quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5883: Biliografia de uma guerra (55): Lançamento, previsto para fins de Março, do livro do Amadu Djaló, Guineense, Comando, Português: 1º Volume: Comandos Africanos, 1964-1974 (Virgínio Briote)


Projecto de capa do livro do Amadu Djaló, membro da nossa Tabanca Grande (*), já entretanto alterado... Finalmente, e depois de um longo calvário, chegam ao fim os árduos trabalhos da escrita, reescrita e edição da história de vida do Amadu que teve, no Virgínio Briote, mais do que copy desk, um revisor de texto, um amigo, um camarada, um confidente, um cúmplice, um advogado de defesa e um verdadeiro defensor dos seus interesses, editoriais, morais  e materiais.

O nosso blogue vai associar-se ao lançamento do livro do Amadu, cuja data ainda não está marcada, mas estima-se que possa ser em finais de Março próximo. Em preparação, está um 2º volume, com as aventuras e desventuras do Amadu a seguir à independência da Guiné e até à sua fuga para Portugal. "Ainda mais interessante do que o 1º volume" - assegura-me o Virgínio que já tem cerca de 100 páginas escritas.

Dada a frágil condição do Amadu (em termos de saúde e autonomia, física e financeira), o Virgínio tem conseguido pô-lo a falar para o gravador. E de futuro vai ter que ir à casa da filha, na Amadora, onde o Amadu vive, numa subcave sombria.

Na edição do 1º volume, que ficará a cargo da Associação de Comandos, está-se na fase final de revisão de provas tipográficas. O Virgínio refere a excelente colaboração de dois camaradas nossos, o Carlos Silva e o Manuel Lema Santos. (LG)


1. Mensagem do nosso querido amigo, camarada e co-editor Virgínio Briote

Assunto: Amadu Djaló, Guineense, Comando, Português

Caros Camaradas,


Envio-vos em anexo o projecto do livro do Amadu Djaló [, na foto, à esquerda, com o Virgínio Briote, na Quinta do Paul, Ortigosa, 20 de Junho de 2009, por ocasião do nosso IV Encontro Nacional]. 

As peripécias têm sido muitas, as dificuldades são muito mais do que esperava. Todos querem ganhar com o livro e, para mim, é ponto assente que quem deve ganhar o grosso é o Amadu e o remanescente deve limitar-se a cobrir as despesas com a edição. As editoras, embora achem o livro interessante, querem ficar com a fatia de leão e nenhuma delas vai além dos 7% para o Amadu, o que dá uma miséria.

Por isso, teve que ser a Associação de Comandos a assumir a edição. Contamos ter o livro cá fora nos fins de Março.

Um abraço do
v-briote
___________

Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 16 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4359: Tabanca Grande (143): Amadu Bailo Djaló, Alferes Comando Graduado, incorporado no Exército Português em 1962 (Virgínio Briote)

Sobre o Amadu Djaló temos 17 referências no nosso blogue. Vd. também os postes de:


10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4934: João Bacar Djaló. O testemunho de Abdulai Djaló Cula. (V. Briote)

25 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4575: IV Encontro Nacional do Nosso Blogue (14): Gostei muito, nunca vou esquecer (Amadu Djaló / Virgínio Biote)

15 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4529: Em 6 Março de 66, o filme da primeira operação helitransportada no CTIG (Amadu Djaló / V. Briote)

11 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4505: A Tabanca Grande no 10 de Junho (8): O descanso do guerreiro - Amadu Bailu Djaló (João Carlos Silva)

Guiné 63/74 - P5882: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (22): Ida à Guiné, a pé

1. Mensagem de Fernando Gouveia, (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2010:

Caro Carlos:
Costumo ser mais ou menos regular no envio das minhas estorietas.
Desta vez atrasei-me muito. Tenho razões para isso. Sou uma pessoa que quando tenho uma preocupação, paro tudo o resto para resolvê-la. A “estória” de hoje explicará tudo.

Antes porém, quero dedicar esta “estória” ao sexto aniversário do Blog.

Não direi que, desde há um ano, quando descobri o Blog, a minha vida tenha mudado 180 graus, mas 20 ou 30, isso mudou.

No aniversário do Luís Graça referi o que já no primeiro email, lhe havia escrito em relação ao Blog: -“Já tenho que ler até ao fim da vida”.

Durante quarenta anos nada me fez mexer nas memórias da Guiné. PARA ISSO FOI PRECISO O BLOG, QUAL CAVILHA, DE UM FORNILHO REPLETO DE RECORDAÇÕES MULTICOLORIDAS.

Um abraço a todos os Bloguistas.
Fernando Gouveia

P.S. – E por falar em memórias da Guiné, aproveito para referir que a minha exposição “Memórias Paralelas da Guerra Colonial – Guiné 1968-70” (agora com mais fotos e horário alargado) vai mudar, no dia 26FEV10 para a galeria do Instituto das Artes e Ciências - Fundação Dr. Luís Araújo, na Praça Carlos Alberto, no Porto (quase em frente à Ordem do Carmo), onde se manterá até ao dia 12MAR10.


Um olhar e um sorriso (da actual exposição)

Consertando as redes (da próxima exposição)
Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.


A GUERRA VISTA DE BAFATÁ - 22

Ida à Guiné, a pé


Como todos sabem, há muita gente que por várias razões costuma ir a pé a Fátima. Pois bem, a mim tem-me andado a passar pela cabeça, “como que ir à Guiné a pé ou melhor dizendo, de carro”. Tudo na sequência das conversas que tenho mantido com os camaradas dos almoços na Tabanca de Matosinhos.

Por várias vezes lá se aflorou o assunto. O camarada Pimentel tem-me andado a azucrinar a mente no sentido de ir com eles, de carro, no fim de Fevereiro. O Rego diz-me que também vai, apesar de não se sentir a cem por cento. O João Rocha, não indo, foi-me dizendo que da vez anterior foi, apesar dos seus problemas de saúde.

Verdadeiramente estou entre a espada e a parede. A desculpa, e não é desculpa, que sempre lhes tenho dado para não ir, é o estado deplorável da minha coluna. Apesar de aguentar perfeitamente umas centenas de quilómetros nas nossas estradas e umas dezenas, aos saltos, nos caminhos do “meu” Nordeste Transmontano, cinco mil quilómetros sempre é outra coisa.

Também já se pôs a hipótese de ir e vir de avião, juntando-me ao grupo lá na Guiné, mas não é bem a mesma coisa. A viagem África afora, seria a viagem da vida de uma pessoa.

Sei que não se irá encontrar o território como o deixei, embora agora em paz. Por força do desenvolvimento global, aquelas gentes aspiram hoje a algo que o “global” não lhe pode dar. As pessoas aproximaram-se dos “grandes centros” e aí a miséria prolifera tal como cá.

Pese tudo isso, fui lá muito feliz,  como diria o outro…Tive lá sorte e mais sorte. Foi lá que eu e a minha mulher tivemos a nossa primeira casa, na tabanca de Rocha. Foi lá, na zona comercial, que comprámos a réplica em plástico da nossa filha Joana, que não chegámos a ter (só dois rapazes). Toda aquela gente afável, muita da qual se considerava portuguesa como nós, foi votada, fruto das circunstâncias, ao abandono por parte dos portugueses. Agora parece assistir-se a um vaga de fundo solidária. Espero que não seja tarde demais.

Mas voltando atrás, quero referir que estou a escrever estas linhas depois de ir ao médico tentar mostrar uns exames ao estado dos meus ossos, exame esse que já tinha em meu poder há algum tempo. As conversas em Matosinhos apressaram a necessidade de tirar as dúvidas mas aconteceu que o médico não me atendeu e estou a entender isso como mais um sinal no sentido de protelar a decisão.

Pois bem, podem crer que neste momento para mim ir à Guiné, de carro, me parece tão arriscado como qualquer outra pessoa ir a pé.

Passaram-se uns dias, o médico deu-me luz verde, mas ao mudar uns móveis em casa tive uma crise de coluna. Foi a gota de água. Lá se foi por água abaixo a viagem da minha vida. Resolvi que iria, mas agora de avião. Parto no dia 3 de Março para me encontrar com o grupo que vai de carro e que deve chegar à Guiné no mesmo dia.

Há dias, um camarada escrevia no Blog que estava emocionado com a sua próxima ida à Guiné. Não quero ser monopolista, mas se a minha emoção não for muito maior, será pelo menos igual.

Ir a Roma e não ver o Papa é como para mim ir à Guiné e não ir a Bafatá. Claro que irei. O Chico Allen já me disse que até posso ir e vir no mesmo dia num “toca-toca”. Ir a Madina Xaquili, à minha guerra, seria ouro sobre azul. Lá se verá dessa possibilidade.

Já tenho a mala feita.
A emoção é muita

Até à vinda,  camaradas
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5705: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (21): As diversas formas do medo

Guiné 67/74 - P5881: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (6): Tinha prometido a mim mesma não voltar mais àquela terra onde passei dez anos que mudaram a minha vida, e onde assisti ao início de uma guerra



Guiné-Bissau > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bubaque > 12 de Dezembro de 2009 > Mulheres locais. Fotos do médico e músico João Graça

Fotos: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da  sexta e última parte  do Capº III (*):


Mulher Grande > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos


[III. 6] Décimo quarto solilóquio

A Benedita está emocionalmente exausta. Conversámos ao pormenor sobre aquele mês em Bissau, quando vieram de S. Domingos. O sofrimento do Albano contagiou-a., está dilacerada. O Albano, profeticamente, vai emitindo opiniões pessimistas sobre o futuro da Guiné. Uma noite, tendo voltado a beber, chorou amargamente, terá proferido um longo e atabalhoado monólogo, rememorou toda a sua existência nos diferentes lugares onde trabalhou, como se habituou à solidão, como se entusiasmou pela etnografia e antropologia, a fazer inquéritos, a saber escutar as populações nativas.

