quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8830: Notas de leitura (278): Tarrafo, de Armor Pires Mota: censura e autocensura, em tempo de guerra. Cotejando as edições de 1965 e 1970 (Parte I) (Luís Graça)


1. Não sei se é caso único, mas tem contornos algo insólitos: em 1965, o nosso camarada Armor Pires Mota, alferes miliciano, recém-regressado da Guiné [, foto à esquerda], publica em livro um conjunto de crónicas ou de excertos do seu diário de guerra, incluindo um relato relativamente circunstanciado da famosa Operação Tridente (ou batalha do Como, como lhe chamava o PAIGC), operação essa que decorreu entre 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964, na ilha do Como… 

Diga-se, de passagem, que aquela foi a maior e a mais longa operação,  realizada pelas nossas tropas no TO da Guiné, no decurso da guerra (1963/74),  mobilizando cerca de 1200 efetivos, dos três ramos das  Forças Armadas. Já tivemos, de resto,  o privilégio de aqui  publicar, na I Série do nosso blogue, o depoimento, em primeira mão, de um dos mais experimentados combatentes  dessa longa e penosa batalha, o então Fur Mil Comando Mário Dias (Brá, 1963/66) (*).


O livro chama-se Tarrafo, é editado (ou melhor impresso) pela Gráfica Aveirense, Aveiro, em Outubro de 1965. (Em rigor, trata-se de um edição de autor). Está dividido em três partes e tem 158 páginas. A primeira parte vai da página 11 (Bissau, 25 de Junho de 1963, cinco meses depois do início da guerra) até à página 43 (Bissorã,  12 de Dezembro de 1963).

Nesse espaço de tempo, o autor (e a subunidade a que pertencia, a CCAV 488), esteve na região do Oio, passou por Mansodé (onde teve o seu batismo de fogo, em 11 de Agosto de 1963), Mansabá (Outubro/Novembro) e depois Bissorã (Novembro / Dezembro de 1963). 

A segunda parte (pp. 47-85) reporta-se à sua participação na Op Tridente (Como, de 15 de Janeiro a 15 de Março de 1964). O Alf Mil Cav Mota e o seu grupo de combate fazia parte da CCVA 488, indo integrado no Agrupamento B,  juntamente com o 8º Dest de Fuzileiros Especiais (que era comandado pelo então 1º Ten Alpoím Calvão).

Na terceira e última parte (pp.89-154), Armor Pires Mota relata a sua experiência operacional (e humana) no norte da Guiné, na região de Farim, entre Maio de 1964 e Junho de 1965. Neste período de tempo, passou por Bafatá, Sitató,  Lamel, Jumbembem, Farincó Mandinga, Canjambari, Fambantã, Cuntima, Sulucó… A última crónica é de Jumbembem, 11 de Junho de 1965 (pp. 153/154).

Ao que sabemos, estas crónicas tinham sido publicadas previamente, por episódio, cronologicamente, no Jornal da Bairrada de que o Armor Pires  Mota virá mais tarde a ser chefe de redação… Como classificar este livro ? Em que  género literário encaixá-lo ? Não é romance, não é ficção, não é jornalismo... Está próximo de coletânea de contos,  de short stories... Ou, se quiserem, da literatura memorialística...


Onde está, entretanto,  o caso ou o insólito do caso a que me referi no início deste poste ? É que o livro foi imediatamente retirado do mercado, por iniciativa direta da polícia política de então ou, possivelmente, alertada por algum censor mais sensível ao efeito “dissolvente” (como então se dizia…) e “desmoralizante” que a leitura do livro poderia ter nos mais incautos e jovens leitores portugueses (bem como nos seus pais, preocupados pela mobilização crescente dos seus filhos para os longínquos teatros de operações de África: Angola, Guiné e Moçambique),  face à realidade nua e crua da guerra da Guiné, tal como era descrita, pela primeira vez, na primeira pessoa do singular, e para mais com o inegável talento de um jovem e promissor escritor, nascido e criado na região da Bairrada…


Dedicatória a um amigo açoriano (?), com autógrafo... Tarrafo, 2ª edição, 1970... Livro comprado há alguns anos,  em segunda mão, numa feira dos usados...


Não estaria em causa, na época, o inquestionável patriotismo do autor nem sequer a sua fé inabalável na justa causa portuguesa, em terras da Guiné, cobiçadas por potências estrangeira que financiavam e instrumentalizavam os “turras” ou "bandidos" do PAIGC… 

Aliás, o livro  começa por ser dedicado “ao rude, mas heróico soldado português, sempre pronto  para todos os sacrifícios”, bem como ao tenente coronel FernandoCavaleiro, que comandou as forças terrestres na Op Tridente e que é descrito nestes termos: "audacioso, de pulsos de ferro, de têmpera mais vale quebrar que torcer ". Era, de resto, o comandante do BCAV 490, a que pertencia a subunidade do Armor Pires  Mota (CCAV 488). 

É também dedicado aos seus "pais e irmãos" bem como à "minha madrinha de guerra que sempre teve uma palavra de conforto para cada angústia,  uma frase de humor para cada dia de tédio e uma rosa para cada ferida"... 

O insólito, para mim,  está no aparecimento, cinco anos depois, de uma 2ª edição do livro, revista, (não se trata de simples reimpressão...), com a indicação explícita de se tratar da “2ª edição, autorizada” (sic).  Não se percebe de quem vem a autorização: a Direção dos Serviços de Censura, a PIDE/DGS, o Exército ?...

