1. Mensagem de Carlos Azevedo, ex-1.º Cabo da CCAÇ 6, Bedanda, 1971/72, com data de 1 de Setembro de 2009:
Caríssimo Luís Graça
Antes de mais vou-me apresentar.
Fui um entre tantos que cumpriram o serviço Militar na bela Guiné.
Tive dois Capitães na Companhia em Bedanda, o Sr. Capitão Carlos Ayala Botto e o Sr. Capitão Gastão, dois Homens com um H Grande!
Não fui herói, nem exemplo extraordinário.
Tenho acompanhado desde o início estes trabalhos no teu blogue, e a dada altura vejo alguém que esteve em Bedanda no meu tempo (71-72), não sei se por ter estado no Pelotão destacado, o certo, é que não encontrei o tal Vietname referido por esse meu Camarada de armas. Claro que as coisas por vezes não eram fáceis, daí ao Vietname.
Passei bons momentos e alguns menos bons!
Fiz grandes amigos nessa CCAÇ 6 (Companhia de Nativos) onde poucos éramos europeus.
No Pelotão (7), entre eles só um trasmontano, Ismael Barros, radicado há muitos anos em França, que me contou que Nino Viera se entregou a ele em Bedanda em 1973, Fevereiro ou Abril, no tempo do Sr. Capitão Gastão, estando em Bedanda uns dias a ser interrogado por pessoal vindo de Bissau. Disse o meu amigo que nesses dias foi um pandemónio em Bedanda. Terá sido levado para Bissau? O certo, é que se lhe perdeu o rasto.
Aquando do exílio do Sr. Nino em Vila Nova de Gaia, o meu amigo Ismael mostrou interesse em falar com ele; pediu-me inclusive para eu tentar contactar com o Sr. Major Valentim Loureiro, que foi cônsul na Guiné, mas eu nunca consegui.
Mas o mais engraçado disto tudo, é que quando em 2000 regressei à Guiné, com entre outros o nosso camarada Albano Costa, indaguei junto do nosso motorista, um tal Tcheno, que me referiu que na altura dos factos era muito jovem, admitindo no entanto essa possibilidade, devido às muitas pressões desde o assassinato de Amílcar Cabral.
Como vês, há tanta coisa por se saber... Histórias muito mal contadas pelos Capitães, nomeadamente os de Bissau, e também os nossos governantes, os de antes e os de agora. Digam a verdade! Esses Senhores que nos respeitem um pouco, porque demos o melhor de nós, fazendo sempre o que nos foi exigido e foi, muito, a troco de nada.
Sabes, o meu camarada trasmontano não mente!
Com um abraço para a Tabanca toda,
Carlos Azevedo
Carlos Azevedo em Bedanda
2. Comentário de CV:
Carlos, bem-vindo à Tabanca.
Se bem te lembras, estivemos a conversar a última vez em Lavra, aquando da inauguração do Memorial aos combatentes da Freguesia.
Sempre resolveste vir até nós, esperamos que para nos contares a tua experiência por Bedanda.
Como sabes, aqui no Blogue pautamo-nos por, dentro do possível, falarmos de factos que vivemos pessoalmente ou que são fundamentados em bases sólidas.
Se for verdade o Nino ter-se apresentado em Bedanda, ser lá interrogado, e de repente perder-se-lhe o rasto, como se justificou a sua fuga, uma vez que não se tratava de um simples guerrilheiro, mas de um alto responsável pela operacionalidade do PAIGC no sul da Guiné? Se ele se apresentou voluntariamente, por que se ausentou de novo sem nunguém dar conta? Esta fuga teria consequências muito complicadas para quem estava responsável pela sua guarda.
Esperemos que apareça alguém a corroborar este episódio.
Camarada, estás formalmente apresentado à Tabanca, agora é só começares a trabalhar.
Recebe um abraço de boas-vindas da tertúlia.
CV
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4822: Tabanca Grande (171): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana (1968/69)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
Guiné 63/74 - P4914: Os Nossos Enfermeiros (2): As malditas doenças venéreas e a bendita... penicilina (Armandino Alves, CCAÇ 1589, 1966/68)
1. Mensagem do do Armandino Alves, ex-1º Cabo Auxilitar de Enfermagem, CCAÇ 1589 (Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, 1966/68), que vive no Porto:
Caro Luís Graça:
Recebi o o teu e-mail e fiquei admirado com a existência do referido Livro (*). Nem na recruta nem no Ultramar foi distribuído tal livro ao serviço de Saúde para ser entregue aos militares .
Mas pelo que depreendo deve ter sido para a Guerra de 1940/45. E digo isto porque em 1960 Salazar acabou com a prostituição (**). Isto diziam eles. Como deves saber até essa data havia as chamadas casas de tia e vários cafés especializados nisso (no Porto havia o Derby, o Royal, o Moderno e o Portuense onde elas estavam sentadas nas mesas e era só escolher).
Nessa altura elas possuíam um livrinho, tipo Boletim de Vacinas, onde era anotado pelo Médico o estado delas. Se fossem apanhadas pela Polícia com o livrinho com a inspecção fora da validade dava 3 anos de cadeia. No Porto essas inspecções eram feitas num anexo nas traseiras da Biblioteca Municipal do Porto .
Ora como na teoria tinha acabado a prostituição para quê mandar editar esses opúsculos ?
A verdade é que o que existia nos postos Médicos das unidades (e nem em todos) era umas caixinhas com umas bisnagas com um produto que eu nem me lembro do nome, que o soldado solicitava quando queria ir às putas, mas tinha que se anotar o nome, dia e hora a que era solicitado. Claro que ninguém ia buscar o dito tubinho.
E foi assim que, quando a minha Companhia regressou do mato a Bissau e os Soldados se sentiram livres, apareceu-me passados dias em vários soldados os sintomas da blenorragia.
Ora isto tinha que ser comunicado ao Médico que por sua vez informava o Comando da Companhia que por sua vez agraciava o infractor com cinco dias de detenção. Ora detidos já tinhamos estado nós no mato durante um ano e, como eu já sabia que o médico ia receitar Penicilina na dose mais forte, foi o tratamento que eu lhes prescrevi e para estarem na enfermaria a X horas para ser eu a aplicar as referidas injecções. Só que para meu azar um dos atingidos por motivos de serviço não pode estar no horário previsto e foi ter com o Cabo Enfº de Dia para que lhe desse a injecção. Como ele não sabia de nada comunicou ao Médico que comunicou ao meu Comandante que chamou o soldado que lhe disse que tinha sido eu que o mediquei.
Claro que fui chamado ao Comandante que me ameaçou com os referidos 5 dias de detenção. Eu então perguntei-lhe se fosse no mato o tratamento era o mesmo.
Felizmente o Comandante, atendendo aos bons serviços prestados durante toda a Comissão, rasgou a participação do Médico e ficou tudo em águas de bacalhau.
O que as brochuras dizem não é bem o que se passa no terreno a nível prático. A gente vai-se desenrascando conforme pode e sabe e isso às vezes salvava vidas.
Armandino Alves
2. Comentário de L.G.:
A ilegalização da prostituição e das casas de passe (ou de tolerância, ou casas toleradas, como a famosa Casa da Mariquinhas), com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1963, foi feita pelo Decreto-Lei nº. 44579, de 19 de Setembro de 1962, emanado dos Ministérios do Interior e da Saúde e Assistência, do Governo de Salazar, (documento disponível aqui, em formato pdf).
As prostitutas eram equiparadas a vadios, para efeitos de "aplicação de medidas de segurança" (sic). Às menores de 16 anos aplicar-se-iam "as medidas de protecção, assistência ou educação" legalmente previstas... No preâmbulo do dipploma, o legislador faz remontar a 1875 o início do "movimento abolocionista" (oposto ao regulamentarismo) e evoca o nome do prestigiado médico e professor Ricardo Jorge para justificar a natureza repressiva da decisão, em nome do superior interesse da saúde pública e da luta contra as doenças venéreas... E, claro, da moral pública e dos bons costumes...
Contra o regulamentarismo argumenta-se que a inspecção periódica das prostitutas matriculadas não se mostrava "tecnicamente capaz de garantir a não propagação de doenças venéreas"...
No blogue Legalização das 'Casas de Passe', pode ler-se o seguinte, referente a um dos efeitos preversos do famigerado diploma, que foi a 'exportação' para Angola das ilegalizadas, na Metropóle, 'trabalhdoras do sexo' (como se diz hoje em linguagem politicamente correcta):
(...) "Por tal diploma legal, Salazar ilegalizou as chamadas 'casas de passe', determinando o seu encerramento com o despejo e apreensão de todos os bens aí encontrados. O produto da venda de tais bens em hasta pública reverteu para o Fundo de Socorro Social e o lenocínio passou a ser punido com pena de prisão até um ano e multa correspondente.
"Em Angola, porém, as 'casas de passe' não foram ilegalizadas nem as prostitutas passaram a ficar sujeitas à aplicação de medidas de segurança de internamento para reabilitação, porque, aí, não foram equiparadas aos vadios.
"Ninguém estranhou, por isso, o êxodo maciço das prostitutas para Angola, onde poderiam continuar a exercer livremente a sua profissão, beneficiando dos cuidados sanitários de que até 1 de Janeiro de 1963 usufruíram na Metrópole. Em Angola, tinham trabalho garantido pelas dezenas de milhares de soldados que Salazar para aí enviara nos dois últimos anos.
"O Ditador, mestre na perfídia, resolveu com tal Decreto um problema e uma necessidade gerados pelo estado de guerra em que o país estava envolvido no Ultramar, assegurando o 'moral' e o 'descanso dos guerreiros', à custa daquelas mulheres que, na Metrópole, transformara em vadias.
"Na Metrópole, ficaram aquelas prostitutas que, por razões de variadíssima ordem, não puderam emigrar para Angola, para aí se estabelecerem. Sem 'casas de passe' onde se pudessem acolher para, com recato, poderem exercer a sua profissão, as muitas prostitutas que ficaram na Metrópole foram 'despejadas' nas ruas, onde passaram a exercer a sua actividade sem o mínimo controle sanitário e sujeitas a medidas de segurança que implicavam o seu internamento, levadas pela chamada 'Ramona' para 'caridosas instituições', a quem o regime cometeu a digna e beatífica tarefa de, sem prazo pré-definido, as recuperar" (...).
Não há dados epidemiológticos - que eu saiba - sobre a incidência de doenças venéreas nas NT, durante a guerra colonial, muito menos na Guiné. Mas julgo que era um problema que preocupava o serviço de saúde militar: veja-se por exemplo o artigo do Ten Mil Médico Joáo A. Araújo Pimenta, sobre "Profilaxia anti-venérea..." no jornal de caserna da CART 2326.
No meu tempo (1969/71), a distribuição dé sabão e de pomadinha anti-venérea (esta última, sob a forma de uma pequena bisnaga, de cor verde, se não me engano, do Laboratório Militar), estava generalizada, sendo feita pelo nosso Furriel Pastilhas... Era também ele que nos dava a dose de cavalo de penicilina, sempre que a profilaxia falhava (e às vezes falhava mesmo, não sendo ainda prática corrente o uso do preservativo ou camisinha)... Como diria o meu amigo João Santos Lucas, era ainda, nessa época, a idade da sexuaidade desprevenida dos portugueses ...
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste anterior de 7 de Setembro de 2009> Guiné 63/74 - P4912: Os Nossos Enfermeiros (1): A formação de Enfermeiros e Auxiliares (José Teixeira)
(**) Vd. artigo CONSULTANDO O MÉDICO >
PROFILAXIA ANTI-VENÉREA OU O MÉTODO DE EVITAR ESQUENTAMENOS, MULAS, CAVALOS ETC., ETC.
Transcrição com a devida vénea ao autor:
Já nas guerras da antiguidade as tropas eram vítimas das doenças venéreas. Este problema por vezes era de tal ordem que alguns exércitos eram vencidos por este mal em vez de o serem pelo inimigo. Nesses tempos recuados, em que a táctica de guerra era o cerco, este era frequentemente levantado porque uma verdadeira epidemia de blenorragia (esquentamento) ou de sífilis se tinha declarado nas forças sitiantes.
Claro que estes casos de doenças venéreas verificavam-se e ainda se continuam a encontrar nos nossos dias, porque a prostituição sempre acompanhou a tropa como a sombra segue sempre o nosso corpo.
Se a prostituição nas grandes cidades, apesar das medidas hi¬giénicas e periódicas e obrigatórias que eram correntes, anda as¬sociada ao perigo venéreo, é fácil concluir que a prostituição clan¬destina (aquela que existe entre nós aqui no mato) é muito mais perigosa. Convém referir que nas nossas circunstâncias, mesmo aquele “arranjinho” de 1ª é de suspeitar porque certas zonas rurais apresentam 50% das mulheres contaminadas com doenças venéreas.
Muitos dos que procuram contactos sexuais com prostitutas servem-se daquela lógica (que afinal não é lógica) de que “esquentamentos só os outros é que apanham”. Os frequentadores dos Postos de Socorros costumam contar isto quando lá vão tratar o primeiro corrimento que lhes surgiu.
Sabemos que muitos soldados nunca tiveram relações sexuais antes da incorporação e a iniciação sexual começou antes do primeiro I. A. O. Isto porque em aglomerações de indivíduos jovens há sempre uns “rufias” que tentam incutir no espírito dos camaradas a ideia (que felizmente muitos dos jovens do nosso tempo já acham ridículas) de que “só é macho aquele que vai às putas e apanha bebedeiras”. Às vezes esses são aqueles que vêm cá para trás quando começam a ouvir as balas a assobiar!
Nós que já ouvimos a música do tango com um certo sorriso, temos de concordar que assim como a música, a pintura e as outras artes evoluiu, também a noção da masculinidade evoluiu, e para o homem mostrar que é HOMEM tem outros meios de o demonstrar sem ser... com blenorragias.
....................
Às vezes... a carne vence o espírito e nesse caso é conveniente recordar os ensinamentos de profilaxia anti-venérea, que se aprende na recruta.
A primeira regra é saber escolher o material. De resto isto é intuitivo – se um companheiro foi contaminado por certa mulher, ir ter relações com ela é como ficar debaixo do ponto de mira da Mauser, que é mais certeira e tem poder mais derrubante...
Se a mulher tiver feridas na pele, nos lábios ou nos órgãos sexuais é grande a suspeita de sífilis.
Se houver corrimento pela vagina (regra geral amarelado ou esverdeado) é, também, melhor recusar.
Mesmo não havendo nada do que acima foi mencionado, o perigo de contágio venéreo ainda existe. Muitos se recordarão, infelizmente, daquela que “até parecia uma senhora e por sinal até cheirava bem”, e os contaminou...
O meio mais seguro é ainda o uso do preservativo 'camisa de Vénus'. Refiro-me a um preservativo recente e não àquele que você tenha na carteira há muito tempo 'para o que der e vier', que já deve estar ressequido e portanto pode romper durante o coito (acto sexual).
Há uma ideia errada em certos indivíduos que julgam terem as mulheres relutância em usar o preservativo. Basta dizer-lhes que esse preservativo é para evitar uma possível contaminação delas, para que o aceitem de bom grado. Ao fim e ao cabo, aquele que o usa, obtém o mesmo prazer que sem ele. Depois do coito convém tirar o preservativo de maneira a não contaminar as mãos e depois lavar as virilhas e os órgãos sexuais com sabão anti-venéreo fornecido grátis e a qualquer hora pelo Posto de Socorros. Deve-se urinar sempre depois do coito no caso de não haver sido usado o preservativo; depois de urinar deve-se introduzir um quarto de bisnaga da pomada anti-venérea dentro da uretra “via da urina” e untar com o resto o pénis, os testículos, as virilhas e os pêlos da púbis. Este uso da pomada anti-venérea só é eficaz, se ela for usada até duas horas após o coito. Convém depois lavar com sabão anti-venéreo.