Sim, o seu amor era verdadeiro, pelas gentes e pela terra. A Benedita ouvia-o em silêncio, como se estivesse a ouvir uma lição sobre o amor à Pátria, o Albano falou de Gil Eanes, Rio do Ouro, Nuno Tristão, Álvaro Fernandes, conhecia as viagens e as descobertas, os fracassos da construção de fortes, as etapas da missionação, as dificuldades no estabelecimento das populações em os “Rios da Guiné do Cabo-Verde”. Chorava a fazer o seu testamento, era uma ladainha de um bêbedo que não perdeu a clarividência e falava dos lançados, dos grumetes, de Honório Pereira Barreto, um dos seus ídolos, como ídolos para ele tinham sido Sarmento Rodrigues e António Carreira. Falou nas glórias de Cacheu, na sua admiração pelos Felupes, Banhuns e Manjacos, no seu relativo desprezo pela população dita civilizada, a oração fúnebre estendeu-se a Bolama e à exaltação dos rios e rias, de repente tudo se tornou numa declaração de amor conjugal, o Albano falava das alegrias da vida a dois, o que tinham vivido em conjunto desde Bissorã a S. Domingos.

Atónita (palavra usada pela própria Benedita), ela escutara tudo sem uma só interrupção, parecia que o Albano estava a apresentar um longuíssimo livro onde cabia a geografia, a história, as obras públicas, o combate à doença, a organização dos serviços da administração, o comércio e as pescas, as riquezas do subsolo, a diversidade cultural.

Anos depois, a Benedita pensou seriamente que se tratara de um discurso de despedida, aquele funcionário colonial que se dedicara com tanto zelo à sua missão quando regressou a Portugal fez todo o possível por pôr uma pedra sobre o assunto, calara toda a sua melancolia, afundando-se em longos silêncios, donde saía dirigindo-se à mulher, perguntando-lhe: «Benedita, recorda-se daquela viagem...”, havia então um retorno àquele tempo passado, depois tudo se imobilizava, a conversa mudava de tom, regressava-se à aspereza dos novos tempos, o Albano, adoentado, atirou-se a tudo, vendeu rações, fez contabilidade, por último trabalhou na D. Eva.

São nessas viagens da memória que eu sinto, nos farrapos da memória e nas entrelinhas, a culpa da Benedita que só se apercebeu muito tarde que o Albano regressara da Guiné para um exílio, ela começou a catapultar os seus sonhos enquanto o Albano mudava de personalidade. Nesses momentos de culpa, e ouvi as suas confissões sentidas, nesses momentos, a voz, sempre quente e rouca, passava a ser um fio quase inaudível, as mãos batiam na mesa como se batesse em si própria, em autoflagelação.

Ela terminava sempre essas declarações de culpa: “Comigo foi diferente, arrumei definitivamente a Guiné a um canto, não estava disposta a ser motivo de troça dos outros, ouviam-me como se eu estivesse a contar histórias da Carochinha, a Guiné ficou reduzida à escultura, à panaria, aos desenhos e gravuras à nossa volta, aos livros, às visitas dos estudiosos que continuaram a procurar-nos.

Não me esqueço do que ela me disse um dia: «Com a guerra, a partir de 1963, fechei os olhos àquela tragédia, era o Albano que me dava conta do que se passava, lia os comunicados, eu não comentava nada, não queria reabrir feridas, bastava-me a saudade de amigos queridos, como o Omaia, o Trintão, o Ocante, os amigos de Bissau, Varela e Ziguinchor. Aprendi muito com a morte do meu pai, irei aprender mais com a doença do Albano, as trágicas revelações e a hecatombe da D. Eva. Quando perdemos afectos muito grandes, devemos tirar a lição e prosseguir sem rancores nem azedumes. Olhe para as minhas mãos, olhe para as minhas pernas, recordo-lhe as minhas doenças, temos que continuar, temos que ter um projecto até ao último dia de vida, vir da Guiné como vim ensinou-me que a vida deve continuar, nem que tenhamos que andar de rastos”.

Mais recordações da Benedita (décimo quarto trabalho de casa)

Coisa curiosa, é a primeira vez desde que vim da Guiné que sou capaz de reconstituir a minha vida como militar à força em S. Domingos. Fizemos uma messe lá em casa, para militares e civis, sentávamo-nos, o Albano e eu, um capitão, um tenente e um alferes, mais dois secretários. Os outros alferes comiam na casa da alfândega, onde tínhamos estado a tratar dos feridos na noite do ataque. Chocava-me o facto de o capitão não ficar à noite em S. Domingos, ia todos os dias dormir a Bula, senti uma vontade enorme de lhe perguntar se um oficial, ainda por cima o comandante daquela tropa, devia desaparecer ao fim da tarde. Mas refreei-me, sabia que ia arranjar uma discussão que traria amargos de boca ao Albano, tínhamos que estar juntos, a tropa e nós, o espectro da guerra era inevitável.

O Mário pediu-me que coligisse todas as recordações deste tempo. Estou admirada com as coisas que recordo daquele tempo tão incómodo, a nossa vida devassada por aquela atmosfera de quartel. Uma vez entrei na cozinha para ver se tudo estava a correr bem. Vi o maqueiro a lavar as seringas no lava-loiça depois de ter vacinado os soldados, lavava as seringas descuidadamente, espirrava tudo para cima da carne já confeccionada. Não tínhamos carne há 8 dias, não tínhamos outro almoço, calei-me, não sei como dei comigo a comer aquela carne sem nenhum protesto, mas com o estômago às voltas. Felizmente, ninguém morreu.

No outro dia, a mexer numa gaveta, encontrei uma fotografia do Natal de 61. Comovi-me muito. Com os alunos da escola, preparei enfeites, fizemos festões de papel, arranjou-se um altar, decorou-se com musgo, trouxe as minhas figurinhas do presépio. Esperámos pelo padre toda a tarde, ninguém arredou pé, ele acabou por aparecer já passava das 8 horas, não estava em condições de celebrar missa. Digo com a maior das mágoas, naquela terra havia poucos padres de qualidade. Enquanto cristã, a minha decepção foi imensa.

Pois nessa noite de Natal comemos os três sozinhos, o Albano, o secretário e eu, lá fora sentia-se que havia muito ruído na zona do aquartelamento, o Albano foi ver, regressou preocupado, estava tudo a embebedar-se. O Albano decidiu que não era aconselhável ir para a cama, ninguém estava em condições de combater. Foi assim que passámos a noite de Natal. Só consegui conciliar o sono ao amanhecer. No dia de Natal os alferes vieram pedir desculpa. Não acho graça nenhuma a estas recordações, sinto-me bastante humilhada com esta experiência.

O adeus à Guiné

Estávamos a viver tempos muito confusos. A PIDE começava a prender gente que tinha trabalhado com o Albano, eram prisões arbitrárias, ninguém sabia a origem das denúncias, o Albano protestava, os agentes da PIDE recusavam-se a dar explicações. Com as relações cortadas entre o Senegal e Portugal, não podíamos ver os nossos amigos franceses. Mas Hugues Lemaire pediu autorização às autoridades de Ziguinchor para nos visitar em S. Domingos. Veio com Joseph Chrétien, um farmacêutico, trouxeram lembranças de todos, foi um dia memorável. Anunciaram que em Ziguinchor as coisas estavam mais calmas, mas sabia-se que havia campos de treino para preparar mais guerrilheiros.

Nunca mais esqueço a história que nos contou o Joseph Chrétien. O guarda da alfândega tinha 4 mulheres e muitos filhos e tinha uma dívida muito grande na farmácia. O Chrétien falou com ele: “Queres que te perdoe a conta? Então deixa-me passar a fronteira para eu ir ver os meus amigos de S. Domingos”. O guarda aceitou a proposta. O Chrétien encheu o carro com comida francesa e trouxe-nos um carregamento muito valioso. Não se esqueceu até das revistas que eu gostava, Hugues Lemaire trazia livros e chocolates. Recebi tudo, reprimi a emoção. Depois desta visita seguiram-se outras. As notícias que chegavam do Senegal eram preocupantes quanto ao prelúdio da guerra mas, por outro lado, os amigos de Ziguinchor diziam-nos que Senghor e os outros políticos de Dakar queriam chegar a um entendimento com Salazar.

Quero voltar aos acontecimentos do Natal de 61. O Movimento Nacional Feminino enviou para cada um dos militares um pacote de cigarros, uma caixa de fósforos, uma bisnaga pequena de pasta Couraça, uma escova de dentes, também pequena, uma garrafinha de vinho do Porto, um pacote de bolachas e jornais, muitos jornais. Também recebi uma destas lembranças, nunca tinha tido tantos jornais ao mesmo tempo. Não vamos perder muito mais tempo com o que se passou naquele Natal, digo só para si que os soldados se embebedaram, cantaram as cantigas mais obscenas até caírem de cansaço. Não quero falar em nomes, fui obrigada a conviver com aquela tropa, jurei a mim própria que nunca mais voltaria a fazer serviço militar...

Em Bissau, em Janeiro, os médicos disseram ao Albano que ele tinha tendência para formar cálculo renal, recomendaram-lhe que viesse até às termas. Como se fosse hoje, lembro-me do serão que fizemos em casa da Ivone Leal, nessa noite. Pela primeira vez, e sem qualquer hesitação, o Albano mostrou intenção de abandonar definitivamente a administração colonial. Ainda lhe perguntei porque é que não havíamos de pensar em Cabo Verde ou S. Tomé e Príncipe. Ele foi muito claro: “Vim para a Guiné à procura de profissão, ganhei-lhe devoção. É um amor que não se troca de ânimo leve. Prefiro fechar o livro”.

Tínhamos pouco dinheiro, aquele mês em Bissau arrastou-se, foi um tempo lodoso. Seja como for, com as malas feitas, todas as noites andámos de casa em casa, em jantares de despedida. O louvor dado pelo Governador encheu o Albano de orgulho. Os colegas ofereceram-lhe uma salva de prata, está ali exposta na sala de jantar.