A editora é, desta vez, a Pax Editora, de Braga, ligada à Igreja Católica.  O autor, antigo seminarista, mantinha-se próximo dos meios católicos da época, e tudo indica, alinhado política e ideologicamente com o regime de então. Na apresentação do livro, João Bigote Chorão, crítico literário e ensaísta, escreveu:

(...) " No sofrimento e no sangue nasceu-nos um escritor, Armor Pires Mota,  cronista de uma aventura e poeta de uma epopeia onde o nosso destino se joga - e onde todos nos podemos perder ou salvar". (...) 

O livro já aqui teve, no nosso blogue, uma primeira recensão, da autoria  do Beja Santos (**), que não poupa elogios ao autor e à obra, "primeiríssimo relato literário da guerra da Guiné":

(...) "Tarrafo surpreende, 45 anos depois: pela sinceridade, pelo registo inocente, pela dureza da aprendizagem. E chegamos a Janeiro de 1964, o autor vai viver a batalha do Como, legou-nos páginas densas, emocionantes, estranhamente esquecidas" (...) (**).

Armor Pires Mota foi, de facto,  durante muito tempo esquecido e injustiçado, figurando hoje entre os nossos escritores da guerra colonial, de primeiríssima água (se considerarmos a sua obra decisiva, o romance Estranha Noiva de Guerra, de 1995).

E no entanto o seu nome não consta sequer da pioneira antologia,  editada pelo Círculo de Leitores,  em 1988,  sob a direção literária de João de Melo: Os anos da guerra...  [, vd. foto da capa, à direita]. O escritor açoriano e ele próprio ex-combatente, em Angola, considerava na época o Armor Pires Mota como um mero cronista 'patriótico'.

Eis a referência bibliográfica, relativa a Tarrafo, que consta do catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal,  obtida através da pesquisa na Porbase, onde o autor tem o número invejável de 28 registos (entre títulos de poesia, ficção, crónica e investigação historiográfica):


Tarrafo / Armor Pires Mota


AUTOR(ES): 
Mota, Armor Pires, 1939-
PUBLICAÇÃO: 
[S.l. : s.n.] 1965 ( Aveiro: -- Gráfica Aveirense)
DESCR. FÍSICA: 
158, 1 p. : il. ; 21 cm



Tarrafo / Armor Pires Mota


AUTOR(ES): 
Mota, Armor Pires, 1939-
EDIÇÃO: 
2ª edição autorizada
PUBLICAÇÃO: 
Braga : Editora Pax 1970
DESCR. FÍSICA: 
244, 18 p. : il. ; 21 cm
NOTAS: 
Tiragem 3000 ex.




2. Da primeira edição (esgotada) possuímos um exemplar fotocopiado, gentilmente oferecido pelo seu autor ao nosso camarada Beja Santos, e que faz parte atualmente do espólio da biblioteca (em construção…) da Tabanca Grande (, alimentada com os livros  que são objeto de recensões publicadas no nosso blogue).



O documento que possuímos tem a particularidade de ser fotocópia de um exemplar autografado, pertencente à Biblioteca do Seminário de Aveiro. Tem, além disso, diversas páginas com o carimbo “Confidencial” e, ainda mais interessante, inúmeros parágrafos e frases  sublinhados,  possivelmente com ordem de eliminação ou sugestão de correção. Não sabemos se são do próprio autor ou dos seus “censores"...

Por exemplo,  na 2ª edição, o autor eliminou todas as referências ao nosso armamento e equipamento, por razões que só podem ser entendidas como sendo de "segurança militar"  (por exemplo, caça-bombardeiro T-6, espingarda automática G-3, rádio transmissor AN/PRC 10)… O mesmo se passa com alguns topónimos e datas (não se percebe porquê, já que outros ficaram…).


A edição de 1970 tem o mesmo título (Tarrafo) mas mais páginas (244 pp.).  É ilustrada com 22 fotografias, a preto e branco,  legendadas, mas algumas das quais não têm nada a ver com a época (1963/65) em que o autor esteve na Guiné. 

É o caso, por exemplo, da foto nº 17, que tem a seguinte legenda: “17. Homens de outros países no auxílio ao terrorismo internacional. O capitão cubano Juan Jimenez Peralta”. [ Possivelmente tirada no Hospital de Santa Maria, Lisboa, 1970]. 

O mesmo se passa possivelmente com fotos de armamento pesado, de origem soviética ou checa, apreendido ao PAIGC em data posterior a 1965 (por ex., foto nº 8).


O livro de 1970 mantém sensivelmente a mesma estrutura (3 partes, a saber:  1. No coração do Oio; 2. Sul; 3. Norte. Há, no entanto, novos episódios, nas partes 1 e 3).

3. Pergunta-se: A que é que os “censores” eram/são mais sensíveis, em tempo de guerra ?

Como é sabido, no Estado Novo,  os livros não eram sujeitos a censura prévia  (contrariamente à  imprensa escrita e ao teatro) mas podiam ser apreendidos depois de publicados,  tarefa essa que incumbia à PIDE (mais tarde DGS), com  mandados de busca às livrarias, tipografias e bibliotecas.