Por agora é tudo. Cabe aqui, só lembrar a todos aqueles que obtêm uma guia de marcha para Vila Cabral ou Nampula (onde há “bases” de prostitutas) para, juntamente com ela, levarem os preservativos e uns tubos de pomada e sabão anti-venéreo, na mala ou saco de viagem, porque “o seguro morreu de velho e a prudência foi ao enterro”...
Tenente Miliciano Médico João A. Araújo Pimenta.
In: O JORNAL «O 26» Nº 1, pp. 5-6. (Jornal da CART 2326, Os Lobos / BART 2838 Moçambique, 1968/70).
Caro Luís Graça:
Recebi o o teu e-mail e fiquei admirado com a existência do referido Livro (*). Nem na recruta nem no Ultramar foi distribuído tal livro ao serviço de Saúde para ser entregue aos militares .
Mas pelo que depreendo deve ter sido para a Guerra de 1940/45. E digo isto porque em 1960 Salazar acabou com a prostituição (**). Isto diziam eles. Como deves saber até essa data havia as chamadas casas de tia e vários cafés especializados nisso (no Porto havia o Derby, o Royal, o Moderno e o Portuense onde elas estavam sentadas nas mesas e era só escolher).
Nessa altura elas possuíam um livrinho, tipo Boletim de Vacinas, onde era anotado pelo Médico o estado delas. Se fossem apanhadas pela Polícia com o livrinho com a inspecção fora da validade dava 3 anos de cadeia. No Porto essas inspecções eram feitas num anexo nas traseiras da Biblioteca Municipal do Porto .
Ora como na teoria tinha acabado a prostituição para quê mandar editar esses opúsculos ?
A verdade é que o que existia nos postos Médicos das unidades (e nem em todos) era umas caixinhas com umas bisnagas com um produto que eu nem me lembro do nome, que o soldado solicitava quando queria ir às putas, mas tinha que se anotar o nome, dia e hora a que era solicitado. Claro que ninguém ia buscar o dito tubinho.
E foi assim que, quando a minha Companhia regressou do mato a Bissau e os Soldados se sentiram livres, apareceu-me passados dias em vários soldados os sintomas da blenorragia.
Ora isto tinha que ser comunicado ao Médico que por sua vez informava o Comando da Companhia que por sua vez agraciava o infractor com cinco dias de detenção. Ora detidos já tinhamos estado nós no mato durante um ano e, como eu já sabia que o médico ia receitar Penicilina na dose mais forte, foi o tratamento que eu lhes prescrevi e para estarem na enfermaria a X horas para ser eu a aplicar as referidas injecções. Só que para meu azar um dos atingidos por motivos de serviço não pode estar no horário previsto e foi ter com o Cabo Enfº de Dia para que lhe desse a injecção. Como ele não sabia de nada comunicou ao Médico que comunicou ao meu Comandante que chamou o soldado que lhe disse que tinha sido eu que o mediquei.
Claro que fui chamado ao Comandante que me ameaçou com os referidos 5 dias de detenção. Eu então perguntei-lhe se fosse no mato o tratamento era o mesmo.
Felizmente o Comandante, atendendo aos bons serviços prestados durante toda a Comissão, rasgou a participação do Médico e ficou tudo em águas de bacalhau.
O que as brochuras dizem não é bem o que se passa no terreno a nível prático. A gente vai-se desenrascando conforme pode e sabe e isso às vezes salvava vidas.
Armandino Alves
2. Comentário de L.G.:
A ilegalização da prostituição e das casas de passe (ou de tolerância, ou casas toleradas, como a famosa Casa da Mariquinhas), com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1963, foi feita pelo Decreto-Lei nº. 44579, de 19 de Setembro de 1962, emanado dos Ministérios do Interior e da Saúde e Assistência, do Governo de Salazar, (documento disponível aqui, em formato pdf).
As prostitutas eram equiparadas a vadios, para efeitos de "aplicação de medidas de segurança" (sic). Às menores de 16 anos aplicar-se-iam "as medidas de protecção, assistência ou educação" legalmente previstas... No preâmbulo do dipploma, o legislador faz remontar a 1875 o início do "movimento abolocionista" (oposto ao regulamentarismo) e evoca o nome do prestigiado médico e professor Ricardo Jorge para justificar a natureza repressiva da decisão, em nome do superior interesse da saúde pública e da luta contra as doenças venéreas... E, claro, da moral pública e dos bons costumes...
Contra o regulamentarismo argumenta-se que a inspecção periódica das prostitutas matriculadas não se mostrava "tecnicamente capaz de garantir a não propagação de doenças venéreas"...
No blogue Legalização das 'Casas de Passe', pode ler-se o seguinte, referente a um dos efeitos preversos do famigerado diploma, que foi a 'exportação' para Angola das ilegalizadas, na Metropóle, 'trabalhdoras do sexo' (como se diz hoje em linguagem politicamente correcta):
(...) "Por tal diploma legal, Salazar ilegalizou as chamadas 'casas de passe', determinando o seu encerramento com o despejo e apreensão de todos os bens aí encontrados. O produto da venda de tais bens em hasta pública reverteu para o Fundo de Socorro Social e o lenocínio passou a ser punido com pena de prisão até um ano e multa correspondente.
"Em Angola, porém, as 'casas de passe' não foram ilegalizadas nem as prostitutas passaram a ficar sujeitas à aplicação de medidas de segurança de internamento para reabilitação, porque, aí, não foram equiparadas aos vadios.
"Ninguém estranhou, por isso, o êxodo maciço das prostitutas para Angola, onde poderiam continuar a exercer livremente a sua profissão, beneficiando dos cuidados sanitários de que até 1 de Janeiro de 1963 usufruíram na Metrópole. Em Angola, tinham trabalho garantido pelas dezenas de milhares de soldados que Salazar para aí enviara nos dois últimos anos.
"O Ditador, mestre na perfídia, resolveu com tal Decreto um problema e uma necessidade gerados pelo estado de guerra em que o país estava envolvido no Ultramar, assegurando o 'moral' e o 'descanso dos guerreiros', à custa daquelas mulheres que, na Metrópole, transformara em vadias.
"Na Metrópole, ficaram aquelas prostitutas que, por razões de variadíssima ordem, não puderam emigrar para Angola, para aí se estabelecerem. Sem 'casas de passe' onde se pudessem acolher para, com recato, poderem exercer a sua profissão, as muitas prostitutas que ficaram na Metrópole foram 'despejadas' nas ruas, onde passaram a exercer a sua actividade sem o mínimo controle sanitário e sujeitas a medidas de segurança que implicavam o seu internamento, levadas pela chamada 'Ramona' para 'caridosas instituições', a quem o regime cometeu a digna e beatífica tarefa de, sem prazo pré-definido, as recuperar" (...).
Não há dados epidemiológticos - que eu saiba - sobre a incidência de doenças venéreas nas NT, durante a guerra colonial, muito menos na Guiné. Mas julgo que era um problema que preocupava o serviço de saúde militar: veja-se por exemplo o artigo do Ten Mil Médico Joáo A. Araújo Pimenta, sobre "Profilaxia anti-venérea..." no jornal de caserna da CART 2326.
No meu tempo (1969/71), a distribuição dé sabão e de pomadinha anti-venérea (esta última, sob a forma de uma pequena bisnaga, de cor verde, se não me engano, do Laboratório Militar), estava generalizada, sendo feita pelo nosso Furriel Pastilhas... Era também ele que nos dava a dose de cavalo de penicilina, sempre que a profilaxia falhava (e às vezes falhava mesmo, não sendo ainda prática corrente o uso do preservativo ou camisinha)... Como diria o meu amigo João Santos Lucas, era ainda, nessa época, a idade da sexuaidade desprevenida dos portugueses ...
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste anterior de 7 de Setembro de 2009> Guiné 63/74 - P4912: Os Nossos Enfermeiros (1): A formação de Enfermeiros e Auxiliares (José Teixeira)
(**) Vd. artigo CONSULTANDO O MÉDICO >
PROFILAXIA ANTI-VENÉREA OU O MÉTODO DE EVITAR ESQUENTAMENOS, MULAS, CAVALOS ETC., ETC.
Transcrição com a devida vénea ao autor:
Já nas guerras da antiguidade as tropas eram vítimas das doenças venéreas. Este problema por vezes era de tal ordem que alguns exércitos eram vencidos por este mal em vez de o serem pelo inimigo. Nesses tempos recuados, em que a táctica de guerra era o cerco, este era frequentemente levantado porque uma verdadeira epidemia de blenorragia (esquentamento) ou de sífilis se tinha declarado nas forças sitiantes.
Claro que estes casos de doenças venéreas verificavam-se e ainda se continuam a encontrar nos nossos dias, porque a prostituição sempre acompanhou a tropa como a sombra segue sempre o nosso corpo.
Se a prostituição nas grandes cidades, apesar das medidas hi¬giénicas e periódicas e obrigatórias que eram correntes, anda as¬sociada ao perigo venéreo, é fácil concluir que a prostituição clan¬destina (aquela que existe entre nós aqui no mato) é muito mais perigosa. Convém referir que nas nossas circunstâncias, mesmo aquele “arranjinho” de 1ª é de suspeitar porque certas zonas rurais apresentam 50% das mulheres contaminadas com doenças venéreas.
Muitos dos que procuram contactos sexuais com prostitutas servem-se daquela lógica (que afinal não é lógica) de que “esquentamentos só os outros é que apanham”. Os frequentadores dos Postos de Socorros costumam contar isto quando lá vão tratar o primeiro corrimento que lhes surgiu.
Sabemos que muitos soldados nunca tiveram relações sexuais antes da incorporação e a iniciação sexual começou antes do primeiro I. A. O. Isto porque em aglomerações de indivíduos jovens há sempre uns “rufias” que tentam incutir no espírito dos camaradas a ideia (que felizmente muitos dos jovens do nosso tempo já acham ridículas) de que “só é macho aquele que vai às putas e apanha bebedeiras”. Às vezes esses são aqueles que vêm cá para trás quando começam a ouvir as balas a assobiar!
Nós que já ouvimos a música do tango com um certo sorriso, temos de concordar que assim como a música, a pintura e as outras artes evoluiu, também a noção da masculinidade evoluiu, e para o homem mostrar que é HOMEM tem outros meios de o demonstrar sem ser... com blenorragias.
....................
Às vezes... a carne vence o espírito e nesse caso é conveniente recordar os ensinamentos de profilaxia anti-venérea, que se aprende na recruta.
A primeira regra é saber escolher o material. De resto isto é intuitivo – se um companheiro foi contaminado por certa mulher, ir ter relações com ela é como ficar debaixo do ponto de mira da Mauser, que é mais certeira e tem poder mais derrubante...
Se a mulher tiver feridas na pele, nos lábios ou nos órgãos sexuais é grande a suspeita de sífilis.
Se houver corrimento pela vagina (regra geral amarelado ou esverdeado) é, também, melhor recusar.
Mesmo não havendo nada do que acima foi mencionado, o perigo de contágio venéreo ainda existe. Muitos se recordarão, infelizmente, daquela que “até parecia uma senhora e por sinal até cheirava bem”, e os contaminou...
O meio mais seguro é ainda o uso do preservativo 'camisa de Vénus'. Refiro-me a um preservativo recente e não àquele que você tenha na carteira há muito tempo 'para o que der e vier', que já deve estar ressequido e portanto pode romper durante o coito (acto sexual).
Há uma ideia errada em certos indivíduos que julgam terem as mulheres relutância em usar o preservativo. Basta dizer-lhes que esse preservativo é para evitar uma possível contaminação delas, para que o aceitem de bom grado. Ao fim e ao cabo, aquele que o usa, obtém o mesmo prazer que sem ele. Depois do coito convém tirar o preservativo de maneira a não contaminar as mãos e depois lavar as virilhas e os órgãos sexuais com sabão anti-venéreo fornecido grátis e a qualquer hora pelo Posto de Socorros. Deve-se urinar sempre depois do coito no caso de não haver sido usado o preservativo; depois de urinar deve-se introduzir um quarto de bisnaga da pomada anti-venérea dentro da uretra “via da urina” e untar com o resto o pénis, os testículos, as virilhas e os pêlos da púbis. Este uso da pomada anti-venérea só é eficaz, se ela for usada até duas horas após o coito. Convém depois lavar com sabão anti-venéreo.
Por agora é tudo. Cabe aqui, só lembrar a todos aqueles que obtêm uma guia de marcha para Vila Cabral ou Nampula (onde há “bases” de prostitutas) para, juntamente com ela, levarem os preservativos e uns tubos de pomada e sabão anti-venéreo, na mala ou saco de viagem, porque “o seguro morreu de velho e a prudência foi ao enterro”...
Tenente Miliciano Médico João A. Araújo Pimenta.
In: O JORNAL «O 26» Nº 1, pp. 5-6. (Jornal da CART 2326, Os Lobos / BART 2838 Moçambique, 1968/70).
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Guiné 63/74 - P4913: Notas de leitura (22): Gilberto Freyre na Guiné, em 1951 (Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos, (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 3 de Setembro de 2009:
Queridos amigos,
Aqui vai mais uma peça.
Retomarei o vosso convívio depois do dia 20, quando vier de férias.
Estou ansioso por acabar a "Mulher Grande", a minha heroína guineense bem merece descanso...
Um abraço do
Mário
Gilberto Freyre na Guiné, em 1951
Beja Santos
Gilberto Freyre é um nome cimeiro dá antropologia, à escala mundial. Autor de teses estudadas nas principais universidades, a partir dos anos 50, foi um escritor consagrado com obras como Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, Aventura e Rotina e O Mundo que o Português Criou. A ele deve-se-lhe a paternidade do termo luso-tropicologia, uma interpretação da miscigenação dos portugueses pelos três continentes onde tiveram colónias. Para Freyre, o português andou pelos brasis, pelas áfricas e ásias acasalando, adaptando às novas situações o seu modo de habitar, comer, falar, rezar e comerciar. Não é possível entender esta aventura sem um termo de comparação, e ele existe, é o dos árabes fora da Arábia. Se é facto que os portugueses importaram e exportaram palavras, como grumete, saudade, caravela, alpercata ou engenho, e também caravana, batuque, quinino, chá e mandarim (entre milhares) deve-se ao génio de Afonso de Albuquerque o convite à mistura de sangue, de onde terá derivado o orgulho nessas terras longínquas de ter nomes de família provenientes do quadrilátero europeu.
Compreender-se-á, por conseguinte, como é que estas teses foram entusiasticamente abraçadas pelo regime de Salazar, que necessitava de um quadro doutrinário para interpretar a essência da colonização portuguesa. Freyre estava traduzido nos principais idiomas, formara-se em Columbia, era disputado para reger cursos e docências nos mais reputados espaços de ensino e investigação. Note-se que estas teses de Freyre não colidiam com a ascensão dos movimentos de libertação, interpretavam a gesta de um povo que estivera na vanguarda científica, que esquadrinhara três continentes de uma assentada, fazendo chegar à Europa ouros, pimentas, cânforas e sândalos. Esse português comportara-se singularmente nos trópicos, explorando novas culturas nos brasis, transaccionando em centenas de entrepostos africanos, levando missionários às chinas e japões. Em todas as suas obras, Freyre destaca um fenómeno único dentro de todos os comportamentos colonialistas, o dos lançados, gente que irá correr riscos por conta própria, lançando-se nas florestas, aceitando a assimilação, criando fidalguias mulatas.