E, em Julho de 1962, partimos. Eu não estava triste, mas senti perfeitamente a grande mágoa do Albano, o modo como ele arrumava no coração e na bagagem as lembranças dos colegas e dos amigos, as fotografias que então tirou, as visitas ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e ao Museu, mesmo ao lado. Acompanhei-o numa dessas visitas, ele parou junto de uma escultura, falou-me dela, mais à frente vimos os instrumentos de caça dos Felupes. Sem esconder a emoção, ele falou-me de Bolor, Bunhaque e Bufá, povoações que ele gostava de frequentar para estudar arquitectura e o tipo de habitação Felupe, fora nessas tabancas que comprara aqueles arcos e azagaias. Vi-lhe os olhos marejados de lágrimas, disse-me baixinho: “Sei que não voltarei mais à terra dos Felupes, e tenho pena”.


Guiné > Ilha de Pecixe > Vaqueiras manjacas > Postal ilustrado (pormenor) > Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa > S/d nem editor ... Colecção de postais do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho (ex-Fur Mil Op Esp, CCAV 8350, Guileje, Cacine, Gadamael e Paunca, 1973/74)...

Os postais, acho que ele os coleccionava para mandar, com muitas ternura, ao seu velhote, no Porto... Esta série de postais, relativamente ousados para a época (tema: bajudas de mama firme...)., revelavam uma visão... excêntrica e etnocêntrica da Guiné dita portuguesa, típica do Estado colonizador e dos seus agentes (LG).

Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.




Décimo quinto solilóquio

Celebramos hoje o nosso Natal, não se consegue ver Colares, estamos cercados por uma neblina cerrada, um reposteiro de vapor. A Benedita está claramente nostálgica. Assim que bati à porta, avançou determinada, avisou-me com aquela sua voz quente e rouca: “É tudo mentira que tenha posto a Guiné atrás das costas, não se pode pôr a pedra no assunto depois de dez anos de convivência diária. Esta noite não preguei olho com dores, andei a remexer em papéis e depois peguei naquele livro que me deixou cá sobre os postais antigos da Guiné. Hoje, já que estamos a arrumar o assunto do fim da comissão do Albano, quero dar-lhe conta da Guiné que guardo no coração”.

Tirei logo o livro de apontamentos, mas não foi fácil seguir-lhe o raciocínio, a Benedita está eufórica, abriu o álbum dos postais antigos, olha para o edifício da Casa Gouveia, em Bissau, e diz: “É por aquela porta que entrava, ao fundo do lado direito comprava chá e café, passava duas portas e tinha as especiarias, no primeiro andar, onde se está a ver esta janela, era a retrosaria e as linhas para a máquina de costura”.

Depois apontou para o cais do Pidgiquiti e observou que a ponte-cais do seu tempo era a como vem no postal da Foto Serra, de 1955. Continuando a folhear o álbum, aponta para a Rua Oliveira Salazar e volta a falar em lojas de comércio. Lembra-se do Grande Hotel mas as fotografias do interior, no postal datado de 1968, não lhe dizem praticamente nada. Recorda a fanfarra à porta do Palácio do Governador, folheamos depois o álbum e pára a contemplar demoradamente um caçador Felupe, com o seu arco tenso, o caçador com um estranho bracelete de inúmeros aros no braço esquerdo. Depois uma vaqueira Manjaca em Pecixe, olha também demoradamente e comenta: “Meu Deus, podia ter sido eu a tirar esta fotografia!”.

Durante o almoço, talvez recordada da longa oração proferida pelo Albano em casa da Ivone Leal, a Benedita lança-se na sua narrativa, começa nas doenças, recorda a doença do sono, a seguir fala do estado das estradas, depois descreve a residência dos chefes de posto, salta para a cultura do arroz, é um discurso sem folgas nem recuos, parece que esteve a ler a história da Guiné do princípio ao fim, lembra-se muito bem das obras públicas, das árvores de fruto, dos recursos florestais, dos grupos étnicos, como se eu fosse um estranho ou a estivesse a ouvir pela primeira vez, recorda-me que Bissorã é uma vila do chão dos Balantas, refere os curandeiros, as superstições, os habilidosos e imaginativos trabalhos em couro, levanta-se e vai-me buscar almofadas em couro policromado, prefiro ir escrevendo sem nenhum comentário, rendo-me ao seu entusiasmo, passaram-se estas décadas e as lembranças vêm facilmente à superfície, é um discurso tão sincero e ardoroso que até paro de escrever quando ela me começa a falar do tear guineense, com os seus quatro prumos de madeira enterrados no chão, a Benedita foi mesmo buscar um pano Manjaco, mostra-me as bandas de 20 centímetros de largura, são 6 bandas cozidas que fazem um pano, quando me preparo para escrever ela grita para me prender completamente a atenção, sou o espectador de uma estranha tirada teatral, ela fala e gesticula, a banda é tecida, vai sendo enrolada numa travessa de madeira, há mesmo um dispositivo de prisão para que os liços mantenham a teia tensa. Os liços sobem e descem, de acordo com os impulsos do artífice, é este movimento alternado que facilita a passagem da lançadeira, assim se estende a trama, e o pente, graças às puas que passam os fios da teia, aconchega os fios da trama.

A Benedita não pára de exemplificar, percorre agilmente a sala de jantar dum lado ao outro, os liços separam os fios, explica como é que tecelões tingem as bandas de cor brancas ou creme, fico a saber que os tecelões também são tintureiros. A Benedita vê que eu estou perplexo, afinal a mulher do administrador que se dizia tão arredada daqueles saberes nativos, viu, assimilou e admirou. Como se estivesse a concluir a sua tirada teatral, atirou-me um olhar divertido, está a explorar o factor -surpresa e diz-me: “Tenho lá em cima as esculturas Bijagós para ver. A minha prenda de Natal para si é um Ninte-Kamatchol, é a mais linda escultura da minha colecção. Andei-lhe a mentir este tempo todo, a Guiné é um mundo pleno de culturas, graças ao Albano aprendi a respeitar e mais tarde aprendi a amar. Menti-lhe sempre, até descobrir que o Mário podia ser o meu maior cúmplice neste amor à Guiné».

Mais recordações da Benedita (décimo quinto trabalho de casa)

O que me deu hoje para recordar dez anos de Guiné? Tinha prometido ao Mário e a mim mesma não voltar mais à Guiné, chegámos em 1962 a Lisboa, era tempo de descansar, de estar com as nossas famílias, a decisão do Albano estava tomada, iríamos refazer a nossas vidas, não sabíamos como nem onde, inicialmente pensámos na linha do Estoril, o Toninho estava na Parede, fomos então de férias para Matosinhos, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, o Albano procurou um grande amigo da juventude, o Adérito Miranda, falou-se num trabalho de rações, estávamos na Foz do Douro em casa da irmão do Albano quando ele teve o primeiro enfarte. Exactamente quando eu estava a juntar estas notas abri um envelope e apareceram-me fotografias de um casamento Manjaco, encontrei uma folha que escrevi na época, estava completamente esquecida. Diz o seguinte: “Na sociedade Manjaca promete-se o casamento de uma filha a um amigo ou um familiar que nos ajuda nos trabalhos agrícolas. Tu trabalhas para mim, eu depois dar-te-ei a minha filha. Quando casavam, a filha, acompanhada pelos familiares, é levada até à família do noivo. As raparigas têm namoricos mas não podem engravidar (se engravidarem, têm que ir para o prometido marido). As Manjacas conhecem as plantas abortivas na perfeição. A libertinagem é praticamente total. Quando chega a altura de irem para o marido, este já preparou uma nova morança e traçou um risco na porta, símbolo de uma nova vida. Convida-se toda a população da tabanca para assistirem ao casamento. Diante da população e frente ao risco traçado na porta, a noiva faz a confissão pública de todos os homens com quem andou. Depois passa o risco, a partir daquele momento nunca mais pode ser infiel ao seu marido”.

Seleccionei alguns panos Manjacos para mostrar ao Mário esta bela panaria, infelizmente quase desconhecida em Portugal, continuo a não perceber como é que o belo artesanato guineense não circula nas nossas lojas.

Surpresa, encontrei noutro subscrito fotografias de noivos Bijagós. Tenho pena de nunca ter ido ao arquipélago dos Bijagós, ele foram sempre muito ciosos da sua autonomia, disse-me o Albano que só nos anos 30 é que o arquipélago foi pacificado. Nos Bijagós prevalece o matriarcado: quando a mulher se fartava do marido, punha todos os seus haveres pessoais num pano, fazia uma trouxa com quatro nós e punha-a à porta. Quando o marido chegava a casa, olhando a trouxa ficava a conhecer a sua sorte. Tive muita dificuldade em acreditar que assim era.

Vejo agora a grande emoção destas reminiscências. Foi muito bom ter voltado à Guiné, voltei a percorrer lalas e savanas, a contemplar uma ponte que não servia para coisa nenhuma, vivi numa casa imponente no Gabu, à beira do fim do mundo, atravessei rias de canoa, ensinei cozinha, aprendi a ser professora, descobri a minha esterilidade, assisti ao início de uma guerra, mal sabia eu como aquela guerra ia mudar a história de Portugal.

Prometo a mim própria não voltar a mentir desta maneira. Posso ter sofrido muito nestas terras entre o trópico de Câncer e o Equador. Mas foi nestas terras rasgadas por rios e rias, cheias de vegetação, com mangais e poilões, onde todos os dias se tem o sentimento que estamos a viver dentro da Criação, que verdadeiramente me fiz mulher. Não acredito que tivesse tido sucesso na D. Eva sem o teste da Guiné, sem a dedicação do Albano, sem a aprendizagem de que com pouco se pode fazer muito.

[ Fixação / revisão de texto / título: L.G.]

