domingo, 18 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6183: Tabanca Grande (213): Carlos Nery Gomes de Araújo, ex-Cap Mil, CCAÇ 2382 (Buba, 1968/70)



Guiné > Região de Quínara > Buba > CCAÇ 2382 (1968/70) > Dia do pagamento do pré. Cap Mil Art Gomes de Araújo, Alf Mil Curado, Sargento Boiça e Fur Mil Henrique. A foto é do nosso camarada Manuel Traquina, retirada e editada, com a devida vénia, do seu livro, Os tempos de guerra: de Abrantes à Guiné (Abrantes: Palha de Abrantes, 2009, p.130).




1. Texto de Carlos Nery, com data de 13 do corrente, enviado ao editor do blogue, com conhecimento ao Manuel Traquina (ex-Fur Mil da CCAÇ 2382, Buba, 1968/70)

Assunto: O Guião da CCaç 2382

Amigo e Camarada,

Sou o Carlos Nery Gomes de Araújo, fui o comandante da CCaç 2382. Capitão Miliciano, portanto. Teria muita coisa a contar da minha experiência de Guiné... Por vezes, até, tenho a sensação de que nem saberia por onde começar...

Tenho reparado que, à medida que o tempo passa, me vão surgindo fragmentos, aparentemente sem importância e que, pouco a pouco, vão conquistando um relevo até agora insuspeitado. Por exemplo, sou um amador (no sentido em que amo) de Teatro. Aliás, em Bissau, no fim da comissão, ainda encontrei disposição para encenar "A Cantora Careca", de Ionesco... Teatro do absurdo em teatro de guerra... Um dos meus actores foi o Alferes Barbot, da Secção de Justiça do QG, hoje escritor Mário Cláudio. No programa do espectáculo escreveu um texto muito a propósito da situação dos muitos absurdos em que estávamos mergulhados...

Bem... Passaram-se quarenta anos, não é? Pois acontece que, neste momento, participo numa empolgante experiência no Centro Cultural de Belém.

Dir-lhe-ei que foram convidadas pessoas com experiência teatral com idade superior a sessenta anos. Tiago Rodrigues (actor, dramaturgo e encenador) é o responsável pelo projecto que aponta para a formação da Companhia Mayor do CCB. O texto ainda não existe. Ou melhor vai sendo construído por nós. Numa primeira apresentação pública eu "fui" um soldado que conta um episódio baseado em algo que aconteceu realmente:

Em 26 de Agosto de 1968, a CCaç 2382 estava empenhada na segurança à coluna Aldeia Formosa/Buba efectuada pela CCaç 2381.

O inimigo actuara nos pontões da estrada, destruindo, por completo o do Rio Gunti e colocando minas A/P e A/C nas imediações. A água da chuva subira nas bolanhas. Um dos militares da 2381 pisara uma mina perdendo um pé. A Força Aérea informava só poder fazer a evacuação de Nhala, afirmando não ter tecto para descer junto da coluna atascada numa das bolanhas. Pedi voluntários e parti com eles até encontrá-la. Há lençois de água com centenas de metros. O capitão Aidos, metido na bolanha, faz passar viatura a viatura puxadas por um guincho. Um inferno!

Regressamos com o ferido. Tinham sido cerca de oito quilómetro até à coluna. Outro tanto no regresso mas carregados com a maca que nunca julguei ser tão pesada! Mas o helicóptero aguarda-nos em Nhala. O ferido recebe os primeiros tratamentos e é levado para o Hospital de Bissau.

Baseado neste episódio real, improvisei, portanto, um texto que disse nessa primeira apresentação pública. "Fui" um soldado descrevendo e comentanto aquilo que vivemos então.

Mas muito mais poderia relatar. O célebre ataque a Buba, que já comentei em http://coisasdomr.blogspot.com/2009/01/guin-atauqe-buba-livro-guerra-colonial.html (*), mas que talvez merecesse um relato mais detalhado. O ataque a Contabane, no início da nossa comissão. (Sobre este último escrevi um texto, já publicado, que poderei facultar). E as tais pequenas coisas, aquelas sem importância mas, talvez, as que têm mais encanto como a que descrevi no CCB.

Um abraço do Carlos Nery

2. Comentário de L.G.:

A Internet tem destas coisas, está a transformar-se num verdadeiro Big Brother, para o melhor e para o pior. Deixámos de poder passear, tranquilos e anónimos, pelo espaço público... Foi o que aconteceu ao Carlos Nery, que vim a descobrir que vivia em Alfragide. Daí até arranjar o seu nº de telefone fixo foi um ápice, permitindo-me entrar em contacto com ele. Primeiro que tudo, somos vizinhos... Mais vizinho ainda dele é o Humberto Reis, ambos moram na mesma rua, a Dom Luís I...

Além disso, o Carlos é bancário, reformado, tendo trabalhado no Banco de Portugal, o que quer dizer que temos alguns amigos e conhecidos comuns... No início da década de 1960 era estudante em Coimbra, tendo sido um dos fundadores da Real República Trunfé-Kopos... O grande entusiasta da passagem do Solar a República foi o Dr. Jacinto Magalhães, médico já falecido (em 1987), que passou á história da saúde em Portugal por ter sido o pioneiro, em 1971, do teste do pezinho (diagnóstico pré-natal). O seu nome passa a estar imortalizado através do Centro de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães, com sede no Porto, e que faz parte do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.

O Carlos Nery contou-me, rapidamente, a sua história: tinha feito a tropa nos anos 1957/59, dez anos depois seria chamado para o Curso de Milicianos... Ei-lo, pois, a comandar a CCAÇ 2382, que esteve na Região de Quínara (Buba) mas também na Região de Tombali (Aldeia Formosa)... Falámos logo de camaradas conmhecidos, o Manuel Traquina (CCAÇ 2382) mas também o Zé Teixeira (CCAÇ 2381)... Doutro Maioral, o Alf Mil José Belo, ele não se lembra... A propósito, estas duas companhias (independentes, mas que andaram pelos mesmos sítios e actuaram em conjunto nalgumas operações), vão-se encontrar em Fátima, no dia 1 de Maio, em almoço-convívio anual...

O Carlos Nery conhece o nosso blogue e aceitou o meu convite para ingressar na nossa Tabanca Grande (**). Um dia destes vamo-nos encontrar, para continuar a nossa conversa. Para já, ficamos a saber que é o autor do brazão ou logótipo da sua companhia (pormenor que terá passado despercebido ao Manuel Traquino). Que teve um único morto, o infeliz "Esgota.Pipas", vítima do ataque ao quartel de Buba, em 14 de Fevereiro de 1969 (é evocado pelo Manuel Traquina, no seu livro, a pp. 143/144). E, finalmente, que ficou em Bissau, por razões burocráticas, depois da companhia regressar à Metrópole, tendo levado à cena a peça do Ionesco, "A Cantora Careca", com três actores, que hoje são figuras públicas: o escritor Mário Cláudio, o constitucionalista Canotilho Gomes e um advogado madeirense, de apelido Vasconcelos, cujo nome não retive (João ? José ?).

Carlos, sê bem vindo! Temos uma série, Eu, Capitão Miliciano, Me Confesso (***), a que tens que dar continuidade.

______________

Notas de L.G.:

(*) Comentário ao poste de 25 de Janeiro de 2009 > M48 - Guiné - Ataque a Buba (Livro Guerra Colonial do Diário de Notícias)

(...) Eu era o Comandante da CCaç 2382, uma das unidades sediadas em Buba quando do ataque. A frase transcrita do relatório,, então elaborado, foi de minha autoria. Porém, o desenho baseado naquele que fiz nesse mesmo relatório, contém algumas inexactidões.

Efectivamente os cinco bigrupos do PAIGC que pretendiam entrar em Buba (cerca de 300 homens) foram emboscados por um grupo de combate da CCaç 2382, comandado pelo Alf Mendes Ferreira, e por elementos do Pelotão de Milícia, postados no exterior do aquartelamento para lá da pista de aviação, tendo retirado com baixas e sem atingir o seu objectivo. Nessa retirada utilizaram o largo trilho aberto quando da sua aproximação.

Enquanto isto, a nossa artilharia, 2º Pelotão/BAC, comandado pelo Fur Mil Gonçalves de Castro, atingia com eficácia a posição dos morteiros inimigos. Ficaram no local e foram capturadas na madrugada seguinte pelos fuzileiros do DFE 7, 158 granadas, das 180 com que contava o Comandante Peralta na sua "Ordem de Fogo", preparando o ataque a Buba.

