1. Em mensagem de 4 de Julho de 2011, Belmiro Tavares, (ex-Alf Mil, CCAÇ 675 Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), conta-nos mais uma das suas histórias.
HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES (8)
A(s) Guerra(s) de Bissau
Muito se tem falado e escrito também sobre o tema em título mas abordando apenas uma parte da matéria: uma guerra de Bissau.
Acontece, porém, que houve ali duas “guerras”: uma durou vários anos; a outra cerca de duas horas. A esta poderiamos chamar, talvez, com mais precisão, uma batalha.
No primeiro caso, os factos eram narrados principlamente pelos oficiais do QG, mas não só, com ênfase invulgar; a análise era diametralmente oposta – ou quase – quando era concertada pelo pessoal militar de Bissau ou pelos militares do mato, aqueles que viviam intensamente a guerra real.
A “guerra” ocorria diariamente durante os anos da guerrilha – sempre que um militar do ar condicionado encontrava outro que, acabado de chegar da Metrópole, preparava a sua partida para o teatro de operações. Era a demanda em que os mais variados episódios eram empolados, largamente ampliados pelo belicoso pessoal do QG para “assustar” principalmente os “maçaricos” imberbes e loiros, os que posteriormente deram lugar aos “periquitos” igualmente desbarbados e aloirados.
Todos – oficiais, sargentos e até praças – deliravam, babavam-se, dando largas à sua frutuosa imaginação mais ou menos descontrolada; muitos manifestavam-se orgulhosos pelos feitos de “bravura” que narravam, transmitindo a ideia falsa de que os teriam vivido bem de perto, mesmo que nunca tivessem saido de Bissau.
No dia 13 de Maio de 1964, o navio Uíge, entrou no avantajado estuário do Geba, logo ao romper da manhã; ficou ao largo porque... “não podia meter-se o Rossio na rua da Betesga”, e porque “Deus fez os rios da Guiné – e o cais acostável também – à medida dos navios da CUF”.
A bordo daquele navio seguiam seis ou sete Companhias Independentes e três Pelotões de Morteiros. Em pouco tempo, dado o evoluir acelerado da guerra, o efectivo militar da Guiné passou de 5.000 para 20.000 homens – ainda não havia garotas na tropa (com grande pena nossa); alguns batalhões sairam do Tejo com destino a Angola ou Moçambique e, já em mar alto, recebiam ordem – pasme-se! – para rumar à Guiné.
A bordo do Uige; soldados repousam no couvés; nos porões era impossível – calor e cheiro “a muita gente junta”.
O desembarque, via batelão, demorou umas horas. Mal o navio ancorou, apareceram a bordo uns alferes e uns furrieis que “vendiam” selos e telegramas, auferindo logo ali um “bolo” de, pelo menos, 20% sobre o valor das avultadas vendas – diferença cambial entre o escudo e o “peso”. Aproveitavam a sua “insuspeita”, “benevolente” e “patriótica” permanência a bordo para nos “agredir”, “zurzir” com os seus boatos fantásticos e aterrorizadores.
Um daqueles oficiais, natual da Covilhã, era primo do furriel da alimentaçãp da CCaç 675, a quem contou “familiarmente” as suas terriveis atoardas; o vagomestre, fazendo-se valente, respondeu como lhe convinha:
- Isso não me interessa! A minha guerra é outra! Eu sou um afortunado vagomestre! Nada tenho a ver com essas guerras!
O oficial, sentindo que os seus orquestrados truques não produziam o efeito pretendido, contra-atacou, célere e objectivo:
- Eh pá! Ainda a semana passada morreu um vagomestre violentíssimo ataque em – (citou o nome dum qualquer aquartelamento).
[Nota: nunca ouvimos falar da morte dum furriel da alimentação mas... pode ter acontecido. ]
As baboseiras crueis daquele alferes produziram logo o atroz efeito que o autor, pelo menos aparentemente, pretenderia: (i) O vagomestre perdeu logo as estribeiras; (ii) Deixou desencaminhar facturas e/ou recibos das compras de generos alimentícios; (iii) Em consequência não lhe foi possivel (apesar das muitas ajudas) “fechar” os mapas atempadamente; (iv) Foi punido; passou a atirador, chefiando uma esquadra de morteiro 60 num pelotão de caçadores; (v) Ia para o mato com um saco de granadas às costas que o apontador daquela arma lhe entregava na hora da saida; e, por fim, (vi) tentou – cremos, temos quase a certeza – o suícidio com um tiro de G3 – puro desespero.
Passados uns bons meses, porém, “aterrou” definitivamente, assentou ideias e terminou a comissão em beleza... melhor do que começara, mais refinado, mais divertido, mais folião.
Este furriel tinha estado connosco durante as duas semanas de campo (na Vendinha-Évora); gostou tanto da nossa “malta” que se ofereceu, volunrário, para ir com a CCaç 675 – para... Moçambique; tal como nós foi bater com o costado na Guiné.
O vagomestre da CCaç 675 é o da direita – perna cruzada.
Em meados de Janeiro de 1966 desci até Bissau porque fui galardoado (obsequiado) com o Prémio Governador da Guiné – 35 dias de férias no “Puto” com viagens pagas. Ocorreu numa época bicuda em que eu já não podia sair da Guiné, mesmo de férias, porque o fim da comissão estava já a menos de quatro meses – uma longa eternidade.
Dirigi-me ao QG para receber a passagem; à saída encontrei dois alferes “periquitos” com as faces ainda muito rosadas; cheios de juventude e alguma matreirice – tinham chegado dois dias antes.