 Os censores, da Direcção de Serviços de Censura (por sua vez dependentes do Serviço Nacional de Informação) eram, conhecidos (e temidos) pelo famigerado "lápis azul”, com que cortavam textos (dos jornais ao teatro de revista), muitas vez cega e arbitrariamente… Alguns censores eram militares, e a sua formação muito heterogénea. 

Quanto aos critérios da censura, não eram de modo algum uniformes. Havia, contudo,  censores mais permissivos do que outros, conforme as regiões do país.  É bem possível que o Armor Pires Mota, pelo contrário,  tenha apanhado um censor de Coimbra para quem o tema da guerra era tabu…(Eu, que fui jornalista da imprensa regional, nessa época, sei do que falo).


Também é verdade que o tema da guerra estava ao rubro, em 1965, na sequência da atribuição, pela  Sociedade Portuguesa de Escritores, do  Grande Prémio de Novelística  ao escritor Luandino Vieira, pelo seu livro Luuanda. Recorde-se que Luandino Vieira (nascido em Vila Nova de Ourém, em 1935, radicado com os pais em Angola desde os três anos e militante do MPLA) cumpria, então, uma pena de 14 anos de prisão, no  Tarrafal,  sob a acusação de terrorismo.





Excerto de Tarrafo, 1ª edição, 1965, p. 15 

Na sequência da decisão do júri que atribuiu o Prémio, a referida Sociedade Portuguesa de Escritores foi extinta, por despacho do Ministério da Educação, e a sua sede assaltada e vandalizada, em 21 de Maio de 1965. Membros do júri  - entre eles o respeitável João Gaspar Simões (1903-1987) - foram detidos e interrogados pela PIDE. A notícia, além disso, foi proibida em todos os jornais.  

Não sei se há mais livros, sobre a guerra colonial,  anteriores ao 25 de Abril de 1974,  que tenham sido objeto de censura e/ou de apreensão. O caso do Tarrafo parece-nos paradigmático.  Mas, no final, ficamos sem poder responder cabalmente à pergunta: a que é que os “censores” eram/são mais sensíveis em tempo de guerra ?



A título de amostragem, e num primeiro resumo, pode-se dizer que os censores (ou o censor...) querem esconder, escamotear ou ignorar, por exemplo,  a situação das crianças de Bissau bem como a prostituição ou a miséria em que os guineenses vivem em Bissau ou no mato, tal como era descrita de relance pelo autor, um jovem de sólida formação cristã e de indesmentível portuguesismo, chegado à Guiné em Junho de 1963… 

Querem por outro lado suavizar a própria violência da guerra (e o realismo dos combates), incluindo o comportamento dos nossos soldados debaixo de fogo… Preocupam-se com a "moral" da retaguarda, procurando de algum modo subestimar ou subvalorizar a força do inimigo... Como em toda a parte do mundo e em todas as épocas, o censor (político, militar, literário...)  sofre, antes de mais, de um problema de dissonância cognitiva…

Topónimos e datas eliminados na 2ª edição (1970)

Citem-se alguns exemplos (retirados da 1ª edição, 1965), reportados a três episódios ou crónicas:

- Ruas sem poesia (p. 22): Eliminada a referência a “Bissau, 25 de Junho de 1963”.

- Batismo de fogo (p. 30): Cai a menção a “Mansodé, 11 de Agosto de 1963”

- Sobrevivência (p. 90): O episódio deixa de ser localizado e datado (“Como, 16 de Janeiro de 1964”).

Vejamos ainda  algumas descrições (da edição de 1965, que desaparecem na edição de 1970):

“Nas ruas, tristes, como elas, brincam torrentes de crianças, semi-nuas, em altos berros: correm, saltam, olham-me curiosas. Alegres como pássaros livres, sem saber se lhes falta pão ou justiça” (p. 12).

“No Copilão, a noite, como de costume, vai ser de orgia intensa e frenética. Estranha conceção de moral. Por vezes, o dinheiro  - preço baixo de carne emprestada aos homens brancos ou de cor  que julgam apagar tristezas e desgostos, chafurdando no prazer – reverte em favor da família. As filhas chegam a entregá-lo aos pais” (p. 13).

Veja-se,  por exemplo, este diálogo entre o narrador (o alferes) e o Teodomiro (soldado), no dia do batismo de fogo, mês e meio depois da sua chegada ao TO da Guiné (p. 15): 

(…) – Descansa que não mataste nenhum inocente. Quem vive em casa de mato tem o rótulo… Não sejas idiota! Um soldado não deve ter um coração de pedra. Mas também não deve ser um medricas.
- Eu sei. Mas matar custa-nos sempre. (…)

Na segunda edição o diálogo foi reformulado e a última frase (... matar custa-nos sempre) desapareceu…

O comportamento debaixo de fogo também está na mira dos censores, obrigando o autor a reformular o parágrafo:

“Olhei. O Américo, que gritara, tinha desaparecido para trás. E cada qual teve a sua reação natural. Uns meteram a cabeça no chão e ficaram quietos como um coelho, Outros, de arma na cara, faziam pontaria. E não faltou até quem estivesse a ver milhares de bandidos, imaginariamente” (p. 15)…

No total, contei mais de uma centenas de parágrafos ou frases “censurados” (que interpreto como cortes ou sugestões de reformulação), marcados a lápis (com um ou outro, raro, comentário, ilegível na fotocópia): 