Entretanto, os dois morteiros 81, guarnecidos pelo Pel Mort 2138, atingiam a posição ocupada pelo comando do ataque IN, instalado na margem direita do Rio Mancamã, junto à foz. No lusco-fusco desse fim de tarde, viu-se, do quartel, a confusão de vultos em fuga, por entre o capim, nessa outra margem do rio. A maré estava baixa. Um frémito percorreu os defensores. Elementos do DFE 7, da CCaç 2382 e da Milícia, sob o comando do Tenente Nuno Barbieri, alcançam a margem do rio Bafatá, fronteira à posição dos canhões sem recuo e do comando inimigo. É aí deixada uma base de apoio comandada pelo Alf Domingos, da CCaç 2382, enquanto o Tenente Barbieri tenta ganhar a margem oposta no comando dos restantes voluntários, actuação esta que fez aumentar a confusão existente no dispositivo inimigo. Uma noite sem lua caíra, entretanto. Foi decidido regressar ao quartel.

O relatório desta acção foi recebido com cepticismo em Bissau. Porém, quando da captura do Comandante Peralta, pelos Pára-quedistas, passados poucos dias, foi constatado que os planos de sua autoria para atacar Buba se ajustavam à descrição por nós elaborada.

Na realidade, o Comandante Pedro Peralta cometeu algumas falhas: as obsevações que mandou efectuar deixaram sinais detectados pelos nossos patrulhamentos. Por outro lado a preparação do tiro de artilharia que efectuou nas vésperas do ataque (disparos isolados ocorriam a horas inesperadas) levou-nos a prever o tipo de ataque que se preparava. Para cúmulo instalou as suas bocas de fogo nos pontos de mais provável instalação, já utilizados em inúmeros outros ataques. Mal foram ouvidas as "saídas" da artilharia inimiga já a nossa resposta ía a caminho com precisão. O resto já está descrito. Mas o "azar" de Pedro Peralta não acabou ali. Passadas escassas semanas, no dia 18 de Novembro, caía numa emboscada dos pára-quedistas do CCP 122, onde foi gravemente ferido e capturado pelas nossas tropas. Ficava adiada por mais uns anos a tentativa do PAIGC de fazer subir a fasquia do tipo de guerra de que vinha tomando a iniciativa.

Gomes de Araújo (Cap Mil Art) (...)

(**) Vd. último poste desta série > 16 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6166: Tabanca Grande (212): Manuel Carvalho Passos, Pel Rec Inf/CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/73 (Juvenal Amado)

(***) vd. postes de:

28 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3248: Eu, capitão miliciano, me confesso (1): Engenheiro agrónomo, ilhavense, 32 anos, casado, pai de 4 filhos... (Jorge Picado)

17 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3581: Eu, capitão miliciano, me confesso (2): Vasco da Gama, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74

Guiné 63/74 - P6182: Em busca de... (125): Camaradas do ex-Fur Mil Inf João José Viana Dias de Azevedo da CCAÇ 2658/BCAÇ 2905 (João Azevedo)

1. Mensagem de João Azevedo com data de 8 de Abril, dirigida ao nosso Blogue:

Boa tarde,
Chamo-me João Azevedo e sou filho de um antigo combatente na Guiné pertencente ao Bat Caç 2905, tendo estado na Guiné entre os anos de 1970 e 1972 sensivelmente.
Vi o seu blog na internet e verifiquei que o nome do meu pai não aparece nas listagens de antigos combatentes.

O nome do meu pai é igualmente João Azevedo (João José Viana Dias de Azevedo) e é natural de Viana do Castelo. Infelizmente o meu pai faleceu em 2002 vítima de um cancro e se fosse vivo teria 62 anos. Faleceu longe da família e por esse motivo, fiquei com poucas recordações (fotográficas antigas) dele.

Recordo-me de ver fotos do tempo da Guiné dele e dos seus camaradas, mas agora isso tudo está perdido, pelo motivo que referi.
Nesse sentido, gostaria de saber se me poderia ajudar a encontrar camaradas de meu pai que possuíssem fotos em que ele aparecesse para poder ficar com algum registo fotográfico dele desse período marcante da sua vida.

Junto envio uma foto de meu pai com a idade de 20 anos aproximadamente, correspondente ao período em que estaria na Guiné para ajudar a identificá-lo. Sei também que ele, até 2001 foi aos encontros anuais de antigos combatentes do batalhão, por isso creio que algum camarada o poderá identificar e quem sabe ajudar-me no meu pedido.

Fico a aguardar feedback de sua parte
Atenciosamente
João Azevedo
jjrazevedo@hotmail.com


2. Mensagem resposta enviada ao nosso amigo João:

Caro João
Os nossos cumprimentos
Ajudava muito se soubesse o Posto e Especialidade de seu pai, assim como a que Companhia ele pertenceu.
Temos na nossa tertúlia três camaradas de Batalhão de seu pai, mas que se forem de outras Companhias poderão ou não lembrar-se dele.

Para ajudar, o Batalhão de Caçadores 2905 era composto pelas Companhias operacionais 2658; 2659 e 2660. Ainda por uma CCS, Companhia de Comando e Serviços.

Se o seu pai foi Atirador pertenceu a uma das Companhias operacionais, mas se tinha outra Especialidade, tal como, Condutor, Transmissões, Enfermeiro, Mecânico, etc, pertendeu à CCS.

Espero mais pormenores, se os tiver.

Um abraço de
Carlos Vinhal


3. Nova mensagem de João Azevedo:

Boa noite Sr. Carlos Vinhal,
Desde já o meu obrigado pela prontidão na resposta ao meu email.
Infelizmente sei pouco acerca da vida militar de meu pai. Sei apenas que o seu posto era furriel e penso que a especialidade era minas e armadilhas. O meu Pai na recruta esteve em Tavira e na escola prática de sargentos em Mafra. Não sei se isso ajuda na identificação também.

Ao nível da sua actuação na Guiné, sei da situação que levou ele a receber um alto louvor em combate (passado e confirmado desde o comandante de batalhão até ao chefe maior das forças armadas da altura, o que me permite p. ex: ao abrigo do dec lei 358/70 de 29 de Julho, ficar isento do pagamento de propinas), que segundo, do que me recordo de ter lido na caderneta militar, "por ter mostrado frieza em combate, pela reorganização do pelotão e prestado auxílio aos feridos".

Nesse "evento", se não estou em erro, o meu pai teria mais ou menos 2 semanas de Guiné, o alferes comandante do pelotão sucumbiu ferido mortalmente, tendo morrido nos braços do meu pai (relato do meu pai, que referiu que tentou estancar a ferida no peito).

O meu pai tinha como arma uma HK e debaixo de fogo (a situação foi uma emboscada) disparou a arma até esta se ter encravado. Arranjou a avaria e a arma de novo quebrou. Ele referiu-me que ao lado dele, um camarada chorava compulsivamente incapaz de reagir. O meu pai esbofeteou-o para o chamar à razão, reorganizou o pelotão, e prestou socorro médico como pode.

Estando a situação "mais aliviada" deslocou-se ao aquartelamento, trouxe um veículo com o qual providenciou a retirada dos feridos e fez ainda batida à zona. Por isto foi então condecorado.

Sei ainda que foi ferido por duas vezes ao longo da campanha militar tendo ficado internado dessas duas ocorrências.

Não sei se estes acontecimentos ajudam na identificação por parte de algum camarada dele. Agradecia sinceramente tudo aquilo que me conseguissem facultar.

Atenciosamente
João Azevedo


4. Segunda mensagem enviada ao João:

Caro João
Fiz umas pesquisas, e do Batalhão de seu pai encontrei a morte em combate de um Alferes da CCAÇ 2658. Isto no dia 16 de Maio de 1970. Se for esta a situação que me descobre, o seu pai pertencia a esta Companhia.

Vou estar ausente uns dias, mas para a próxima semana vou publicar as suas duas mensagens e vou identificar o senhor seu pai como tendo sido Fur Mil da CCAÇ 2658/BCAÇ 2905.

Julgo que o João está enganado quanto ao local onde o seu pai terá feito a Especilalidade porque a Escola Prática de Infantaria era destinada à formação de Oficiais. Só se ele foi lá tirar algum Curso especial. Eu também fui Furriel, fiz a Recruta nas Caldas e a Especialidade na Escola Prática de Artilharia em Vendas Novas. Depois fiz também o curso de Minas e Armadilhas, na Escola Prática de Engenharia em Tancos, provavelmente a seguir ao seu pai, porque eu fui para a Guiné em 13 de Abril de 1970 e o seu pai em Janeiro. Isto são pormenores.

Depois informo-o daquilo que fizer.

Receba um abraço
Carlos Vinhal


5. Comentário de CV:

Caros cmaradas, tudo leva a crer que estamos à procura dos companheiros de João José Viana Dias de Azevedo, ex-Fur Mil At Inf com o curso de Minas e Armadilhas tirado na EPE de Tancos. Pertenceu quase de certeza à CCAÇ 2658/BCAÇ 2905 que esteve na Guiné entre Janeiro de 1970 e Dezembro de 1971.

A CCAÇ 2658 andou por Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate, Galomaro, Paúnca, entre outros destacamentos. Foi comandada pelo Cap Mil Hermenegildo Gomes Ribeiro.