Perguntaram-me como era a guerra no mato; como se vivia em campanha; como “lidávamos” com os “turras”, etc. Com toda a verdade e só a verdade, transmiti-lhes o que sabia; mas um deles replicou, prazenteiro:
- Quero lá saber dessas guerras! Eu não saio do ar condicionado! Isso é para vocês! Aguentem-se! Foi para isso que vos mobilizaram!
Senti que estava a ser nitidamente “lixado”; lancei de imediato o meu contra-ataque psicológico e demolidor:
- Tu pensas que em Bissau não podes “acordar” com a cabeça a rolar no chão!? Pensas que podes afastar-te das ruas principais ou passar na sombra dum mangueiro sem levar uma catanada?! Não tens ouvido, durante a noite, rebentamentos desmedidos, rajadas sem fim à volta da cidade?! “Eles” estão perto! “Muitos” já estão cá dentro... camuflados! Aguarda! As coisas estão a piorar! A tua vez há-de chegar! O jacaré pode abraçar-te a qualquer momento!
Nisto, ouvimos ali bem perto umas rajadas longas de G3; o tal “periquito” correu e encostou-se à parede do QG, acocorando-se; o outro ficou pálido; tremia... mas aguentou-se ali a meu lado.
- Não sejas medricas, pá! – disse eu sarcásticamente – Um homem morre de pé... de frente para o inimigo! Os cobardes morrem de cócoras! O que tu ouviste são tiros de G3, sim, mas na carreira de tiro, ali atrás do QG! Tens de aprender rapidamente a distinguir entre um tiro de G3 e uma morteirada! Se o não fizeres, borras as cuecas a toda a hora! O tempo vai ensinar-te! Oxalá a aprendizagem não venha tarde de mais!
Nisto, alegando que “estava na hora”, entraram, correndo (medo?) no QG
Como se depreende eu também enveredei pela guerra fantástica, imaginária virando o feitiço contra o feiticeiro... mas apenas para dar resposta àquele “pedido” insistente.
Palácio do Governador em Bissau.
Estação de Correios de Bissau. Interior.
A outra “guerra de Bissau”, a mais verdadeira, hilariante – se de coisa séria não se tratasse – ocorreu em fins de 1963 ou no princípios do ano seguinte, antes, portanto de eu abrir as portas da “minha guerra”.
Em Bissau vivia-se sob enorme tensão; andava tudo sobre brasas; todos apavorados, sobressaltados com o evoluir da guerra e o cerco a aproximar-se, lesto, dos muros da cidade. A frase mais ouvida era esta: - “qualquer dia morremos aqui todos ou somos corridos com uns pontapés no cu”!
Neste ambiente consta que dois fuzileiros se ausentaram das instalações num jeep, em serviço ou em passeio; entraram, incautos, em perigosos terrenos alagadiços e a viatura atascou.
O manto escuro da noite começava a envolver tristemente a cidade; um fuzileiro tinha medo de ir sózinho pedir ajuda; o outro tremia só de pensar que teria de ficar ali, desamparado, junto do jeep, até o apoio chegar. Dispararam para o ar numas rajadas de G3; sem, evidentemente, o pretendenrem... escancararam as portas da tal outra guerra de Bissau... e de que maneira!
Em todos os quarteis da cidade os militares começaram a fazer fogo excessivo sobre inimigos imaginários; disparavam para a escuridão onde qualquer suposto atacante pudesse eventualmente esconder-se; das janelas ou das varandas muito civis descarregavam as suas armas sem saber o que se passava – ninguem sabia. A tremenda fuzilaria durou mais de uma hora.
No QG alguém conseguiu, a custo, fazer calar as armas e mandou sair o piquete para averiguar o motivo daquele suposto disparate e tentar acabar com o matraquear insistente das espingardas. O piquete acalmou a cidade, “fechando” as portas da guerra; volta ao QG e... é recebido a ferro e fogo pelos bravos sentinelas amedrontados; reiniciou-se foguetório em toda a cidade; o piquete visitou de novo os quarteis da baixa fazendo regressar o silêncio. O nervosismo e o terror, porém, mantinham-se à flor da pele. Felizmente e incrivelmente não houve feridos.
Dois dias mais tarde, depois do jantar o Sr. Brigadeiro F., Comandante Militar, foi com uns amigos e as respectivas esposas tomar a “bica” ao Grande Hotel. Estavam na esplanda, - uma espécie de varanda – em amena “cavaqueira” (cavaquear não significa votar no Cavaco). Passou um caminhão na estrada que desce do QG para o centro, provocando uns estalidos próprios de motor desafinado (vulgo “rateres”); apaga-se imediatemente a iluminação; ouve-se logo uma voz angustiada vinda já do interior do hotel; era o Sr. Brigadeiro a gritar, desesperado, a seguinte ordem:
- Rasteja, Beatriz! – (esta era – seria – a sua esposa) rasteja cá pra dentro!
Mais provas do autêntico terror em que se vivia?! Para quê!?
Aquela “ordem” passou a ser muito badalada. Muito se mandava a
Beatriz rastejar.
Junho de 2011
Belmiro Tavares
Ten Mil Inf
P.S.: Aquele governador militar viria a ser (creio que era ele) candidato (vencido) à Presidência desta nossa República!
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 13 de Junho de 2011 >
Guiné 63/74 - P8411: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (7): Um oficial... endiabrado