Guiné-Bissau > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Bubaque > 12 de Dezembro de 2009 > Mulheres locais. Fotos do médico e músico João Graça
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João Graça (2009). Direitos reservados
1. Pré-publicação de excertos do próximo livro do nosso amigo e camarada Mário Beja Santos, Mulher Grande. Trata-se da sexta e última parte do Capº III (*):
Mulher Grande > A Guiné em chamas ou o “Tubabo Tiló”
por Mário Beja Santos
[III. 6] Décimo quarto solilóquio
A Benedita está emocionalmente exausta. Conversámos ao pormenor sobre aquele mês em Bissau, quando vieram de S. Domingos. O sofrimento do Albano contagiou-a., está dilacerada. O Albano, profeticamente, vai emitindo opiniões pessimistas sobre o futuro da Guiné. Uma noite, tendo voltado a beber, chorou amargamente, terá proferido um longo e atabalhoado monólogo, rememorou toda a sua existência nos diferentes lugares onde trabalhou, como se habituou à solidão, como se entusiasmou pela etnografia e antropologia, a fazer inquéritos, a saber escutar as populações nativas.
Sim, o seu amor era verdadeiro, pelas gentes e pela terra. A Benedita ouvia-o em silêncio, como se estivesse a ouvir uma lição sobre o amor à Pátria, o Albano falou de Gil Eanes, Rio do Ouro, Nuno Tristão, Álvaro Fernandes, conhecia as viagens e as descobertas, os fracassos da construção de fortes, as etapas da missionação, as dificuldades no estabelecimento das populações em os “Rios da Guiné do Cabo-Verde”. Chorava a fazer o seu testamento, era uma ladainha de um bêbedo que não perdeu a clarividência e falava dos lançados, dos grumetes, de Honório Pereira Barreto, um dos seus ídolos, como ídolos para ele tinham sido Sarmento Rodrigues e António Carreira. Falou nas glórias de Cacheu, na sua admiração pelos Felupes, Banhuns e Manjacos, no seu relativo desprezo pela população dita civilizada, a oração fúnebre estendeu-se a Bolama e à exaltação dos rios e rias, de repente tudo se tornou numa declaração de amor conjugal, o Albano falava das alegrias da vida a dois, o que tinham vivido em conjunto desde Bissorã a S. Domingos.
Atónita (palavra usada pela própria Benedita), ela escutara tudo sem uma só interrupção, parecia que o Albano estava a apresentar um longuíssimo livro onde cabia a geografia, a história, as obras públicas, o combate à doença, a organização dos serviços da administração, o comércio e as pescas, as riquezas do subsolo, a diversidade cultural.
Anos depois, a Benedita pensou seriamente que se tratara de um discurso de despedida, aquele funcionário colonial que se dedicara com tanto zelo à sua missão quando regressou a Portugal fez todo o possível por pôr uma pedra sobre o assunto, calara toda a sua melancolia, afundando-se em longos silêncios, donde saía dirigindo-se à mulher, perguntando-lhe: «Benedita, recorda-se daquela viagem...”, havia então um retorno àquele tempo passado, depois tudo se imobilizava, a conversa mudava de tom, regressava-se à aspereza dos novos tempos, o Albano, adoentado, atirou-se a tudo, vendeu rações, fez contabilidade, por último trabalhou na D. Eva.
São nessas viagens da memória que eu sinto, nos farrapos da memória e nas entrelinhas, a culpa da Benedita que só se apercebeu muito tarde que o Albano regressara da Guiné para um exílio, ela começou a catapultar os seus sonhos enquanto o Albano mudava de personalidade. Nesses momentos de culpa, e ouvi as suas confissões sentidas, nesses momentos, a voz, sempre quente e rouca, passava a ser um fio quase inaudível, as mãos batiam na mesa como se batesse em si própria, em autoflagelação.
Ela terminava sempre essas declarações de culpa: “Comigo foi diferente, arrumei definitivamente a Guiné a um canto, não estava disposta a ser motivo de troça dos outros, ouviam-me como se eu estivesse a contar histórias da Carochinha, a Guiné ficou reduzida à escultura, à panaria, aos desenhos e gravuras à nossa volta, aos livros, às visitas dos estudiosos que continuaram a procurar-nos.