Com respeito ao acontecimento referido pelo João, em que o seu pai se terá distinguido por actos de bravura, coragem e determinação, encontrei no 8.º Volume, Mortos em Campanha, da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, Tomo II - Guiné - Livro 1, encontrei 5 mortos em combate, causados ao que julgo por ataque IN a uma emboscada a uma coluna auto no itinerário Nhamate-Binar, no dia 16 de Maio de 1970.

A identificação dos mortos é a seguinte:

António Fernandes Peixoto, Soldado Atirador de S. Romão de Arões - Fafe
António Marques Francisco, Soldado Atirador de São Miguel do Mato - Vouzela
David Miranda Casanova, Soldado Atirador de São Miguel da Carreira - Barcelos
José Andrade de Brito, Soldado Atirador de Sanfins - Paços de Ferreira
José Manuel Godinho Pinto, Alf Mil Inf de Reguengos de Mansaraz

Pede-se aos camaradas da CCAÇ 2658 que tenham fotos antigas e mais actuais do nosso camarada ex-Fur Mil João José Azevedo, uma vez que ele participava dos Encontros da Unidade, o favor de contactarem o seu filho, dando assim a alegria de ficar a conhecer o passado de seu pai.

Desde já o nosso reconhecmento
CV
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Notas de CV:

Sobre este assunto vd. poste de 9 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6134: Em busca de... (122): Procuro informações sobre meu pai: João José Viana Dias de Azevedo, do BCAÇ 2905 (João Azevedo)

Vd. último poste da série de 16 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6165: Em busca de... (124): Procura-se o pedreiro Amaral que pertenceu à CCAÇ 2791 (António Bastos)

Guiné 63/74 - P6181: Notas de leitura (95): Até Hoje (Memória de Cão), de Álamo Oliveira (Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
A aventura continua, acabo de receber livros emprestados sobre obras de Amândio César, Alexandre Barbosa e Francisco Valoura. Chegou mesmo, pelas mãos do Manuel Joaquim um livro do Luís Rosa “Depois da Guerra”, edição de autor (1990) que muito provavelmente é a primeira versão de “Memórias dos Dias sem Fim”. Vamos ver.

Continuo a apelar a que não se esqueçam de me indicar títulos respeitantes a edições dos anos 90.

Um abraço do
Mário


O medo dos fantasmas é que nos aguenta aqui

Beja Santos

Álamo Oliveira (1945) é romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, director teatral, pintor. “Até Hoje (Memória de Cão)”, publicado pela Ulmeiro, em 1986, será porventura a sua única incursão ficcionista pela Guiné. É um livro assombroso e singular. Só poderia ter sido escrito por um ilhéu e um homem de coragem, capaz de se despir do seu íntimo, num texto de enorme elevação, lirismo e sofrimento incontido.

Tudo começa na Rocha Conde de Óbidos, naquele cais de Alcântara João só pensa na ilha e suas gentes: “Vinha do lado norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida. Passara a infância embrulhado no cheiro saboroso que o suor empresta às pessoas ao tempo, às coisas. Eram perfumes silvestres – muita bonina, conteiras, faias do norte, quase bedum de esperma, queijo”. Daquele atlântico trazia memórias de vacas, burro e cão, cataclismos vulcânicos, uma infância em se andava descalço e limpo. Agora era o 127 e partia para a Guiné. Tem dias para sulcar os mares a pensar no pão duro da sua criação, a bordo do Uíge. Praticara jogos de guerra no Monte Brasil em emboscadas na estrada do mato, na sua ilha verde, rodeado de vacas pacíficas. Tinha 21 anos, não chegara a comprometer-se com a Isabel, partiu para a tropa, andou a saltar, a marchar e a rastejar, aprendeu a dar tiros de coice Mauser. Nos fundos do porão do Uíge escreve os seus primeiros aerogramas, regista num caderno os seus estados de alma. As recordações desfilam, é menino e moço, aprende os frémitos do sexo e as masturbações colectivas.

Chega o alvorecer em que se avista África, uma massa verde, pequeninas ilhas, pássaros irreconhecíveis. O Uíge entra numa enseada que não é. João Machado vem em rendição individual, pertence ao contingente daqueles que substituem doentes, estropiados, desaparecidos e mortos: “Estão ali como peças sobresselentes, parafusos, panelas, agulhas, culatras, e mesmo corações, alvos, cabeças e, quem sabe, almas”.

A bordo de uma Berliet, atravessa Bissau a caminho do Quartel de Adidos, é uma paisagem nua, alguém lhe fala nos baga-baga, João nunca viu tantos rostos tensos. De novo a memória esvoaça para a ilha, para os inhames e café-cevada, a matança do porco, depois o discurso do capitão Gandra trá-lo à realidade. Cá fora do refeitório, uma fila interminável de negros, quase só crianças, as barrigas entumecidas pela fome, aguardam os restos da sopa. Ouve-se a cólera do capitão Gandra: “Cabo-dia, manda formar estas cavalgaduras imediatamente. As cavalgaduras formaram. Seguiu-se um silêncio que África inteira ouviu. As boas vindas estavam dadas”. Nos Adidos, aqueles soldados em repouso só pensam em salvar a pele. João quer resistir, o seu coração está na sua freguesia. Até que um dia é mandado para Binta, até teve o luxo de ir de helicóptero, iam evacuar uma negra grávida, a criança estava atravessada.

Binta não o comoveu, aparecia-lhe como lugar sem história, três casas de colonos já fugidos à guerra, quatro barracões de mancarra e uma tabanca de balantas e mandingas. Nomearam-no padeiro. Devagar, a sensualidade começa a tomar conta do relato de Álamo Oliveira: “O rapaz está agora à sua frente, grande como ele, tronco a brilhar de óleo suado, a pele lisa como cetim, os calções curtíssimos a realçar o corpo rijo. Tem o rosto oval, assim como mondligliano, boca desenhada a rigor, lábios fortes e molhados, o nariz regular, o queixo chaveta e cabelos muito castanhos e lisos, fartos, caídos à vontade. São os olhos castanhos que se fixam em João, protegidos por duas grandes pestanas. Chamo-me Fernando”.

Assim começa uma relação, uma cumplicidade, um encontro destinado a um desencontro trágico. São homens sós, Fernando vai ser abandonado pela mulher que lhe deixa a filha em casa dos pais. Isabel ainda escreve a João, é uma ânsia de tudo querer dizer, João sente o doce sossego da ilha, mas a aparição de Fernando está a pôr-lhe os sentimentos numa estrada de verdade. Em Binta, o cansaço é gelatinoso, fala-se desenfastiadamente do que se passa naqueles locais onde à noite se ouvem os rebentamentos, ali perto, em Guidage, há alguns perigos, e do outro lado, na mata do Oio, reside uma ameaça permanente. É na bebida que a guarnição entorpece o tédio daquele tempo lodoso. João confia-se cada vez mais a Fernando, o tempo passa e o afecto de ambos anda à deriva, João retrai-se, não se sente capaz de assumir o que lhe vai no coração.

Depois Binta é atacada e Zé Domingos mortalmente atingido, ficara no cais, completamente perdido de bêbedo. A atmosfera psicológica lança os soldados no marasmo, há gente completamente ensimesmada. É o caso do Mastigas que se fez pêndulo de silêncio, adorador dos grandes vazios. João continua a preencher o seu caderno. A chegada do correio é um acontecimento avassalador, como Álamo Oliveira descreve: “Estão como cabras espantadas, prisioneiros ridículos, inocentes, amantes de cordel, aos saltos, gritinhos tarzânicos. Doentes de alegria explosiva, rapazes com o coração a viajar para o princípio do ser, primitivos os sentidos expostos. Fixam-se no meio da parada, a mão à testa para tapar o sol, a avioneta de voo raso, dois sacos de correio que se despenham e se amparam nos mil dedos que os agarram... As notícias vinham ali ensacadas, cadeadas, atrasadas quase quatro semanas. Vinham alegrias de tempo contado, saudades moídas pela azenha da distância, tristezas em rebanho... Os olhos estão fixos nas mãos do cabo-escriturário que agora é todo o quartel de Binta e só aquele tamanho, a mão emocionado metendo a chave no cadeado do saco com a mesma untuosa demora da desfloração”.

Com o andar do tempos, o álcool vai tomando conta de tudo e todos. Isabel casou com um imigrante, fartou de tanto silêncio, quem vive na ilha está pronto a partir para a América, mesmo que o amor venha depois. Depois o Mastiga suicida-se: “O tiro isolou-se como um deus chateado no seu claustro de silêncio. Na cama do fundo, o Mastiga está deitado desafiando a pontaria de todas as armas do mundo. Vão falar-lhe dessa indiferença, dessa coragem deitada, do tiro isolado e único. E a boca estoira-se-lhes num grito imenso de pavor. O Mastiga atravessara a cabeça com uma bala de G-3. Parecia uma flor vermelha, desfolhada sobre a almofada muito branca e aflita”.