Parte 1  (pp. 1-43) – 23 “marcas”
Parte 2 (pp. 47-89) -  32 “marcas”
Parte 3 (pp. 89-154) – 50 “marcas”

(Continua)


[ Texto redigido em conformidade com o Novo Acordo Ortográfico... Com um abraço de apreço e camaradagem ao Armor Pires Mota, a quem convidei, em tempos, pessoalmente,  para integrar a nossa Tabanca Grande... Convite que ele agradeceu amavelmente, mas ao qual nunca chegou a dar resposta...  Lourinhã, Agosto de 2011. L.G.]
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:
 15 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias) 

16 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias) 

17 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)


(**) Vd. postes de:
 

22 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5687: Notas de leitura (56): Armor Pires Mota (1): Tarrafo e Baga-baga, duas surpresas de um combatente repórter (Beja Santos)
 

23 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5692: Notas de leitura (57): Armor Pires Mota (2): Tarrafo, o primeiríssimo relato literário da Guerra da Guiné (Beja Santos)
 

(***) Último poste da série:

26 de Setembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P8822: Notas de leitura (277): Golpes de Mão's, Memórias de Guerra, por José Eduardo Reis de Oliveira (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P8829: Agenda Cultural (159): Sopros de vida, um livro de José Lemos Vale (José Eduardo Oliveira)

 
1. O nosso Camarada José Eduardo Oliveira - JERO -, (ex-Fur Mil da CCAÇ 675, Binta, 1964/66), enviou-nos a seguinte mensagem:

SOPROS DE VIDA

Correspondendo a convite do autor, José Lemos Vale, estivemos no lançamento do seu livro “Sopros de Vida” na tarde do passado dia 24 de Setembro na livraria “Leya”, em Coimbra.



Como já foi referido no post 8803 do blogue do nosso “Luís Graça e Camaradas da Guiné” José Vale pretendeu com este seu trabalho colmatar o que referiu ser «um inaceitável apagão aos excelentes serviços e à memória dos Enfermeiros e Enfermeiras da Guerra do Ultramar.»
 Na primeira parte do seu livro deu relevo aos abnegados Enfermeiros Militares que apoiaram “no mato” os grupos de Combate.
Na segunda parte, enalteceu as Valorosas Mulheres que constituíram o Corpo de Enfermeiras Pára-quedistas da Força Aérea Portuguesa.
Na sua apresentação deu especial relevo às Enfermeiras que tiveram um papel importantíssimo na assistência aos combatentes feridos nas frentes de combate com grande abnegação e coragem, fazendo-o com particular emoção quando se dirigiu a algumas das Enfermeiras presentes: Rosa Serra, Maria de Lourdes Rodrigues, Gisela Pessoa e Júlia Mesquita.


Na mesa de honra, além do representante da Editora “Fonte da Palavra”, José Marques, esteve a Enfermeira Rosa Serra que fez uma breve declaração.
Breve mas particularmente corajosa e ajustada. «A importância da história e quanto ela pode ser injusta… Para a maioria é mais simples dar um salto por cima… ignorando o sofrimento atroz dos militares que combateram nas picadas ou matas, em territórios que estavam sob a Bandeira Nacional… Nos testemunhos relatados emergiram imagens das mais variadas situações, também vividas por mim, vezes sem conta, que fizeram sentir anda hoje, aquela vibrante dorzinha no peito por tudo o que vi naqueles olhos de sofrimento e dor, em jovens que lutavam até ao limite das suas forças, em entrega total pelo seu País.»
E mais à frente salientou: «Aos enfermeiros de terra nem sei muito bem o que dizer para além do que já tenho dito desde sempre: Foram um grande exemplo de generosidade, de valentia e de dádiva aos outros. Se a Pátria não os lembra… só me resta pedir a Deus que os abençoe e proteja, pelo bem que fizeram a tantos jovens portugueses que deram tudo, até o bem mais precioso – sua vida.»
Em nome das Enfermeira Rosa Serra agradeceu a José Vale todos os elogios que se dignou fazer-lhes, divulgando o seu pequeno contributo. «Digo pequeno, pois realmente éramos poucas, que chegássemos a todas as frentes de batalha.»

Não apoiado dizemos nós. As Enfermeiras tiveram um papel muitas vezes decisivo na assistência aos combatentes feridos no mato, que permitia que chegassem com vida aos Hospitais, onde havia meios mais adequados para os tratar e salvar.
José Lemos Vale, que no início da apresentação do seu livro, ofereceu ramos de flores às Enfermeiras Pára-quedistas presentes, vai ser em breve submetido a uma cirurgia.
Que tudo lhe corra bem e que durante a convalescença que se vai seguir vá pensando no seu próximo livro.
Até lá… um abraço e um sopro. De Vida.
JERO

Fotografia tirada em Coimbra em 24 de Setembro de 2011.

Atrás do fotógrafo em 1º. Plano está o ocupante da maca ao fundo, à esquerda, o Ten. Piloto Aviador Miguel Pessoa no dia em que foi resgatado da mata de Guileje há 38 anos. No dia 26 de Março de 1973, seria evacuado de helicóptero para o HM 241, de Bissau, acompanhado da que iria ser mulher da sua vida, a 2º. Sargento Enfermeira Pára-quedista Giselda Pessoa.