Em 1951, o ministro do Ultramar, comandante Sarmento Rodrigues, convida Freyre a confirmar as teses que elaborara visitando as parcelas do império, fazendo conferências no continente e ilhas. Fará uma conferência em Coimbra sobre a cultura luso-tropical, irá à Madeira, Guiné, Cabo Verde, Angola, São Tomé, Moçambique, Goa. Sarmento Rodrigues irá pedir a Teixeira da Mota que o acompanhe à Guiné. Viajarão juntos em Outubro de 1951. Fará uma conferência no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, não escondendo o seu agrado pela gentileza africana, impressionado com a galhardia e a dignidade de certos régulos, dizendo mesmo: “Entre eles encontrei autênticos fidalgos. Aristocratas da cabeça aos pés. Negros finos e angulosos de cabeças tranquilas e enérgicas de antigos lordes ingleses e pés longos, bonitos, bem arqueados de dançarinos russos. De um régulo desses recebi de presente pulseiras de bronze destinadas à minha esposa e à minha filha. De outro, um espada de guerreiro mandinga”. Antes, tinha sido saudado pelo médico João Leal da Silva Tendeiro, presidente do Centro de Estudos. O primeiro-tenente Teixeira da Mota tirou fotografias, das quais reproduzimos duas, tal como segue.
Em 1953, todos estes textos da viagem a Portugal e ao seu Império deram matéria para o livro “Um Brasileiro em Terras Portuguesas”. No prefácio, Freyre procura responder aos seus detractores que o acusam de estar “vendido ao fascista Salazar” ou a “serviço do decadente Portugal”, desafiando os seus críticos com a notícia dos convites que recebera da URSS e da União Indiana para ir expor nesses países as suas teses.
Hoje, a proposta luso-tropical é uma relíquia da ciência antropológica, resta saber como é que os antropólogos das ex-colónias portuguesas irão analisar, com a independência e o rigor do verdadeiro distanciamento, a presença deste colono ao longo de séculos nos seus países.
Este livro ficará a pertencer ao espólio do blogue.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Setembio de 2009 > Guiné 63/74 - P4904: Notas de leitura (21): Grandes Batalhas Navais Portuguesas, de José António Rodrigues Pereira (Beja Santos)
Queridos amigos,
Aqui vai mais uma peça.
Retomarei o vosso convívio depois do dia 20, quando vier de férias.
Estou ansioso por acabar a "Mulher Grande", a minha heroína guineense bem merece descanso...
Um abraço do
Mário
Gilberto Freyre na Guiné, em 1951
Beja Santos
Gilberto Freyre é um nome cimeiro dá antropologia, à escala mundial. Autor de teses estudadas nas principais universidades, a partir dos anos 50, foi um escritor consagrado com obras como Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos, Aventura e Rotina e O Mundo que o Português Criou. A ele deve-se-lhe a paternidade do termo luso-tropicologia, uma interpretação da miscigenação dos portugueses pelos três continentes onde tiveram colónias. Para Freyre, o português andou pelos brasis, pelas áfricas e ásias acasalando, adaptando às novas situações o seu modo de habitar, comer, falar, rezar e comerciar. Não é possível entender esta aventura sem um termo de comparação, e ele existe, é o dos árabes fora da Arábia. Se é facto que os portugueses importaram e exportaram palavras, como grumete, saudade, caravela, alpercata ou engenho, e também caravana, batuque, quinino, chá e mandarim (entre milhares) deve-se ao génio de Afonso de Albuquerque o convite à mistura de sangue, de onde terá derivado o orgulho nessas terras longínquas de ter nomes de família provenientes do quadrilátero europeu.
Compreender-se-á, por conseguinte, como é que estas teses foram entusiasticamente abraçadas pelo regime de Salazar, que necessitava de um quadro doutrinário para interpretar a essência da colonização portuguesa. Freyre estava traduzido nos principais idiomas, formara-se em Columbia, era disputado para reger cursos e docências nos mais reputados espaços de ensino e investigação. Note-se que estas teses de Freyre não colidiam com a ascensão dos movimentos de libertação, interpretavam a gesta de um povo que estivera na vanguarda científica, que esquadrinhara três continentes de uma assentada, fazendo chegar à Europa ouros, pimentas, cânforas e sândalos. Esse português comportara-se singularmente nos trópicos, explorando novas culturas nos brasis, transaccionando em centenas de entrepostos africanos, levando missionários às chinas e japões. Em todas as suas obras, Freyre destaca um fenómeno único dentro de todos os comportamentos colonialistas, o dos lançados, gente que irá correr riscos por conta própria, lançando-se nas florestas, aceitando a assimilação, criando fidalguias mulatas.
Em 1951, o ministro do Ultramar, comandante Sarmento Rodrigues, convida Freyre a confirmar as teses que elaborara visitando as parcelas do império, fazendo conferências no continente e ilhas. Fará uma conferência em Coimbra sobre a cultura luso-tropical, irá à Madeira, Guiné, Cabo Verde, Angola, São Tomé, Moçambique, Goa. Sarmento Rodrigues irá pedir a Teixeira da Mota que o acompanhe à Guiné. Viajarão juntos em Outubro de 1951. Fará uma conferência no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, não escondendo o seu agrado pela gentileza africana, impressionado com a galhardia e a dignidade de certos régulos, dizendo mesmo: “Entre eles encontrei autênticos fidalgos. Aristocratas da cabeça aos pés. Negros finos e angulosos de cabeças tranquilas e enérgicas de antigos lordes ingleses e pés longos, bonitos, bem arqueados de dançarinos russos. De um régulo desses recebi de presente pulseiras de bronze destinadas à minha esposa e à minha filha. De outro, um espada de guerreiro mandinga”. Antes, tinha sido saudado pelo médico João Leal da Silva Tendeiro, presidente do Centro de Estudos. O primeiro-tenente Teixeira da Mota tirou fotografias, das quais reproduzimos duas, tal como segue.
Em 1953, todos estes textos da viagem a Portugal e ao seu Império deram matéria para o livro “Um Brasileiro em Terras Portuguesas”. No prefácio, Freyre procura responder aos seus detractores que o acusam de estar “vendido ao fascista Salazar” ou a “serviço do decadente Portugal”, desafiando os seus críticos com a notícia dos convites que recebera da URSS e da União Indiana para ir expor nesses países as suas teses.
Hoje, a proposta luso-tropical é uma relíquia da ciência antropológica, resta saber como é que os antropólogos das ex-colónias portuguesas irão analisar, com a independência e o rigor do verdadeiro distanciamento, a presença deste colono ao longo de séculos nos seus países.
Este livro ficará a pertencer ao espólio do blogue.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Setembio de 2009 > Guiné 63/74 - P4904: Notas de leitura (21): Grandes Batalhas Navais Portuguesas, de José António Rodrigues Pereira (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P4912: Os Nossos Enfermeiros (1): A formação de Enfermeiros e Auxiliares (José Teixeira)
1. Mensagem de José Teixeira (*), ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, com data de 3 de Setembro de 2009 (*):
Caros editores
Para tentar responder ao repto do Luís sobre os Serviços de Saúde, envio dois textos.
Abraço fraterno
José Teixeira
OS SERVIÇOS DE SAÚDE MILITARES
O Luís Graça lançou mais um desafio - escrever sobre os Serviços de Saúde Militar que tivemos na Guerra da Guiné (**).
Tem razão ao levantar este problema, pois que, sem um aprofundamento dessa realidade, a história da guerra colonial não ficaria completa.
É caso para se perguntar como com tão pouca formação/informação foi possível fazer tanto pela vida dos camaradas e da população que nós, os enfermeiros, servimos.
Para se compreender melhor o Sistema à época da guerra colonial, talvez tenha interesse ir mesmo à base, ou seja, desde a forma de selecção e recrutamento do pessoal, para Furriel, Cabo Enfermeiro e Cabo Auxiliar de Enfermeiro.
Ainda hoje não entendo a razão da divisão em classes diferentes Cabo Enfermeiro e Cabo Auxiliar de Enfermeiro. A instrução era dada em conjunto, sendo que o Cabo Enfermeiro tinha um pequeno aumento no tempo de estágio. Não entendo também o porquê do Cabo Enfermeiro, passar a Cabo logo após o fim do estágio e ser colocado nos Hospitais, enquanto o Auxiliar de Enfermeiro ficava como soldado, quase até ao fim da tropa se ficasse na Metróple e em caso de mobilização ser colocado na frente de guerra.
Fiquei estupefacto quando vi o meu nome na pauta seleccionado para os Serviços de Saúde, quando na vida civil era escriturário. Entretanto o escriturário da minha Companhia era... carpinteiro.
Logo eu que abominava hospitais e uma simples gota de sangue era o suficiente para me provocar mal estar! E porquê Auxiliar de Enfermeiro, quando nas minhas habilitações constava que tinha parte do antigo 5.ºano liceal, actual nono, na área de ciências, onde se estudava o corpo humano em pormenor, se havia camaradas seleccionados para serem enfermeiros que tinham apenas a 4.ª Classe, actual 4.º ano !
Mais admirado fiquei quando sou encaixado num Pelotão de cerca de 50 homens, metade dos quais tinha chumbado por estratégia das autoridades militares na especialidade do CSM – Curso de Sargentos Milicianos, devido ao excesso de Cabos Milicianos, pela enchente provocada no ano anterior, quando classificaram para o CSM toda a gente com o antigo 2.º ano para suprir falhas nesta área.
Era gente com habilitações iguais e superiores ao antigo 5.º ano e havia até um professor primário, logo alcunhado de Professor. Cerca de um terço do pessoal tinha habilitações iguais ou superior ao antigo 2.º ano e os restantes à 4.ª classe.
Note-se que dois camaradas que tinham apenas a 4.ª classe foram para Enfermeiros, tendo o restante pessoal não passado de Auxiliar de Enfermeiro.
O Comandante de Pelotão era um Alferes Médico que em cerca de quatro meses se o vi no quartel meia dúzia de vezes foi muito. Só quando tinha de fazer de Oficial de Dia.
Como instrutores tivemos à partida dois cabos RD. O Tó Mané e o António. O primeiro, Enfermeiro militar, dava-nos instrução técnica, o segundo a instrução militar. Posteriormente fomos brindados com a presença de um Sargento, regressado creio que de um hospital em Moçambique. Homem tão versado na matéria que definia um síndrome como um conjunto de sintomas e um sintoma como um conjunto de síndromes. De qualquer modo, deu-nos alguma formação na área de doenças tropicais e doenças internas e traumáticas
Na instrução técnica tivemos sobretudo de estudar a anatomia humana e de algum modo traumatologia, mas de forma muito rudimentar. Creio bem que o Tó Mané nunca tinha estado em África.
Éramos, naturalmente e compreensivelmente, um grupo rebelde. Os instrutores viam-se gregos para nos controlar. Na instrução técnica, muitos de nós tínhamos conhecimentos superiores aos dos formadores e sobretudo uma capacidade de apreensão da matéria, só que estudar não era connosco. Era um bailinho de perguntas e argumentos que punha os formadores em desespero.
O exame final de toda a Companhia, feito no refeitório da Unidade, com dois vigilantes os nossos RD. Foi copiar~, minha gente, até fartar. Aqueles que apenas escreveram o que tinham aprendido, viram-se ultrapassados pelos que descaradamente copiaram directamente das sebentas.
Seguiram-se três meses de estágio no HMR2 no Porto, numa enfermaria de medicina interna, onde me limitava a distribuir a medicação aos doentes em disputa com mais três ou quatro estagiários. Dei algumas injecções e... fui classificado como Pronto.
Por opção pessoal e antevendo o que me esperava, vagueei voluntariamente por outros Serviços, quando o Sargento Chefe da Enfermaria estava ausente, nomeadamente pela Cirurgia e Ortopedia, onde aprendi coisas bem mais interessantes.
Assim, bem preparado, fui colocado no RAL2 em Coimbra e quando já não esperava ser mobilizado, dado que a Escola seguinte ao meu curso estava a oito dias do fim, caiu a bomba – Guiné.
Aqui esbarrei com Furriéis Enfermeiros tão bem preparados como nós. Um nunca tinha dado injecções, segundo ele, e, assim continuou.
Os nossos verdadeiros mestres foram os velhinhos que encontrámos pelo caminho e as vicissitudes da vida, no terreno movediço onde nos encontrávamos.
Com muito orgulho devo afirmar que nos animava, cabos, furriéis e médicos, uma enorme força de vontade em dar o melhor de nós mesmos. O que sabíamos e o que não sabíamos, para minimizar o sofrimento e salvar vidas, quer dos camaradas militares, quer da população que servíamos. Vivi e testemunhei cenas de profunda heroicidade e dedicação, a que nunca foi dado o devido relevo pelos superiores.
Os médicos, com quem tive o grato prazer de partilhar no TO, foram todos eles de uma dedicação e vontade de vencer as situações com que se deparavam.
Mas isso é assunto para outro artigo, para não ser mais maçador.
Zé Teixeira
__________
Notas de CV:
(*) Vd. último poste de José Teixeira com data de 21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4850: Os bu... rakos em que vivemos (14): O meu abrigo em Mampatá (Zé Teixeira)
Caros editores
Para tentar responder ao repto do Luís sobre os Serviços de Saúde, envio dois textos.
Abraço fraterno
José Teixeira
OS SERVIÇOS DE SAÚDE MILITARES
O Luís Graça lançou mais um desafio - escrever sobre os Serviços de Saúde Militar que tivemos na Guerra da Guiné (**).
Tem razão ao levantar este problema, pois que, sem um aprofundamento dessa realidade, a história da guerra colonial não ficaria completa.
É caso para se perguntar como com tão pouca formação/informação foi possível fazer tanto pela vida dos camaradas e da população que nós, os enfermeiros, servimos.
Para se compreender melhor o Sistema à época da guerra colonial, talvez tenha interesse ir mesmo à base, ou seja, desde a forma de selecção e recrutamento do pessoal, para Furriel, Cabo Enfermeiro e Cabo Auxiliar de Enfermeiro.
Ainda hoje não entendo a razão da divisão em classes diferentes Cabo Enfermeiro e Cabo Auxiliar de Enfermeiro. A instrução era dada em conjunto, sendo que o Cabo Enfermeiro tinha um pequeno aumento no tempo de estágio. Não entendo também o porquê do Cabo Enfermeiro, passar a Cabo logo após o fim do estágio e ser colocado nos Hospitais, enquanto o Auxiliar de Enfermeiro ficava como soldado, quase até ao fim da tropa se ficasse na Metróple e em caso de mobilização ser colocado na frente de guerra.
Fiquei estupefacto quando vi o meu nome na pauta seleccionado para os Serviços de Saúde, quando na vida civil era escriturário. Entretanto o escriturário da minha Companhia era... carpinteiro.
Logo eu que abominava hospitais e uma simples gota de sangue era o suficiente para me provocar mal estar! E porquê Auxiliar de Enfermeiro, quando nas minhas habilitações constava que tinha parte do antigo 5.ºano liceal, actual nono, na área de ciências, onde se estudava o corpo humano em pormenor, se havia camaradas seleccionados para serem enfermeiros que tinham apenas a 4.ª Classe, actual 4.º ano !