Não me esqueço do que ela me disse um dia: «Com a guerra, a partir de 1963, fechei os olhos àquela tragédia, era o Albano que me dava conta do que se passava, lia os comunicados, eu não comentava nada, não queria reabrir feridas, bastava-me a saudade de amigos queridos, como o Omaia, o Trintão, o Ocante, os amigos de Bissau, Varela e Ziguinchor. Aprendi muito com a morte do meu pai, irei aprender mais com a doença do Albano, as trágicas revelações e a hecatombe da D. Eva. Quando perdemos afectos muito grandes, devemos tirar a lição e prosseguir sem rancores nem azedumes. Olhe para as minhas mãos, olhe para as minhas pernas, recordo-lhe as minhas doenças, temos que continuar, temos que ter um projecto até ao último dia de vida, vir da Guiné como vim ensinou-me que a vida deve continuar, nem que tenhamos que andar de rastos”.
Mais recordações da Benedita (décimo quarto trabalho de casa)
Coisa curiosa, é a primeira vez desde que vim da Guiné que sou capaz de reconstituir a minha vida como militar à força em S. Domingos. Fizemos uma messe lá em casa, para militares e civis, sentávamo-nos, o Albano e eu, um capitão, um tenente e um alferes, mais dois secretários. Os outros alferes comiam na casa da alfândega, onde tínhamos estado a tratar dos feridos na noite do ataque. Chocava-me o facto de o capitão não ficar à noite em S. Domingos, ia todos os dias dormir a Bula, senti uma vontade enorme de lhe perguntar se um oficial, ainda por cima o comandante daquela tropa, devia desaparecer ao fim da tarde. Mas refreei-me, sabia que ia arranjar uma discussão que traria amargos de boca ao Albano, tínhamos que estar juntos, a tropa e nós, o espectro da guerra era inevitável.
O Mário pediu-me que coligisse todas as recordações deste tempo. Estou admirada com as coisas que recordo daquele tempo tão incómodo, a nossa vida devassada por aquela atmosfera de quartel. Uma vez entrei na cozinha para ver se tudo estava a correr bem. Vi o maqueiro a lavar as seringas no lava-loiça depois de ter vacinado os soldados, lavava as seringas descuidadamente, espirrava tudo para cima da carne já confeccionada. Não tínhamos carne há 8 dias, não tínhamos outro almoço, calei-me, não sei como dei comigo a comer aquela carne sem nenhum protesto, mas com o estômago às voltas. Felizmente, ninguém morreu.
No outro dia, a mexer numa gaveta, encontrei uma fotografia do Natal de 61. Comovi-me muito. Com os alunos da escola, preparei enfeites, fizemos festões de papel, arranjou-se um altar, decorou-se com musgo, trouxe as minhas figurinhas do presépio. Esperámos pelo padre toda a tarde, ninguém arredou pé, ele acabou por aparecer já passava das 8 horas, não estava em condições de celebrar missa. Digo com a maior das mágoas, naquela terra havia poucos padres de qualidade. Enquanto cristã, a minha decepção foi imensa.
Pois nessa noite de Natal comemos os três sozinhos, o Albano, o secretário e eu, lá fora sentia-se que havia muito ruído na zona do aquartelamento, o Albano foi ver, regressou preocupado, estava tudo a embebedar-se. O Albano decidiu que não era aconselhável ir para a cama, ninguém estava em condições de combater. Foi assim que passámos a noite de Natal. Só consegui conciliar o sono ao amanhecer. No dia de Natal os alferes vieram pedir desculpa. Não acho graça nenhuma a estas recordações, sinto-me bastante humilhada com esta experiência.
O adeus à Guiné
Estávamos a viver tempos muito confusos. A PIDE começava a prender gente que tinha trabalhado com o Albano, eram prisões arbitrárias, ninguém sabia a origem das denúncias, o Albano protestava, os agentes da PIDE recusavam-se a dar explicações. Com as relações cortadas entre o Senegal e Portugal, não podíamos ver os nossos amigos franceses. Mas Hugues Lemaire pediu autorização às autoridades de Ziguinchor para nos visitar em S. Domingos. Veio com Joseph Chrétien, um farmacêutico, trouxeram lembranças de todos, foi um dia memorável. Anunciaram que em Ziguinchor as coisas estavam mais calmas, mas sabia-se que havia campos de treino para preparar mais guerrilheiros.
