamentais: a história do movimento de libertação; a teoria que fundamentava a acção no movimento de libertação; e a natureza da política anti-colonial, na perspectiva das relações internacionais. No final, são transcritas longas passagens daquele que foi considerado o testamento político de Amílcar Cabral – o seu último discurso, a sua mensagem de ano novo em 1 de Janeiro de 1973.

Cabral foi reconhecidamente um dos maiores teóricos na luta anti-colonial, deixou um pensamento que pode ser ainda hoje explorado para múltiplas leituras nas dimensões política, social e cultural. Agrónomo especializado na erosão dos solos, aparece na Guiné nos anos 50, onde irá proceder a um recenseamento que lhe irá permitir um contacto profundo com todos os grupos étnicos guineenses, avaliar as potencialidades económicas da região e conhecer minuciosamente todas as suas infra-estruturas e equipamentos. Dirá mais tarde que não foi em vão que optou por vir trabalhar para a Guiné, ele que fora convidado para assistente no Instituto Superior de Agronomia.

De formação marxista, crente nas teses que então vigoravam sobre a integração económica na emancipação do continente africano, estava atento às questões tribais, à natureza específica de um proletariado rural que se devia aliar a uma minúscula burguesia, confinada aos pequenos centros urbanos.

Tentou na Guiné criar uma associação cívica, as autoridades de Bissau não autorizaram a constituição dessa associação, alegando que a maioria dos proponentes não pertencia à classe dos “civilizados”. Mais tarde, em 1956, será um dos fundadores na clandestinidade do PAIGC. Nos anos subsequentes, a Guiné Conacri e o Senegal tornam-se independentes, ateia-se o rastilho que vai possibilitar o apoio ao PAIGC, sobretudo a partir de Conacri.

Cabral, um político de visão, toma nota que a luta armada em que se vai envolver é num território que precisa de ter uma língua de coesão e uma atitude eminentemente libertadora e identitária, já que os líderes de Conacri não escondem o desejo da anexar o território da Guiné portuguesa para criar “a grande Guiné” e Senghor também não dissimula que pretende ter um papel director no novo país de língua portuguesa.

O PAIGC torna-se uma realidade no espectro político africano em 1961, ano em que se inicia a Guerra Colonial e se dá uma vaga de prisões de quadros do PAIGC. Cabral tudo estrutura, tudo organiza, tudo escreve, torna-se na figura emblemática do PAIGC, é o mais prestigiado líder dos movimentos de libertação. No final de 1962, apresenta-se numa comissão das Nações Unidas e apela para que acabe urgentemente a presença colonial portuguesa na Guiné e em Cabo Verde.

Em 1963, depois de ter rejeitado quaisquer alianças com outros movimentos libertadores da Guiné, inicia-se a luta armada, criou-se a cisão da influência territorial entre a potência colonialista e o movimento de libertação, em pouco mais de dois anos alterou-se radicalmente a forma de ocupação do território guineense, falando-se, em termos de propaganda do PAIGC, em zonas libertadas, zonas temporariamente ocupadas pelas tropas portuguesas e zonas em discussão. A aprendizagem da luta armada faz-se em tempo acelerado, entrou-se a sério numa guerra de guerrilhas, militar e socialmente muito violenta.

O líder do PAIGC não tem ilusões sobre o carácter da mobilização de massas para a luta da independência. Diz sempre que o colonialista português não se apropriou das terras da Guiné, não criou concentrações de colonos, não deslocou grandes massas de africanos para pôr no seu lugar colonos europeus, como aconteceu em Angola.

Na Guiné manteve-se a propriedade colectiva da aldeia, o que dificultou a sensibilização dos camponeses, demonstrando-lhes como eles eram explorados na própria terra. Influenciado por outros teóricos africanos, Cabral considerava que a África do tempo não era tribal, seria a luta para ter pão e viver com dignidade que iria rapidamente influenciar a coesão de todos os guineenses (como se sabe, não só esta base teórica era falsa como veio a propiciar equívocos tremendos de que a Guiné ainda não se libertou).

Onde o seu pensamento se revelou inegavelmente heterodoxo foi na sua leitura de classes, na natureza das alianças em tempo revolucionário, na ênfase dada ao papel da cultura e na argumentação utilizada para demarcar a luta anti-colonial da estima fraterna sentida pela população portuguesa.