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste > 16 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5825: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (5): São Domingos, 21 de Julho de 1961: É o princípio do fim, Benedita

Guiné 63/74 - P5880: Parabéns a você (81): Gumerzindo Silva, ex-Soldado Condutor da CART 3331, Cuntima, 1970/72 (Editores)

1. Sempre que o calendário acusa o dia 25 de Fevereiro, o nosso camarada Gumerzindo Caetano da Silva (ex- Soldado Condutor da CART 3331, Cuntima, 1970/72) e a sua família estão em festa.

Este ano, a esta comemoração estão associados os seus 399 amigos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


Pensamos que haverá camaradas para quem a nossa singela homenagem de aniversário é tocante, mas no caso do Gumerzindo ainda o será mais, porque está emigrado na Alemanha desde 1973.


Sabemos que para a maioria dos nossos compatriotas emigrados há muito tempo, qualquer manifestação de amizade ida de Portugal é um bálsamo que os ajuda a enfrentar aquele sentimento bem português que, por muitos anos que se viva na diáspora nunca morre, a saudade. Assim, é com especial prazer que dedicamos este poste de aniversário ao Gumerzindo.

Caro Gumerzindo, hoje ainda estarás mais acompanhado do que nos outros dias. Nesta data festiva vimos em uníssono desejar-te o melhor da vida, o amor da família e saúde. Apesar de longe da pátria, estás como todos os camaradas nas tuas circunstâncias, bem pertinho dos nossos corações.


2. No dia 7 de Fevereiro de 2009, Gumerzindo Caetano da Silva, no seu primeiro contacto com o nosso Blogue, dizia-nos:

Meus caros Luís Graça, Carlos Vinhal e Virgínio Briote,

No último almoço que a minha Companhia (CART 3331) realizou em Peso da Régua em Junho de 2008, tive conhecimento deste grande e interessante Blogue e logo decidi que um dia viria também a enviar as duas fotos e falar um pouco de mim.

Encontro-me na Alemanha desde Abril de 1973, para onde emigrei passados 5 meses após a minha chegada da Guiné.

Com a minha simples 4.ª classe não podem esperar muito deste modesto Soldado Condutor, de nome Gumerzindo Caetano da Silva, natural de Albarrol, freguesia de Pousaflores, Concelho de Ansião.

Embarquei no Uíge no dia 6 de Março de 1971 e cheguei a Bissau no dia 11 à tarde. Depois de alguns dias no Cumeré e nos Adidos, embarquei num batelão civil, Cacheu acima, até Farim. Ali, esperei que uma coluna viesse de Cuntima para me levar até lá. Cheguei a Cuntima no dia 27 de Março de 1971 e ali permaneci até 19 de Novembro de 1972.

Passei por bons e maus bocados como todos quantos por lá passaram.

Um alfa bravo ao Virgínio, porque conhece muitíssimo bem Cuntima.

Fui recompletar a 3331 que já permanecia, desde Dezembro de 1970, na Guiné. Tive a sorte de voltar à então Metrópole com menos 3 meses que os meus camaradas.

Devo dizer que sou um assíduo leitor deste nosso Blogue desde que o conheci. Pena é que se fale pouco do nosso Sector (Farim). Em contrapartida temos do outro lado o Carlos Silva, incansável pelo trabalho que nos vai proporcionando com as histórias daqueles que por ali deambularam. Um bem haja.

Por hoje nada mais já que vos roubei imenso tempo.

Um abraço deste que silenciosamente vai dando conta de tudo.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3882: Tabanca Grande (117): Gumerzindo Caetano da Silva, ex-Soldado Condutor da CART 3331 (Cuntima, 1970/72), que nos lê na Alemanha

Vd. último poste da série de 24 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5875: Parabéns a você (80): Manuel Henrique Quintas de Pinho, Marinheiro Radiotelegrafista, Guiné, 1971/73 (Editores)

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5879: Convívios (193): Encontro anual do pessoal da CCAÇ 3518 (Gadamael e Guidaje, 1972/74), dia 15 de Maio de 2010, em Coimbra (Daniel Matos)

1. Mensagem do nosso camarada Daniel de Matos* (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), com data de 18 de Fevereiro de 2010, dando notícia do próximo Convívio Anual do pessoal da sua Unidade:

Camarada Luís Graça
(só agora reparei que além de camaradas somos "vizinhos", pois também moro em Alfragide...)

Tenho praticamente concluída a prometida "estória" da nossa passagem por Guidaje [, 22 dias de inferno!]. Só que (com alguns anexos), deu um texto de oitenta e tal páginas, o que me parece excessivo para o blog. Em breve, mandar-to-ei e tu dirás...

Por agora, envio o anúncio do Convívio Anual da minha companhia que este ano foi marcado para Coimbra e que, como é natural, gostaríamos de ver no blog.

Um abraço
Daniel de Matos
(ex-Fur Mil da CCaç 3518)



CONVÍVIO ANUAL DA CCAÇ 3518 (OS MARADOS DE GADAMAEL), 1972/74

COIMBRA, 15 DE MAIO DE 2010


ÀS 15 HORAS:
Concentração no estacionamento junto às "Docas no Parque Verde", (margem direita do Mondego, ao fundo do Parque Dr. Manuel Braga e junto à Ponte Pedonal Dona Inês).

ÀS 18,30 HORAS:
Jantar no Hotel Dom Luís

Localização:
Rotunda de acesso à Ponte Rainha Santa Isabel.

Coordenadas GPS:

N 40º 11' 23.17" (Norte 40 graus, 11 minutos e 380 segundos)
W 8º 25' 50.87" (Oeste 8 graus, 25 minutos e 855 segundos)

INSCRIÇÕES:
Prazo recomendado, até 15 de Abril

Contactar Fernando Cardoso Simões, tel. 917 669 389 / 239 921 131


2.  Comentário de C.V.:

Caro Matos,

Em tempos o nosso Editor Luís Graça lançou-te o repto para te juntares a nós. Não te esqueças de que estamos à espera que formalizes a tua adesão ao Blogue e que apresentes o trabalho que estás a elaborar sobre Guidaje. Manda-o para nós vermos a hipótese de o publicarmos em partes.

Sobre a tua unidade, há uma meia dúzia de referências no nosso blogue (II Série). Clica a aqui:
 http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/CCA%C3%87%203518

Até lá recebe um abraço em nome da tertúlia

Carlos Vinhal
__________

Nota de CCV:

(*) Vd. poste de 20 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5308: O Nosso Livro de Visitas (70): Daniel de Matos, ex-Fur Mil, CCAÇ 3518 (Gadamael, 1972/74)

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2010 > Guine 63/74 - P5865: Convívios (105): 2º Encontro (mensal) da Tabanca do Centro, em Monte Real, em 26 do corrente

Guiné 63/74 - P5878: Documentos (11): PAIGC: um curioso croquis do Sector 2, área do Xime, desenhado e legendado por Amílcar Cabral (c. 1968) (Luís Graça)




Um interessantíssimo manuscrito de Amílcar Cabral, com o croquis da Frente Leste, Sector 2, Área de Xime.  S/d. Arquivo Amílcar Cabral. Fundação Mário Soares

Imagem digitalizada e reproduzida com a devida vénia...

Fonte: Fundação Mário Soares: Arquivo Amílcar Cabral. Bissau, Cidade da Praia, Lisboa. Lisboa: Fundação Mário Soares. 2005. p. 13.

1. Leitura e interpretação do documento (L G.):

Ao canto superior esquerdo, consegue ler-se o seguinte:

Educação - Mamadu  Dembo;
Comandante de sector - Mamadu Indjai;
Comissário Político de FARP - Pedro Landim;
Comissário Político junto do Povo - Juvêncio Gomes;
Comis[sário] Abast [escimento] FARP - Mamdu Alfa Djaló;
Segurança Milícia - Sabino Mendonça;
Saúde - Benjamim Brito.


Na parte superior, ao centro:

Escolas - Satecuta, Mina, Cancódea [, a sudeste da Mata do Fiofioli,], Manhai [ou Mangai?], Gã Dias [ou Ponta Luís Dias ?],Gã Carnes [Ponta do Inglês], Baio [ou Darsalame, junto ao Buruntoni]

Saúde - 1 médico, 4 enfermeiros"

No mapa desenhado por Amílcar Cabral, estão indicados os seguintes topónimos ou localidades do Sector 2 (delimitado a norte pelo Rio Geba, a oeste e a sul pelo Corubal e a leste pela estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole, não incluindo portanto a região a norte do Geba que, no meu tempo, também fazia parte do nosso Sector L1 / Zona Leste):

Rio Geba / Ponta do Inglês [ou Gã Garnes ] / Xime / Bambadinca / Bafatá

Indicam-se as distâncias em quilómetros:

- 4 Km de Ponta do Inglês (ou Gã Garnes) até ao Xime; [pela antiga estrada, são mais de 12, aliás no meu tempo os obuses 10.5 não chegavam lá];
- 7 km do Xime a Bambadinca; [por estrada, são mais uns quatro ou cinco];
- 30 km desta localidade até Bafatá, em estrada alcatroada (sic)

Está também desenhada a estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole, com as seguintes observações:

Bambadinca - Xitole: 42 km
Mansambo: 80 tugas (sic)

Há ainda referência  a uma comp[anhia] (?), com 50 m [militares ?] , possivelmente o destacamento de Ponta  do Inglês...

Há ainda referência a um valor de grandeza, 300 / 400 m . Ainda pensei que Amílcar Cabral estivesse a referir-se à larg[ura] (?) do Rio Corubal ... Mas não: antes da foz, entre a Ponta do Inglês e Ganturé (na margem esquerda), o rio mede mais de 2 quilómetros de largura; antes da curva de Mangai, começa a estreitar, mas mesmo assim, terá cerca de 1 quilómetro... Onde terá 200 metros é nas proximidades do Xitole... (Estou a fazer cálculos pelos mapas).

 Esse valor de grandeza (300/ 400 m) deve referir-se a efectivos do PAIGC (FARP, milícias, população militarizada). Do PAIGC, acho exagerado, no máximo, teria 5 bigrupos em todo o Sector L1, no tempo do BCAÇ 2852, 1968/70) (*)...  Conferir estes dados com o croquis do Sector L1, feito no tempo da CCAÇ 12 (1969/71) (Documento a seguir).