Mais admirado fiquei quando sou encaixado num Pelotão de cerca de 50 homens, metade dos quais tinha chumbado por estratégia das autoridades militares na especialidade do CSM – Curso de Sargentos Milicianos, devido ao excesso de Cabos Milicianos, pela enchente provocada no ano anterior, quando classificaram para o CSM toda a gente com o antigo 2.º ano para suprir falhas nesta área.
Era gente com habilitações iguais e superiores ao antigo 5.º ano e havia até um professor primário, logo alcunhado de Professor. Cerca de um terço do pessoal tinha habilitações iguais ou superior ao antigo 2.º ano e os restantes à 4.ª classe.
Note-se que dois camaradas que tinham apenas a 4.ª classe foram para Enfermeiros, tendo o restante pessoal não passado de Auxiliar de Enfermeiro.
O Comandante de Pelotão era um Alferes Médico que em cerca de quatro meses se o vi no quartel meia dúzia de vezes foi muito. Só quando tinha de fazer de Oficial de Dia.
Como instrutores tivemos à partida dois cabos RD. O Tó Mané e o António. O primeiro, Enfermeiro militar, dava-nos instrução técnica, o segundo a instrução militar. Posteriormente fomos brindados com a presença de um Sargento, regressado creio que de um hospital em Moçambique. Homem tão versado na matéria que definia um síndrome como um conjunto de sintomas e um sintoma como um conjunto de síndromes. De qualquer modo, deu-nos alguma formação na área de doenças tropicais e doenças internas e traumáticas
Na instrução técnica tivemos sobretudo de estudar a anatomia humana e de algum modo traumatologia, mas de forma muito rudimentar. Creio bem que o Tó Mané nunca tinha estado em África.
Éramos, naturalmente e compreensivelmente, um grupo rebelde. Os instrutores viam-se gregos para nos controlar. Na instrução técnica, muitos de nós tínhamos conhecimentos superiores aos dos formadores e sobretudo uma capacidade de apreensão da matéria, só que estudar não era connosco. Era um bailinho de perguntas e argumentos que punha os formadores em desespero.
O exame final de toda a Companhia, feito no refeitório da Unidade, com dois vigilantes os nossos RD. Foi copiar~, minha gente, até fartar. Aqueles que apenas escreveram o que tinham aprendido, viram-se ultrapassados pelos que descaradamente copiaram directamente das sebentas.
Seguiram-se três meses de estágio no HMR2 no Porto, numa enfermaria de medicina interna, onde me limitava a distribuir a medicação aos doentes em disputa com mais três ou quatro estagiários. Dei algumas injecções e... fui classificado como Pronto.
Por opção pessoal e antevendo o que me esperava, vagueei voluntariamente por outros Serviços, quando o Sargento Chefe da Enfermaria estava ausente, nomeadamente pela Cirurgia e Ortopedia, onde aprendi coisas bem mais interessantes.
Assim, bem preparado, fui colocado no RAL2 em Coimbra e quando já não esperava ser mobilizado, dado que a Escola seguinte ao meu curso estava a oito dias do fim, caiu a bomba – Guiné.
Aqui esbarrei com Furriéis Enfermeiros tão bem preparados como nós. Um nunca tinha dado injecções, segundo ele, e, assim continuou.
Os nossos verdadeiros mestres foram os velhinhos que encontrámos pelo caminho e as vicissitudes da vida, no terreno movediço onde nos encontrávamos.
Com muito orgulho devo afirmar que nos animava, cabos, furriéis e médicos, uma enorme força de vontade em dar o melhor de nós mesmos. O que sabíamos e o que não sabíamos, para minimizar o sofrimento e salvar vidas, quer dos camaradas militares, quer da população que servíamos. Vivi e testemunhei cenas de profunda heroicidade e dedicação, a que nunca foi dado o devido relevo pelos superiores.
Os médicos, com quem tive o grato prazer de partilhar no TO, foram todos eles de uma dedicação e vontade de vencer as situações com que se deparavam.
Mas isso é assunto para outro artigo, para não ser mais maçador.
Zé Teixeira
__________
Notas de CV:
(*) Vd. último poste de José Teixeira com data de 21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4850: Os bu... rakos em que vivemos (14): O meu abrigo em Mampatá (Zé Teixeira)
Guiné 63/74 - P4911: Memória dos lugares (39): Bissalanca, BA12: Notas de banco da falhada República do Biafra, 1968 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447
1. O nosso Camarada José Nunes (José Silvério Correia Nunes), ex-1º Cabo, BENG 447 (Brá, 1968/70) esteve na Guiné de 15JAN68 a 15JAN70, enviou-nos mais 4 imagens, em 31AGO2009, sobre um incidente que teve lugar com um avião na Base Aérea Nº12, em Bissalanca, no ano de 1968:
Segundo a “Wikipédia, Enciclopédia livre”, a República do Biafra foi um estado secessionista no sudeste da Nigéria.
O Biafra era habitado maioritariamente pelo povo ibo e existiu de 30 Maio de 1967 a 15 de Janeiro de1970.
A secessão foi liderada pelos igbos dadas as tensões económicas, étnicas, culturais e religiosas entre os vários povos da Nigéria e a criação do novo país, baptizado segundo a Bight of Biafra (a baía atlântica no sul), esteve entre as causas para a Guerra Civil Nigeriana, também conhecida por Guerra Nigéria-Biafra.
O Biafra foi reconhecido pelo Gabão, Haiti, Costa do Marfim, Tanzânia e Zâmbia.
Outras nações não deram reconhecimento oficial, mas providenciaram assistência ao Biafra.Israel, França, Portugal, a Rodésia, a África do Sul e a cidade do Vaticano providenciaram apoio.
O Biafra também recebeu ajuda de organizações não governamentais como a Joint Church Aid, a Holy Ghost Fathers of Ireland, a Caritas International, a MarkPress e a U.S. Catholic Relief Services.
Em Bissau, tínhamos também o nosso “Biafra” que era o "Clube Militar".
Mas é sobre o Biafra país que o nosso Camarada José Nunes nos enviou a seguinte história:
Mensagem com data de 24AGO2009.
Assunto: Notas de banco da falhada
República do Biafra
Camaradas,
Aqui vão 4 fotos de notas da República do Biafra, pois no ano de 1968 aviões com material de guerra e tudo mais necessário para apoiar os guerrilheiros que queriam ser independentes.
A guerra com a Nigéria, passava por Bissalanca.
Depois de escurecer aviões sobrevoavam costa abaixo, até ao Biafra.
Um deles explodiu na placa do aeroporto de Bissalanca.
Estas notas faziam parte da carga.
Um Abraço,
José Nunes
1º Cabo do BENG 447
Fotos: © José Nunes (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de MR:
Vd. último poste da série em:
4 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4895: Memória dos lugares (38): Brá, quartel dos COMANDOS, 1968 (José Nunes, ex-1º Cabo, BENG 447, Brá, 1968/70)
Vd. também o poste sobre o nosso “Biafra” de Bissau em:
3 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1726: Álbum das Glórias (12): Bissau: Clube Militar, mais conhecido por Biafra (Mário Bravo)
domingo, 6 de setembro de 2009
Guiné 63/74 - P4910: Os Nossos Médicos (3): Os especialistas eram poucos, e não gostavam de ir para... o mato (Armandino Alves, CCAÇ 1589, 1966/68)
Capa de uma brochura sobre higiene sexual, sem data, publicada pela Direcção do Serviço de Saúde Militar, e com destino às tropas mobilizadas para a guerra colonial... Reproduzida, com a devida vénia, da página da CCAÇ 3387, Escorpiões (Angola, 1971/73), bem como o excerto sobre os "ligeiros conselhos de higiene sexual" (Os nossos especiais agradecimentos ao Mário Ferreira da Silva, de Cacia, que criou e alimenta esta página, e a quem damos os nossos parabéns).
Ligeiros Conselhos de Higiene Sexual
Numa época em que um homem ainda podia ter relações sexuais sem o risco de apanhar doenças incuráveis, para as quais ainda não há qualquer hipótese de tratamento à vista, o exército português, na segunda metade do século XIX, tinha não apenas o cuidado de efectuar acções de sensibilização para os problemas das doenças venéreas, como também distribuía frequentemente documentação escrita, em forma de pequenas publicações num formato A5, na esperança de que os militares a lessem.
Volvidos mais de 30 anos após o término de um período em que os nossos homens eram obrigados a férias forçadas por terras distantes, vão-nos chegando verdadeiras relíquias documentais, que aqui arquivamos e damos a conhecer, após a devida conversão para um formato electrónico.
O presente documento, é uma publicação da Direcção do Serviço de Saúde Militar, rigorosamente transcrito e do qual reproduzimos apenas a capa da publicação, num formato A5, tal como anteriormente dissemos.
______________
DIRECÇÃO DO SERVIÇO DE SAÚDE MILITAR > LIGEIROS CONSELHOS DE HIGIENE SEXUAL
LEMBRA-TE:
– Que depois de teres contacto sexual com mulher é obrigatório procurares o posto antivenéreo [ P. A. V.] da tua unidade; e deves procurá-lo dentro de 3 horas, o máximo, depois desse contacto, para tirares resultado;
– Que tens no P. A. V. a garantia da tua saúde; e sabes que a tua saúde é o melhor capital de que dispões;
– E que, não procurando o P. A. V., não te desinfectando, arruínas a tua saúde para sempre, contraindo doença venérea; e depois levas para casa mal ruim que pegarás à tua mulher e que transmites a teus filhos.
FICA SABENDO:
– Que essas doenças venéreas são a blenorragia (corrimento de pus pela uretra) e que aparece alguns dias depois do contacto sexual;
– As feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus (cavalos duros) podem aparecer só passadas algumas semanas, e que muitas vezes se não dá pelo aparecimento, porque podem não doer; e há outras fendas no pénis (cavalos moles) que dão muitas vezes inchaços nas virilhas (as mulas).
TOMA CUIDADO:
– Com as mulheres que se dizem muito sérias e saudáveis e em geral são mais perigosas do que as outras. E procura não ter relações sexuais com mulher que tenha feridas, caroços nas virilhas ou no pescoço, rouquidão, aftas, purgação ou qualquer corrimento, que tenha as roupas manchadas, ainda que para isso te dê qualquer desculpa e que diga não ter isso importância alguma.
PROCURA:
– Fazer uma completa e boa desinfecção e para isso segue as regras que estão afixadas no P. A. V., e assim:
– Urina com força (pois que, urinando, fazes uma boa lavagem da uretra) e baixando as roupas convenientemente utiliza o mictório cavalgando com a face voltada para a parede e ensaboa, com o sabão desinfectante, durante um minuto, tudo o que esteve em contacto com as partes genitais da mulher, lava bem tudo com bastante água e, a seguir, repete a lavagem com mais sabão e durante 2 a 3 minutos.
ATENÇÃO:
– Nunca te fies na experiência apregoada das praças velhas e procura sempre o P. A. V., nunca te esquecendo que o tens de fazer dentro de 3 horas, o máximo, pois que, mais tarde, a desinfecção já não tem efeito; e mais, sempre que tenhas qualquer suspeita de doença venérea, consulta sempre o médico da tua unidade.
Post Scriptum - Segundo pesquisa que fiz posteriormente no catálogo da Biblioteca Nacional, esta brochura, de 12 pp., teria sido publicada muito anos antes do início da guerra colonial, em 1936, sendo o seu autor José Nevil de Ascenção Pinto da Cunha Saavedra (1895-?). Há indicação que teria sido uma separata da Revista Militar. De qualquer modo é de registar que p exército (ou o seu serviço de saúde militar) era muito mais pragamático e muito menos hipócrita, em matéria de prevenção das doenças do foro sexual, do que a generalidade das outras instituições da sociedade portuguesa da época... LG.
1. Texto, sof a forma de 3 mensagens e comentários recentes, do Armandino Alves, ex-1º 1º Cabo Enf da CCAÇ 1589 (Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, 1966/68), sobre a questão dos nossos médicos e demais pessoal do Serviço de Saúde Militar (*), no tempo da guerra colonial, tema de que temos falado muito pouco no nosso blogue (**), incluindo a sua história:
(i) 2 de Setembro de 2009:
Caro Luís Graça
Como está explícito no que escreveste [, Poste P4891] (**), os oficiais Médicos estavam sediados nos Comandos de Batalhão e faziam serviço nas Companhias Operacionais por escala Quinzenal ou Mensal e que raramente era cumprida. Muitas vezes nem cumprida era por motivos metereológicos. Por exemplo na altura das chuvas não havia médico pois as avionetas não podiam aterrar.
Quanto a nomes, pouca gente deve saber o nome, a não ser aqueles que pertenciam à CCS ou os Furriéis Enfermeiros que eram quem os assessoravam nas consultas. Eu, por falta de Furriel na minha Companhia, assessorei uma vez em Fá Mandinga e outra vez em Béli. Mas as consultas eram tão rápidas que nem tempo tínhaos para lhe perguntar o nome.
Por exemplo: Um dia estava com a minha esposa e um filho num consultório médico na Rua de Aviz, no Porto, para uma consulta de Pediatria. Esse consultório era partilhado por vários médicos de várias especialidades. Entretanto entra um senhor bem posto que olha para a sala de espera e de repente dirige-se a mim e pergunta-me:
- Você esteve na Guiné, não esteve ?! - Eu respondi-lhe que sim.
- E não me conhece ? - Eu olhei para ele e disse-lhe:
- Sinceramente, não!
Então ele disse-me:
- Eu fui o Médico que o safou de ir fazer Operações para o mato quando estava em Fá Mandinga.
Cumprimentámo-nos e eu nem lhe perguntei o nome. Não sei se ainda é vivo, se continua a exercer medicina e se continua com o consultório na Rua de Aviz.
Quanto aos Hospitais na Guiné, além do HM 241, havia o Hospital Central de Bissau, que mais parecia um matadouro e que se destinava à população civil.
Quanto à Metrópole, além do Hospital Militar da Estrela e Anexo, havia o Hospital Militar Regional nº 1 no Porto, o Hospital Militar Regional nº 2 em Coimbra e o Hospital Militar Regional nº 3, salvo erro em Évora.
Atualmente o Hospital Militar no Porto é 5 estrelas, parece um Hotel comparado ao tempo em que lá estive a tirar a especialidade.
O Hospital Militar da Estrela ficou mais conhecido porque as evacuações eram todas feitas para lá porque tinha lá perto o Aeroporto Militar de Figo Maduro e não convinha dar muito aparato a essas operações,q ue normalmente eram noturnas.
Armandino Alves
(ii) 2 de Setembro de 2009:
Caro Luís Graça
Sinceramente não sei a Constituição do Serviço de Saúde Militar (SSAM). Quando terminei a recruta em Leiria, fizemos a Formatura e um Oficial ia lendo os nomes e indicava onde nos devíamos apresentar. A mim calhou-me o Regimento do Serviço de Saúde em Coimbra. Entretanto soube que tinha existido na Rua da Sofia o Batalhão
do Serviço de Saúde que tinha sido extinto .Portanto íamos cumprir 4 meses de instrução teórica e depois mais 2 de prática num dos Hospitais Militares.