Chegou a hora de uma LDM ir buscar toda a tropa a Binta, de novo embarca no mesmo Uíge que o trouxera, até Alcântara. João e Fernando vão ver “Música no Coração” no Tivoli e depois vão dormir numa pensão no Rossio: “No quarto número treze o amor ficara do tamanho da cidade e coubera inteiro numa pequena cama de ferro, pintada de esmalte branco. Não há sinais de proibição, códigos de viagem, espartilhos no coração. Os seus olhos brilham e dormem”. João vai regressar à ilha, Fernando promete escrever, só que as suas cartas nunca obterão resposta. Tudo está diferente quando ali chega, porque ele é que está diferente. “Poucos meses depois, sem grandes pré-avisos, João despediu-se da família e... emigrou. Até hoje”

É uma obra de grande inspiração lírica, com todo o desassombro a homossexualidade é narrada com afecto e desafectadamente. E não deixa de impressionar o peso esmagador da ilha, omnipresente em João e na tragédia de tanto encontro e desencontro. Para que conste.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6170: Notas de leitura (94): Crónica dos dias levantados da guerra, com os horrores de Goya e tudo (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6180: Lançamento do livro do Amadu Bailo Djaló: Lisboa, Museu Militar, 15 de Abril (3): Intervenção do Cor Cmd Ref Raúl Folques

 


 Lisboa, Museu Militar, 15 de Abril de 2010. Lançamento do livro do Amadú Bailo Djaló, "Comando, Guineense, Português" (edição da Associação dos Comandos, 2010). Intervenção do Cor Comando Ref Raúl Folques.

 Vídeo (8' 43''): © Luís Graça (2010). Alojado em You Tube > Nhabijoes (conta do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)




Raúl Folques, com o posto de major foi o último comandante do Batalhão de Comandos Africanos, antes do 25 de Abril de 1974, mais exactamente entre 28 de Julho de 1973 e 30 de Abril de 1974, tendo sido antecedido pelo major Almeida Bruno  (2 de Novembro de 1972 a 27 de Julho de 1973), e imediatamente seguido pelo Cap Matos Gomes (1 de Maio a 12 de Junho de 1974).  Os dois aparecem aqui na foto, à esquerda, o Matos Gomes, e à direita o Folques.

Foto editada, extraída de Amadu Bailo Djaló  - Guineense, comando, português. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, p., 240 (com a devida vénia...)

Estes três oficiais, juntamente com o cap pára António Ramos, foram os únicos europeus a participar, com os militares do Batalhão de Comandos Africanos, e o Grupo do Marcelino da Mata, na célebre Op Ametista Real, de assalto à base do PAIGC em Cumbamori, no Senegal,  em 19 de Maio de 1973, e cujo sucesso permitiu aliviar a pressão sobre Guidaje. Nessa  dramática operação, o major Folques foi ferido. Os números oficiosos apontam para 9 mortes,  11 feridos graves e 23 ligeiros.

Amadu tem onze páginas (da 248 à 258), de grande intensidade dramática, sobre esta operação, e nomeadamente sobre a retirada dos comandos africanos até Guidaje e depois até Bigene. Cite-se o trecho que começa com a conversa que o Sargento Comando graduado Amadú tem com  o tenenente comando graduado Jamanca , que está ferido [ era o comandante da 1ª CCmds, e será depois fuzilado eplo PAIGC em 1975]:

(...)

- Amadú, anda cá! Mata-me, não deixes o PAIGC levar-me. Mata-me, Amadú, mata-me!
- Tu não ficas, levamos-te de qualquer forma! Não ficas aqui! Descansa um pouco, Jamanca!

Durante esta conversa vi o Alferes Melna, de pé, com dois soldados, um deitado, de frente para eles.
- Melna, de quem é esse corpo ?
- É o Alferes, o Mama Samba Baldé!

Fui para a beira deles. O Melna apontou para uma árvore e perguntou-me se eu sabia de quem era o corpo que estva lá. Não, não sabia, respondi.
- É o corpo do José Vieira,  [sold, 1ª CCmds].

Ouvi o Jamanca chamar-me:
-Vai chamar o Demba.

Dirigi-me para um grupo de soldados e perguntei pelo Demba.
- Já retiraram todos, só estamos nós aqui, respondeu alguém.

Quando transmiti ao Jamanca o que tinha ouvido, ele não queria acreditar. Depois, levantou-se e foi ver com os seus próprios olhos. Não viu nenhum dos seus oficiciais e abanou a cabeça.

No local estávamos 31 militares, três capitães europeus e vinte e oito comandos africanos. Os capitães eram o Folques, o Matos Gomes e o Ramos que era pára-quedista.

O grupo ainda ficou mais reduzido, pouco depois. Quando tentava recuperar o corpo do Alferes Mamassamba, o Melna foi atingido gravemente nas pernas com estilhaços de uma roquetada e os ossos ficaram a ver-se.

(..) De todo o pessoal que partiu, quatrocentos e noventa e tal militares com dois guias de Bigene, estávamos ali vinte e nove, porque um dos soldados do Melna também tinha sido atingido gravemente. Conseguimos abandonar o local, comigo em último lugar, a olhar para trás, de vez em quando, com a imagem, do Melna, que ainda hoje está na minha cabeça. Ele olhava para nós e voltava a cara para o lado de onde faziam fogo contra nós. E ainda consegui ouvir um grito, pareceu-me de contentamento (...). (pp. 252/253).

 Publicam-se mais fotos de camaradas nossos, que se associaram  à festa do Amadu Djaló (*).



Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > O Virgínio Breiote "adiantando serviço" ao Amadú que não teve mãos a medir em matéria de pedidos de autógrafos... A seu lado, inclinado, apenas com a careca visível, o nosso amigo Rui Alexandrinho Ferrera, tratado afdectuosamente como Ruizinho. Recorde-se que foi que o Rui A. Ferreira, nascido em Angola,  cumpriu duas comissões de serviço na Guiné, primeiro como Alf Mil na CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67, e depois  como Cap Mil na CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72.




Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > Um guineense, Bamba, antigo dirigente do partido Resistência da Guiné-Bissau / Movimento Bafatá, e antigo ministro da Saúde Pública (Partido criado em 1986 como Movimento Bafatá, na sequência da execução de antigos dirigentes do PAIGC como Carlos Correia e Viriato Pã; nas primeiras eleições multipartidárias, realizadas em 1994, o RGB-MB conquistou 19 dos 100 lugares da Assembleia Nacional. Em 1999, tornou-se o 2º maior partido da Guiné-Bissau com 29 lugares dos 102 lugares da Assembleia Nacional). Julgo que viva actualmente em Lisboa. Dei-me o seu contacto de telemóvel.

Na foto, Bamba cumprimenta a Giselda, ladeada pela Alice e pelo Miguel. O Bamba é amigo pessoal do Agostinho Gaspar, recém entrado para o nosso blogue, membro da Tabanca do Centro.



Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010  > Sessão de autógrafos > Na foto, à esquerda e de perfil o nosso camarada António Santos.


Lisboa > Museu Militar > 15 de Abril de 2010  > O Alberyo Branquinho e o Coutinho e Lima, possivelmente à procura de referências a Guileje no livro do Amadú.


Lisboa >  Museu Militar > 15 de Abril de 2010 > O Rui Silva,  Ten Cor Inf Ref, ex-Cap Mil da CCAÇ 18 (1970/72), membro do nosso blogue, veio expressamente de Viseu, para assistir ao lançameno do livro do Amadú. Em contrapartida, teve a agradável surpresa de encontrar ali, por acaso, o Manuel Gonçalves, ex-Alf Mil Mec Auto da  CCS do batalhão  que estava então sediado em Aldeia Formosa. O Manuel Gonçalves, companheiro actual da minha amiga Tuxa, está em vias de se tornar membro da nossa Tabanca Grande. Um dos soldados do seu pelotão do Manuel Gonlçalves era o Silvério Lobo, membro da nossa Tabanca Grande e da Tabanca de Matosinhos. Os dois já se voltaram a encontrar.

Fotos: © Luís Graça (2010).  Direitos reservados
 
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Nota de L.G.:


Guiné 63/74 - P6179: Convívios (218): 7º Convívio da CART 1746 (Manuel Vieira Moreira)

1. O nosso Camarada Manuel Vieira Moreira, ex-1.º Cabo Mec Auto da CART 1746 (Bissorã, Xime e Ponta do Inglês, 1967/69), enviou-nos, em 17 de Abril de 2010 com pedido de divulgação, o programa da festa da sua CART 1746:

7º CONVÍVIO DA CART 1746
Camaradas,

No próximo dia 22 de Maio de 2010, vai levar-se a efeito o 7º Convívio Anual da CART 1746, no Restaurante “O Casarão”, em Vale Grande - Aguada de Cima.