E logo a seguir, há as seguintes notas à margem, sempre escritas com a letra elegante de Amílcar Cabral:

Populações - Beafadas, mandingas, balantas.

Estacionamentos de milícia: Moricanhe, Dembataco, Amedalai, Samba Silate. Em cada um desses estacionamentos, há 8 ou 10 tugas, excepto em Moricanhe onde só há africanos (sic).


Guiné 1969/71 > Croquis do Sector L1 / Zona Leste (Bambadinca) (vd.  Sinais e legendas).

Fonte: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971

Infogravura: © Luís Graça (2005). Direitos reservados


2. Comentário de L.G.:

Uma vez que é referida a existência da Ponta do Inglês como um destacamento das NT, guarnecido por um pelotão reforçado (os tais 50 m ?)  (retirado em finais de 1968), este documento deve ser do ano de 1968 (meados).  Quem estava no Xime, com um destacamento na Ponta do Inglês, era a CART 1746 (que veio de Bissorá, 1967/69, sendo comandada pelo cap mil art António Vaz).

Nesse ano a CART 2339 (do Torcato Mendonça e do Carlos Marques dos Santos) instalou-se em Mansambo. Moricanhe foi abandonada em meados de 1969, depois do ataque a Bambadinca em 28 de Maio de 1969. Em Agosto desse ano, o pessoal da CART 2339 feriu gravemente o Amadu Indjai, comandante do Sector 2 / Área do Xime (Op Anda Cá, com o BCP 12, CCAÇ 12 e CART 2339)...

Peço aos camaradas que estiveram no Sector L1 / Zona Leste (Bambadinca), nesta altura, para completar ou complementar as minhas notas... Refiro-me à malta do BCAÇ 2852, da CCAÇ 12, da CART 1746, da CART 2339, dos Pel Caç Nat 52 e 63, etc. De qualquer modo, Amílcar Cabral revela, senão  um perfeito, pelo menos um bom conhecimento da região (o famoso triângulo Xime-Bambadinca-Xitole).

Imagem

Fonte: Fundação Mário Soares: Arquivo Amílcar Cabral. Bissau, Cidade da Praia, Lisboa. Lisboa: Fundação Mário Soares. 2005. p. 13. (Com a devida vénia...)
______________

Nota de L.G.:

Vd. poste, da I Série,  de 15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

(...) Guiné 68-70. Bambadinca: Batalhão de Caçadores nº 2852. Documento policopiado. 30 de Abril de 1970. c. 200 pp. Cap. 48-54. Classificação: Reservado (Agradeço ao Humberto Reis ter-me facultado uma cópia deste documento em formato.pdf)

Op Lança Afiada (8 a 19 de Março de 1969) - I parte

1. Situação: Inimigo

1.1. Desde há anos que a região da margem direita do Rio Corubal até à linha Xime-Xitole, é considerada uma zona de refúgio e preparação do IN [inimigo]. A profundidade continental da região, a sua espessa arborização (excepto na franja marginal do Rio), a falta de trilhos e caminhos, a grande distância a que ficam os aquartelamentos mais próximos (Xime, Mansambo e Xitole), tudo isto são características que convidam o IN a permanecer na Zona, em relativa tranquilidade.

O IN sabe que detecta facilmente qualquer tentativa de aproximação das nossas Forças Terrestres. Se a aproximação terrestre é difícil, a actuação das FN [Forças Navais] parece facilitada pela existência do Rio Corubal. E a tal ponto que, em estudo realizado por este Comando, a área da margem direita do Rio Corubal, desde a Ponta do Inglês a Gã Júlio, foi considerada uma área que devia ser batida pelas NT [Nossas Tropas] em operação conjunta de meios navais e helitransportados.

A deficiência destes meios contribuiu para o quase completo sossego em que o IN tem vivido na área, controlando uma população de balantas e beafadas que o alimenta e que se reputa numerosa. E determinou a realização da Op Lança Afiada com o emprego exclusivo de forças terrestres.

1.2. O reconhecimento aéreo e as poucas operações realizadas não dão uma ideia muito clara acerca do IN na região considerada. Admite-se no entanto que existam na região pelo menos 5 bigrupos e um grupo de artilharia.

As acções ofensivas do IN tem sido relativamente espaçadas e dirigidas contra o Xime, Mansambo e Xitole, além de emboscadas nas estradas Xime-Bambadinca e Mansambo-Xitole e de penetrações contra tabancas fiéis na direcção do [regulado do] Cossé e na área entre o Xitole e Saltinho.

Embora apresentando bom potencial de fogo (canhão s/r, mort 82 e 60, LGFog, etc.), o IN continua a mostrar uma execução deficiente. As reacções à actividade das NT não têm sido muito fortes. Mas os poucos trilhos de acesso estão normalmente armadilhados. O IN embosca por vezes as NT quando regressam a quartéis. Além disso tem tiro de Mort 82 preparados sobre os seus próprios acampamentos, executando-os quando as NT os ocupam. E as arrecadações de material e armamento encontram-se em geral afastados dos acampamentos.

De uma maneira geral podem considerar-se as seguintes áreas principais de concentração IN:

1 – Poindon;
2 - Baio-Buruntoni;
3 - Gã Garnes (Ponta do Inglês);
4 - Ponta Luís Dias (Calága) – Gã João;
5 - Mangai-Tubacuta;
6 - Madina Tenhegi;
7 - Fiofioli;
8 - Cancodeas;
9 – Mina – Gã Júlio;
10 – Galo Corubal – Satecuta;
11- Galoiel.


1.3.

a) Área de Poindon:

Localização aproximada – (1500 1155 B2). RVIS efectuado em Novembro de 1968 revelou que toda a área se encontrava muito povoada tendo sido referenciadas mais de 15 casas de mato distribuídas por 2 núcleos. As bolanhas estavam cultivadas.

b) Área de Baio-Buruntoni:

Baio – Localização aproximada: (1500 1150 G7); deve ser uns dois a três km a Oeste. Chefe: Mário Mendes. Efectivo aproximado: 1 bigrupo dividido com Varela.

Burontoni – Localização aproximada: (1500 1150 G7) e (1455 1150 A 7). Efectivo aproximado: 100 homens: Armamento: MP, Mort 82 e 650, LGRFog.

c) Área de Gã Garnes (Ponta do Inglês):

Localização aproximada – (1500 11540 B5-5) com trilhos de acesso a Baio e à Ponta João da Silva. O itinerário a seguir quando se vem da Ponta do Inglês atravessa o Rio Buruntoni em (1500 1150 A2 -82). Efectivos e armamento: mais de 15 homens com Mort, LGFog, etc.

d) Área de Ponta Luís Dias – Gã João:

Ponta Luís Dias – Localização: (1505 11?3 F3 ou G2 G0-44). O itinerário mais fácil parece ser pela margem do Rio Corubal mas na época seca pode ir-se partindo de Gã Garnes. Efectivos: Cerca de 25 (?) elementos, armados de MP, ML, Mort 82 e 60, LGFog., etc. Consta talvez (?) 1 Canhão s/r em Ponta Luís Dias, apontando para o Corubal.

Gã João - Localização: (1505 1150 H5 ou I6 ou 13-55). Acessos idênticos ao acampamento de Ponta Luís Dias. Pode ficar à direita da picada Ponta Luís Dias – Ponta do Inglês sobre um trilho que parte desta. Foi localizado um grupo de casa em 1505 1150 G9-2.

e) Área de Mangai-Tubacuta:

Mangai – Localização: (1505 1145 G8). O acesso é mais fácil pela margem do Corubal. Por terra o acesso mais fácil parece ser por Madina Tenhegi (1500 1150 E2). Efectivos: 1 Gr Artilharia, parte em Tubacuta.

Tubacuta – Localização: (1500 1145 B9 B6 ? ), entre a tabanca e a Casa Gouveia, ao pé da bolanha. O acesso é mais fácil pela margem do Rio Corubal ou partir de Madina Tenhegi. Efectivos: mais de 100 homens com cubanos.

f) Área de Madina Tenhegi:

Não há referências sobre acampamentos IN.

g) Área de Fiofioli:

Localização: (1500 1145 E4 ou D5). Não são conhecidos os acessos à área. A mata do Fiofioli é muito [ densa ? ] e está praticamente cercada por bolanhas que o IN provavelmente baterá. Efectivos: talvez 1 bigrupo. Consta existir um hospital, com médicos cubanos.

h) Área de Cancodeas:

Cancodea Balanta – Localização: (1500 1145 E3). Efectivos: 50 homens armados.

Cancodea Beafada – Localização: (1500 1145 G2)

i) Área de Mina – Gã Júlio:

Mina

Localização: Em (1500 1145 h6 ou I6), na mata próxima da tabanca, dividida em dois núcleos, afastados cerca de 400 metros. Um núcleo é formado pelas instalações de pessoal e pelo posto de rádio. Parece ser aqui o comando do Sector 2 do IN. Consta haver uma enfermaria com cubanos. Há quem diga existir 200 elementos IN. Mas há quem diga serem poucos. A reacção à operação dos páras em 16 de Dezembro de 1968 foi nula. Em Novembro de 1968 foi indicada a existência de canhão s/r, 10 LGFog, 5 metralhadoras Degtyarev, 1 morteiro 60, etc.

Gã Júlio – Localização: (1500 1145 D4 ou E4). Não há outras indicações.

j) Área de Galo Corubal – Satecuta:

Galo Corubal – Localização (1455 1145 D4 ou E4), no fundo do palmar e a cerca de 300 m do Rio Corubal. O acesso tem sido feito pelo Norte do Rio Pulon desde a estrada Xitole-Mansambo, mas as NT têm-se perdido por vezes. O acesso, atrvés do Rio Pulon, próximo da foz, por Seco Braima, pode ser efito na época seca. Efectivos e armamento: Considerados poucos, mas com MP, ML, Mort LGRFog.