Esta antologia, convém insistir, está marcada pela data em que apareceu no mercado português e pelo tempo da euforia da independência, logo em 1974. É um livro que fala mais do pensamento do lutador do que do visionário da construção da nação guineense.
Na época, ainda ninguém tinha coragem em desmascarar a inviabilidade de forçar a Guiné e Cabo Verde a coabitarem no mesmo Estado, sabendo-se, como já se sabia, que eram duas realidades completamente distintas, tanto na história do colonialismo, como na economia, educação, valores, religião, etc.

A antologia também por isso não acolhe a visão de Cabral sobre o modo de transformar a Guiné como país subdesenvolvido numa nação na senda do progresso. Vários estudiosos do pensamento de Cabral observam que a sua experiência sob o desenvolvimento estava condicionada pela organização das zonas libertadas, não deixou reflexão teórica sobre um estádio superior de desenvolvimento pós-colonial.

Esta é a antologia de 1974, nela palpita o pensamento e a visão de um lutador optimista, prestigiado e dotado de uma enorme capacidade de comunicação e humanismo. Lêem-se estes textos políticos à luz de um grande sopro libertador, pois para Cabral o mais importante era libertar o povo e confiar no homem.

Como ele escreveu “O homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer história, porque não pode libertar-se do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas”.

Com um grande abraço de camaradagem,
Beja Santos
Alf Mil Cmdt do Pel Caç Nat 52
Imagem: © Beja Santos (2009). Direitos reservados.
___________

Nota de MR:

Guiné 63/74 - P4882: Notas de leitura (18): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte IV e última) (Luís Graça)


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CART 1661 (1967/68) > Monumento ("Para ti, soldado, o testemunho do teu esforço")


Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados



Infogravura: © Luís Grça (2009). Direitos reservados


Notas de leitura > IV (e última Parte (*) > O fim de um pesadelo

Um amanhecer em Porto Gole...

Vemos de novo o Abel Rei a ocupar o cargo de cabo vagomeste, em substituição do responsável pelo depósito de géneros da companhia que está de férias na metrópole. Um pouco mais descontraído, o Abel dá azo à sua veia literária descrevendo um amanhecer na Guiné, num dos dias em que esteve de sentinela ao quartel… (25/4/1968, Porto Gole, pp. 143-143).

Nessa altura já havia gerador em Porto Gole, o qual era desligado ao amanhecer.

“Com sons de todas as distâncias, ouvem-se os mais variados cantares das aves. São cinco horas e vinte da madrugada (…). Há dez minutos que o dia começou a nascer: primeiro lento, sem pressa, como se preferisse não sair da escuridão, depois como a volúpia dum prazer, rápida, com a aclamação de toda a natureza à sua volta”.

O tão característico cacimbo das madrugadas da Guiné cobre, com o seu manto branco, o rio e a mata: “Avista-se entre as árvores espesso nevoeiro, o mesmo que torna húmidas e frias estas manhãs tropicais – confundindo a mata com o rio, que neste momento apresenta uma crista de areia no meio, a quatro ou cinco quilómetros de mim” (p. 143).

Os primeiros sinais de vida, em Porto Gole, em pleno ‘chão balanta’, são já perceptíveis pelo nosso cabo Abel Rei, no seu posto de sentinela:

“Poucos minutos mais volvidos, e já está o dia nascido. O homem encarregado do motor-gerador já o fez parar. Os abutres vieram até aos limites do rancho ‘fazer limpeza’, enquanto os porcos lá continuam a sua tarefa de demolir tudo com o focinho. Os galináceos limparam do chão os grãos de ‘bianda’ mais próximos; e os cães correm de um lado para outro” (…).

Na tabanca, são as mulheres, sempre as mulheres, quem se levanta primeiro:

“Primeiro poucas, e agora em mais quantidade, as mulheres nativas correm para a ‘fonte’ – um poço que se encontra rodeado duma pequena horta, tendo algumas árvores em volta; mangueiros, laranjeiras e cajueiros – donde levam água clara, com que se saciarão durante o dia (..). Com as bilhas cheias, elas já regressam. Na tabanca já se ouve, em ritmo cadenciado, o pilão a martelar na ‘bianda’. Começa a soprar uma ligeira aragem” (pp. 143/144).

A Abel ainda usa o termo ‘indígena’, quando se refere à população local, vocábulo com conotações colonialistas que deixa de se ouvir no tempo da Guiné Melhor, com Spínola:

“Os indígenas não utilizam filtros como nós para limpar a água; metem-na em bilhas de barro e ela depois assenta” (p. 144).