O modo como lá chegar e os contactos para as inscrições encontram-se no seguinte programa:

Clicar na imagem para ampliar

Um Abraço
Manuel Vieira Moreira
1º Cabo Mec Auto da CART 1746
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Nota de MR:
Vd. último poste da série em:

Guiné 63/74 - P6178: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (9): Os dias da batalha de Guidaje, 27 e 28 de Maio de 1973

1. Continuação da apresentação deste que é um dos documentos narrativos mais pormenorizados dos trágicos acontecimentos de Guidaje em Maio de 1973, publicados no nosso Blogue, de autoria do nosso camarada Daniel Matos (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1972/74), em boa hora enviado ao nosso Blogue em 6 de Março de 2010:


Os Marados de Gadamael

e os dias da Batalha de Guidaje


Parte IX

Daniel de Matos

Os Dias da Batalha


27 de Maio

Sou mandado chamar à secretaria. Sou, isto é, ninguém reclama o meu nome, querem é a presença do “mais-velho” graduado dos pelotões da CCaç 3518. Lá fui, não por ser “mais-velho” de nada, mas por ser o único dos seis graduados que vieram do COMBIS que ainda podia andar com relativa ligeireza. Um alferes (não me lembro de o ter visto antes, deve ser da CCaç 19) pede-me que mobilize quatro soldados que devem apresentar-se ali uma hora depois, para ajudarem a sulcar novas covas, pois o comandante decidiu mandar enterrar os defuntos que restavam na enfermaria. E repete-me as explicações que é possível dar: a situação é insustentável, não se prevêem evacuações, o cheiro já não se aguenta… Sim, é evidente que serão também sepultados os homens da minha companhia. E devo preparar uma secção que, tão ataviada quanto possível (os mais limpinhos e com camuflados menos rasgados?), irá prestar as honras militares durante o funeral, porém, sem salvas de tiros para o ar, para se evitar o charivari da cerimónia anterior com os camaradas pára-quedistas, e também para que o IN não contabilize de ouvido o número das nossas baixas.

Dói-me participar nos enterros do Machado, do Telo e do Ferreira, particularmente nestas condições. E não se sabe quanto tempo irá durar a débil respiração do Gonçalves. Meu caro, – advertiu o alferes, – é o que tem de ser feito e não há que hesitar. Apesar de compreendida, às primeiras impressões a solução não é bem aceite. Dizem-me os soldados em tom de revolta que fazem e acontecem e que levam os corpos às costas até Bissau, e por aí fora! Deixar os corpos em Guidaje é que está fora de causa. Mais tarde, conformam-se, alguns de lágrimas nos olhos.

À hora marcada, transportam-se os corpos para o local que, embora já conhecido por cemitério “provisório” de Guidaje, tem um número reduzido de sepulturas. De facto, não alberga a maioria das vítimas da batalha que travamos, nomeadamente os comandos tombados durante o assalto a Koumbamory, enterrados algures.

Os dez voluntários de Os Marados de Gadamael a quem dei refrescamento prévio de “ordem unida” já se encontram perfilados junto aos jazigos cavados durante a manhã, comigo à frente. Apesar da profunda tristeza, foi caricato ter passado o resto da manhã a treinar manobras com as G3 com estes homens, até que atinassem, e mal, com a posição de funeral-arma, difícil de efectuar devido ao maior número de movimentos de braços que é preciso efectuar. Haviam-na treinado uma única vez, na recruta. Quase dois anos depois e numa ocasião destas, a motivação para treinos de ordem unida também não é muita…

Outros homens, em especial os membros da companhia, concentram-se nas imediações para um último olhar, uma despedida dos camaradas que viram a vida ceifada pela morteirada filha da puta. Experimentem enterrar um irmão no quintal para perceberem o que isto é! Jazem neste quintal de casa alheia, logo adiante, os restantes corpos que já referi. Todas as campas têm espetadas em cima cruzes de pau, e já existem outras cruzes prontas para serem espetadas na vertical sobre os novos defuntos que, por agora, estão deitados no chão, embrulhados em panos de tenda, lençóis, penso que também em rolos de gaze e adesivos, cada qual frente à cova que não sabemos se será a sua derradeira morada. Chega o tenente-coronel Correia de Campos, pela posição em que me encontro, à frente dos soldados já perfilados, percebe que serei eu a gritar as palavras de comando e faz-me sinal com o pingalim para que inicie a cerimónia.

Grito “firme”, “sentido”, etc., até ao “funeral arma”! Faço continência ao comandante sem saber o que procedimento deveria seguir-se (já sabia que não daríamos tiro algum em honra dos tombados). O comandante murmurou algumas palavras de circunstância a rimar com pátria e nação, que estamos aqui para render homenagem a estes nossos heróis, mas as condições ditam que temos de ser breves, e manda avançar os dois africanos da CCaç 19 e os dois madeirenses da minha companhia (tenho ideia de que um deles era o Abreu, do meu pelotão), que em silêncio, – neste caso, verdadeiramente sepulcral, – da direita para a esquerda e um por um, começam a descer os corpos e a cobri-los com pás de terra.

Quero lembrar-me de outras imagens desses companheiros, mas vivos, como se fosse possível não arquivar na memória esta forma de os ver desaparecer sob as pazadas de terra. O primeiro a ser depositado é o corpo do Fernandes. O que pensar a seu respeito, se mal o conheci? Só o convívio recente, o rogar pragas à vida, o ter falado mais que uma vez da sua origem, da aldeia de onde é natural, – Carção, – e por não sabermos onde fica nos explicar ser terra de almocreves e a capital portuguesa dos marranos (judeus convertidos à força) e que conserva as tradições dos “cristão novos”, como o pão ázimo, feito sem fermento e para ser comido durante a Páscoa judaica. Ficas aqui a dois passos do teu quase vizinho Geraldes, de Algoso. Será que chegaram a conhecer-se?

O soldado Manuel Geraldes, – o primeiro corpo sepultado na fiada de campas onde se encontram os três pára-quedistas, – era apreciado na freguesia de Algoso pelas qualidades pessoais, que deviam ser muitas, tal a saudade que deixou, não apenas entre familiares, conforme ficou demonstrado tantos tempo depois, quando o seu corpo foi exumado e trasladado até ao Vimioso. Ainda foi recordado ser um rapaz trabalhador, por ter um gira-discos trazido de França que ajudava a animar a juventude local do seu tempo, organizando bailaricos e puxando-a também para o futebol.

Segue-se o Telo. Até sempre, Telo! Por este andar, até breve, amigo! Também já não devemos resistir muito, a quantas mais morteiradas vão esquivar-se os nossos corpos? Já sentimos saudades tuas. Os teus familiares, esses, já as sentem desde que partiste de Paul do Mar, da fajã linda e sossegada que tantas vezes enalteceste, da salina antiga onde começaste a dar os primeiros chutos numa bola, da igreja que ajudaste a construir e onde foste sacristão. Adeus companheiro, para além do militar exemplar que te revelaste ao longo deste tempo em que caminhámos todos juntos, demonstraste perante nós uma atitude e uma educação invulgares. E foste o atleta que muitos de nós também gostaríamos de ser, – tão depressa, o União da Madeira não vai arranjar um substituto à altura para constituir o onze… Já não apanhas mais o barco até ao Funchal, capaz de regressares a casa só quinze dias depois, passados em treinos e jogos pelos pelados da ilha. Só assim se formam os verdadeiros atletas! Lembras-te, camarada, do belo Dia da Infantaria (14 de Agosto) em que, para queimar o tempo e animar as hostes em Gadamael, o capitão resolveu comemorar com uma mão-cheia de actividades desportivas e ambos fizemos parte da equipa de voleibol? Ganhámos que nem ginjas o primeiro lugar e limpámos o prémio das duas grades de cerveja à equipa de “Os Pipas”, – vinda expressamente de Cacine a bordo dos Sintex, – e vingámos a derrota por 2-0 no futebol… E tu, – quem mais poderia ser? – ex-aequo com os furriéis Custódio e Almeida, ainda ficaste em primeiro no salto em altura… Por agora, Telo, ficas aqui, em solo africano. Podem dizer cobras e lagartos de que vieste para a Guiné fazer a guerra, mas tu há muito que combatias era pela paz no continente negro, há muito que enviavas donativos para ajudar as crianças de África, através das missões católicas em que militavas.

Passados dias será mandado um telegrama para a Fajã da Ovelha dirigido aos pais. Perante o remetente, já conhecido, nenhum carteiro o quis entregar, nem ler o conteúdo pelo telefone. A irmã do Gabriel Telo, mais nova dois anos (Gabriela) estava sozinha em casa e vieram chamá-la para ir atender um telefonema à mercearia. Era para levantar o telegrama na Fajã, para onde não tinha meios de se deslocar. Desconfiou que fosse algo relacionado com o irmão mais velho (eram cinco ao todo, três rapazes e duas raparigas). Lá conseguiria uma boleia e acabou por ser um outro irmão, ainda mais novo, quem foi buscar a notícia, que a todo o custo queriam ocultar à mãe, para adiar o desgosto. Mais tarde veio a mala e os pertences, gerando novas angústias e a revolta por nada mais haver a fazer, que o corpo já estava enterrado. Quem poderia imaginar que o mesmo corpo chegaria à terra 36 anos depois e que, a pedido da família, iria restar no mesmo local onde o pai, João de Jesus Telo, fora entretanto sepultado? “Agora ele está na sua terra!” A vida tem destas coisas.