Satecuta – Localização (1455 1145 D2 ou E2 ou F2), a oeste de Seco Braima. Acesso idêntic o ao de Galo Corubal. Em meados de 67, apresentava grande actividade IN. O acampamento foi destruído em Maio de 68, baixando a actividade IN. Efectivos: ignoram-se mas parecem dispor de MP, ML, Mort LGRFog.

l) Área de Galoiel:

Localização (1455 1150 F1) próximo de Galoiel. Ataque das NT em 28 de Novembro de 1968 repelido pelo IN. Novo ataque em 23 de Dezembro não tendo o IN oferecido quase resistência. Efectivos entre 20 a 30 elementos, armados com LGRFog, Mort 82, ML, etc.

1.4. Admite-se que, sendo a Op Lança Afiada, uma operação demorada, o IN tenha possibilidade de reforçar os seus bigrupos, exercendo um esforço sobre este ou aquele dos nossos destacamentos. Admite-se também que quer as populações civis sob controlo In quer o próprio IN atravessem de noite o Rio Corubal, furtando-se assim ao contacto com as NT.
(...)

Guiné 63/74 - P5877: Notas de leitura (70): Os Sinos de Bafatá, de Joaquim Ribeiro Simões (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Às vezes pergunto-me:

- Para que é que é necessário escrever isto? Por que é que nos castigam a ler coisas verdadeiramente intragáveis?

Isto tem a ver com o livro em causa e muitos outros que naufragaram ou naufragam logo no cais de partida. A literatura sobre a Guiné é também uma amostra das boas intenções que acabam por redundar em desastres literários.

Um abraço do
Mário


Os Sinos de Bafatá

Beja Santos

Os Sinos de Bafatá (por Joaquim Ribeiro Simões, Edição de Autor, Lisboa, 1988) é um livro singular no conjunto de toda a literatura colonial respeitante à Guiné, permite uma vasta e plausível panorâmica da evolução dos acontecimentos do Leste, em meados dos anos 60, a partir da narrativa de um alferes adjunto do comando do batalhão. Como habitualmente, temos o desembarque das tropas no cais do Pidgiquiti, um desembarque um pouco bizarro em que os diálogos se processam numa comunicação impossível no tempo e no espaço. Um exemplo:

“Cruzámo-nos com uma coluna de jipes e unimogues em pé de guerra. Reparei no capitão, sujeito altivo e espalhafatoso, teatral, daqueles homens que gostam de se mirar no espelho.

- É o capitão Sequeira, dos comandos, tipo terrível. Com ele, os turras não fazem farinha. Sempre que se enfia no mato, traz armas e prisioneiros. Se houvesse cinco capitães como este, a guerra acabava-se num mês. O pior é que o maltim vem para aqui mandrionar e enfrascar-se com cervejas e uísque.

O major Monteiro esboçou um sorriso complacente:

- Ouve, rapaz, uma guerrilha não se vence num mês nem num ano, nem mesmo em dez. E sabes porquê? Têm o tempo todo a seu favor. Os capitães Sequeiras não passam de minúsculas peças de uma máquina gigantesca. A questão é outra, e tu, se ficares em Bissau, verás como eu tenho razão, já ouviste falar no massacre do cais do Pdgiquiti, há uns anos atrás? Quem ganhou com a morte de dezenas de trabalhadores portuários? Portugal não foi, com certeza. Essa acção estúpida apenas serviu para que o Amílcar Cabral acelerasse a organização do PAIGC”.

Aliás, trata-se de um batalhão muito especial, em que os oficiais superiores são oposicionistas e não escondem, têm discursos premonitórios sobre a evolução da guerra, falam todos entre si com elegante fraseado. Rodrigo é o narrador, conhece Luzia, a filha de um rico comerciante, ela é uma simpatizante do PAIGC, fica logo num derriço por este narrador superculto que se vira obrigado a abandonar o ensino para se prantar à beira do rio Geba. O major João Monteiro, segundo comandante, tem longas tiradas sobre o destino daquela guerra, é um livro aberto em ciências políticas, etnografia, etnologia e muito especialmente sobre a história da Guiné em que ele disserta como se fosse o comandante Teixeira da Mota. Lá vão para Bafatá, onde os problemas se chamam Banjara e o Caresse, isto na hora da chegada. Para que o leitor não entre em especulações e nunca se esqueça que está no meio de gente culta, descreve-se Geba, depois Sarebacar, viaja-se Cantacunda, Camamudo. Chegou a hora das operações, começa-se pela região do Caresse, liberta-se a estrada de abatizes, avança-se até Sare Dico, sempre acompanhado de um esquadrão de reconhecimento. Ao novo batalhão de Bafatá chegam notícias que no sector de Nova Lamego as coisas estão feias em Beli e Madina do Boé. Interrompendo a narrativa bélica, Rodrigo vem de férias, reencontra Luzia, fazem sexo desalmadamente. Ela aproveita para lhe relembrar que se sente atraída pelo PAIGC e convida-o a desertar. Acaba tudo em zanga e, por artes mágicas, Rodrigo volta a Bafatá. Ficamos a saber que há três batalhões no Leste da Guiné, há uma companhia em Fá Mandinga, bastante guerra no Xime e até no Xitole. Rodrigo retoma a relação afectiva que estabelecera com Irene, antes de ir para a guerra, por essas cartas (ou aerogramas) vamos ficando a saber que a situação de deteriora entre Cambaju e Sarebacar. Nas horas de ócio, o major Monteiro continua a desancar sobre o colonialismo, os oficiais do Estado-Maior, recorda com saudade os apoios que deu às candidaturas de Norton de Matos e Humberto Delgado. As visitas de Rodrigo aos quartéis da região prosseguem: Fajonquito, Ualicunda e outros pontos outrora calmos. Depois ocupa-se Banjar, o que vai aliviar a vida do batalhão de Mansoa. Rodrigo viaja até Pirada e Paiunca, passando por Sonaco, ao tempo tudo parece estar calmo. Volta-se novamente ao Caresse, uma terra de ninguém de onde o inimigo foge e depois regressa calmamente. De quando em vez, o autor confunde-se abertamente com Rodrigo, não sabemos quem é o alter-ego do outro, chovem permanentemente críticas: “Os brancos radicados na Guiné, talvez pela sua escassez, não alardeiam o ardor bélico dos angolanos, sempre prontos a pegar em armas e a defender as suas fazendas. Sejam do continente ou do Líbano, vivem alheados desta meia-guerra que os transcende. Verdade seja dita, a guerrilha de Amílcar Cabral evita molestá-los, demonstrando neste ponto inteligência: no futuro poderão ser úteis à economia do país... dentro da legião de especuladores, sobressaem os libaneses. Sovinas, metidos na sua casca, indiferentes ao sofrimento alheio, estes descendentes dos fenícios vão atulhando os seus cofres com as notas esbulhadas àqueles que labutam milhos e mancarra ou aos que sacrificam saúde e vida para que os mercadores continuem a deglutir tranquilamente o seu bolo”. Luzia aparece de surpresa em Bafatá, ela propõe-lhe casamento, ele difere, mas a vida sexual dos dois é imparável. Depois chega a época das chuvas, Rodrigo continua a escrever a Irene, fala sobre os cabo-verdianos, a intensidade da guerra. Novas férias de Rodrigo, ele descobre que ama Irene, Luzia entretanto fugiu com outro. De novo em Bafatá, Rodrigo retoma as suas conversas com o major Monteiro, este está cada vez mais irado com a sua geração, a situação em Madina de Boé agrava-se, as destruições do PAIGC aparecem como incompreensíveis a estes intelectuais, já que as populações nativas são massacradas. Chegou a vez de criticar os negócios de Miguel Santos, o comerciante de Pirada que o autor considera um personagem digno da “Peregrinação”. Rodrigo vai registando o agravamento da guerra e diz aonde: Xitole, Ponta do Inglês, Xime, Enxalé, Porto Gole e Jabadá. E um dia, depois de um Natal tristonho, anuncia-se o regresso do batalhão, Irene está pronta para casar com Rodrigo, o major Monteiro profere as derradeiras catilinárias. E ficamos a saber que as Igrejas de Bafatá não têm sinos, cada um tire as conclusões que quiser do título da obra.

Assim termina o livro de um coronel de cavalaria, licenciado em ciências históricas e filosóficas. Às vezes, interrogo-me o que impele um veterano da guerra a escrever sobre memórias numa frente de combate, introduzindo-lhe diferentes doses de ficção. O irreal dos discursos é o que mais me choca em livros do tipo “Os Sinos de Bafatá”: a impossibilidade de ter acontecido, a verdade retorcida com alegados primores literários, a incapacidade de comunicar os sentimentos genuínos de cada um, seja ao nível de pelotão, companhia ou batalhão, burilando caracteres ao sabor do desejo insaciável de um autor que perdeu todas as amarras ao tempo e ao espaço. No fundo, uma incomunicação de alguém que tem o poder de escrever e não se questiona se os outros viveram estes ou aqueles acontecimentos que tornam a ficção incompatível com as alegrias e as dores que todos, sem excepção, ali viveram. E estes autores persistem, autistas, indiferentes à falta de público, ao ridículo, à escuridão literária para onde se remetem. Neste caso, valha-nos, ao menos, saber o que aconteceu em Bafatá, em meados dos anos 60.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5864: Notas de leitura (69): Guerra Colonial - Angola - Guiné - Moçambique, Edição Diário de Notícias (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5876: Ser solidário (57): Mais uma Expedição à Guiné-Bissau da Associação Humanitária Memórias e Gentes (Carlos Marques Santos)

Recorte do jornal "Diário As Beiras", com a devida vénia


Instituição de Utilidade Pública / Reconhecimento e registo como ONG pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros

Natureza jurídica: Pessoa colectiva de direito privado, sem fins lucrativos, inserida no regime do mecenato cultural previsto nos Códigos do IRS e do IRC, matriculada na C.R.C. de Coimbra / NIPC 508 343 461

Sede: R. Prof. Guilherme Tomé (instalações J.F.Taveiro) - Apartado 453046-801 TAVEIRO (COIMBRA)

Contactos:
E-mail: http://www.blogger.com/j.moreira@sapo.pt
ou
http://www.blogger.com/guine@coimbraeventos.com


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Marques Santos*, com data de 24 de Fevereiro de 2010:

Caros camaradas:
Este recorte de o "DIÁRIO as BEIRAS” de Coimbra, saído hoje 24 de Fevereiro dá conta que a referida Associação se prepara para, amanhã dia 25, sair para a Guiné.