Pareceria um quadro quase idilíco e perfeito de harmonia com o homem com a natureza, se não fora a presença da guerra e da morte… No quartel, já se ouve remexer nos tachos e panelas. O padeiro e o cozinheiro já se levantaram e estão em funções… 

“E eu termino… Arma às costas, e deixo o meu posto de sentinela!... Pelas duas horas da tarde, seguiram finalmente as duas urnas para Bissau numa lancha de fuzileiros” (p. 144).


Bissá ‘embrulha’ mas resiste…

Por essa altura prossegue o reordenamento das populações da região, a par da construção de um fortim (um posto avançado nos limites do aquartelamento de Porto Gole). No final do mês de Maio de 1968, o Abel volta a “alinhar” como operacional, com o regresso, de férias, do cabo vagomestre.

Em Bissá, durante o mês de Maio, o PAIGC continua a fazer “a vida negra” às NT… De acordo com a história da unidade:

(i) a 3 há um morto confirmado no ataque a Bissá; 

(ii) a 8, um grupo estimado em 100 elementos volta a atacar o destacamento, durante 1 hora, com armas ligeiras e pesadas, embora sem consequências para as NT, enquanto que o IN retira com “bastantes baixas” (inclusive teria sido ferido o comandante da base de Changalene);

(iii) a 14, novo ataque, sem consequências;

 (iv) a 29, um pequeno grupo de 12 elementos faz uma flagelação de 5 minutos a Bissá… (p. 146).

É uma das poucas vezes em que o Abel Rei se permite fazer um juízo sobre o curso da “guerra que se vai arrastando, sem soluções à vista – ora atacando, ora defendendo” (p. 146).

A 2 de Junho de 1968, a CART 1661 recebe a visita do novo Com-Chefe e Governador-Geral, Brigadeiro António Spínola, que tinha acabado de chegar ao CTIG (p.151). Nas vésperas, as NT tinha sofrido um desaparecido e 7 feridos. O PAIGC, por sua vez, teve uma baixa mortal importante, a do chefe de bigrupo (?) António Cambará (ou Camará ?), na sequência da Op Gato Pimpão (p. 150).

Na Op Gato Pimpão, a CART 1661 actou conjuntamente com forças da CCAÇ 2315 (Mansoa, 17/1/68 – 4/12/69) e do Pel Caç Nat 54 (Porto Gole). Essa operação constou de batidas às matas a norte de Seé e Bissá. As NT foram divididas em dois agrupamentos. Um deles esteve debaixo de fogo durante 3h30 (!), quase ininterruptamente.


Um homem apanhado à mão

O Abel Rei faz uma dramática descrição desta situação que ele viveu intensamente. Vale a pena citar alguns excertos, para termos uma ideia mais precisa do pesadelo em que se podia transformar um simples patrulhamento ofensivo, às portas de casa, bem como da ferocidade em que por vezes se transformavam os combates (Porto Gole, 1/6/1968, pp. 148-150):

(i) acordado à uma da madrugada, o Abel partiu às 3…“O nosso destino era uma ligeira patrulha nas matas de Seé, a pouco mais de 10 km de percurso” (p. 148);

(ii) tudo parece correr, dentro da ‘normalidade’, até às 6 da manhã, quando as NT são avistadas por uma sentinela avançada do PAIGC que dá o alarme;

(iii) à entrada de uma bolanha “rodeada de uma mata espessa”, são emboscados pelos guerrilheiros (leia-se: “inimigos”); após tiroteio intenso, as NT são obrigadas a retroceder; há cinco feridos, entre eles o capitão da CCAÇ 2315;

(iv) depois avançaremao longo da mata, "com as forças inimigas bem instaladas e a fazer fogo constante sobre nós",  aontece que "num momento de maior aflição era deixado o capitão e alguns homens nessa dita zona de morte” (p. 149);

(v) nesse momento, o Abel estava “no meio da bolanha”, oferecendo um alvo fácil ao IN, ouvindo passar por cima de si “rajadas e roquetadas” e vendo os seus camaradas a ‘fugirem’ em direcção de Bissá…

E é nessa altura que o Abel se apercebe da gravidade da situação;