38 anos depois… quem é que havia de dizer !?


Para mais tarde recordar, de frente para a “câmara”, da esquerda para a direita: As Enfermeiras Júlia Mesquita Lemos, Giselda Pessoa, Maria de Lourdes Rodrigues, Rosa Serra e o Coronel Pil. Aviador Miguel Pessoa. Foto tirada na Rua Ferreira Borges, em Coimbra, na tarde de 24 de Setembro de 2011.

Fotos:© José Eduardo (2011). Todos os direitos reservados

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Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em

26 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8820: Agenda Cultural (158): Ciclo de Conferências-debate Os Açores e a Guerra do Ultramar - 1961-1974: história e memória(s) (Carlos Cordeiro) (6): Prosseguindo com o ciclo de conferências, haverá nova sessão no próximo dia 30 de Setembro de 2011, pelas 17h30 no Anfiteatro B da Universidade dos Açores 


Guiné 63/74 - P8828: As Nossas Madrinhas de Guerra (6): Ainda guardo as fotos que ela e a irmã tiraram em Saint-Tropez e me enviaram para a Guiné (Juvenal Amado)

1. Mensagem de Juvenal Amado*, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 26 de Setembro de 2011:

Caros camaradas
Eu conheci a minha mulher depois do regresso, portanto a minha vivência até a conhecer foi povoada por mulheres com que convivi na adolescência, que ajudaram no período da minha comissão e que não posso de maneira alguma esquecer.
Mostrar-me grato, falar delas é uma prova do respeito e do carinho que ainda hoje guardo por todas.

Um abraço
Juvenal Amado


A GUERRA E AS NOSSAS MADRINHAS

Nas noites deitado com o suor a empapar-me o lençol, o silêncio era só quebrado pelo roncar do gerador. Revejo mentalmente a minha família, os amigos os e lugares.

Acabei de ouvir uma cassete com a sua voz e músicas que me dedicou. Falava lentamente, arredondando e procurando as palavras correctas. Não poucas vezes parava a meio de uma frase, misturava o inglês com português, o que resultava como se de música para os meus ouvidos se tratasse. Black Magic Woman do Santana, uma das músicas que ela tinha para mim gravado, ainda me faz recuar no tempo.
A voz dela que tinha perdido as inflexões próprias da nossa língua.

Quando saiu de Portugal, rapidamente se afastou dos locais onde os imigrantes se concentravam e mantinham embora num pais distante, os costumes da sua terra de origem. Ao contrário dela, muitos dos que foram em busca de melhor vida, nunca se integraram, não aprenderam a falar a língua, nem saíram dos bairros onde se sentiam protegidos de perigos imaginários. Assim muitos voltaram mais tarde às suas terras, como se de cá nunca tivessem saído, a não ser economicamente mais fortes, roupas mais ao menos espampanantes, com reformas mais robustas e duas ou três palavras, que repetiam por tudo e por nada, num francês ou inglês de qualidade duvidosa.

Dentro do abrigo > Da esquerda para a direita: Aljustrel, Ermesinde, eu e o Caramba

Há dias encontrei no FaceBook uma amiga e ex-vizinha que imigrou e não vejo nem falo há 43 ou 44 anos. Pedi-lhe amizade ao reconhecê-la numa foto e foi com notória alegria que ela me respondeu poucas horas depois. Tem hoje um nome estranho devido ao casamento, efeito da plena integração na vida e cultura do país que a acolheu desde os 15 anos. Os filhos não sabem falar a língua de Camões, nunca cá vieram e possivelmente nunca virão conhecer a terra do seus avós, uma vez que toda a cadeia familiar se quebrou há muitos anos. Não sabem que ao não conhecerem a nossa língua, dificilmente conhecerão o nosso sentir, os nossos sonhos, o nosso passado e dificilmente farão parte do nosso futuro como nação.

Ainda guardo as fotos que ela e a irmã tiraram em Saint-Tropez e me enviaram para a Guiné.

Ali estou de olhos pregados no tecto do abrigo, com o calor que as grossas paredes absorveram durante o dia, agora expandem para o interior, e com a saudade a tomar de assalto os meus sentidos, vou ouvindo a música.

Naquela atmosfera parada o suor escorre das axilas e das têmporas por trás da orelhas e não há nada que possa fazer para o evitar. Opto por nem mexer um músculo.

Ouvi a cassete tanta vez, que já havia quem com humor à mistura, dissesse sonoramente para todos ouvirem, «outra vez??????» A «privacidade» da caserna tem destas coisas.

Era quase dolorosa a memória dos bailes a gira-discos ou do Ginásio, nos contactos saborosos dos nossos corpos, a cumplicidade do nosso par, o roçar de uma perna, de um dos seios ou rosto, bem como a sua suave respiração junto ao nosso pescoço. As promessas que ficavam no ar, praticamente difíceis de concretizar nas normas da época, eram mesma assim de sabor intenso.

Eram momentos mágicos.

Hoje esses momentos ocupam um lugar na memória. Com algumas escrevi-me durante a minha comissão, outras nunca mais as vi, seguiram o seu caminho, com mais ou menos sobressaltos, outras nunca as conheci fisicamente. Quando nos encontramos, não passamos do cumprimento mais ao menos de circunstância.

O tempo se encarregou de limar e pôr no lugar, a nossa juventude que tão depressa passou.