Não é nem a primeira, nem a segunda vez que o fazem. Tem sido uma constante.
Um contentor carregado de material já chegou a 17.

Amanhã lá estarei eu e a minha mulher Teresa para desejar “BOA VIAGEM” e “BOM REGRESSO”, no Largo da Portagem.

Como nota importante deixo uma informação complementar:

Segue na expedição uma empresária de Santa Maria da Feira, conduzindo uma ambulância que doará ao Hospital de Mansoa, com material médico, fardamentos para bombeiros, vestuário, material escolar, etc.

A nossa contribuição é tão simples quanto isto: alfinetes de costura, lápis e borrachas.

Mas para o próximo ano já temos cerca de duzentas camisas para criança.

E nós com tudo à mão ainda nos queixamos.

Até Monte Real dia 26.

CMSantos
CART 2339
68/69
MANSAMBO
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5727: Estórias avulsas (73): A Fonte Pública de Mansambo (Carlos Marques dos Santos)

Vd. poste de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4873: Ser solidário (36): Assoc. Humanitária Memórias e Gentes reconhecida como ONG desde 26 de Junho de 2009 (José Moreira)

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5868: Ser solidário (56): Zé Teixeira, a perda de uma mãe é sempre irreparável, mas nada nem ninguém te vai roubar a sua doce memória e o seu exemplo inspirador (Editores)

Guiné 63/74 - P5875: Parabéns a você (80): Manuel Henrique Quintas de Pinho, Marinheiro Radiotelegrafista, Guiné, 1971/73 (Editores)

1. Hoje 24 de Fevereiro de 2010, está de parabéns, por comemorar mais um aniversário, o nosso camarada Manuel Henrique Quintas de Pinho, ex-Marinheiro Radiotelegrafista que navegou nos rios da Guiné nos anos de 1972 a 1974, a bordo das LDM's 301 e 107.

Não podia a Tabanca deixar passar este dia sem felicitar o nosso camarada Henrique e desejar-lhe um dia pleno de alegria na companhia da família e amigos.

Caro Henrique, como é timbre na nossa Tabanca, vamos continuar a descontar os anos que te faltam para comemorares o teu centenário.



2. O Manuel Henrique Quintas de Pinho foi apresentado à Tertúlia no dia 26 de Junho de 2007*. Teve no entanto direito aos retroactivos a partir de 4 de Março do mesmo ano, porque a sua mensagem, datada deste dia, andou algum tempo extraviada.

Dizia ele então:

Amigo Luís Graça:
O meu nome é MANUEL HENRIQUE QUINTAS DE PINHO, habito em Chave, uma freguesia do Concelho de Arouca, Distrito de Aveiro.

Prestei serviço militar na Marinha de Guerra Portuguesa e estive na antiga província da Guiné desde Setembro de 1971 a Junho de 1973, embarcado nas Lanchas de Desembarque Médio, primeiro na LDM 301 (que foi abatida ao efectivo por ser muito antiga e estar desactualizada, pois teria vindo da América), e depois na LDM 107, fabrico português.

Durante este período sofremos apenas um ataque directo no Rio Cacheu, perto da clareira de Olossato, a montante de Ganturé, que, embora muito forte, não causou estragos nem vítimas, felizmente. Foi no dia 26 de Janeiro de 1972, às 18.00h.

Percorri toda a Guiné, via fluvial, desde o Rio Cacine, passando pelo Rio Cumbijã até Bedanda, Tombali, Buba, Rio Geba até Porto Gole, Rio Mansoa até Mansoa, Encheia e Rio Cacheu até norte de Farim.

Tenho algumas fotografias mas não consigo enviá-las. Se puder diga-me como hei-de proceder.De qualquer modo, gosto de navegar por este Blogue, pois traz aquela saudade que ainda hoje se sente pelos bons e até menos bons momentos que lá passei.

Sem outro assunto, apresento os meus cumprimentos e não podemos parar.
Henrique Pinho
Marinheiro Radiotelegrafista N.º 850/70.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de

26 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1885: Tabanca Grande (17): Manuel Henrique Quintas de Pinho, Marinheiro Radiotelegrafista, LDM 301 e 107 (Guiné, 1971/73)

Vd. último poste da série de 14 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5813: Parabéns a você (79): Clara Schwarz da Silva, 95 anos, uma grande senhora, viúva de Artur Augusto da Silva, mãe do nosso amigo Pepito, leitora do nosso blogue, novo membro da Tabanca Grande (Luís Graça)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5874: Agenda cultural (60): Exposição de fotografia de Fernando Gouveia, no Instituto das Artes e Ciências - Porto (Regina Gouveia)

1. A nossa tertuliana Regina Gouveia, em mensagem de 23 de Fevereiro de 2010 vem-nos dar conhecimento da inauguração da Exposição de fotografia "MEMÓRIAS PARALELAS DA GUERRA COLONIAL, GUINÉ 1968/70", Reportagem fotográfica de seu marido e nosso camarada, Fernando Gouveia.

Esta exposição vai estar patente ao público de 26 de Fevereiro a 12 de Março no Instituto das Artes e Ciências, na Praça de Carlos Alberto, na Invicta Cidade do Porto.



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Nota de CV:

Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5805: Agenda Cultural (58): Do Carnaval de Lazarim, Lamego, a Guileje, Região de Tombali... Quem se lembra do pirotécnico Hélder da Costa, da CCAÇ 2617 ? (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P5873: Contraponto (Alberto Branquinho) (6): (Especial) Os seis anos do Blogue

Mensagem de Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data 21 de Fevereiro de 2010:

Caro Vinhal
Aqui vai o meu contributo para a festa dos 6 anos do blogue, incluido no Contraponto.

Um abraço do
Alberto Branquinho



CONTRAPONTO (6)

OS SEIS ANOS


Ouvi (ou li?) que está a fazer seis anos um rapaz-adulto que dá pelo nome de Blogue do Graça. Proporciona encontros (por vezes pequenos desencontros…), reencontros, amizade, companheirismo, camaradagem entre rapazes na casa dos sessenta, que passaram pela Guiné quando tinham vintes. Além de outros e outras com vinculo a pessoas e às coisas dessa terra.
É filho do Luís Graça (conhecem?), mas da mãe não há notícia. (Será a E.N.S.P.?).

O rapaz (já crescido, bem crescido) vem sendo acompanhado por dois, três, quatro padrinhos, mais ou menos da idade do pai. Alimentam-no. E dessa acção do pai e dos padrinhos resultam variadíssimas intervenções no corpo do próprio Blogue do Graça, onde todo e qualquer outro, a quem eles já tenham “passado cartão”, pode dar conta das suas façanhas de guerra, das suas experiências menos ou nada guerreiras, dos seus sofrimentos, medos e angústias de guerreiro, das suas tiradas intelectuais, do seu diletantismo, do seu literatismo, do seu ecumenismo, da sua benemerência, do seu humanismo, das suas sensibilidades, ironias, frontalidade, das suas experiências mais ou menos relacionadas com a sua vida na Guiné (ou partir do momento em que foram, de novo, paridos para a vida quando abandonaram Bissau, em barco ou avião).

Aos mortos, aos ressuscitados (há um, pelo menos), aos afectados física e psiquicamente pela guerra, dá o rapaz Blogue espaço, lembrança e vida. E, também, àqueles que estiveram “do outro lado” da guerra e aos que a conheceram enquanto crianças ou aos que, porque ainda não nascidos nesses tempos, eram, então, água, carbono, sais minerais, cálcio, proteínas… vagueando por essa e outras terras do planeta nosso.

Mas o que mais enternece e nos toca na ponta do bico do fundo do coração é que, apesar de toda essa diversidade, cada um pode falar de si e dos outros e encontra nesses outros a ressurreição dos tempos e da juventude (que na Guiné deixou em grande parte) e os encontros/reencontros se sucedem, se repetem e é como se fossem sempre a primeira vez. E os que aparecem pela primeira vez sentem-se, comportam-se e relacionam-se com os outros presentes como se tivessem estado sempre presentes desde o princípio dos séculos.
Alguém pode explicar isto? (É que não é matéria de Sociologia do Trabalho. Ou será da Saúde?)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5767: Contraponto (Alberto Branquinho) (5): Nojo, ou um alferes descomposto

Guiné 63/74 - P5872: Agradecimento (José Teixeira)

Minha mãe sentiu necessidade de descansar e partiu serenamente.
Partiu feliz por sentir à volta de seus filhos tanto afecto e carinho por parte dos muitos amigos, que pela vida fora souberam granjear, graças aos ensinamentos que ela lhes soube transmitir.

OBRIGADO MINHA MÃE pelas lições de vida que me deste.

Aos muitos amigos, que pelos mais variados meios quiseram partilhar comigo a dor de te ver partir e deste modo me ajudarem a viver tão difíceis momentos, quero expressar a mais profunda gratidão pela vossa presença na minha vida nestes dias de dor e esperança.