Nunca mais esqueço a história que nos contou o Joseph Chrétien. O guarda da alfândega tinha 4 mulheres e muitos filhos e tinha uma dívida muito grande na farmácia. O Chrétien falou com ele: “Queres que te perdoe a conta? Então deixa-me passar a fronteira para eu ir ver os meus amigos de S. Domingos”. O guarda aceitou a proposta. O Chrétien encheu o carro com comida francesa e trouxe-nos um carregamento muito valioso. Não se esqueceu até das revistas que eu gostava, Hugues Lemaire trazia livros e chocolates. Recebi tudo, reprimi a emoção. Depois desta visita seguiram-se outras. As notícias que chegavam do Senegal eram preocupantes quanto ao prelúdio da guerra mas, por outro lado, os amigos de Ziguinchor diziam-nos que Senghor e os outros políticos de Dakar queriam chegar a um entendimento com Salazar.
Quero voltar aos acontecimentos do Natal de 61. O Movimento Nacional Feminino enviou para cada um dos militares um pacote de cigarros, uma caixa de fósforos, uma bisnaga pequena de pasta Couraça, uma escova de dentes, também pequena, uma garrafinha de vinho do Porto, um pacote de bolachas e jornais, muitos jornais. Também recebi uma destas lembranças, nunca tinha tido tantos jornais ao mesmo tempo. Não vamos perder muito mais tempo com o que se passou naquele Natal, digo só para si que os soldados se embebedaram, cantaram as cantigas mais obscenas até caírem de cansaço. Não quero falar em nomes, fui obrigada a conviver com aquela tropa, jurei a mim própria que nunca mais voltaria a fazer serviço militar...
Em Bissau, em Janeiro, os médicos disseram ao Albano que ele tinha tendência para formar cálculo renal, recomendaram-lhe que viesse até às termas. Como se fosse hoje, lembro-me do serão que fizemos em casa da Ivone Leal, nessa noite. Pela primeira vez, e sem qualquer hesitação, o Albano mostrou intenção de abandonar definitivamente a administração colonial. Ainda lhe perguntei porque é que não havíamos de pensar em Cabo Verde ou S. Tomé e Príncipe. Ele foi muito claro: “Vim para a Guiné à procura de profissão, ganhei-lhe devoção. É um amor que não se troca de ânimo leve. Prefiro fechar o livro”.
Tínhamos pouco dinheiro, aquele mês em Bissau arrastou-se, foi um tempo lodoso. Seja como for, com as malas feitas, todas as noites andámos de casa em casa, em jantares de despedida. O louvor dado pelo Governador encheu o Albano de orgulho. Os colegas ofereceram-lhe uma salva de prata, está ali exposta na sala de jantar.
E, em Julho de 1962, partimos. Eu não estava triste, mas senti perfeitamente a grande mágoa do Albano, o modo como ele arrumava no coração e na bagagem as lembranças dos colegas e dos amigos, as fotografias que então tirou, as visitas ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e ao Museu, mesmo ao lado. Acompanhei-o numa dessas visitas, ele parou junto de uma escultura, falou-me dela, mais à frente vimos os instrumentos de caça dos Felupes. Sem esconder a emoção, ele falou-me de Bolor, Bunhaque e Bufá, povoações que ele gostava de frequentar para estudar arquitectura e o tipo de habitação Felupe, fora nessas tabancas que comprara aqueles arcos e azagaias. Vi-lhe os olhos marejados de lágrimas, disse-me baixinho: “Sei que não voltarei mais à terra dos Felupes, e tenho pena”.
Guiné > Ilha de Pecixe > Vaqueiras manjacas > Postal ilustrado (pormenor) > Série de postais ilustrados do tempo da Guiné Portuguesa > S/d nem editor ... Colecção de postais do nosso amigo e camarada José Casimiro Carvalho (ex-Fur Mil Op Esp, CCAV 8350, Guileje, Cacine, Gadamael e Paunca, 1973/74)...
Os postais, acho que ele os coleccionava para mandar, com muitas ternura, ao seu velhote, no Porto... Esta série de postais, relativamente ousados para a época (tema: bajudas de mama firme...)., revelavam uma visão... excêntrica e etnocêntrica da Guiné dita portuguesa, típica do Estado colonizador e dos seus agentes (LG).
Foto: © José Casimiro Carvalho (2006). Direitos reservados.