A mim e por sorte calhou-me o HMR 1 no Porto, pois fiquei em casa. Chegado ao Hospital fui colocado no Serviço de Infecto-Contagiosas onde o que aprendi foi a dar injecções de Penicilina e Estreptomicina. Foi aqui que vi morrer o primeiro recruta proveniente de Vila Real com a febre dos Fenos e que tinha sido obrigado a fazer um crosse àchuva com 40º de febre. Esteve ligado a uma máquina aspiradora que lhe aspirou tudo. Morreu num sofrimento atroz. Quando cheguei ao Hospital, cerca da meia noite, pois ia entrar de enfermeiro de dia, fui informado pelo meu colega que tinha que levantar a farda e vestir o morto, pois de manhã chegava a Família com o armador. A casa mortuária era nas traseiras do Hospital. Lá fui com a farda de gala e quando cheguei deparei-me com o morto completamente nu em cima de uma mesa de pedra mármore, sem sequer ter um lençol a tapá-lo.
Puz-me a pensar como é que me ia desenrascar sozinho e lembrei-me que a minha avó dizia que se devia falar com os mortos como se estivessem vivos. E não é que é verdade?
Chamei-o pelo nome e pedi-lhe para ele dobrar o braço para lhe vestir a camisa e ele deixou dobrar o braço. Ele já estava em rigor mortens. Só não consegui que os pés se mexessem e assim os calcanhares iam nos plainitos.
Terminada a especialidade, voltei a Coimbra e logo fui despachado para a Academia Militar em Dona Estefânia onde estive de 24 de Junho 66 até á minha mobilização. Aí sim era um serviço de saúde 5 estrelas, pois era para Oficiais de Carreira, de General para baixo. Era nessa altura responsável por esse serviço o Dr.
Pancada da Fonseca, salvo erro Capitão nessa altura. Tínha-mos um 1º Sargento Enfermeiro que tinha estado em Macau e vários 1ºs Cabos Enfermeiros.
Nessa altura eu ainda era Sodado Enfermeiro pois, apesar de ter sido promovido a Cabo em Fevereiro, só me foram entregues as divisas à entrada do barco.
Os Furriéis já eram enfermeiros na vida civil ou tinham terminado o Curso de Enfermagem. Não sei se faziam a recruta normal e no fim eram colocados nos HM ou iam directamente para os Hospitais.
Quanto aos Médicos idem aspas. Os Especialistas deviam ser recrutados nos Hospitais Militares pois lá existiam médicos de carreira militar com altos postos.
Isto é o que eu posso dizer sobre o serviço de saúde.
Armandino Alves
(iii) 4 de Setembro de 2009:
Assunto – Serviço de Saúde Militar (SSM)
Caro Luís Graça
Ainda sobre hospitais na Guiné.
Todos sabemos que tirando o HM 241 não havia nada em condições em qualquer cidade guineense. Mas podia haver, se os Comandos de Batalhão quisessem e Médicos Especializados quisessem.
Mas ninguém queria ir para o mato. Como deve ser do teu conhecimento, havia vários aquartelamentos que possuíam um veículo que era atrelado a uma viatura e se chamava Atrelado Sanitário. Fazia parte desse atrelado uma tenda enorme que, depois de armada, era um hospital de campanha. Nos seus vários cacifos tinha todo o material para intervenções cirúrgicas, medicamentos, incluindo morfina em grande quantidade, além de tudo o necessário para pelo menos se tentar salvar uma vida. Mas faltava o melhor : Quem trabalhar com esse material.
Como sabes os médicos recrutados para Batalhões ou Companhias eram de Clínica Geral e acabadinhos de se formarem. De bisturis, pinças e quejandos só o que viram no Hospital. Se formos pelos Furriéis enfermeiros, o panorama era o mesmo, pois também eram pessoal que tinha acabado o curso e se calhar nem o nome de algumas peças conheciam. E isso eu posso atestar, pois em Fá Mandinga tínhamos um atrelado desses e, quando o recebemos da Companhia que fomos substituir, tinha lá uma relação em A4 com o o nome das peças e a quantidade. O Furriel Enfermeiro abatia as peças e o Cabo subrepticiamente mudava-as para outro cacifo e aí já tinham nome pois entretanto tinham sido roubadas.
Quanto a nós, Cabos Enfermeiros, só servíanos para dar chatices pois era necessário de mês a mês limpar o pó ou a humidade para não ganharem ferrugem.
Ora o que eu queria dizer era que, se nas sedes de Batalhão em vez de um Médico de Clínica Geral, houvesse um Médico Cirurgião podiam-se salvar muitas vidas ou pelo menos estabilizar a vítima até chegar ao Hospital. Pelo menos aliviava-se o Hospital Central para os feridos graves… Mas lá, como cá, quem é o especialista que quer ir para Trás os Montes, Beira Alta ou Alentejo ? Se for Lisboa Porto ou Coimbra tudo bem.
Também aqui estava em causa a remuneração. Um médico especialista nunca tinha patente abaixo de Capitão e um Cirurgião talvez Major ou Tenente Coronel.
Quando eu fui para a tropa, se em vez de recrutado fosse cooptado para o SSM, ia com o posto e Cabo e com o vencimento dos CTT pois já era funcionário dos quadros e descontava para a CGA.
Os meus cordiais cumprimentos.
Armandino Alves
_________
Notas de L.G.:
(*) Vd. programa científico do recente XIV Encontro de Saúde Militar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Lisboa, Instituto de Estudos Superiores Militares, 6-8 de Abril de 2009
(**) Vd. os poestes anteriores da série Os Nossos Médicos:
15 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3899: Os nossos médicos (1): Alf Mil Médico José Alberto Machado (Nova Lamego)
2 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4891: Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73) (Luís Graça / António Graça de Abreu)
Ligeiros Conselhos de Higiene Sexual
Numa época em que um homem ainda podia ter relações sexuais sem o risco de apanhar doenças incuráveis, para as quais ainda não há qualquer hipótese de tratamento à vista, o exército português, na segunda metade do século XIX, tinha não apenas o cuidado de efectuar acções de sensibilização para os problemas das doenças venéreas, como também distribuía frequentemente documentação escrita, em forma de pequenas publicações num formato A5, na esperança de que os militares a lessem.
Volvidos mais de 30 anos após o término de um período em que os nossos homens eram obrigados a férias forçadas por terras distantes, vão-nos chegando verdadeiras relíquias documentais, que aqui arquivamos e damos a conhecer, após a devida conversão para um formato electrónico.
O presente documento, é uma publicação da Direcção do Serviço de Saúde Militar, rigorosamente transcrito e do qual reproduzimos apenas a capa da publicação, num formato A5, tal como anteriormente dissemos.
______________
DIRECÇÃO DO SERVIÇO DE SAÚDE MILITAR > LIGEIROS CONSELHOS DE HIGIENE SEXUAL
LEMBRA-TE:
– Que depois de teres contacto sexual com mulher é obrigatório procurares o posto antivenéreo [ P. A. V.] da tua unidade; e deves procurá-lo dentro de 3 horas, o máximo, depois desse contacto, para tirares resultado;
– Que tens no P. A. V. a garantia da tua saúde; e sabes que a tua saúde é o melhor capital de que dispões;
– E que, não procurando o P. A. V., não te desinfectando, arruínas a tua saúde para sempre, contraindo doença venérea; e depois levas para casa mal ruim que pegarás à tua mulher e que transmites a teus filhos.
FICA SABENDO:
– Que essas doenças venéreas são a blenorragia (corrimento de pus pela uretra) e que aparece alguns dias depois do contacto sexual;
– As feridas no pénis e órgãos genitais e até na boca e no ânus (cavalos duros) podem aparecer só passadas algumas semanas, e que muitas vezes se não dá pelo aparecimento, porque podem não doer; e há outras fendas no pénis (cavalos moles) que dão muitas vezes inchaços nas virilhas (as mulas).
TOMA CUIDADO:
– Com as mulheres que se dizem muito sérias e saudáveis e em geral são mais perigosas do que as outras. E procura não ter relações sexuais com mulher que tenha feridas, caroços nas virilhas ou no pescoço, rouquidão, aftas, purgação ou qualquer corrimento, que tenha as roupas manchadas, ainda que para isso te dê qualquer desculpa e que diga não ter isso importância alguma.
PROCURA:
– Fazer uma completa e boa desinfecção e para isso segue as regras que estão afixadas no P. A. V., e assim:
– Urina com força (pois que, urinando, fazes uma boa lavagem da uretra) e baixando as roupas convenientemente utiliza o mictório cavalgando com a face voltada para a parede e ensaboa, com o sabão desinfectante, durante um minuto, tudo o que esteve em contacto com as partes genitais da mulher, lava bem tudo com bastante água e, a seguir, repete a lavagem com mais sabão e durante 2 a 3 minutos.
ATENÇÃO:
– Nunca te fies na experiência apregoada das praças velhas e procura sempre o P. A. V., nunca te esquecendo que o tens de fazer dentro de 3 horas, o máximo, pois que, mais tarde, a desinfecção já não tem efeito; e mais, sempre que tenhas qualquer suspeita de doença venérea, consulta sempre o médico da tua unidade.
Post Scriptum - Segundo pesquisa que fiz posteriormente no catálogo da Biblioteca Nacional, esta brochura, de 12 pp., teria sido publicada muito anos antes do início da guerra colonial, em 1936, sendo o seu autor José Nevil de Ascenção Pinto da Cunha Saavedra (1895-?). Há indicação que teria sido uma separata da Revista Militar. De qualquer modo é de registar que p exército (ou o seu serviço de saúde militar) era muito mais pragamático e muito menos hipócrita, em matéria de prevenção das doenças do foro sexual, do que a generalidade das outras instituições da sociedade portuguesa da época... LG.
1. Texto, sof a forma de 3 mensagens e comentários recentes, do Armandino Alves, ex-1º 1º Cabo Enf da CCAÇ 1589 (Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, 1966/68), sobre a questão dos nossos médicos e demais pessoal do Serviço de Saúde Militar (*), no tempo da guerra colonial, tema de que temos falado muito pouco no nosso blogue (**), incluindo a sua história:
(i) 2 de Setembro de 2009:
Caro Luís Graça
Como está explícito no que escreveste [, Poste P4891] (**), os oficiais Médicos estavam sediados nos Comandos de Batalhão e faziam serviço nas Companhias Operacionais por escala Quinzenal ou Mensal e que raramente era cumprida. Muitas vezes nem cumprida era por motivos metereológicos. Por exemplo na altura das chuvas não havia médico pois as avionetas não podiam aterrar.
Quanto a nomes, pouca gente deve saber o nome, a não ser aqueles que pertenciam à CCS ou os Furriéis Enfermeiros que eram quem os assessoravam nas consultas. Eu, por falta de Furriel na minha Companhia, assessorei uma vez em Fá Mandinga e outra vez em Béli. Mas as consultas eram tão rápidas que nem tempo tínhaos para lhe perguntar o nome.
Por exemplo: Um dia estava com a minha esposa e um filho num consultório médico na Rua de Aviz, no Porto, para uma consulta de Pediatria. Esse consultório era partilhado por vários médicos de várias especialidades. Entretanto entra um senhor bem posto que olha para a sala de espera e de repente dirige-se a mim e pergunta-me:
- Você esteve na Guiné, não esteve ?! - Eu respondi-lhe que sim.
- E não me conhece ? - Eu olhei para ele e disse-lhe:
- Sinceramente, não!
Então ele disse-me:
- Eu fui o Médico que o safou de ir fazer Operações para o mato quando estava em Fá Mandinga.
Cumprimentámo-nos e eu nem lhe perguntei o nome. Não sei se ainda é vivo, se continua a exercer medicina e se continua com o consultório na Rua de Aviz.
Quanto aos Hospitais na Guiné, além do HM 241, havia o Hospital Central de Bissau, que mais parecia um matadouro e que se destinava à população civil.
Quanto à Metrópole, além do Hospital Militar da Estrela e Anexo, havia o Hospital Militar Regional nº 1 no Porto, o Hospital Militar Regional nº 2 em Coimbra e o Hospital Militar Regional nº 3, salvo erro em Évora.
Atualmente o Hospital Militar no Porto é 5 estrelas, parece um Hotel comparado ao tempo em que lá estive a tirar a especialidade.
O Hospital Militar da Estrela ficou mais conhecido porque as evacuações eram todas feitas para lá porque tinha lá perto o Aeroporto Militar de Figo Maduro e não convinha dar muito aparato a essas operações,q ue normalmente eram noturnas.
Armandino Alves
(ii) 2 de Setembro de 2009:
Caro Luís Graça
Sinceramente não sei a Constituição do Serviço de Saúde Militar (SSAM). Quando terminei a recruta em Leiria, fizemos a Formatura e um Oficial ia lendo os nomes e indicava onde nos devíamos apresentar. A mim calhou-me o Regimento do Serviço de Saúde em Coimbra. Entretanto soube que tinha existido na Rua da Sofia o Batalhão
do Serviço de Saúde que tinha sido extinto .Portanto íamos cumprir 4 meses de instrução teórica e depois mais 2 de prática num dos Hospitais Militares.
A mim e por sorte calhou-me o HMR 1 no Porto, pois fiquei em casa. Chegado ao Hospital fui colocado no Serviço de Infecto-Contagiosas onde o que aprendi foi a dar injecções de Penicilina e Estreptomicina. Foi aqui que vi morrer o primeiro recruta proveniente de Vila Real com a febre dos Fenos e que tinha sido obrigado a fazer um crosse àchuva com 40º de febre. Esteve ligado a uma máquina aspiradora que lhe aspirou tudo. Morreu num sofrimento atroz. Quando cheguei ao Hospital, cerca da meia noite, pois ia entrar de enfermeiro de dia, fui informado pelo meu colega que tinha que levantar a farda e vestir o morto, pois de manhã chegava a Família com o armador. A casa mortuária era nas traseiras do Hospital. Lá fui com a farda de gala e quando cheguei deparei-me com o morto completamente nu em cima de uma mesa de pedra mármore, sem sequer ter um lençol a tapá-lo.
Puz-me a pensar como é que me ia desenrascar sozinho e lembrei-me que a minha avó dizia que se devia falar com os mortos como se estivessem vivos. E não é que é verdade?
Chamei-o pelo nome e pedi-lhe para ele dobrar o braço para lhe vestir a camisa e ele deixou dobrar o braço. Ele já estava em rigor mortens. Só não consegui que os pés se mexessem e assim os calcanhares iam nos plainitos.
Terminada a especialidade, voltei a Coimbra e logo fui despachado para a Academia Militar em Dona Estefânia onde estive de 24 de Junho 66 até á minha mobilização. Aí sim era um serviço de saúde 5 estrelas, pois era para Oficiais de Carreira, de General para baixo. Era nessa altura responsável por esse serviço o Dr.
Pancada da Fonseca, salvo erro Capitão nessa altura. Tínha-mos um 1º Sargento Enfermeiro que tinha estado em Macau e vários 1ºs Cabos Enfermeiros.
Nessa altura eu ainda era Sodado Enfermeiro pois, apesar de ter sido promovido a Cabo em Fevereiro, só me foram entregues as divisas à entrada do barco.
Os Furriéis já eram enfermeiros na vida civil ou tinham terminado o Curso de Enfermagem. Não sei se faziam a recruta normal e no fim eram colocados nos HM ou iam directamente para os Hospitais.
Quanto aos Médicos idem aspas. Os Especialistas deviam ser recrutados nos Hospitais Militares pois lá existiam médicos de carreira militar com altos postos.
Isto é o que eu posso dizer sobre o serviço de saúde.
Armandino Alves
(iii) 4 de Setembro de 2009:
Assunto – Serviço de Saúde Militar (SSM)
Caro Luís Graça
Ainda sobre hospitais na Guiné.
Todos sabemos que tirando o HM 241 não havia nada em condições em qualquer cidade guineense. Mas podia haver, se os Comandos de Batalhão quisessem e Médicos Especializados quisessem.