O Telo (e também um irmão mais velho) foi jogador no União da Madeira. Nesse tempo, os clubes pagavam a outros militares para que fossem mobilizados no lugar dos seus craques (o regime não se opunha a tais trocas, e nem protegia só os atletas, mas as gentes endinheiradas, cujos filhos, caso enveredassem por tal “modalidade”, ou não iam à guerra ou o faziam a cobro de especialidades não operacionais). No caso do Telo havia já um voluntário, só que este, à última hora, terá sido também mobilizado e a troca abortou. Era um homem bondoso. Quantos de nós, no regresso de férias da metrópole, nos lembrámos de trazer roupas “para os pretinhos”? Ele fê-lo! O destino existe? O Telo e os outros do seu pelotão, poderia nem ter ido parar a Guidaje. Seria o quarto pelotão a alinhar na malfadada coluna a (presumiam os soldados) Farim, mas como o respectivo alferes (António Francisco Lopes Monteiro) passou a ser o comandante interino da companhia devido à ausência do capitão, que estava de férias no Porto Santo, alguém entendeu ser preferível escalar os primeiro e segundo pelotões naquele dia de Maio de 1973.

Agora, caro João, és tu a descer à cova. Já estilhaços traiçoeiros te tinham ferido na estrada de Guileje (aquela mina maldita que ceifou a vida ao Raposeiro e que também feriu o soldado João Manuel Oliveira, do pelotão Fox 2260, em 7 de Agosto do ano passado). Foste evacuado para Bissau, depois para Lisboa e, tratadas as feridas, vieste cair de novo neste lamaçal. Pensar que voltaste há pouco mais de três meses à companhia para ficares agora neste estado? Que pôrra, Ferreira, também contigo somos levados a acreditar no destino? Já tinhas o teu quinhão, rapaz!

E tu, meu querido camarada e amigo Zé Carlos? Que grande partida te pregaram! Não lembra ao diabo que por vires trazer madeira para reordenamentos acabarias por morrer neste inferno, tu que te calhou em sorte teres o reordenamento como tarefa, o capitão não te mandou a Bissau para tirares o estágio há um ano e picos? Nunca, meu amigo, nunca te vi de verdadeiro mau humor, sempre cordial com toda a gente. Tanto que, quando azedavas, quando te fazias de zangado, ninguém te levava a sério. Nas nossas brincadeiras de garotos, digo bem, acordarmo-nos uns aos outros arremessando botas para cama alheia não é próprio de homens que andam na guerra, nem as camas à espanhola nem os baldes de água nos umbrais das portas, divertimo-nos imenso com estas e muitas outras brincadeiras de garotos. Tiveste sempre a habilidade de contabilizar mais partidas aos outros do que encarnares o papel de vítima. Taparam-te agora o rosto, embrulhado dessa maneira. Mas estou a imaginar por baixo da gaze o leve sorriso que sempre te vimos nos lábios, como que a dizer-me, desta vez, apanharam-me, fui eu que caí, mas na volta já vos fodo!

Também em Sá, concelho de Valpaços, a família do José Carlos Machado amenizou a angústia e o pesar trinta e seis anos depois. “Já o cá temos connosco”! Irmão, mãe e pai (com o qual, se bem me lembro, por circunstâncias da vida o Machado conviveu durante pouco tempo), todos em lágrimas, como se o Mundo estivesse parado ao longo desta eternidade, por uma incerteza, um enterro não resolvido. Em 1973, a notícia oficial chegou a Sá igualmente através de um telefonema para o posto público: os familiares andavam a tirar ervas de uma terra de batatas e foram obviamente apanhados de surpresa. É que, apesar de quem tinha lá fora os filhos e os maridos andar sempre com o coração em sobressalto, temendo o pior, restava sempre a esperança de que as desgraças que abalavam todas as localidades do país acontecessem só aos outros…

Embora ninguém mo tenha solicitado, memorizo a ordem por que ficam em repouso para elaborar e entregar mais tarde um croquis. O comandante do COP3 manda destroçar e abandona o local quando o corpo do Machado desaparece sob a terra. Nada mais há a fazer e digo ao meu pessoal que pode regressar às valas onde “residimos”. A maioria não arreda pé tão depressa e deixa-se ficar a olhar as sepulturas, num último adeus. Dois soldados passam as armas aos parceiros do lado, ajoelham-se, fazem o sinal da cruz e rezam. Os camaradas que fazem de coveiros alisam a terra com as costas das pás e espetam as cruzes de pau improvisadas, que ali ao lado aguardavam o seu destino. Interrogo-me se e quando seriam resgatados os corpos destes camaradas?

Neste dia imaginei que quando a situação operacional estivesse normalizada fosse possível levantar as campas e transportar os féretros para Bissau e daí para os seus destinos (famílias). Mais tarde, a seguir ao 25 de Abril, pensei que antes da retirada da Guiné-Bissau, as autoridades militares acautelariam essa questão em devido tempo. Era a altura ideal, antes da passagem administrativa do poder para as novas autoridades. Depois ficou a incógnita, o território passou a ser um Estado independente e a burocracia e confusão das primeiras décadas de soberania só poderiam trazer dificuldades, tanto mais que a política externa dos governos portugueses, sobretudo nos anos 70, 80 e ainda 90, foi sempre uma lástima no tocante a cooperação, por motivos que são basto conhecidos e que não vêm à baila nestas páginas. Por que é que isso não foi feito (nem com estes nem com outros corpos sepultados nas antigas colónias), só quem lá esteve nessa altura poderá eventualmente ter explicações.

Curiosamente, o BCaç 4512, – uma das unidades com mais vítimas mortais durante esta “crise” e a cuja primeira companhia pertencia o soldado Geraldes, um dos corpos a exumar, – comandado pelo tenente-coronel de infantaria António Vaz Antunes, foi quem “comandou e coordenou a execução do plano de retracção do dispositivo de desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, a qual foi efectuada no subsector de Guidaje, em 21 de Agosto de 1974”. Na perspectiva de uma qualquer iniciativa, coloquei a questão ainda nos anos oitenta durante um encontro/convívio de “Marados” em Lisboa. Há muito que tinham passado os cinco (havia quem dissesse sete) anos, tempo mínimo técnica e legalmente (?) para se poder proceder ao levantamento de ossadas. (Maria Lourenço, irmã do pára-quedista Lourenço da CCP 121, disse que recebeu a notícia da morte a 28 de Maio de 1973, e que lhe disseram que nada havia a fazer quanto a funerais, pois o irmão já estava enterrado e “só quando fizesse sete anos é que mandavam os ossos”). Por razões pessoais, eu vim a ter bom relacionamento com dirigentes do PAIGC e admitia ser bem sucedido para obter autorização do governo de Bissau com vista a desbloquear os procedimentos administrativos e tratar do assunto.

Um dia, em Fevereiro de 1987, aproveitei uma conversa com Vasco Cabral (por coincidência, nascido em Farim e que, escapando por um triz à morte quando do assassinato do líder do PAIGC, viria a falecer muito recentemente, suponho que há dois anos) e pedi-lhe uma opinião sobre o assunto. Apesar de torcer o nariz ao precedente e de considerar que “mexer nos mortos é sempre complicado”, disse-me que nunca ninguém teria levantado essa questão, pelo menos que fosse do seu conhecimento, mas que as autoridades não deixariam de analisar e de encontrar a melhor solução para que os corpos sepultados em Guidaje pudessem voltar às suas famílias. Apesar do apelido e de estar na génese da criação dos movimentos de libertação nacional das ex-colónias, Vasco não tinha qualquer parentesco com Amílcar Cabral. Ambos, conjuntamente com Agostinho Neto e Mário de Andrade (angolanos) e Marcelino dos Santos (moçambicano), todos a viver e/ou a estudar em Lisboa, foram os dinamizadores das actividades da Casa dos Estudantes do Império, ao Arco Cego/Lisboa, integraram o MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática, ao lado de muitos anti-fascistas portugueses), entre outras façanhas que marcaram a nossa história política e cultural.

No encontro de Marados em Lisboa, a minha proposta foi derrotada pelo argumento do reavivar desnecessário dos choques para as famílias e, democrata que sou, aceitei também o silêncio. A questão das famílias é argumento válido para muitas delas, mas não para a maioria, como se tem demonstrado. As famílias dos três pára-quedistas da 121, as do Telo, do Machado e do Geraldes viram com bom olhos as trasladações… Um funeral adiado só prolonga o sofrimento, a constrição, é um nó na garganta. O enterro, religioso ou não, consuma a despedida, encerra o ciclo.