Décimo quinto solilóquio
Celebramos hoje o nosso Natal, não se consegue ver Colares, estamos cercados por uma neblina cerrada, um reposteiro de vapor. A Benedita está claramente nostálgica. Assim que bati à porta, avançou determinada, avisou-me com aquela sua voz quente e rouca: “É tudo mentira que tenha posto a Guiné atrás das costas, não se pode pôr a pedra no assunto depois de dez anos de convivência diária. Esta noite não preguei olho com dores, andei a remexer em papéis e depois peguei naquele livro que me deixou cá sobre os postais antigos da Guiné. Hoje, já que estamos a arrumar o assunto do fim da comissão do Albano, quero dar-lhe conta da Guiné que guardo no coração”.
Tirei logo o livro de apontamentos, mas não foi fácil seguir-lhe o raciocínio, a Benedita está eufórica, abriu o álbum dos postais antigos, olha para o edifício da Casa Gouveia, em Bissau, e diz: “É por aquela porta que entrava, ao fundo do lado direito comprava chá e café, passava duas portas e tinha as especiarias, no primeiro andar, onde se está a ver esta janela, era a retrosaria e as linhas para a máquina de costura”.
Depois apontou para o cais do Pidgiquiti e observou que a ponte-cais do seu tempo era a como vem no postal da Foto Serra, de 1955. Continuando a folhear o álbum, aponta para a Rua Oliveira Salazar e volta a falar em lojas de comércio. Lembra-se do Grande Hotel mas as fotografias do interior, no postal datado de 1968, não lhe dizem praticamente nada. Recorda a fanfarra à porta do Palácio do Governador, folheamos depois o álbum e pára a contemplar demoradamente um caçador Felupe, com o seu arco tenso, o caçador com um estranho bracelete de inúmeros aros no braço esquerdo. Depois uma vaqueira Manjaca em Pecixe, olha também demoradamente e comenta: “Meu Deus, podia ter sido eu a tirar esta fotografia!”.
Durante o almoço, talvez recordada da longa oração proferida pelo Albano em casa da Ivone Leal, a Benedita lança-se na sua narrativa, começa nas doenças, recorda a doença do sono, a seguir fala do estado das estradas, depois descreve a residência dos chefes de posto, salta para a cultura do arroz, é um discurso sem folgas nem recuos, parece que esteve a ler a história da Guiné do princípio ao fim, lembra-se muito bem das obras públicas, das árvores de fruto, dos recursos florestais, dos grupos étnicos, como se eu fosse um estranho ou a estivesse a ouvir pela primeira vez, recorda-me que Bissorã é uma vila do chão dos Balantas, refere os curandeiros, as superstições, os habilidosos e imaginativos trabalhos em couro, levanta-se e vai-me buscar almofadas em couro policromado, prefiro ir escrevendo sem nenhum comentário, rendo-me ao seu entusiasmo, passaram-se estas décadas e as lembranças vêm facilmente à superfície, é um discurso tão sincero e ardoroso que até paro de escrever quando ela me começa a falar do tear guineense, com os seus quatro prumos de madeira enterrados no chão, a Benedita foi mesmo buscar um pano Manjaco, mostra-me as bandas de 20 centímetros de largura, são 6 bandas cozidas que fazem um pano, quando me preparo para escrever ela grita para me prender completamente a atenção, sou o espectador de uma estranha tirada teatral, ela fala e gesticula, a banda é tecida, vai sendo enrolada numa travessa de madeira, há mesmo um dispositivo de prisão para que os liços mantenham a teia tensa. Os liços sobem e descem, de acordo com os impulsos do artífice, é este movimento alternado que facilita a passagem da lançadeira, assim se estende a trama, e o pente, graças às puas que passam os fios da teia, aconchega os fios da trama.
A Benedita não pára de exemplificar, percorre agilmente a sala de jantar dum lado ao outro, os liços separam os fios, explica como é que tecelões tingem as bandas de cor brancas ou creme, fico a saber que os tecelões também são tintureiros. A Benedita vê que eu estou perplexo, afinal a mulher do administrador que se dizia tão arredada daqueles saberes nativos, viu, assimilou e admirou. Como se estivesse a concluir a sua tirada teatral, atirou-me um olhar divertido, está a explorar o factor -surpresa e diz-me: “Tenho lá em cima as esculturas Bijagós para ver. A minha prenda de Natal para si é um Ninte-Kamatchol, é a mais linda escultura da minha colecção. Andei-lhe a mentir este tempo todo, a Guiné é um mundo pleno de culturas, graças ao Albano aprendi a respeitar e mais tarde aprendi a amar. Menti-lhe sempre, até descobrir que o Mário podia ser o meu maior cúmplice neste amor à Guiné».