Mas ninguém queria ir para o mato. Como deve ser do teu conhecimento, havia vários aquartelamentos que possuíam um veículo que era atrelado a uma viatura e se chamava Atrelado Sanitário. Fazia parte desse atrelado uma tenda enorme que, depois de armada, era um hospital de campanha. Nos seus vários cacifos tinha todo o material para intervenções cirúrgicas, medicamentos, incluindo morfina em grande quantidade, além de tudo o necessário para pelo menos se tentar salvar uma vida. Mas faltava o melhor : Quem trabalhar com esse material.
Como sabes os médicos recrutados para Batalhões ou Companhias eram de Clínica Geral e acabadinhos de se formarem. De bisturis, pinças e quejandos só o que viram no Hospital. Se formos pelos Furriéis enfermeiros, o panorama era o mesmo, pois também eram pessoal que tinha acabado o curso e se calhar nem o nome de algumas peças conheciam. E isso eu posso atestar, pois em Fá Mandinga tínhamos um atrelado desses e, quando o recebemos da Companhia que fomos substituir, tinha lá uma relação em A4 com o o nome das peças e a quantidade. O Furriel Enfermeiro abatia as peças e o Cabo subrepticiamente mudava-as para outro cacifo e aí já tinham nome pois entretanto tinham sido roubadas.
Quanto a nós, Cabos Enfermeiros, só servíanos para dar chatices pois era necessário de mês a mês limpar o pó ou a humidade para não ganharem ferrugem.
Ora o que eu queria dizer era que, se nas sedes de Batalhão em vez de um Médico de Clínica Geral, houvesse um Médico Cirurgião podiam-se salvar muitas vidas ou pelo menos estabilizar a vítima até chegar ao Hospital. Pelo menos aliviava-se o Hospital Central para os feridos graves… Mas lá, como cá, quem é o especialista que quer ir para Trás os Montes, Beira Alta ou Alentejo ? Se for Lisboa Porto ou Coimbra tudo bem.
Também aqui estava em causa a remuneração. Um médico especialista nunca tinha patente abaixo de Capitão e um Cirurgião talvez Major ou Tenente Coronel.
Quando eu fui para a tropa, se em vez de recrutado fosse cooptado para o SSM, ia com o posto e Cabo e com o vencimento dos CTT pois já era funcionário dos quadros e descontava para a CGA.
Os meus cordiais cumprimentos.
Armandino Alves
_________
Notas de L.G.:
(*) Vd. programa científico do recente XIV Encontro de Saúde Militar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Lisboa, Instituto de Estudos Superiores Militares, 6-8 de Abril de 2009
(**) Vd. os poestes anteriores da série Os Nossos Médicos:
15 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3899: Os nossos médicos (1): Alf Mil Médico José Alberto Machado (Nova Lamego)
2 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4891: Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73) (Luís Graça / António Graça de Abreu)
Guiné 63/74 - P4909: Blogoterapia (124): Na Guiné também houve sacanas! (António G. Matos)
1. Mensagem de António G. Matos, ex-Alf Mil MA da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, que nos foi enviada em 6 de Setembro de 2009:
Na Guiné também houve sacanas!
Quentin Tarantino, com a sua mais recente produção - sacanas sem lei -, teve o mérito de me fazer debruçar sobre o layout de comentários/postes do blogue para, ainda que num registo meramente esporádico, vos possa dar conta de ter pegado na minha faca de mato usada na Guiné, amolá-la convenientemente, testar o fio da lâmina no corte longitudinal dum cabelo, e imaginar o "descascar" do escalpe de alguns "basterds" que, felizmente, não tive o desprazer de conhecer naquele tempo ido.
Depois, foi dar largas ao dedilhar no teclado como se de um taco de basebol se tratasse, tendo em falsos e despudorados ex-combatentes da Guiné a cabeça a rachar ao ritmo das potentes cacetadas desferidas pelo Donny Donowitz!
O mundo é redondo e a sacanice é do tipo do azeite na água: vem sempre ao de cima!
Mais cedo ou mais tarde!
A ideia de marcar os nazis a golpes de navalhada, na testa, com a suástica, de modo a não passarem despercebidos depois de despirem a farda, pareceu-me boa para evitar as dezenas de anos que os verdadeiros caçadores da espécie levam a dar com eles.
A nossa guerra também pariu quem merecesse uns mimos semelhantes (a suástica podia ser substituída por um papagaio) o que lhes daria tento na língua e nos livrava do incómodo de os ouvir...
Tarantino dá vida a uma visão alternativa do que podia ter sido o fim do III Reich e, consequentemente, da II guerra mundial.
Eu, numa altura em que já todos temos sensibilização ecológica, contentava-me em separar o lixo que por vezes aparece no blogue e, à falta dum provedor, deitá-lo-ia directamente na trituradora a caminho da incineração.
Porque, diz-se, o blogue é grande, e eu, não deixando de corroborar a ideia, grito que grandes, grandes mesmo, somos todos nós que fomos lá, que provámos o sabor da terra onde caímos muitas vezes, que soubemos o que é sofrer por levar um tiro, um estilhaço, arrancarem-nos uma perna, ver morrer um amigo, etc., etc., etc., volto (com a pouca autoridade que o número de intervenções me confere) a pedir ao Luís Graça, com a ajuda dos seus mais próximos colaboradores que tentem evitar o desalento dos tertulianos de modo a que se não perca a dinâmica do boom de entusiasmo de que ainda goza este espaço.
Aos camaradas Luís Faria, Manuel Maia e José Matos Dinis, agradeço as vossas palavras que muito me sensibilizaram e não poderia deixar de mandar este texto pelo respeito que me mereceram.
Sabe quem melhor me conhece que não sou de voltar a cara a uma boa polémica e não mudo de opinião por força de gritinhos mais ou menos histéricos impregnados que sejam de ameaças veladas.
Para medo, tive-o na Guiné por temer não trazer aqueles rapazes cujas famílias mos confiaram.
Infelizmente, tal aconteceu e, em sua homenagem, permitam-me o nojo por quem se julga intimidador.
Um abraço,
António Matos
Alf Mil MA da CCAÇ 2790
_____________
Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
22 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4725: Blogoterapia (120): Como falam as fotografias (António G. Matos)
Guiné 63/74 - P4908: História da CCAÇ 2679 (25): Conversa com o Januário (José Manuel M. Dinis)
1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 3 de Setembro de 2009:
Caríssimo Carlos,
Para que não molengues nos calores do Verão, aqui vai mais um exercício de memória sobre a minha viagem africana pela Guiné e, já adivinhaste certamente, destina-se a que o prepares para o blogue da Tabanca Grande.
Para os atabancados, e para ti em especial, um abraço fraterno.
Conversa com o Januário
No alpendre da casa dos furriéis, com vista para a parada, a Secretaria, a Cantina, e para o outro lado, até à casa do Silva, portanto, no melhor local de Bajocunda, jazia uma mesa de ping-pong, que não cumpria a função a que fora destinada, em virtude da falta de rede, das raquetes e bolas, que o pessoal nunca teve a lembrança de comprar, priveligiando a preguiça mental e o acomodamento. Desporto? Exercício físico? Era só o que faltava! A malta queria era descanso.
Dessa maneira, a utilização da mesa fora reconvertida. Transformou-se em assento largo, que também dava para estender o pernil. Era nela que os furriéis se espojavam molengando, ou assentavam as nádegas na periferia do tampo, para conversas variadas ou simples coscuvilhices sobre bajudas. Dali também se trocavam graçolas com o pessoal que se deslocava para o rancho ou a cantina, e no regresso aos abrigos.
Foi daquela mesa que variadíssimas vezes perdi o olhar em majestosos pôres-de-sol, momentos de evasão que os efeitos pictóricos sobre o céu me proporcionavam.
Ali, sentado à conversa com o Tenente Januário, um jovem oficial com carreira auspiciosa que a guerra proporconara, a certa altura do diálogo ele referiu que estava com os portugueses, porque éramos os mais fortes mas, um dia, quando fôssemos embora, a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos.
Nunca fui de questionar, de querer sacar informações pessoais, nem me recordo da sequência daquela conversa, apenas registo aquela afirmação, de onde se podem extrair várias noções, de entre as quais: que o Januário estava na tropa pela vantagem que a situação de oficial lhe proporcionava na vida guineense, o que ganhava não era dispiciendo e projectava-o socialmente; também deixou claro que acreditava na emancipação da Guiné, mas não esclareceu, se por acção do PAIGC, se por entrega do poder a uma super-estrutura patrocinada pelos portugueses, onde ele, naturalmente, esparava ter acolhimento. Esta hipótese seria interessante de averiguar, se alguma vez foi ventilada entre o Spinola e os homens-grandes.
Inequivocamente, porém, exprimiu a raiva que muitos guinéus sentiam em relação aos cabo-verdianos, que detinham largo poder administrativo e repressivo. Ficou também patente alguma ambição pessoal, quando referiu que a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos, como se fosse um desígnio que lhe estivesse destinado. Ou então, talvez tudo não passasse de toleima, de ambição e vaidade próprias de quem sobe na vida sem uma boa estrutura mental, nem saber situar-se perante a comunidade.
E registei, por último, a sua indiferença pelos portugueses. Ele combatia connosco porque éramos mais fortes e, acrescento eu, pagávamos bom salário. Não referiu qualquer patriotismo ou sentimento agregador à presença portuguesa, evidenciando a incongruência da sua posição no exército.
Finalmente, ficou por se saber porque não se juntou ao PAIGC na luta pela independência, já que a autonomia da Guiné estava no seu horizonte (daí eu agora admitir que pode ter havido abordagens por parte de Spínola), e também ficou por se saber porque razão parecia convicto da retirada dos portugueses.
Mais tarde, aquando da Operação Mar Verde, não fiquei muito surpreendido com a sua resolução, o que me surpreendeu, foi a notícia do enforcamento (?) subsequente e o tremendo erro de avaliação que resultou daquela atitude.
Ou ele andava num turbilhão de conflitos pessoais, sem coragem para a escolha de um rumo definitivo e arriscou, ou atraiçoou os portugueses mediante alguma causa inesperada, ou, atraiçoando, foi atraiçoado.
As primeiras hipóteses corresponderiam a reacções espontâneas. A última, pelo contrário, a uma cilada que não percebeu. Fica tudo por esclarecer.
Duas biografias do Foxtrot
Hoje vou abordar as biografias de dois valorosos elementos do Foxtrot, quase podendo dizer-se, que a biografia de um pode confundir-se com a do outro, tal a similitude na origem e formação, como nos comportamentos e presença na Guiné.
Refiro-me aos atiradores de infantaria, os senhores João Baptista de Freitas e João Rodrigues Lorêto.
Ambos oriundos da ruralidade madeirense, com nula ou muito pouca instrução escolar, dois meninos que começaram a brincar com instrumentos agrícolas junto aos pais que trabalhavam as fazendas. Ainda meninos, naturalmente, passaram a ajudar os progenitores, a aprender a trabalhar os nacos de terra para receberem as sementes ou plantas, a abrir drenos que fossem buscar a água da levada para garantir a vida orgânica que misturada com algum estrume, davam substância e fertilidade à terra.
Eram dois meninos ainda, e já alombavam com cargas de produtos agrícolas, carregando-as montanha acima, até ao carreiro que os levaria a casa, às vezes muito longe, conforma a distância e dificuldade de acesso às leiras.
Por isso não tiveram tempo para ir à escola. Provavelmente, também não haveria escolas nas suas aldeias. Porque eles são de aldeias distintas, nem se conheciam. E também não foram à escola, porque os pais não foram, e eram rijos, trabalhadores e saudáveis, para que é que servia a escola?
Foram dois meninos solitários, quero dizer, com pouca convivência com outros meninos, sem a matreirice que resulta dessas cumplicidades, sem malícia.
Os físicos algo atarrecados, condicionados pelos sucessivos pesos que carregavam, quase escondiam os ombros largos e os membros musculados e vigorosos. Pequenos, mas valentes, era o que eram.
Ambos apresentavam esparsas cabeleiras de carapinha, expressões de constante surpresa, e atitudes introvertidas.
Estavam presos na cidade, metidos em trabalhos que a tropa obrigava e os músculos tensos, bastas vezes, não correspondiam. Falava com eles e não me compreendiam. Não estavam aptos para a apreensão da nova e apressada linguagem urbana. E com os continentais, respondiam frequentemente que sim, com expressões tímidas, para não incomodarem, muitas vezes sem perceber patavina.
O esquerda-direita era uma complicação para acertar. Perceber as diferenças de postos e o tratamento adequado, outra complicação. Quanto ao manuseamento de armas, entre risos e chacotas a que não davam importância, precisavam da ajuda dos mais destros e pacientes.. Sofreram. Sofreram muito. Rapazes simples nunca inventaram comportamentos que disfarçassem os problemas. Humildes no trato, só falhavam porque não podiam corresponder.
Com o decurso do tempo assimilaram termos e passaram a experimentar as armas sem auxílio. Dificil, pois claro.
Na Guiné ainda revelavam muita dificuldade. Nas suas inocências carregavam as armas sem se imaginarem capazes de as utilizar. Volta e meia aferia dos seus desenvolvimentos. Sorriam-me como as crianças mediante as descobertas. Nos primeiros tempos, à cautela, tirei-lhes os percutores. Nem eles sabiam, nem foram os únicos.
Sempre prontos e disponiveis, foram passando do estado inconsciente, para outro mais elaborado nas dificuldades, na percepção dos perigos e na manhozice do Pelotão. Mas não eram manhosos. Apenas compreenderam os que se aproveitavam das suas ingenuidades, até lhes porem travão e confrontarem-nos. Já eram duros pelo trabalho de anos, tornaram-se duros com as vicissitudes da guerra. Foram dois meninos até aos vinte anos. Com a tropa desenvolveram novas capacidades, alargaram horizontes com as diferentes conversas em que participavam.
Perdi-lhes o rasto. Disseram-me que emigraram, talvez pela infeliz descoberta que o trabalho duro do campo não é compensador.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4880: História da CCAÇ 2679 (24): Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda e mazelas (José Manuel M. Dinis)
Caríssimo Carlos,
Para que não molengues nos calores do Verão, aqui vai mais um exercício de memória sobre a minha viagem africana pela Guiné e, já adivinhaste certamente, destina-se a que o prepares para o blogue da Tabanca Grande.
Para os atabancados, e para ti em especial, um abraço fraterno.
Conversa com o Januário
No alpendre da casa dos furriéis, com vista para a parada, a Secretaria, a Cantina, e para o outro lado, até à casa do Silva, portanto, no melhor local de Bajocunda, jazia uma mesa de ping-pong, que não cumpria a função a que fora destinada, em virtude da falta de rede, das raquetes e bolas, que o pessoal nunca teve a lembrança de comprar, priveligiando a preguiça mental e o acomodamento. Desporto? Exercício físico? Era só o que faltava! A malta queria era descanso.
Dessa maneira, a utilização da mesa fora reconvertida. Transformou-se em assento largo, que também dava para estender o pernil. Era nela que os furriéis se espojavam molengando, ou assentavam as nádegas na periferia do tampo, para conversas variadas ou simples coscuvilhices sobre bajudas. Dali também se trocavam graçolas com o pessoal que se deslocava para o rancho ou a cantina, e no regresso aos abrigos.
Foi daquela mesa que variadíssimas vezes perdi o olhar em majestosos pôres-de-sol, momentos de evasão que os efeitos pictóricos sobre o céu me proporcionavam.