28 de Maio

A desmoralização amplia-se a ritmo galopante. Como se não bastassem as consequências operacionais do cerco e o sentimento de incapacidade absoluta de dar a volta às coisas e furar o bloqueio, é também a logística que começa a falhar. Os pedaços de salsicha, cada vez mais precários, têm sido substituídos por sardinhas de conserva, que chegam ao prato em pasta. A groselha também acabou, tudo rebenta pelas costuras! Desde o ataque de dia 25, que cortou a luz no quartel, os geradores nunca mais tiveram um funcionamento regular (parece que não há gasóleo para os ligar) e passámos a estar sem electricidade (nem a do céu, que a mudança de estação para a época das chuvas faz aparecer nuvens que encobrem o luar). O que vale é que não há nada nos frigoríficos que se estrague!

Por onde andamos, tropeçamos constantemente em destroços, granadas, invólucros de munições, restos de latas de conserva que, os poucos que as tenham, já nem se dão ao trabalho de as pôr no lixo, além de pedaços de tectos de zinco arrancados pelos rebentamentos, restos de móveis inúteis, etc.. Ainda por cima, a água que desde sempre aparecia nas torneiras, talvez uma hora (incerta) por dia, deixou praticamente de aparecer. Ou seja, se nos primeiros dias ainda conseguimos lavar as mãos e a cara muito apressadamente, pois havia sempre outros atrás de nós à espera de fazer o mesmo, agora já nem isso fazemos.

No caso do pessoal “marado” faz já catorze dias que temos no corpinho o mesmo camuflado, vestido vinte e quatro horas por dia, quase todos sem ter conseguido tomar um banho. De cabelos desgrenhados e cinzentos da poeira e com barbas por fazer da mesma cor, ainda conseguimos brincar, dizendo que se corrêssemos para um turra desta maneira, ele morreria logo, mas era de susto! E caso aguentasse olhar para o nosso terrível aspecto, sucumbiria à mesma, com o cheiro… Eu cá, se despir o dólmen e o poisar no chão, ele aguenta-se, de certezinha, em pé. O suor acumulado, a volumosa pasta de sangue dos camaradas mortos e feridos que absorveu no abrigo do Obus, confesso que algumas lágrimas em cima, mais a moinha do cacimbo, à noite, o pó poisado durante as deslocações e emboscadas, e ainda a sujidade de terra desde que passei a dormir no chão, tudo isto acumulado dá uma argamassa que nem colete à prova de bala.

O curioso é que não me sinto propriamente a cheirar mal, nem sinto que os meus companheiros cheirem mal. Terei perdido o olfacto? Ou, nas nossa narinas, também o hábito faz o monge? Não faço ideia porquê, nem como, mas de repente dei por ter ficado sem os atacadores das duas botas de lona. Das meias verdes, resta-me uma, cujos buracos me estão a provocar bolhas. A do pé direito era um buraco só e desfez-se: achei-a folgada demais, puxei-a e, desprovida da “sola”, saiu inteirinha do pé sem necessidade de descalçar a bota.


Equipa de voleibol dos Marados

Equipa de futebol
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6154: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (8): Os dias da batalha de Guidaje, 24, 25 e 26 de Maio de 1973

Guiné 63/74 - P6177: Adiantamentos e Prestações O.G.F.E. (António Tavares)

1. Mensagem de António Tavares* (ex-Fur Mil da CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72, com data de 8 de Abril de 2010:

Caro Vinhal,
Os artistas de fotografias dizem que num retrato o primeiro olhar é para a cara e depois para pequenos pormenores…

Nesta foto, que foi das primeiras tiradas em Galomaro, os pormenores era o bigode e o camuflado ainda novo em folha!
Não tinha ido à mão das nossas queridas lavadeiras… bajudas de preferência! Bem depressa estragavam a nossa roupa.

Camuflado comprado a prestações nas O.G.F.E., Sucursal do Porto, na Rua da Boavista 216.

A compra de roupas, gasolina e produtos dos ex-supermercados da MM - especialistas em massas, farinhas, bolachas -, a prestações era um privilégio dos Oficiais e Sargentos.

Comiam, bebiam, vestiam-se e ao fim do mês lá aparecia uma pequena importância a pagar aquilo que já tinha sido gasto no tempo. Enfim… regras em uso...

Enquanto tive esse privilégio também comprei alguns artigos militares a crédito… e a pronto pagamento vestuário civil… recordo um casaco de antílope!

Os artigos em pele eram muito cobiçados porque havia/há uma grande diferença de preços e qualidade em relação ao comércio tradicional.

As O.G.F.E. ou CASÃO MILITAR tinham/têm dos melhores artigos do mercado nacional!

Tinham um senão… eram muitos os Galões e Estrelas que por lá se viam!

Outra vantagem (?) - era deixar de pagar as prestações em divida em caso de morte do militar… como o meu destino era a Guiné aproveitei a regalia… comprei o equipamento necessário ao militar mobilizado… comecei a descontar a despesa em Junho de 1970.

Feitas as contas, à moda do Porto, o total foi descontado em 11 prestações.

Não recordo como aceitei a sugestão… o certo é que aprovei tal convite!

O macabro conselho tem a sua graça decorridos 40 Anos!

Felizmente tive alguém - (leia-se: um Deus) - que se interessou pela minha pessoa durante os 23 meses passados nas matas da Guiné… naquela brutal guerra!

Além das ditas prestações descontavam o valor da minha Pensão. O que recebia, na Guiné, era superior à média do Pré dos Praças e abaixo do Vencimento Base - 3.800$00 - dos Alferes Milicianos.

O pessoal do Quadro Permanente recebia quase o dobro dos Milicianos.

Os Praças recebiam o Pré, os Oficiais e Sargentos o Vencimento!

O meu Pai ia mensalmente ao Quartel do RI 6, na Senhora da Hora, Porto, levantar a minha Pensão.
Os Pais… sempre disponíveis para ajudar os seus filhos!

Era custosa aquela deslocação quer no aspecto psicológico quer a viagem propriamente dita porquanto ao tempo - 1970/72 - não havia muitos transportes para aquele quartel!

Quem conhece o RI6 facilmente imaginará as dificuldades no trajecto.

Dos 21 Boletins de Vencimentos, que guardo religiosamente, publico o do mês de Abril de 1971 porque confirma tudo o que acima escrevi e porquanto foram os últimos Valores dos Descontos dos Adiantamentos e das ditas Prestações.

Recordem os diversos Abonos: - Vencimento Base ou Pré e Read.; Vencim. Complementar; Subvenção Campanha; Gratificação Isolamento; Gratificação de Serviço; Alimentação; Subsídio Renda de Casa; Abono Família; Ajudas de Custo e Grat.: Rep .Acum. ou F. Esp.

Abonos não faltavam… para alguns!

Escrevo propositadamente os valores na antiga moeda: - Escudo em Portugal Continental; Pesos na Guiné.

Em 1970/72 o Escudo valia mais 10% do que o Peso, ou seja, trocávamos uma nota de 500$00 Escudos por 550$00 Pesos.

Lembremos que 200,482 Escudos equivalem a 1€.

Os manuais: - I e II Caderno do Soldado (Folheto da 1.ª Rep/EME) dizem:

A Pensão de Família era diferente da Subvenção de Família, esta destinada às famílias das Praças que obedecessem a umas certas condições, digo eu, de miséria….

A Pensão de Família podia ir até 2/3 do vencimento no Ultramar, incluindo abonos especiais que lhe possa vir a ser concedidos a título transitório.

Tinha início a partir do mês seguinte àquele em que o militar embarcava para o Ultramar.

Todo o militar nomeado para serviço no Ultramar e por conta do seu vencimento podia estabelecer a pensão.

A pensão é estabelecida mediante simples declaração do interessado, feita em papel de 35 linhas e à máquina e apenas em original.

O quantitativo e o beneficiário podem ser alterados por simples declaração, tudo se passando como se tratasse de uma nova pensão.

Esta é uma história real escrita por um dos muitos milhares de ex-combatentes… diferente nas pessoas, quantitativos e patentes… Histórias sempre associadas à guerra de guerrilha vivida e sofrida, de 1963 a 1974, na mártir Guiné.

Este escrito teve entre outras vantagens o recordar o valor total recebido durante a Comissão no Ultramar… a Guiné Portuguesa, como se dizia!

Clicar para ampliar a imagem

Um abraço do
António Tavares
Ex-Fur Mil SAM
Foz do Douro, 08 de Abril de 2010
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6082: Os nossos regressos (20): A impressionante chegada a Figo Maduro na noite de 22 de Março de 1972 (António Tavares)

Guiné 63/74 - P6176: Parabéns a você (108): Raul Rolo Brás, Soldado Condutor Auto da CCAÇ 2381 (Os editores)

1. A data de 18 de Abril de 2010 vai ficar na história por ser o dia em que o nosso camarada Raul Rolo Brás completa 64 primaveras. Hão-de seguir-se muitos verões, temos a certeza.

A Tabanca vem por este meio apresentar ao Raul os seus votos de um bom dia de aniversário passado, com alegria, junto dos seus familiares e amigos. Nós vamo-nos associar à festividade brindando à sua longevidade.