Zé Teixeira

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Nota de CV:

Com a devida vénia à Tabanca de Matosinhos, reproduzimos este agradecimento de Zé Teixeira > P353- AGRADECIMENTO - ZÉ TEIXEIRA

Guiné 63/74 - P5871: Da Suécia com saudade (22): As portas que Abril me abriu e as que me fechou (José Belo)

União Europeia > Reino da Suécia > 2009 > O José Belo é o mais setentrional (e, portanto, ex-cêntrico) dos membros da nossa Tabanca Grande > A sua tabanca fica na Lapónia, a 198 quilómetros a noroeste de Kíruna, em plena reserva natural de Abisko, a maior do país dos Vikings. Nascido em Lisboa, foi educado no Estoril. Foi alferes na região de Quínara, na Guiné (1968/70). Foi Capitão de Abril. E por Abril conheceu os caminhos da diáspora. É gerente da Tabanca da Lapónia. Escreve regularmente no nosso blogue. (LG)


1. Mensagem de José Belo, com data de 8 do corrente (*):

Aqui vão algumas tentativas de resposta a algumas das perguntas levantadas (**).

Quando alguns Camaradas Militares decidiram "reeducar-me" na Prisão de Custóias, mais para meu bem pessoal do que por outra razão juridicamente válida, (pois não foi provada qualquer implicação no 25 de Novembro de 75 em Conselho Superior de Disciplina do Exército a que fui sujeito cinco anos depois)... era de esquerda!

Era inconveniente! Chegou! A minha carreira militar foi interrompida desde o dia 27 de Novembro de 75 até fins de 1980 em que me mantiveram inactivo cerca de cinco anos com o ordenado completo(!).
Durante este longo período de involuntárias férias pagas (segunda fase reeducativa?), colaborei activamente no Conselho Português para a Paz e Cooperação, viajando por tudo o que mundo era, desde a Índia à Etiópia, do Vietname ao Iémem, e a tudo que era Pais Europeu do Leste e Ocidente. Tive oportunidade de conhecer pessoas, bem interessantes, em locais de "acesso difícil" noutras situações.

Acabei por estabelecer contactos vários na Suécia que se tornou, então, a minha segunda casa. Em fins de 1980 fui chamado de novo ao serviço, sendo colocado no Regimento de Mafra a frequentar um curso de actualização para promoção. (Talvez por já devidamente reeducado?).
Depois de curtas semanas de contactos fraternos com os meus queridos e respeitados superiores, verifiquei ter grandes dificuldades em assimilar algumas das aulas dadas, principalmente por alguns dos camaradas professores regressados há pouco de cursos intensivos nos Estados Unidos.

Recordo como exemplo típico destas minhas limitações atávicas, a dificuldade sentida quando me referenciavam continuamente a fronteira de defesa a Norte do meu querido Portugal como situada no rio Reno, na Alemanha Ocidental, e eu só encontrava na minha carta... o rio Minho como fronteira do Norte português!

Perante tais incapacidades geográficas resolvi pedir passagem imediata à Reserva e autorização para me ausentar... definitivamente para a Suécia, invocando razões de ordem particular. Ambos os requerimentos foram deferidos em tempo que, conhecendo a Instituição, creio que será recorde, de 48 horas! Voltei de imediato para a Suécia onde me tenho mantido até hoje.
Interessado por Direito Internacional, acabei por ter uma sólida e acelerada carreira profissional que me levou bem mais longe do que seria de esperar (aqui seria melhor não referenciar o facto de ter casado com a filha única do dono da empresa multinacional onde trabalhava !).

A decisão de viver actualmente na Lapónia (a 198 quilómetros a noroeste de Kíruna mais propriamente) tem mais a ver com o facto de termos herdado uma muito boa casa de férias, situada precisamente na área da maior reserva natural sueca, e uma das mais selvagens, bonitas, isoladas, ricas em fauna e pesca. Chama-se Abisko.

Isto em conjunto com uma discreta aproximação de reforma, tanto da minha parte como da minha mulher, que nos veio possibilitar tempos livres para utilizar estes espaços infindos. Daí que, ao contrário do que poderia aparentar, este isolamento é mais que voluntário.

Como não fui, propriamente, um menino de sacristia durante os anos anteriores a Abril de 74 e até finais dos anos setenta, sinto-me muito bem nas distâncias que resolvi tomar em relação a acontecimentos, e coisas, em que participei, ou de que tenho muito bom conhecimento, e que hoje só me fariam vomitar a gargalhar, não fora o grande respeito que sinto por alguns que tudo sacrificaram pelos seus ideais de solidariedade com os mais desfavorecidos.

Na Guiné fui mais um dos muitos que comandaram destacamentos isolados no Sul, junto a Gandembel, que fizeram colunas de abastecimentos de Buba/Aldeia Formosa/Gandembel, e que aprenderam a conhecer-se a si próprios em condições extremas.

Hoje... para Lusitano de Lisboa, educado no Estoril, posso garantir que sou um bom conhecedor de renas, e de tudo relacionado com a criação e pastoreio das mesmas. Quem me diria!

Um grande abraço do José Belo.

2. Mensagem posterior, respondendo às dúvidas sobre o carácter eventualmente (in)publicável do texto anterior:

Caro Amigo e Camarada.

É claro que tudo sobre mim é acessivel a todos os que se possam interessar, tendo sincera consciência de que não serão lá muitos! Os detalhes, menos convenientes para Senhoras, menores, alguns Exmos. Srs. reformados, e camaradas mais sensíveis das nossas Tropas Especiais, estão, por certo, criteriosa e inteligentemente arquivados nas repartições respectivas... a Bem da Nação.

Duas coisas que não referi no meu E-Mail anterior, mas que suscitaram curiosidades de alguns quando agora aí estive na reunião da Tabanca do Centro: a primeira é o porquê de aparecer sempre ao lado do Otelo, em muitas das fotos, livros e reportagens de TV relacionadas com esta personagem... Somos familiares (primos em segundo grau pelo lado da minha mãe), tendo esse facto nos aproximado pessoalmente tanto em 74 como em 75.

Aquando da campanha eleitoral para a Presidência da República, a primeira a seguir a Novembro de 75, fui responsável pela segurança montada em redor do Sr. candidato Otelo, tendo-o acompanhado por tudo o que era Portugal, do Minho ao Algarve, Madeira e Açores... Daí a identificação efectuada por muitos.

Tornei-me depois, já a viver na Suécia, muito crítico das vias escolhidas por alguns companheiros que levaram a um muito infeliz arrastamento(?) deste político para aparentes meios de acção de resultados mais que dúbios, para não lhes chamar de contraproducentes, principalmente na identificação e utilização do nome, e referências, a Abril.

Publiquei, então, alguns artigos menos convenientes (pois creio ter sido o único que se atreveu), a este respeito, no Diário de Lisboa. Um, em 11/7/84, intitulado "As armas e as Mãos: Carta ao Otelo Amigo" (aquando da prisão deste), e outro em Outubro de 1984 intitulado "As FP-25 de Abril... e as miragens". Sei que não foram muito bem recebidos em alguns círculos mais... extremados.

A segunda pergunta que alguns me fizeram foi:
- Porquê Capitão Reformado quando todos os outros nas mesmas condições e situação pertencem hoje à Classe dos Srs. Coronéis Reformados, depois de as suas carreiras militares terem sido reexaminadas devido a consequências políticas de 74/75, com actualizações de postos e reformas (E isto inclui Militares do antes e depois, desde a mais extrema esquerdalhada à mais "patriótica" direitada!).

Pela única razão de, tendo escolhido viver em esplêndido isolamento na Escandinávia, não recebi qualquer informação da existência de tais leis e decretos. Quando finalmente, um bom amigo e camarada militar, se preocupou comigo e me informou, já os prazos legais para tais requerimentos tinham há muito encerrado, tendo recebido por parte das Autoridades burocráticas responsáveis um rotundo... NIET!

De qualquer modo identifico-me totalmente com os termos Capitão de Abril. E, como as PORTAS QUE ABRIL ABRIU... o foram por Capitães... sinto-me bem na denominação!

Um grande abraço do José Belo.

3. De adenda em adenda até à mensagem final, o Zé Belo escreveu ainda no passado dia 8:

Caríssimo Amigo. Podes publicar tudo, ou o que achares por bem. Tenho grande admiração pelo Vosso trabalho... No arame... e sem rede, no que diz respeito a sortear de maneira conveniente o que serve melhor os objectivos do blogue.

Com tantas primas donas de terceira idade (com tudo o que isso acarreta) a enviarem contributos, encontrar um rumo médio é trabalho de... full-time num blogue com as dimensões da Tabanca Grande. Tenho estado ocupado nas últimas horas a enviar uns videos do YOU TUBE, um pouco quentes, para o Amigo Vasco da Gama e para o Miguel Pessoa, que têm francamente sentido de humor.

Na tua próxima visita à Escandinávia, e como por aqui andaste, sabes que a natureza é fantástica, deverás tentar ir até Narvik, porto norueguês bem ao norte, e daí tomar a estrada para a Suécia até Kíruna. A partir dos fins de Maio, até meio de Julho, (O Curtíssimo Verão!), tendo-se a sorte de apanhar Sol e céu azul, é viagem inolvidável para o resto da vida. Bem-vindo!
Um grande abraço do José Belo.

[ Revisão de texto / fixação / título: L.G.]
_____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 17 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5829: Da Suécia com saudade (19): O privilégio de ter a Tabanca Grande... em comum (José Belo)

(**) Comentário ao poste de 6 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5773: Parabéns a você (77): José Belo, se o calor da nossa amizade chegasse a Kiruna, a tua Lapónia era o Alqueva (Os Editores)

Meu caro José Belo:

Para além das tuas queridas renas, a gente sabe pouco sobre ti, meu luso-lapão...

Quando foste exactamente para a Suécia, e porquê... Por onde andaste, o que fizeste, como sobreviveste, como resististe... Afinal, que crime cometeste para te mandarem para a Lapónia... Como e quando chegaste a Kiruna ?

Sabemos também pouco da tua história de vida no TO da Guiné...

Claro, tens o direito ao sigilo, ao anonimato... Mas já que entreabriste a porta... Sabes como é o portuga, põe logo o pezinho na porta, para que tu não a feches...

Mais importante: quando voltas, este ano, a este jardim à beira-mar plantado ?

Espero que te tenhas divertido, no mínimo, com o nosso texto, atabalhoado, de parabéns...

Luís