Ali, sentado à conversa com o Tenente Januário, um jovem oficial com carreira auspiciosa que a guerra proporconara, a certa altura do diálogo ele referiu que estava com os portugueses, porque éramos os mais fortes mas, um dia, quando fôssemos embora, a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos.
Nunca fui de questionar, de querer sacar informações pessoais, nem me recordo da sequência daquela conversa, apenas registo aquela afirmação, de onde se podem extrair várias noções, de entre as quais: que o Januário estava na tropa pela vantagem que a situação de oficial lhe proporcionava na vida guineense, o que ganhava não era dispiciendo e projectava-o socialmente; também deixou claro que acreditava na emancipação da Guiné, mas não esclareceu, se por acção do PAIGC, se por entrega do poder a uma super-estrutura patrocinada pelos portugueses, onde ele, naturalmente, esparava ter acolhimento. Esta hipótese seria interessante de averiguar, se alguma vez foi ventilada entre o Spinola e os homens-grandes.
Inequivocamente, porém, exprimiu a raiva que muitos guinéus sentiam em relação aos cabo-verdianos, que detinham largo poder administrativo e repressivo. Ficou também patente alguma ambição pessoal, quando referiu que a sua preocupação seria combater os cabo-verdianos, como se fosse um desígnio que lhe estivesse destinado. Ou então, talvez tudo não passasse de toleima, de ambição e vaidade próprias de quem sobe na vida sem uma boa estrutura mental, nem saber situar-se perante a comunidade.
E registei, por último, a sua indiferença pelos portugueses. Ele combatia connosco porque éramos mais fortes e, acrescento eu, pagávamos bom salário. Não referiu qualquer patriotismo ou sentimento agregador à presença portuguesa, evidenciando a incongruência da sua posição no exército.
Finalmente, ficou por se saber porque não se juntou ao PAIGC na luta pela independência, já que a autonomia da Guiné estava no seu horizonte (daí eu agora admitir que pode ter havido abordagens por parte de Spínola), e também ficou por se saber porque razão parecia convicto da retirada dos portugueses.
Mais tarde, aquando da Operação Mar Verde, não fiquei muito surpreendido com a sua resolução, o que me surpreendeu, foi a notícia do enforcamento (?) subsequente e o tremendo erro de avaliação que resultou daquela atitude.
Ou ele andava num turbilhão de conflitos pessoais, sem coragem para a escolha de um rumo definitivo e arriscou, ou atraiçoou os portugueses mediante alguma causa inesperada, ou, atraiçoando, foi atraiçoado.
As primeiras hipóteses corresponderiam a reacções espontâneas. A última, pelo contrário, a uma cilada que não percebeu. Fica tudo por esclarecer.
Duas biografias do Foxtrot
Hoje vou abordar as biografias de dois valorosos elementos do Foxtrot, quase podendo dizer-se, que a biografia de um pode confundir-se com a do outro, tal a similitude na origem e formação, como nos comportamentos e presença na Guiné.
Refiro-me aos atiradores de infantaria, os senhores João Baptista de Freitas e João Rodrigues Lorêto.
Ambos oriundos da ruralidade madeirense, com nula ou muito pouca instrução escolar, dois meninos que começaram a brincar com instrumentos agrícolas junto aos pais que trabalhavam as fazendas. Ainda meninos, naturalmente, passaram a ajudar os progenitores, a aprender a trabalhar os nacos de terra para receberem as sementes ou plantas, a abrir drenos que fossem buscar a água da levada para garantir a vida orgânica que misturada com algum estrume, davam substância e fertilidade à terra.
Eram dois meninos ainda, e já alombavam com cargas de produtos agrícolas, carregando-as montanha acima, até ao carreiro que os levaria a casa, às vezes muito longe, conforma a distância e dificuldade de acesso às leiras.
Por isso não tiveram tempo para ir à escola. Provavelmente, também não haveria escolas nas suas aldeias. Porque eles são de aldeias distintas, nem se conheciam. E também não foram à escola, porque os pais não foram, e eram rijos, trabalhadores e saudáveis, para que é que servia a escola?
Foram dois meninos solitários, quero dizer, com pouca convivência com outros meninos, sem a matreirice que resulta dessas cumplicidades, sem malícia.
Os físicos algo atarrecados, condicionados pelos sucessivos pesos que carregavam, quase escondiam os ombros largos e os membros musculados e vigorosos. Pequenos, mas valentes, era o que eram.
Ambos apresentavam esparsas cabeleiras de carapinha, expressões de constante surpresa, e atitudes introvertidas.
Estavam presos na cidade, metidos em trabalhos que a tropa obrigava e os músculos tensos, bastas vezes, não correspondiam. Falava com eles e não me compreendiam. Não estavam aptos para a apreensão da nova e apressada linguagem urbana. E com os continentais, respondiam frequentemente que sim, com expressões tímidas, para não incomodarem, muitas vezes sem perceber patavina.
O esquerda-direita era uma complicação para acertar. Perceber as diferenças de postos e o tratamento adequado, outra complicação. Quanto ao manuseamento de armas, entre risos e chacotas a que não davam importância, precisavam da ajuda dos mais destros e pacientes.. Sofreram. Sofreram muito. Rapazes simples nunca inventaram comportamentos que disfarçassem os problemas. Humildes no trato, só falhavam porque não podiam corresponder.
Com o decurso do tempo assimilaram termos e passaram a experimentar as armas sem auxílio. Dificil, pois claro.
Na Guiné ainda revelavam muita dificuldade. Nas suas inocências carregavam as armas sem se imaginarem capazes de as utilizar. Volta e meia aferia dos seus desenvolvimentos. Sorriam-me como as crianças mediante as descobertas. Nos primeiros tempos, à cautela, tirei-lhes os percutores. Nem eles sabiam, nem foram os únicos.
Sempre prontos e disponiveis, foram passando do estado inconsciente, para outro mais elaborado nas dificuldades, na percepção dos perigos e na manhozice do Pelotão. Mas não eram manhosos. Apenas compreenderam os que se aproveitavam das suas ingenuidades, até lhes porem travão e confrontarem-nos. Já eram duros pelo trabalho de anos, tornaram-se duros com as vicissitudes da guerra. Foram dois meninos até aos vinte anos. Com a tropa desenvolveram novas capacidades, alargaram horizontes com as diferentes conversas em que participavam.
Perdi-lhes o rasto. Disseram-me que emigraram, talvez pela infeliz descoberta que o trabalho duro do campo não é compensador.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4880: História da CCAÇ 2679 (24): Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda e mazelas (José Manuel M. Dinis)
Guiné 63/74 - P4907: Convívios (160): 8.º Encontro da CCAÇ 2791, dia 26 de Setembro de 2009 em Torres Vedras (Luís Faria)
1. Mensagem de Luís Faria (*), ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 3 de Setembro de 2009:
Amigo Vinhal
Um abraço.
Na esperança de captar a atenção de alguns Camaradas da "FORÇA" 2791 que andam mais distraídos e não têem comparecido aos encontros anuais, peço-te que divulgues no blogue o anexo que envio.
Este ano coube ao Filomeno Marques (Fur) a realização do 8.º convívio e como tal, dadas as suas caracteristicas humanas, intelectuais e organizativas, voltará a ser um dia muito bem passado entre Camaradas amigos.
Espero que desta vez apareça mais Pessoal do Sul e que o Luís Madaleno, Almeida, Mesquita, Trafaria, Fatana, Castanhas, Metralhinha Lourenço, Paiva, Mealha... e tantos outros que não têm marcado presença, apareçam para uns abraços e umas conversetas bem dispostas e bem acompanhadas!
Quanto aos costumeiros aproveito para lhes desejar que façam uma boa viagem, pois o resto é-o (bom) de certeza.
Obrigado pela publicação
Luís Faria
8.º CONVÍVIO DA CCAÇ 2791
26 DE SETEMBRO DE 2009
Local: Restaurante Moinho do Paul
Av. da Lapa, 13
Paul - Torres Vedras
Telefone 261 323 696
Caros amigos:
Com muita alegria vos informo que o dia e local do nosso Encontro/Convívio anual, com o seguinte programa:
10h - Recepção no Restaurante do Paul
11h - Aperitivos
12h - Missa na Capela do Paul
13h 30m - Almoço:
- Sopa de legumes
- Arroz de tamboril
- Lombo de porco com batatinhas e castanhas
(Se for preciso dieta, informem-me)
15h 30m - Pequeno passeio
18h - Lanche e Bolo do Encontro
Custo:
Adultos - 35 Euros
Crianças dos 6 aos 10 anos - 17,50 Euros
Agradeço que enviem as inscrições até 18 de Setembro para:
Filomeno Marques
Rua Bento Gonçalves,2
2560-325 Tores Vedras
Contactos:
261 324 628
964 730 185
968 062 727
__________
Notas de CV:
(*) Vd. último poste de Luís Faria com data de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4874: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (20): Adeus Binar, até sempre
Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4899: Convívios (157): XIV Convívio dos ex-Combatentes da Freguesia de Campia – 22AGO2009 (Artur Conceição)
Amigo Vinhal
Um abraço.
Na esperança de captar a atenção de alguns Camaradas da "FORÇA" 2791 que andam mais distraídos e não têem comparecido aos encontros anuais, peço-te que divulgues no blogue o anexo que envio.
Este ano coube ao Filomeno Marques (Fur) a realização do 8.º convívio e como tal, dadas as suas caracteristicas humanas, intelectuais e organizativas, voltará a ser um dia muito bem passado entre Camaradas amigos.
Espero que desta vez apareça mais Pessoal do Sul e que o Luís Madaleno, Almeida, Mesquita, Trafaria, Fatana, Castanhas, Metralhinha Lourenço, Paiva, Mealha... e tantos outros que não têm marcado presença, apareçam para uns abraços e umas conversetas bem dispostas e bem acompanhadas!
Quanto aos costumeiros aproveito para lhes desejar que façam uma boa viagem, pois o resto é-o (bom) de certeza.
Obrigado pela publicação
Luís Faria
8.º CONVÍVIO DA CCAÇ 2791
26 DE SETEMBRO DE 2009
Local: Restaurante Moinho do Paul
Av. da Lapa, 13
Paul - Torres Vedras
Telefone 261 323 696
Caros amigos:
Com muita alegria vos informo que o dia e local do nosso Encontro/Convívio anual, com o seguinte programa:
10h - Recepção no Restaurante do Paul
11h - Aperitivos
12h - Missa na Capela do Paul
13h 30m - Almoço:
- Sopa de legumes
- Arroz de tamboril
- Lombo de porco com batatinhas e castanhas
(Se for preciso dieta, informem-me)
15h 30m - Pequeno passeio
18h - Lanche e Bolo do Encontro
Custo:
Adultos - 35 Euros
Crianças dos 6 aos 10 anos - 17,50 Euros
Agradeço que enviem as inscrições até 18 de Setembro para:
Filomeno Marques
Rua Bento Gonçalves,2
2560-325 Tores Vedras
Contactos:
261 324 628
964 730 185
968 062 727
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Notas de CV:
(*) Vd. último poste de Luís Faria com data de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4874: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (20): Adeus Binar, até sempre
Vd. último poste da série de 5 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4899: Convívios (157): XIV Convívio dos ex-Combatentes da Freguesia de Campia – 22AGO2009 (Artur Conceição)
Guiné 63/74 - P4906: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (6): AGRBIS, um inferno no meio da guerra
1. Mensagem de José da Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, com data de 3 de Setembro de 2009:
Olá Carlos,
Depois de umas maravilhosas férias pelos Açores, cá estou com mais uma uma achega para a minha história.
Para minha surpresa encontrei, no fundo de uma caixa com coisas que há muitos anos tinhamos guardado, alguma da correspondência que então mantive com a minha madrinha de guerra, e que hoje é a minha esposa. Estava convencido que tinha queimado toda a nossa correspondência à muitos anos.
Quando lhe perguntei o que tinha acontecido, ela apenas respondeu que não tinha tido a coragem de se desembaraçar de algo que lhe era muito querido.
Parte dessa correspondência vem avivar alguns dos factos que aos poucos se íam perdendo na neblina da memória.
Haja saúde para todos.
Um abraço do tamanho do oceano,
José Câmara
AGRBIS, Um Inferno no Meio da Guerra
Grande surpresa!
Tão longe que estava de encontrar muito da correspondência que mantive com a minha Madrinha de Guerra, hoje minha esposa, ao longo da minha comissão de serviço na Guiné. Acidentalmente, encontrei o seu (nosso) tesouro, do qual manteve absoluto sigilo durante todos estes anos. Pensava que as cinzas tinham tomado conta desse espólio.
Ao reler muito do que então escrevi, as memórias avivaram-se, e darão outra tonalidade àquilo que irei escrevendo. É certo que sempre fui parco em palavras, e aprofundava muito pouco sobre o que se passava comigo. Era uma forma de estar na vida.
Na última parte que escrevi afirmava que as paupérrimas instalações de alojamento, a falta de correspondência e a dureza da disciplina estavam entre as condições que mais afectavam os militares da minha Companhia. Pouco me alonguei sobre o assunto na medida em que, ao fim de tantos anos, alguns factos foram-se perdendo na neblina da memória.
Acontece que agora posso aprofundar um pouco mais sobre o que foram os primeiros dias na Guiné. Vou servir-me exactamente daquilo que então escrevi, suprimindo aquilo que me parece supérfluo para aqui.
José Câmara nas traseiras do AGRBIS
Foto e legenda: © José da Câmara (2009). Direitos reservados.
Aerograma de 28 de Janeiro de 1971:
A minha Companhia desembarcou ontem cerca das nove horas da manhã. Pelas três horas da tarde houve formatura geral, com as demais forças desembarcadas. Tivemos a recepção oficial com a presença do próprio Governador e Comandante-Chefe General Spínola. A cerimónia foi de estarrecer, sobretudo, pela quantidade de desmaios. O calor era tremendo. Demorou até ao escurecer. Só depois fomos para os nossos alojamentos. Estes são incríveis.
Dorme-se em barracas de lona, com 5 camas para onze homens. As camas insufladas, também em lona, são muito semelhantes àquelas que levamos para a praia.
As noites são frias. Não há cobertores, pelo que nos vemos obrigados a dormir com a farda durante a noite. Em contrapartida os dias são quentíssimos e os corpos suam como torneiras a pingar.
Quanto à comida… ainda não a provei. Desde que desembarcámos temos estado a ração de combate.
A disciplina também é muita pesada, muito mais dura que no Continente ou nos Açores.
Miserável, mas verdadeiro!
Quanto à população, é difícil entender o que diz. Interessante mesmo foi a aproximação de um preto que me pediu para o ensinar a tirar a 4.ª classe.
Estas são as minhas primeiras impressões da Guiné.
A correspondência, ou melhor, a falta de correspondência foi outro problema que enfrentámos.
Para recebermos a primeira correspondência, a solução foi pedir autorização ao Comandante da Companhia Cap Mil Rogério Rebocho Alves para deixar-me ir a Bissalanca ao SPM. Com alguma reserva, ele autorizou-me, desde que eu mantivesse sigilo sobre a autorização. E era fácil de compreender. A Companhia não tinha viaturas distribuídas, pelo que teria que ir à boleia ou a pé. Em qualquer dos casos eu assumiria as consequências do que eventualmente pudesse acontecer.