Juvenal em Galomaro

Guardo a memória daqueles dias como se tratassem de jóias muito raras, consciente de que a vida é um rio que corre sem parar, que se divide ou não, mas vai sempre desaguar no Mar. Vive-se como se não houvesse um fim, mas pouco a pouco a memória torna-se como uma vidraça de janela, que fica no Inverno embaciada pela condensação. Por vezes com a mão fazemos desenhos no embaciado, como quando éramos crianças. Logramos assim ver mais claro para o exterior de nós mesmos.

O passado é única certeza, o futuro será sempre uma incógnita, e à medida que vamos esquecendo, só fica o que deixamos escrito como testemunho das pequenas coisas da nossa vida.

A importância disto só ficará provada quando alguém se rever nos nossos anseios, desejos e vivências.

Há dias sentado numa mesa, tomei café com ela. Voltei a ouvir a voz da gravação que em Galomaro me suavizou aqueles dias duros.
Falou pausadamente, procurou palavras que não usa normalmente, navegou titubeante dentro da nossa gramática, pediu-me ajuda quando não se conseguia expressar, mas era a mesma voz doce que me enviou a cassete.
Bebi cada palavra como fosse água da fonte da juventude.

Não a via há 26 anos, possivelmente voltarei a estar com ela no próximo o ano, ou talvez não. Quem sabe? Por agora vou limitar-me a ouvir Santana no seu Black Magic Woman.

Juvenal Amado
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 2 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8727: Blogpoesia (159): O Mar que nos levou (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 21 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8310: As Nossas Madrinhas de Guerra (5): Avé-Maria do Soldado (Manuel Sousa)

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8827: Convívios (376): 3.º Encontro da CART 6254 realizado no dia 17 de Setembro de 2011 em Vila Nova de Gaia (Manuel Castro)

3.º ALMOÇO/CONVÍVIO DA CART 6254, REALIZADO NO DIA 17 DE SETEMBRO DE 2011 EM VILA NOVA DE GAIA



1. Mensagem do nosso camarada Manuel Castro (ex-Fur Mil Mec da CART 6254 - Os Presentes do Olossato, Olossato, 1973/74), com data de 24 de Setembro de 2011:

Meu caro Carlos Vinhal,
A CART 6254, que esteve no Olossato entre Março de 1973 e Julho de 1974, realizou no passado dia 17 de Setembro de 2011 o seu 3.º Almoço/Convívio.

O programa iniciou-se, junto ao memorial dos combatentes, no Quartel da Serra do Pilar em Vila Nova de Gaia, com uma cerimónia em homenagem aos camaradas que tombaram em combate. Para o efeito o Sr. Comandante do Regimento disponibilizou as instalações e uma pequena força militar devidamente comandada pelo Sr. Capitão Oficial de Dia à Unidade.

A cerimónia terminou com a deposição de uma coroa de flores no memorial.
De seguida, foi celebrada uma missa em memória dos ex-combatentes já falecidos.

Terminadas as cerimónias, no RAS (Ex-RAP 2), o grupo seguiu para o restaurante onde almoçou e passou o resto da a tarde em franco convívio. Estiveram presentes no evento 58 ex-combatentes e 49 familiares.

Saiu toda agente muito bem disposta e com a vontade de, anualmente, repetir o acontecimento que passará a realizar-se no segundo Sábado de Setembro de cada ano.

Um Grade abraço
Manuel Castro
(Ex-Furriel Mecânico da Cart 6254)

Momento da deposição da coroa de flores junto ao Memorial

A Força presente no momento da homenagem aos mortos

Convívio à mesa

Convívio na Parada
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8804: Convívios (369): XVIII Encontro da CCAÇ 727, dia 8 de Outubro de 2011, no RI 3 de Beja

Guiné 63/74 - P8826: Contraponto (Alberto Branquinho) (40): Assim foi o primeiro Encontro da Tabanca de Setúbal

1. Em mensagem do dia 25 de Setembro de 2011, o nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), mandou-nos o seu Contraponto 40 que narra como só ele sabe o primeiro Encontro da Tabanca de Setúbal.

CONTRAPONTO (40)

Assim foi o Primeiro Encontro da “TABANCA DE SETÚBAL”
(em VI Capítulos e 2 P.S.)


I
A aparição

Tudo aconteceu ao início da tarde de Sábado, dia 24 de Setembro e sem qualquer planeamento e organização. Em Setúbal, claro!
Estava o Zé Diniz (seraficamente!) a almoçar, em profunda meditação transcendental (apesar de acompanhado), olhando o prato, procurando decidir qual das sardinhas atacar, quando ouviu vozes vindas do tecto, chamando: “Zé Diniz… Zé Diniz…”.
Aqui…


II
…entro eu em cena

Já tinha eu passado junto à mesa, a caminho do W.C. e questionei-me:
- É o Zé Diniz… Aqui? Não deve ser. Tão calado, insonorizado, bem comportado. Bem, quando voltar, vejo melhor.

Regressei à sala. Olhei-o. Ele? Absorto, com o som desligado?
- Será mesmo o Zé Diniz, assim em posição OFF?