“Gritei!... Pedi que recuassem!... E vi os turras correrem para os que estavam em perigo. Depois – disse um soldado de nome Pombinho, de quem eu trazia a arma – ‘os turras avançaram, mandando-lhe levantar as mãos e ordenando que se rendesse’. A resposta dele foi uma rajada com uma arma de um ferido, obrigando-os a fugir para o mato” (p. 149)…

 (Esta descrição é interessante, por duas razões: é reveladora da intenção dos guerrilheiros do PAIGC em fazer prisioneiros: interessava-lhes muito mais um tuga vivo na mão do que tugas dois mortos; e, por outro, o comportamento do Pombinho tanto pode tipificar uma situação de heroísmo em combate, como pode ser sido ditado pelo desespero de um animal acossado pelo medo).

Há dois grupos de combate que recuperam e reagrupam os que ainda estavam na zona de fogo:~

“À frente, tudo corria para Bissá. Atrás ficavam duas armas: uma pesada MG e uma ligeira G3; e o pior de tudo, um homem da outra companhia, [a CCAÇ 2315, de Mansoa, ] era apanhado à mão pelo inimigo! (Mais tarde falou-nos de Conacri, via rádio, a informar-nos que se encontrava bem)” (p. 149).

No regresso a Bissá chegam dois bombardeiros e um helicóptero que faz a evacuação do capitão e de mais dois feridos graves…

Com apoio aéreo, partem de Bissá às duas da tarde do dia 1 de Junho de 1968, para enfrentar mais três horas, penosas, de caminhada a pé até Porto Gole…

 E o relato, dramático, deste dia termina assim: 

“Apesar de ter poucas esperanças em aguentar essas três horas de andamento, abalei disposto a cobri-las, pois trazia unicamente no pensamento o nome de Porto Gole! (…). Cansado e sem forças, fui o primeiro a chegar a Porto Gole” (p. 150)

Entre os feridos graves (e evacuados) da secção do Abel está o outro cabo, o 1º Cabo Arnaldo Victória Lopes… 

“Três dias passados após a fatídica ‘patrulha’, o meu corpo anda todo partido, e dificilmente me sai da cabeça o espectáculo daquele infernal tiroteio” (Porto Gole, 3/6/1968, p. 151).

A 4 de Junho o Abel jura ter avistado um “helicóptero dos turras” (sic), a cerca de 3 km de Porto Gole, em pleno Rio Geba, por volta das onze e meia da noite, quando ele estava em serviço de reforço… (pp. 151/152). Miragem, ilusão de óptica, pesadelo ?... Não seria o primeiro militar português a alegar ter visto aeronaves do PAIGC… À distância de 3 km, e à noite, é difícil reconhecer uma aeronave a não ser eventualmente pelo barulho dos motores…

Enquanto Bissá continua a ser flagelada pelo IN, obrigando a um tremendo esforço de reabastecimento do destacamento por parte de Porto Gole, a escrita do diário do Abel vai rareando, devido à “preguiça da caneta” (p. 155).

Numa coluna até Bissá, a 15 de Junho de 1968, Abel dá-se conta, novamente, da dramática situação em que se encontram as tropas locais: 

“Pude averiguar que as tropas em Bissá estão sem comida e sem bebida. O seu alimento é à base de arroz miúdo comprado na tabanca, a água é escassa e salobra… Na breve conversa que pude ter com os mais responsáveis, foi-me pedido, a título de desespero (sic), o envio de cerveja assim que me fosse possível” (p. 53). A 12 e a 17 de Junho, Bissá é de novo flagelada…

A 20 o destacamento começa a ser reabastecido, com recurso a pessoal balanta, requisitado pela tropa (?), para transporte, a pé, à cabeça, dos géneros alimentícios e outros… O Grupo de Combate do Abel faz a segurança à coluna… 

“A bolanha está seca e, com o forte calor que faz, tanto nós como os nativos, quase rebentamos com a caminhada. A nós (…) coube-nos fazer o segundo dia de patrulha: ainda faltam mais dois para lá colocar tudo (?)… O júbilo em Bissá é enorme”, como é fácil de compreender (Porto Gole, 21/6/1968, p. 154). 