Mais recordações da Benedita (décimo quinto trabalho de casa)
O que me deu hoje para recordar dez anos de Guiné? Tinha prometido ao Mário e a mim mesma não voltar mais à Guiné, chegámos em 1962 a Lisboa, era tempo de descansar, de estar com as nossas famílias, a decisão do Albano estava tomada, iríamos refazer a nossas vidas, não sabíamos como nem onde, inicialmente pensámos na linha do Estoril, o Toninho estava na Parede, fomos então de férias para Matosinhos, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, o Albano procurou um grande amigo da juventude, o Adérito Miranda, falou-se num trabalho de rações, estávamos na Foz do Douro em casa da irmão do Albano quando ele teve o primeiro enfarte. Exactamente quando eu estava a juntar estas notas abri um envelope e apareceram-me fotografias de um casamento Manjaco, encontrei uma folha que escrevi na época, estava completamente esquecida. Diz o seguinte: “Na sociedade Manjaca promete-se o casamento de uma filha a um amigo ou um familiar que nos ajuda nos trabalhos agrícolas. Tu trabalhas para mim, eu depois dar-te-ei a minha filha. Quando casavam, a filha, acompanhada pelos familiares, é levada até à família do noivo. As raparigas têm namoricos mas não podem engravidar (se engravidarem, têm que ir para o prometido marido). As Manjacas conhecem as plantas abortivas na perfeição. A libertinagem é praticamente total. Quando chega a altura de irem para o marido, este já preparou uma nova morança e traçou um risco na porta, símbolo de uma nova vida. Convida-se toda a população da tabanca para assistirem ao casamento. Diante da população e frente ao risco traçado na porta, a noiva faz a confissão pública de todos os homens com quem andou. Depois passa o risco, a partir daquele momento nunca mais pode ser infiel ao seu marido”.
Seleccionei alguns panos Manjacos para mostrar ao Mário esta bela panaria, infelizmente quase desconhecida em Portugal, continuo a não perceber como é que o belo artesanato guineense não circula nas nossas lojas.
Surpresa, encontrei noutro subscrito fotografias de noivos Bijagós. Tenho pena de nunca ter ido ao arquipélago dos Bijagós, ele foram sempre muito ciosos da sua autonomia, disse-me o Albano que só nos anos 30 é que o arquipélago foi pacificado. Nos Bijagós prevalece o matriarcado: quando a mulher se fartava do marido, punha todos os seus haveres pessoais num pano, fazia uma trouxa com quatro nós e punha-a à porta. Quando o marido chegava a casa, olhando a trouxa ficava a conhecer a sua sorte. Tive muita dificuldade em acreditar que assim era.
Vejo agora a grande emoção destas reminiscências. Foi muito bom ter voltado à Guiné, voltei a percorrer lalas e savanas, a contemplar uma ponte que não servia para coisa nenhuma, vivi numa casa imponente no Gabu, à beira do fim do mundo, atravessei rias de canoa, ensinei cozinha, aprendi a ser professora, descobri a minha esterilidade, assisti ao início de uma guerra, mal sabia eu como aquela guerra ia mudar a história de Portugal.
Prometo a mim própria não voltar a mentir desta maneira. Posso ter sofrido muito nestas terras entre o trópico de Câncer e o Equador. Mas foi nestas terras rasgadas por rios e rias, cheias de vegetação, com mangais e poilões, onde todos os dias se tem o sentimento que estamos a viver dentro da Criação, que verdadeiramente me fiz mulher. Não acredito que tivesse tido sucesso na D. Eva sem o teste da Guiné, sem a dedicação do Albano, sem a aprendizagem de que com
pouco se pode fazer muito.
[ Fixação / revisão de texto / título: L.G.]
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Nota de L.G.:
(*) Vd. último poste > 16 de Fevereiro de 2010 >
Guiné 63/74 - P5825: Pré-publicação de Mulher Grande, de Mário Beja Santos (5): São Domingos, 21 de Julho de 1961: É o princípio do fim, Benedita