Espreitando pelo canto do olho e fixando o tecto, ciciei: “Zé Diniz…Zé Diniz…”


III
O reconhecimento

Foi assim que o final do capítulo I se encontrou com o final do capítulo II e houve…


IV
O pulo do Zé Diniz

Ele voltou levemente a cabeça na minha direcção, olhou-me com olhos entre ausentes e interrogativos e – de imediato! – pulou da cadeira e abafou-me com um abraço. Como não pude ver o que fez à faca (que tinha na mão direita) pensei que a tinha espetado nas minhas costas. Alívio… a faca estava em cima da mesa.

Então falámos, falámos: tu? aqui? porquê? etc., etc.. E veio o Hélder Sousa à lembrança. Setúbal, pois!


V
O Hélder

Voltei à mesa onde estava com a minha patroa e ele ficou com a dele, mas íamos olhando olhares de quem estava a falar de coisas. A certa altura diz-me: - Telefonei. Vem aí o Hélder.

Fomos para a porta. Chegou o Hélder. Atarefado. Excitado. Ocupado com assuntos vários. Falou, falou. Falámos, falámos. Por vezes ao mesmo tempo. Recordou. Esteve uns… dez minutos e, contrariado, teve que ir embora.


VI
E foi assim o 1º. Encontro da “Tabanca de Setúbal”.
Foi pouco tempo, mas… salvaram-se algumas sardinhas.

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P.S. 1 – Peço desculpa por este encontro não ter sido exactamente como todos os outros. Nem sequer houve fotos do acontecimento.
P.S. 2 – As minhas desculpas ao Zé Diniz e ao Hélder…

Alberto Branquinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8773: Contraponto (Alberto Branquinho) (39): O tempo está embrulhado

Guiné 63/74 - P8825: Parabéns a você (318): Luís Borrega, ex-Fur Mil Cav MA, CCAV 2749/BCAV 2922 (Piche, 1970/72)

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Notas de CV:

- Luís Borrega foi Fur Mil Cav e MA na CCAV 2749/BCAV 2922 que esteve em Piche nos anos de 1970 a 1972

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8801: Parabéns a você (317): Coronel Ref Coutinho e Lima (Guiné, 1963/65; 1968/70 e 1972/73), e Raul Albino, ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8824: Filhos do vento (5): A família do falecido Dauda, protegido do saudoso Cap Zé Neto (CART 1613, Guileje, 1967/68)...



Guiné-Bissau > Bissau > Sede da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento > 2011 > Duas das filhas do Dauda, o mulatinho de Guileje, mascote da CART 1613 (Guileje, 1966/68), protegido do nosso saudoso Zé Neto... "[O Dauda] morreu recentemente e deixou três filhas, a Paula de 12 anos, a Segunda de 10 e a Fátima de 8, 'netinhas' da Júlia Neto", segundo notícias dadas pelo nosso amigo Pepito no princípio do ano de 2010. Devia ter 40 e tal anos, tendo nascido em meados de 1960...


1. Mensagem enviada pelo Pepito à nossa amiga Júlia Neto, em 20 do corrente, com conhecimento à nossa Tabanca Grande, de que os dois fazem parte:

Olá, Julia

Aqui vai uma fotografia das suas "netas", aqui de Bissau.


Quando perguntei à Paula, a mais velha, se sabia para quem é que eu ia enviar a fotografia, respondeu-me logo:
- Para a minha dona Júlia (em crioulo chamamos aos nossos avós de dona)

abraços

pepito



Guiné-Bissau > Bissau > A família do falecido Dauda, que vive hoje em Bissau... Na foto, a viúva e a filha mais velha...  

Foto: © Pepito / AD - Acção para o Dsenvolvimento (2011). Todos os direitos reservados. 


2. Legenda:  A descendência do Dauda sente o abraço de Júlia Neto

"Djenabu Fati e a sua filha Paula Veiga da Fonseca, mostram toda a sua alegria ao terem recebido lembranças da mãe Júlia que continuou nelas o amor filial que o grande Capitão José Neto sempre nutriu pelo Dauda V..., de Guiledje.

"Quando o Capitão começou a colaborar com a Iniciativa de Recuperação de Guiledje, a única coisa que pediu foi: 'Procurem e encontrem-me o Dauda, filho abandonado por um militar que tinha estado neste quartel e que sempre tratei como um filho e que gostaria de voltar a ver'.

"Para ele,  Capitão Neto, com aquele coração enorme que tinha, nunca conseguiu perceber como se pode abandonar uma criança pequena e desinteressar-se definitivamente dela.
A sua mulher Júlia Neto veio a Guiledje e encontrou a mulher e as filhas do Dauda e … perfilhou-as imediatamente. A família Neto, toda ela, tem um coração de ouro".

[Fonte: AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > 21 de Agosto de 2011]


Foto: © Pepito / AD - Acção para o Dsenvolvimento (2011). Todos os direitos reservados.



3. A história do Dauda [, foto acima, ] já aqui foi contada pelo nosso saudoso Cap Zé Neto (1929-2007) (vd.poste da I Série > 21 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda V... )

(...) III parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e que morreu em 2007, como capitão reformado; foi o primeiro membro da nossa Tabanca Grande a deixar-nos).

(...) Dauda V...

Como já escrevi, eram todos de etnia fula, de raça negra, com excepção de um menino mestiço. Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa.

Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por V..., apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine. Ainda hoje, quando revejo as dezenas de fotografias que fiz do garoto, acho que poderíamos anteceder S... a V...