Não houve contacto com o IN, que se limitou a observar e vigiar as NT…


Quando a velhice é um posto

O Abel perfaz 18 meses em 4 de Agosto de 1968. A efeméride foi condignamente celebrada: nesse dia, “o álcool fez sentir os seus efeitos, para celebrar a passagem à ‘velhice’ – num novo posto avançado, denominado Fortim, onde me encontro desde o dia trinta de Julho” (pp. 155/156). Recorde-se que a “velhice” na Guiné era um posto e os 18 meses era uma espécie de barreira temporal, a partir da qual se esperava a desaceleração da vivência da guerra e começava a contagem decrescente para a ‘peluda’… A vontade de combater, que já era pouca, reduzia-se a níveis próximos de zero… Aumentavam os casos de indisciplina e até de insubordinação.

O paludismo e a “bicharada” continuam a causar “dores de cabeça” ao Abel.. Como se isto não bastasse, é vítima de um roubo (documentos e algum dinheiro), “desviada da minha mala, no último abrigo onde estive em Porto Gole”, onde estava com mais 12 militares (“entre brancos e negros”)… Um dos suspeitos terá sido “um soldado nativo, que dormia numa cama ao lado da minha, dentro do abrigo” (p. 157). Nada se conseguiu apurar… Entretanto o Abel é destacado para o Enxalé.

Também o Enxalé, onde ele agora se encontra, “cá tá sabi” (22/8/1968, p. 157)… Mas três semanas depois o estado de espírito do Abel parece ter mudado. Eis aqui uma inesperada mas genuína confidência: “O meu estado moral e físico está melhor. Desde a minha chegada à Guiné, foi esta a ocasião em que tomei melhores conhecimentos com a população nativa, com os quais conquistei algumas amizades… E, em suma, maiores efusões de desejos!” (p. 158). Talvez por pudor ou autocensura, o Abel não acrescenta mais pormenores sobre as ‘amizades’ (femininas, obviamente) que fez no Enxalé…

Está aqui um português, de corpo inteiro, que parece ter-se rendido aos encantos das ariscas bajudas balantas (?) do Enxalé… Mas não há bela sem senão… No espaço de um mês, o Abel volta a ser roubado… A 13 de Setembro de 1969 dá conta do desaparecimento da caixa com o dinheiro da venda diária de géneros à população local… Os interrogatórios não deram em nada (p. 159).

A 1 de Outubro de 1968 o Abel celebra 20 meses de velhice… Entretanto “correm boatos de que os turras estão reforçados com elemento cabo-verdianos e cubanos (?)”…Nesta altura também já estava a ser electrificado o destacamento do Enxalé…


O fim (?) de um pesadelo

Mais de um mês depois, a CART 1611 “está finalmente fora do mato”, aboletada no Depósito Geral de Adidos, em Bissau, aguardando ordem de embarque (Bissau, 10/11/1968). Em três linhas o Abel diz-nos tudo sobre o DGA: “A anarquia é total. E extensiva aos nossos superiores. Impossível confusão tão completa. Sobretudo à noite, quando os nosso corpos necessitam de descanso” (…) (p. 162).

Por fim vem a viagem de regresso no Uíge, que parte a 19/11/1968… Na véspera, às 16h, o Abel é metido num batelão que depois o levou ao Uíge… Desta vez, ele tem (tal como o resto da companhia) o privilégio de vir em camarotes (p. 163).

É altura de se fazer um balanço destes 22 meses de vida de um militar:

(i) “No sentido da camaradagem, o meu ponto de visto é excelente” (p. 164);

(ii) “A nível de chefias, nem tudo foi cor-de-rosa (…). Testemunhei algumas injustiças” (...) (p. 165);

(iii) “Agora que o pior passou, a alegria não tem limites, e o meu maior prazer foi finalmente poder dar com os dois pés (sic) nesta vida, a que estive obrigatoriamente submetido” (p. 165);

(iv) “(…) tudo o que ficou escrito [, no meu livrinho, que trazia sempre comigo no dolmã,] não se tratou senão de simples partes vividas” (p. 165);

(v) O autor confessa que acabou por se impor a si próprio a chamada memória selectiva, isto é, “omitir factos tão ruins, que eu nem os conseguia descrever, e com a sua omissão convencer-me de que nunca aconteceram” (p. 166). Podemos tentar adivinhar quais, mas é sempre especulativo... O silêncio do autor é de ouro, mas é uma pena, se ele, passados 40 anos, não satisfaz a curiosidade dos seus leitores e dos seus camaradas do blogue...