Verdade seja dita que, sendo açoriano, sempre tive algum espírito aventureiro. Fiz-me ao caminho na companhia do soldado José Francisco Serpa, florense como eu, homem da minha confiança, e a quem atempadamente pus ao corrente da situação. Este soldado era um dos que mais sofria com a falta de correspondência. Para além de ser muitíssimo chegado à família, andava muito preocupado com a sorte de dois irmãos gémeos que estavam a entrar para o serviço militar. Tinham metido requerimento para amparo mas ainda não tinham obtido resposta, portanto, preocupações acrescidas para ele, não fossem todos a virem a encontrar-se no Ultramar. Por ironia do destino, foi o que veio a acontecer, dois na Guiné e um foi para Timor.
Escusado será dizer que o nosso regresso a Brá, carregados com os sacos de correspondência, foi recebido com extrema alegria por todos e alguma admiração. Tudo tinha sido mantido em segredo. Poderia acrescentar, sem medo de errar, que os soldados da minha Companhia me passaram a ver como sendo um homem de bom coração.
A alegria que eu vi estampada naqueles rostos de bebés está entre as melhores recordações que guardo da Guiné.
A minha outra recompensa foi o facto de também ter recebido a primeira carta da minha Madrinha da Guerra em terras da Guiné. Respondi-lhe assim:
Carta de 10 de Fevereiro de 1971:
Recebi a tua carta. E com ela a vontade firme em ajudares-me; acredita-me que a carta é o melhor remédio para quem, longe, anseia pela palavra de uma pessoa amiga. A carta é, para mim, alegria, dor, saudade, angústia, prazer, amor, vontade de viver. Sim, a carta é tudo isso. Ajuda a fazer desaparecer os tormentos e as angústias do dia-a-dia. É lida a correr porque o tempo voa nesse instante de leitura. A carta fala, comunica. Vem ao encontro de outra que se presta para partir. Juntam-se e animam-se.
Depois… fica a certeza de que alguém reza pela nossa protecção, nos anima, nos acarinha.
Carta de 25 de Fevereiro de 1971
Já se passaram quinze dias desde que recebi a última carta. E dos meus pais também não recebi. Até parecem combinados.
Estas duas cartas que eu escrevi exemplificam as dificuldades que nós, açorianos, tínhamos em receber correspondência. Esse aspecto agudizava-se muito mais para aqueles que eram oriundos das ilhas das Flores e Corvo, onde, no Inverno, os barcos apenas lá iam uma vez por mês caso o mar e as condições atmosféricas o permitissem. Ainda em outros casos, como o meu, tínhamos os nossos familiares emigrados nos Estados Unidos da América ou Canadá. As distâncias eram, de facto, muito grandes naqueles tempos.
A disciplina, melhor dizendo, o uso e abuso do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) martirizou e condicionou a CCaç 3327 para toda a comissão. Muitos furriéis foram decapitados da sua autoridade moral pelas punições sofridas. Ficaram-se, em parte, pela autoridade militar, forma triste de comandar tropas em qualquer cenário militar e, muito particularmente, num cenário de guerra. Acrescento que todos estes furriéis eram militares competentes, e que as punições só aconteceram porque a comandar o AGRBIS estava um militar que desconhecia, por completo, que por detrás de cada farda estava um ser humano.
Era comandante do AGRBIS o Coronel Santos Costa, o célebre Onze, e a quem me referi em escrito anterior.
Para que se tenha uma ideia do que então aconteceu, aqui fica um sumário das punições:
1 Furriel Mil com 15 dias de detenção,
1 Furriel Mil com 10 dias de detenção
2 Furriéis Mil com 5 dias de detenção cada
1 Furriel Mil com 2 dias de detenção
2 Cabos com 5 dias de prisão cada
2 Soldados com 10 dias de prisão cada
2 Soldados com 5 dias de prisão cada
Carta de 1 de Abril de 1971
Há 72 horas que me encontro de serviço. O trabalho tem decorrido normalmente. Cansativo e aborrecido como sempre.
Ontem, a coisa esteve feia. Estive de Sargento de Dia à minha Companhia. Todos os soldados presentes no refetório tentaram fazer um levantamento de rancho. O Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, obrigou-me a participar de todos os soldados da minha Companhia que não quiseram comer. Ao todo foram vinte e sete (27) participações. Podes calcular como estou, até porque os soldados tinham razão: a comida não se levava de maneira nenhuma.
Quando entreguei as participações ao Comandante da minha Companhia, pedi-lhe que não desse seguimento disciplinar até ao limite permitido pelo RDM que, se a memória não me falha, era de 30 dias, pois era minha intenção retirar as participações. Nessa altura já sabíamos que a Companhia iria seguir para o interior no dia 6 de Abril. Foi assim que vinte e sete (27) soldados escaparam a uma punição, no mínimo, de cinco dias de detenção cada um.
Recentemente tive a ousadia de pedir a um dos furriéis punidos se ainda se lembrava dos motivos da sua punição. Esta é a resposta que me deu por Email:
O castigo que tu referes foi dado num dia que eu estava de Sargento de Dia. Eu já tinha pedido licença ao Oficial de Dia para o pessoal ficar à vontade e caminhar para o refeitório. Quando já estava quase metade da Companhia dentro do mesmo, apareceu o Comandante e procurou quem era o Sargento de Dia e mandou chamar-me. Fui ter com ele. Perguntou se não o tinha visto. Eu disse que não. Voltou-se para mim e disse:
- Os soldados que vão ficar à tua ordem vão morrer todos! (e disse ainda mais alguma coisa que já não me lembro). Parece que isso aconteceu quando estávamos adidos a um batalhão no Agrbis. Vê se te recordas...
O furriel em causa foi punido com dois dias de detenção pelo simples facto de não ter visto o tal Onze. Como não viu não cumprimentou. Levou com a porrada na mesma.
Assim se praticava a (in)justiça no AGRBIS
José Câmara
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4730: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (5): Os primeiros passos na Guiné
Olá Carlos,
Depois de umas maravilhosas férias pelos Açores, cá estou com mais uma uma achega para a minha história.
Para minha surpresa encontrei, no fundo de uma caixa com coisas que há muitos anos tinhamos guardado, alguma da correspondência que então mantive com a minha madrinha de guerra, e que hoje é a minha esposa. Estava convencido que tinha queimado toda a nossa correspondência à muitos anos.
Quando lhe perguntei o que tinha acontecido, ela apenas respondeu que não tinha tido a coragem de se desembaraçar de algo que lhe era muito querido.
Parte dessa correspondência vem avivar alguns dos factos que aos poucos se íam perdendo na neblina da memória.
Haja saúde para todos.
Um abraço do tamanho do oceano,
José Câmara
AGRBIS, Um Inferno no Meio da Guerra
Grande surpresa!
Tão longe que estava de encontrar muito da correspondência que mantive com a minha Madrinha de Guerra, hoje minha esposa, ao longo da minha comissão de serviço na Guiné. Acidentalmente, encontrei o seu (nosso) tesouro, do qual manteve absoluto sigilo durante todos estes anos. Pensava que as cinzas tinham tomado conta desse espólio.
Ao reler muito do que então escrevi, as memórias avivaram-se, e darão outra tonalidade àquilo que irei escrevendo. É certo que sempre fui parco em palavras, e aprofundava muito pouco sobre o que se passava comigo. Era uma forma de estar na vida.
Na última parte que escrevi afirmava que as paupérrimas instalações de alojamento, a falta de correspondência e a dureza da disciplina estavam entre as condições que mais afectavam os militares da minha Companhia. Pouco me alonguei sobre o assunto na medida em que, ao fim de tantos anos, alguns factos foram-se perdendo na neblina da memória.
Acontece que agora posso aprofundar um pouco mais sobre o que foram os primeiros dias na Guiné. Vou servir-me exactamente daquilo que então escrevi, suprimindo aquilo que me parece supérfluo para aqui.
José Câmara nas traseiras do AGRBIS
Foto e legenda: © José da Câmara (2009). Direitos reservados.
Aerograma de 28 de Janeiro de 1971:
A minha Companhia desembarcou ontem cerca das nove horas da manhã. Pelas três horas da tarde houve formatura geral, com as demais forças desembarcadas. Tivemos a recepção oficial com a presença do próprio Governador e Comandante-Chefe General Spínola. A cerimónia foi de estarrecer, sobretudo, pela quantidade de desmaios. O calor era tremendo. Demorou até ao escurecer. Só depois fomos para os nossos alojamentos. Estes são incríveis.
Dorme-se em barracas de lona, com 5 camas para onze homens. As camas insufladas, também em lona, são muito semelhantes àquelas que levamos para a praia.
As noites são frias. Não há cobertores, pelo que nos vemos obrigados a dormir com a farda durante a noite. Em contrapartida os dias são quentíssimos e os corpos suam como torneiras a pingar.
Quanto à comida… ainda não a provei. Desde que desembarcámos temos estado a ração de combate.
A disciplina também é muita pesada, muito mais dura que no Continente ou nos Açores.
Miserável, mas verdadeiro!
Quanto à população, é difícil entender o que diz. Interessante mesmo foi a aproximação de um preto que me pediu para o ensinar a tirar a 4.ª classe.
Estas são as minhas primeiras impressões da Guiné.
A correspondência, ou melhor, a falta de correspondência foi outro problema que enfrentámos.
Para recebermos a primeira correspondência, a solução foi pedir autorização ao Comandante da Companhia Cap Mil Rogério Rebocho Alves para deixar-me ir a Bissalanca ao SPM. Com alguma reserva, ele autorizou-me, desde que eu mantivesse sigilo sobre a autorização. E era fácil de compreender. A Companhia não tinha viaturas distribuídas, pelo que teria que ir à boleia ou a pé. Em qualquer dos casos eu assumiria as consequências do que eventualmente pudesse acontecer.
Verdade seja dita que, sendo açoriano, sempre tive algum espírito aventureiro. Fiz-me ao caminho na companhia do soldado José Francisco Serpa, florense como eu, homem da minha confiança, e a quem atempadamente pus ao corrente da situação. Este soldado era um dos que mais sofria com a falta de correspondência. Para além de ser muitíssimo chegado à família, andava muito preocupado com a sorte de dois irmãos gémeos que estavam a entrar para o serviço militar. Tinham metido requerimento para amparo mas ainda não tinham obtido resposta, portanto, preocupações acrescidas para ele, não fossem todos a virem a encontrar-se no Ultramar. Por ironia do destino, foi o que veio a acontecer, dois na Guiné e um foi para Timor.
Escusado será dizer que o nosso regresso a Brá, carregados com os sacos de correspondência, foi recebido com extrema alegria por todos e alguma admiração. Tudo tinha sido mantido em segredo. Poderia acrescentar, sem medo de errar, que os soldados da minha Companhia me passaram a ver como sendo um homem de bom coração.
A alegria que eu vi estampada naqueles rostos de bebés está entre as melhores recordações que guardo da Guiné.
A minha outra recompensa foi o facto de também ter recebido a primeira carta da minha Madrinha da Guerra em terras da Guiné. Respondi-lhe assim:
Carta de 10 de Fevereiro de 1971:
Recebi a tua carta. E com ela a vontade firme em ajudares-me; acredita-me que a carta é o melhor remédio para quem, longe, anseia pela palavra de uma pessoa amiga. A carta é, para mim, alegria, dor, saudade, angústia, prazer, amor, vontade de viver. Sim, a carta é tudo isso. Ajuda a fazer desaparecer os tormentos e as angústias do dia-a-dia. É lida a correr porque o tempo voa nesse instante de leitura. A carta fala, comunica. Vem ao encontro de outra que se presta para partir. Juntam-se e animam-se.
Depois… fica a certeza de que alguém reza pela nossa protecção, nos anima, nos acarinha.
Carta de 25 de Fevereiro de 1971
Já se passaram quinze dias desde que recebi a última carta. E dos meus pais também não recebi. Até parecem combinados.
Estas duas cartas que eu escrevi exemplificam as dificuldades que nós, açorianos, tínhamos em receber correspondência. Esse aspecto agudizava-se muito mais para aqueles que eram oriundos das ilhas das Flores e Corvo, onde, no Inverno, os barcos apenas lá iam uma vez por mês caso o mar e as condições atmosféricas o permitissem. Ainda em outros casos, como o meu, tínhamos os nossos familiares emigrados nos Estados Unidos da América ou Canadá. As distâncias eram, de facto, muito grandes naqueles tempos.
A disciplina, melhor dizendo, o uso e abuso do RDM (Regulamento de Disciplina Militar) martirizou e condicionou a CCaç 3327 para toda a comissão. Muitos furriéis foram decapitados da sua autoridade moral pelas punições sofridas. Ficaram-se, em parte, pela autoridade militar, forma triste de comandar tropas em qualquer cenário militar e, muito particularmente, num cenário de guerra. Acrescento que todos estes furriéis eram militares competentes, e que as punições só aconteceram porque a comandar o AGRBIS estava um militar que desconhecia, por completo, que por detrás de cada farda estava um ser humano.
Era comandante do AGRBIS o Coronel Santos Costa, o célebre Onze, e a quem me referi em escrito anterior.
Para que se tenha uma ideia do que então aconteceu, aqui fica um sumário das punições:
1 Furriel Mil com 15 dias de detenção,
1 Furriel Mil com 10 dias de detenção
2 Furriéis Mil com 5 dias de detenção cada
1 Furriel Mil com 2 dias de detenção
2 Cabos com 5 dias de prisão cada
2 Soldados com 10 dias de prisão cada
2 Soldados com 5 dias de prisão cada
Carta de 1 de Abril de 1971
Há 72 horas que me encontro de serviço. O trabalho tem decorrido normalmente. Cansativo e aborrecido como sempre.
Ontem, a coisa esteve feia. Estive de Sargento de Dia à minha Companhia. Todos os soldados presentes no refetório tentaram fazer um levantamento de rancho. O Oficial de Dia, um Capitão de Cavalaria, obrigou-me a participar de todos os soldados da minha Companhia que não quiseram comer. Ao todo foram vinte e sete (27) participações. Podes calcular como estou, até porque os soldados tinham razão: a comida não se levava de maneira nenhuma.
Quando entreguei as participações ao Comandante da minha Companhia, pedi-lhe que não desse seguimento disciplinar até ao limite permitido pelo RDM que, se a memória não me falha, era de 30 dias, pois era minha intenção retirar as participações. Nessa altura já sabíamos que a Companhia iria seguir para o interior no dia 6 de Abril. Foi assim que vinte e sete (27) soldados escaparam a uma punição, no mínimo, de cinco dias de detenção cada um.
Recentemente tive a ousadia de pedir a um dos furriéis punidos se ainda se lembrava dos motivos da sua punição. Esta é a resposta que me deu por Email:
O castigo que tu referes foi dado num dia que eu estava de Sargento de Dia. Eu já tinha pedido licença ao Oficial de Dia para o pessoal ficar à vontade e caminhar para o refeitório. Quando já estava quase metade da Companhia dentro do mesmo, apareceu o Comandante e procurou quem era o Sargento de Dia e mandou chamar-me. Fui ter com ele. Perguntou se não o tinha visto. Eu disse que não. Voltou-se para mim e disse:
- Os soldados que vão ficar à tua ordem vão morrer todos! (e disse ainda mais alguma coisa que já não me lembro). Parece que isso aconteceu quando estávamos adidos a um batalhão no Agrbis. Vê se te recordas...
O furriel em causa foi punido com dois dias de detenção pelo simples facto de não ter visto o tal Onze. Como não viu não cumprimentou. Levou com a porrada na mesma.
Assim se praticava a (in)justiça no AGRBIS
José Câmara
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4730: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (5): Os primeiros passos na Guiné
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