
Queridos amigos,
O Boletim Geral do Ultramar veiculava posições governamentais e a sua leitura permite conhecer o que se filtrava e o valor das omissões. Este texto centra-se no período embrionário da guerra, desde as primeiras manifestações e à subversão. Os políticos passam pela Guiné meteoricamente, é até de admitir que não se apercebessem daquela fúria avassaladora que tomou conta dos acontecimentos no Sul, logo no início do ano. As preocupações maiores centravam-se em Angola e já se previa Moçambique, como deixam antever as visitas ministeriais de 1963. A Guiné é ainda uma nebulosa, ninguém tem consciência do seu peso nas lutas pela independência.
Um abraço do
Mário
A guerra da Guiné no Boletim Geral do Ultramar (1)
Beja Santos
O Boletim Geral do Ultramar era o porta-voz da ideologia do regime, era uma publicação com inúmera informação, tinha mesmo dados estatísticos, artigos de história com propensão para a divulgação, secção de artes e letras, mas no fundamental funcionava como uma correia de transmissão do pensamento de Salazar e das ações do Ministério do Ultramar.
A sua leitura não provoca grandes surpresas, para quem procura registar as suas tomadas de posição e detetar informação marginal que escapasse ao pensamento oficioso.
Escolhe-se, nesta primeira abordagem, o período crucial de 1961 a 1963: a Guiné já entrou em agitação, os países limítrofes já anunciaram guerra sem quartel ao colonialismo, em Conacri o apoio é inicialmente indiferenciado, enquanto no Senegal o regime de Senghor protege preferencialmente os movimentos pro-guineenses. Os quadros da guerrilha do PAIGC estão a caminho da Academia Militar de Nanquim, na China. O movimento de manjacos liderado por um dirigente que falava exclusivamente francês, ataca, em Julho, S. Domingos e a seguir Suzana e Varela. Os contingentes militares são reforçados, a PIDE instala-se e dinamiza o sistema de informações. 1962 é o ano da ideologização e subversão internas, em Março Rafael Barbosa será detido, entre outros dirigentes. No final do ano, a destruição metódica começa a tomar conta do Sul e em Janeiro, para completa surpresa dos quadros militares portugueses, a guerrilha ataca Tite, instala-se no Morés e nas matas do Corubal. O cônsul português em Dakar negoceia com Senghor uma autonomização progressiva liderada por guineenses do movimento de Benjamim Pinto Bull, Salazar chega a recebê-lo e depois descarta esta hipótese: o Ultramar tornara-se inegociável. O governador da Guiné não se entende com o comandante militar, este considera a Guiné perdida. A guerrilha progride com êxito, as etnias tomam partido. Aos poucos, os terrenos de manobra definem-se, uma maioria ainda impressiva está do lado dos portugueses, os mais velhos não esqueceram as guerras da pacificação.
Adriano Moreira visita a Angola durante 20 dias, em Maio de 1961, no regresso passa meteoricamente pela Guiné. O Boletim refere esta viagem. O ministro é cumprimentado pelos sobas (!) no aeroporto e no Palácio do Governo. Viaja até Mansoa e é aclamado em Nhacra. Seguiu-se uma visita a Bafatá, onde discursou: “Não quis perder a oportunidade de, nesta terra portuguesa da Guiné, afirmar a solidariedade de todos os portugueses contra as ameaças e agressões que vêm do exterior (…) Continuaremos a dar a todos os que por estas latitudes procuram um rumo, exemplos como o da erradicação da lepra, da luta contra a doença do sono, contra a malária, em suma, da luta contra a miséria e o medo”. E regressa prontamente a Lisboa.
No número de Agosto-Setembro, o Boletim refere os acontecimentos de Julho passado. Começa por dizer que houve em 21 de Julho um ataque ao aquartelamento (!) de S. Domingos. Os terroristas foram repelidos com firmeza. “Eram 50 indivíduos provenientes do Senegal armados com espingardas”. Segue-se o ataque a Varela, os agressores foram computados em 200, cortaram o fio telefónico e causaram estragos em algumas moradias de veraneantes. A informação sobre Suzana é muito magra. Segue-se o texto das notas trocadas acerca da alegada violação do Senegal por aviões portugueses, o Senegal queixara-se da violação do seu espaço aéreo em 18 de julho.
O governador Peixoto Correia falou aos guineenses: “Atente-se na manifestação dos habitantes dos bairros populares de Bissau para exprimirem a sua lealdade à nação e a sua repulsa pelas incursões, na exposição de alto sentido patriótico dos munícipes de Bolama, nas declarações dos régulos, de notáveis e da população em geral e, de modo particular, no oferecimento de um chefe gentílico para, com os manjacos do seu e outros regulados, participar nos efetivos militares em operações”.
O Boletim refere igualmente o corte de relações do Senegal em 25 de Julho, dando como pretexto atividades ilícitas conduzidas por Portugal no Senegal, sobrevoo do território senegalês e recusa do governo português em abandonar a província da Guiné. É também publicado o teor da resposta do governo português, contestando toda a argumentação de Dakar. Adriano Moreira volta à Guiné, em 1 de Novembro, no culminar de um périplo que começou em Moçambique. Visitou no mesmo dia Bissau e Bolama, à noite jovens estudantes ofereceram-lhe uma serenata à porta do Palácio, o Boletim publica fotografia.
Em 1962, temos uma nova visita de Adriano Moreira, em Agosto, vai seguir para Cabo Verde. Diz laconicamente aos meios de informação: “É uma oportunidade para tratar com o senhor governador da Guiné de alguns problemas correntes”. Em companhia de Peixoto Correia, Adriano Moreira visitou as localidades que estiveram mais expostas aos ataques de 1961. No termo da sua rápida visita, Adriano Moreira condecorou Peixoto Correia com a medalha de ouro dos serviços distintos. Há total omissão sobre o larvar da guerrilha e o crescente reforço militar.
Estamos já em 1963, em 12 de Agosto, Silva Cunha, subsecretário de Estado da Administração Ultramarina faz uma visita de estudo à Guiné. É recebido pelo governador, comandante Vasco Rodrigues: visita Mansoa, Bolama, Catió, Fula Cunda e Pelundo. Escreve-se no Boletim “Em Catió, no centro da zona de atuação dos terroristas no Sul da Província, verificou que a população continua a fazer normalmente a sua vida, embora perturbada por vez pela interferência subversiva”.
No remate da sua viagem, teve uma grande manifestação pública organizada pelo jornal O Arauto. Discursaram Alfa Umaru, chefe fula, o comerciante Carlos Gomes, José Demba, funcionário público, entre outros. Silva Cunha terminou o seu improviso dizendo: “Havemos de vencer!”.
Este Boletim, como se vê, não dá oportunidade a descobertas de vulto, permite ler através das omissões, o que não se diz à opinião pública, nomeadamente a militarização e o nível de ofensiva de guerrilha.
Não se deve confundir o Boletim Geral do Ultramar com a revista Ultramar, esta tem outras características, como oportunamente passaremos em revista.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9439: Notas de leitura (329): Francisco Caboz, A Construção e a desconstrução de um Padre, por Horácio Neto Fernandes (Mário Beja Santos)