Foi pela minha mão que o miúdo deu os primeiros passos. E foi por ele que, suponho, arrisquei a vida quando, num ataque bem apontado, as morteiradas atingiram a zona da cozinha, lenheiro e depósito de géneros.

Ao correr para o abrigo ouvi o choro duma criança. O V... tinha jantado connosco, como de costume, e tive a quase certeza de que era ele. Retrocedi e apanhei-o junto ao coberto que servia de messe de sargentos. Arrastei-o até à entrada do abrigo e, uns instantes depois, uma granada explodiu no monte de lenha a menos de quatro metros de distância, projectando cavacas em todas as direcções.

Dos meus troféus faz parte a empenagem que sobrou dessa granada, que nunca limpei, e que a minha mulher resmunga que só serve para sujar o móvel onde está. Não é que suje, mas também nunca me apeteceu contar-lhe a história desse bocado de ferro com alhetas e terra empastada. (....)

4. Comentário de L.G.:

O tema, subjacente a esta série, tem alguma delicadeza mas não deve ser visto como tabu... Nada na guerra da Guiné (1963/74) deve ser visto como  tabu, desde que se respeitem as regras do nosso blogue... Muito em especial, devemos ter o cuidado de preservar/proteger a identidade de pais e crianças... Penso que neste caso há "consentimento informado" por parte da família do Dauda, que infelizmente já morreu, com 40 e poucos anos... Extraordinária foi a atitude da nossa querida amiga Júlia Neto que, aquando da sua visita à Guiné-Bissau, em Janeiro de 2010, fez questão de conhecer e ajudar a família do Dauda... É uma história de grande nobreza humana...

De qualquer modo, é bom relembrar que em caso algum o nosso blogue pode ser usado para fazer "investigações de paternidade"... nem muito menos "juízos de valor" sobre o comportamento de qualquer camarada (, categoria que abrange todos os operacionais até ao nível de comandante de companhia)... Infelizmente esta regra (de ouro...) nem sempre tem sido devidamente respeitada nosso blogue, a começar por mim, o que lamento profundamente. O nosso blogue deve basear-se numa relação de confiança, entre todos nós, ex-combatentes, os vivos mas também os mortos... Acusações, insinuações, juízos de valor sobre o comportamento (humano e operacional) de um camarada em relação a outro camarada quebram essa relação de confiança... E isso pode ter um efeito deletério, e pôr em causa a natureza e a especificidade do nosso blogue... Muito em particular, deve haver um grande respeito pela memória dos mortos. (LG)
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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P8823: Filhos do vento (4): Eu, provável mulato, de quarta geração... (Jorge Cabral)

1. Comentário, ao poste P8818 (*),  do pai do Alfero Cabral, que eu tive o privilégio de conhecer na Guiné em carne e osso, tanto o pai como o filho (que posso garantir não ser de "vento":  vd. foto à esquerda, em pose de régulo, com três bajudas mandingas de Fá):

 
Fornicadores compulsivos? Tenazes emprenhadores? Pais de multidões mestiças? Ena,  pá, o que para aí vai!

Arrisco afirmar que a maior parte dos militares portugueses nem sequer experimentou… sim, a principal actividade sexual desempenhada foi manual…

A oferta a nível de prostituição era escassa. Bafatá possuía menos profissionais do que qualquer Rua do Bairro Alto de então… As bajudas,  muito controladas e vigiadas, pois a virgindade constituía um valor a preservar. Algumas mulheres casadas, faziam o jeito… Mas quase nunca de forma exclusiva.

Nasceram alguns mestiços. E daí?

As mulheres adúlteras podiam ser repudiadas ou então os filhos eram considerados do marido, como aliás ainda sucede no nosso direito, em obediência ao velho princípio romano – "Pater est quem justae nuptiae demonstrant …" [ Pai é quem o casamento indica]. 

Mestiços existiram sempre na Guiné… Mestiços aliás, somos nós todos e os Fulas são um bom exemplo. Até o "Homo Sapiens" se cruzou na Península Ibérica, com o "Neandertal", como provou a descoberta do "Menino do Lapedo".

Quando um Homem vai para Tropa vai inteiro, não deixa o aparelho genital em casa… Antigamente os bordéis acompanhavam os exércitos … e em Portugal localidades onde existiam quartéis dispunham de abundante oferta sexual. Quem passou por Vendas Novas deve ter reparado numa rua, designada "Rua das Moças", na qual durante décadas viviam as ditas… uma espécie de Bairro Vermelho Alentejano.

Em miúdo, descobri uma velha fotografia da bisavó Francisca.  Tendo-lhe notado a cor morena e o cabelo crespo, perguntei: 
- A Avó era preta? 

Bem, ia levando uma galheta, como o Avô chamava às bofetadas, valendo a intervenção da Avó Maria… que explicou que a Mãe fora concebida numa noite muito escura… Só anos mais tarde descobri a existência do criado Simião, gigantesco negro que com os patrões viera do Brasil. Do que lhe sucedeu não sei… Segundo o Avô que substituíra a linguagem comum pela terminologia militar e chamava pré aos dez tostões que me dava, [o Simião] recebeu guia de marcha… 

Pois é, se calhar sou um mulato de quarta geração… Que trauma!

Jorge Cabral

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 25 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8818: Filhos do vento (3 ): Vi muito poucos mestiços... (J. Pardete Ferreira)