Raul Brás foi Soldado Condutor Auto da CCAÇ 2381, “Os Maiorais”, que esteve em Buba, Quebo, Mampatá e Empada nos anos de 1968/70.

Está na nossa Tabanca há muito pouco tempo, mais propriamente desde Fevereiro último, pelo que a sua colaboração no Blogue ainda não se fez sentir.

Dizia-nos o Raul no dia em que começou a fazer parte da tertúlia:

Olá amigos, camaradas e companheiros de guerra,


Assim me apresento:


Para quem não me conhece, sou o Raul Rolo Brás, nascido e criado em Salavessa, na data de 18/04/1946, concelho de Nisa, distrito de Portalegre, devidamente recenseado e editado para o serviço militar obrigatório, na data de 14 de Agosto de 1967.

Assim como qualquer bom português, no meu tempo, apresentei-me à chamada no dia 14/08/1967, Regimento de Lanceiros Nº 1 (C.I.C.A. 3), em Elvas, para frequentar a recruta e a especialidade de Condutor Auto.

Após 6 ou 7 semanas de instrução e o Juramento fidedigno á Bandeira Nacional, ainda em Elvas, fui destacado para o Regimento de Cavalaria Nº 6 no Porto, em 08/10/1967.

Permaneci com a especialização apontada mais 2 meses aproximadamente, findos os quais fui destacado para Regimento de Transmissões, também no Porto, no dia 26/11/1967, onde permaneci até finais de Janeiro de 1968.

Na perspectiva de aperfeiçoamento de condução em todo-o-terreno, onde revi e contactei novamente, com antigos camaradas da recruta, segui para Santa Margarida - Regimento de Cavalaria Nº 4, até à data de 18/03/1968.

Nessa data fui destacado para o Regime de Infantaria Nº 2, em Abrantes, permanecendo ali com o destino traçado até hoje na minha memória, á Guiné, no dia 30/04/1968.

Dali parti, integrado na Companhia de Caçadores 2381 “Os Maiorais”, no tão afamado e conhecido transportador marítimo Niassa (que para a guerra levou e trouxe tantos de nós como eu), no dia 01/05/1968.

Um abraço,
Raul Brás
Sold Cond Auto da CCAÇ 2381
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5806: Tabanca Grande (202): Raul Rolo Brás, ex-Sold Cond Auto da CCAÇ 2381 “Os Maiorais”, Buba/Quebo/Mampatá/Empada, 1968/70

Vd. último poste da série de 15 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6158: Parabéns a você (107): António Pimentel (ex-Alf Mil OpEsp/RANGER da CCS do BCCAÇ 2851, Mansabá e Galomaro, 1968/70 (Os editores)

Guiné 63/74 - P6175: O povo e o município de Moura homenagearam, no passado dia 10, os seus 29 mortos na guerra colonial (Parte I) (Luís Graça / Francisco Godinho)




Moura > Largo de São Francisco > 10 de Abril de 2010 > Concentração junto ao monumento aos mortos da guerra do Ultramar. A pedido da Comissão Organizadora, coube à nossa camararada Giselda Pessoa efectuar a deposição de um ramo de flores na base do monumento. Foram lidos os nomes dos nossos 29 camaradas mortos nas três frentes da guerra colonial (Angola, Guiné e Moçambique). Respeitou-se depois um minuto de silêncio à sua memória.



Moura > Largo de São Francisco > 10 de Abril de 2010 > Singelo monumento de "homenagem aos jovens do concelho de Moura que perderam a vida na guerra colonial", num total de 29. O monumento, iniciativa do Município, data de Junho de 2008. A lista está organizada por freguesias (entre parêntesis, os respectivos naturais): Amareleja (7), Estrela (1), Moura (11), Póvoa de S. Miguel (1), Safara (3), Sobral (4), Santo Aleixo da Restauração (1), Santo Amaro (1). Por teatro de operação, a contabilidade dos mortos é a seguinte: Angola (16), Moçambique (7), Guiné (6).



Moura > Rua Henrique José Pinto > 10 de Abril de 2010 > Natural da freguesia de Santo Agostinho, o 1º Cabo At Henrique José Pinto, da CCav 487 / BCav 490, morreu em combate 24 de Janeiro de 1964, repousando os seus restos mortais no cemitério de Bissau.


Moura > Cine Teatro Caridade > 10 de Abril de 2010 > Aspecto parcial da assistência (primeiras filas, lado esquerdo) ao colóquio sobre a guerra colonial. Na primeira fila, quatro dos cinco elementos da Comissão Organizadora, todos eles ex-combatentes.



Moura > Cine Teatro Caridade > 10 de Abril de 2010 > Aspecto parcial da assistência (primeiras filas, lado direito) ao colóquio sobre a guerra colonial



1. Realizou-se em Moura, cidade do Baixo Alentejo, no passado dia 10, uma condigna homenagem aos ex-combatentes, naturais do concelho, mortos durante a guerra do Ultramar / guerra colonial (*)
Às 10h30, teve lugar, no Cine teatro local, um colóquio subordinado ao tema da guerra colonial, o 25 de Abril e a descolonização, com a participação de cerca de 80 pessoas, incluindo diversos autarcas.

Intervieram os seguintes oradores:

(i) José Joaquim das Esteves, ex-Fu Mil, Polícia Militar, Guiné, 1966/68, em nome da Comissão Organizadora;

(ii) Pedro Lauret, comandante da Marinha de Guerra Portuguesa, Cap de Mar e Guerra na Reserva, Militar de Abril, membro da Direcção da Associação 25 de Abril, membro do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, ex-combatente, Guiné 1971/73.

(iii) José Brás, autor do romance "Vindimas no Capim" (Editora Europa-América), galardoado com o Prémio Revelação de Ficção 1986 da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura; .ex-combatente, Guiné, 1966/68.

(iv) Luís Graça, sociólogo (Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade Nova de Lisboa); fundador, administrador e editor principal do Blogue "Luís Graça&Camaradas da Guiné"; ex-combatente, Guiné, 1969/71.

(v) Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref, membro do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, ex-combatente, Guiné 1972/74.

Por razões de ordem pessoal e imprevistas, o Mário Beja Santos comunicou na véspera a impossibilidade da sua participação no colóquio.

Intervieram no final o Major General Manuel Monge e o vice-presidente da edilidade.



Moura > Cine-teatro Caridade > 10 de Abril de 2010 > Intervenção do Major General na Reserva Manuel Monge, Governador Civil do Distrito de Beja, ex-combatente em Angola (duas comissões) e na Guiné (duas comissões), membro do MFA, natural do vizinho concelho de Serpa. Na mesa, da direita para a esquerda: Vice-presidente da CM Moura, Santiago Augusto Ferreira Macias; e os nossos camaradas Pedro Lauret, Miguel e Giselda Pessoa.


Finda a sessão, os participantes dirigiram-se para o Largo de S. Francisco, onde por volta das 12h45 foi depositada, pela nossa camarada Giselda Pessoa, uma coroa de flores junto à lápide evocativa aos 29 ex-combatentes mortos ao serviço da Pátria durante a guerra colonail. Após a leitura dos respectivos nomes foi guardado um minuto de silêncio em sua memória.

As 13h00 houve um belíssimo almoço-convívio no Restaurante O Celeiro, junto ao Pavilhão de Exposições e Depósito de Água, mais exactamente sito na Rua Henrique José Pinto (ex-combatente morto em combate na Guiné, em 1964).

A Animação musical esteve a cargo de 2 grupos: (i) Grupo Coral e Etnográfico do Ateneu Mourense; (ii) Grupo Vá de Modas.


Moura > Restaurante O Celeiro > 10 de Abril de 2010 > A Giselda e o Miguel Pessoa, cuja história militar e pessoal tocou os participantes locais no colóquio... Foram apresentados por Luís Graça como "o casal de militares mais strelado do mundo"...




Moura > Restaurante O Celeiro > 10 de Abril de 2010 > O Pedro Lauret e a esposa



Moura > Restaurante O Celeiro > 10 de Abril de 2010 > O nosso camarada José Brás, que pertenceu ao pessoal de voo da TAP e de cujo sindicato foi dirigente nacional, fez uma emocinante e emocionada intervenção no âmbito do colóquio, e de que esperamos poder apresentar, em vídeo, um excerto.


Moura > 10 de Abril de 2010> Aqui ficam a saudação especial à Comissão Organizadora: Francisco Diogo Candeias Godinho (Telem. 93 343 47 24), membro do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, ex-combatente na Guiné (primeiro à esquerda); José Mira Borralho Infante; José Manuel Ramos Lérias; José Joaquim das Estevas (que esteve na Guiné, tal como o Godinho);  António Fernando Canudo Capa.

(Continua)

Fotos: © Luís Graça (2010). Direitos reservados

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 13 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5989: Agenda Cultural (66): Homenagem aos ex-combatentes da Guerra Colonial do Concelho de Moura, dia 10 de Abril (Francisco Godinho)