(vi) Modestamente reconhece que a sua missão não foi das mais árduas: “outros houve que sofreram muito mais” (p. 166), daí talvez a razão do título do livro, Entre o inferno e o paraíso (eu diria que o Abel conheceu algumas estações do inferno, como todos nós; e que também conheceu um pedacinho do paraíso; em todo o caso, é preciso entender o uso, que se fazia na época, destas duas metáforas, que hoje não podem ter a mesma leitura).

(vii) A última palavra do autor é, com toda a justiça, para os “heróis desconhecidos desta guerra”, todos aqueles “que mais ninguém recordará, a não ser os pais, irmãos, esposas e filhos” (p. 166).

Em anexo ao livro, é publicada a lista das baixas (mais de 70, entre mortos e feridos graves) da CART 1661, da Polícia Administrativa de Porto Cole, e do Pel Caç Nat 54. Num total de 43 baixas, só a CART 1661 teve mais do que 58% motivadas por accionamento de minas (vd. gráfico acima).

Como nota final, é de destacar a honestidade intelectual do autor que recusou a tentação de, décadas depois, “retocar”, “embelezar” ou “rever” o seu diário, escrito entre 1 de Fevereiro de 1967 e 19 de Novembro de 1968. A única coisa que ele terá acrescentado, posteriormente, foram as notas de rodapé, com apontamentos (factuais) retirados da história da CART 1661… Não tenho dúvidas de que o nosso cabo Abel Rei deu um contributo importante, ao escrever e publicar o seu diário, para a compreensão sócio-antropológica do quotidiano dos militares portugueses durante a guerra colonial na Guiné (1963/74)…

É um documento singelo, escrito por um homem bom, recto e simples, dotado de talento literário mas com pouca literacia como a maior parte dos homens da sua/nossa geração (tinha, na época, apenas a 4ª classe), um homem nascido em 1945, de família operária, e que viveu num meio social, como a Marinha Grande, onde havia uma forte tradição de cultura operária, de autodidactismo, e de resistência ao poder político, típicos da aristocracia operária do Séc. XIX e princípios do Séc. XX.

Deliberadamente ou não, o Abel nunca assume a condição de soldado que está ali, no “Ultramar”, como então se dizia, para defender a Pátria. Veja-se a imensa alegria com que ele, tal como todos nós, saúda a ‘peluda’… Percebe-se, ao longo da leitura do diário, que o moral das NT, nomeadamente no subsector de Porto Gole, já era mau, que o PAIGC exercia um forte pressão a sul do Oio, que a situação militar parecia estar a degradadar-se no final do consulado do Schultz, sem que contudo se pudesse dizer que a guerra estava ganha para o PAIGC… Usando as próprias palavras do autor, “era uma guerra que se ia arrastando sem soluções à vista”, de um e do outro lado…

Verifica-se que na época da CART 1661 o destacamento de Bissá é um osso duro de roer para as NT, que é alvo de frequentes ataques e flagelações, mas a verdade é que o PAIGC nunca conseguiu desalojar as tropas da CART 1661 que o defenderam, reforçadas com um pelotão da polícia administrativa de Porto Gole. E não foi, no tempo do Spínola, abandonado, contrariamente ao que aconteceu a outros destacamentos e aquartelamentos, de que já aqui temos falado sobejamente: por exemplo, a Ponta do Inglês (no subsector do Xime), Beli (na região de Madina do Boé), a própria Madina do Boé, etc., etc. (para não falar já no sul, na região de Tombali, sendo o caso mais flagrante o de Gandembel)… Pelo menos em 1973 Bissá ainda existia e continuava a ser atacada pelo PAIGC (segundo testemunho do António Graça de Abreu, quando esteve no CAOP1, em Mansoa).

O Abel teve o mérito de pôr no mapa da guerra da Guiné o nome de Bissá, sobre o qual poucos de nós sabiam alguma coisa. Um camarada nosso que conheceu bem a região de Porto Gole, Bissá e Enxalé, o Henrique Matos, 1º comandante do Pel Caç Nat 52 (1966/68) já aqui veio reconhecer que a manutenção de Bissá foi um erro, possivelmente pelo elevado custo, em vidas humanas, que terá acarretado.

Luís Graça
__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

12 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4820: Notas de leitura (15): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte II) (Luís Graça)

24 de Agosto de 2009 > Guiné 1963/74 - P4858: Notas de leitura (16): Memórias do inferno de Abel Rei (Parte III) (Luís Graça)