
Queridos amigos,
O documento do ministro Silva Cunha é do maior interesse.
Pelo enquadramento que pretende dar à era da descolonização e à resposta de Salazar, enunciando as diretrizes tomadas para a defesa militar, para as relações com os estados africanos, no caso em apreço, a Guiné.
Pela orientação que procurou imprimir no Ministério do Ultramar e as medidas de desenvolvimento tomadas durante o período da guerra.
Pelo olhar sobre a evolução dos acontecimentos da Guiné e as explicações que dá, aparentemente pouco dramatizadas.
Defensor acérrimo do ideário de Caetano, entrará em conflito com ele depois do 25 de Abril, e não será propriamente por causa da defesa do Ultramar.
Um abraço do
Mário
Silva Cunha e a Guiné (2)
Beja Santos
“O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, de Silva Cunha, Atlântida Editora 1977, acolhe o depoimento político de alguém que esteve no governo entre 4 de Dezembro de 1962 até 25 de Abril de 1974, desempenhou funções durante cerca de 12 anos fundamentalmente na área do Ultramar Português. O seu testemunho é irrecusável a qualquer estudioso que procure entender a política de Salazar e Caetano a partir da grande vaga descolonizadora que assolou Africa e a Ásia. Silva Cunha, na continuação do que se disse no texto anterior, visita a Guiné em 1972, na altura em que uma comissão ONU percorreu regiões libertadas, e apresentou relatório em Nova Iorque. Para Silva Cunha, o relatório não convenceu ninguém mas serviu de pretexto para ativação da campanha em favor de Amílcar Cabral. E passa logo no seu escrito para os ataques a Guidage, Guileje e Gadamael. Spínola enviou para Lisboa conclusões pessimistas desta fase ofensiva do PAIGC: - o inimigo dispunha de equipamento superior ao das nossas forças; havia o risco de passar da guerra subversiva para a guerra do tipo convencional, em que, em tese, era de admitir meios aéreos e blindados para os quais não dispúnhamos de meios de defesa suficientes; o inimigo emprenhava-se em levar-nos ao colapso militar.
O relatório provocou grande alarme em Lisboa, Costa Gomes deslocou-se à Guiné e no seu regresso realizou-se uma reunião magna para apurar a evolução dos últimos acontecimentos. Costa Gomes insistiu muito sobre a necessidade de uma remodelação do dispositivo das nossas forças, reforçando as tropas de intervenção à disposição do Comando-Chefe, mesmo que fosse necessário aligeirar a extensão da quadrícula. “Assinalou também a existência de desproporção entre os nossos meios e os do inimigo e pôs em relevo o perigo que se verificaria se essa desproporção se acentuasse principalmente pela utilização de meios aéreos. O Presidente do Conselho pôs-lhe, então, formalmente o problema de saber se, como responsável operacional supremo, considerava que a situação impunha o abandono da Província. A resposta foi que, se não se desse nova escalada nos meios do inimigo, estávamos em condições de continuar a defender o território, mas que era necessário fornecer mais meios humanos e materiais ao Comandante-Chefe e remodelar o dispositivo das nossas forças”.
Certamente esquecido que Amílcar Cabral fora assassinado em 20 de Janeiro desse ano, atribui-lhe a intensão de proclamar a independência do território e refere ainda: “Chegavam-nos notícias de fortes divergências no seio do PAIGC, dividido entre os adeptos daquela orientação e os que alinhavam com Sekou Touré, que queriam que a independência fosse imediatamente proclamada. Não estão bem esclarecidas as circunstâncias deste conflito mas venceram os partidários de Touré”.
São largas e abundantes as referências que Silva Cunha tece à Guiné. Faz mesmo o historial do seu relacionamento com todos os governadores a partir de Silva Tavares, em 1958. Lembra que se convidou James Pinto Bull para Secretário-Geral da Guiné, após a Lei Orgânica de 1963, para dar um sinal de participação dos autóctones na coisa pública. Refere a FLING e o seu papel efémero, as desavenças entre Vasco Rodrigues, o governador, e Louro de Sousa, o comandante-chefe, de quem Silva Cunha não tinha boa opinião e que lhe deixara uma deplorável impressão quando numa reunião com diversos membros do governo iniciou a sua exposição declarando não saber o que estava a fazer na Guiné. Elogia o trabalho de Schulz e como este encetara uma política de desenvolvimento económico, de promoção social e de criação de infraestruturas básicas, a despeito de inúmeras vias estarem inacessíveis pela presença da guerrilha. E assim se chegou ao consulado de Marcello Caetano e às eleições de 1969 que o chefe do Governo queria que fossem disputadas honesta e livremente e que constituem-se um referendo sobre a política ultramarina a que se seguiu a revisão constitucional de 1971 que levou à criação de províncias ultramarinas com estatutos próprios como regiões autónomas, podendo ser designada por Estados, elemento de enorme ficção entre os apoiantes do regime. Refere pormenorizadamente a questão das forças armadas no tocante à indústria e aos efetivos. Sendo notória a escassez de oficiais e sargentos dos quadros permanentes, estudou-se a abertura dos quadros permanentes aos oficiais dos quadros de complemento que tivessem boas informações de serviço, sistema que era vivamente preconizado por Costa Gomes. Passo a passo, vai acender-se um conflito que levará à constituição do Movimento das Forças Armadas. O general Spínola também protestava com a deficiente preparação das tropas e a inadequação da orgânica das pequenas unidades ao tipo de guerra de guerrilhas. O IAO, ficou decidido, começaria a ser dada na Guiné. O Estado-Maior do Exército ficou incumbido de estudar e apresentar uma nova proposta para a orgânica das companhias que levou anos e nunca se concluiu.
Em Novembro de 1973, Silva Cunha é transferido da pasta do Ultramar para a Defesa Nacional, explica minuciosamente o que fez e procurou fazer. A Guiné era o quebra-cabeças, havia que adquirir material de defesa antiaérea, mísseis terra-ar denominados Red Eye e para a Força Aérea eram necessários aviões convencionais de transporte, de reconhecimento e ataque ao solo, helicópteros e caças-bombardeiros a jato; para o combate terrestre eram urgentes morteiros de 120, sobretudo. E escreve, acerca da compra do material: “Quanto aos mísseis, iniciaram-se, em Dezembro de 1973, negociações com os americanos, aproveitando o ensejo favorável resultante das facilidades concedidas pelos Açores. Quanto à aquisição de armas coletivas, a França fabricava-as – os mísseis Crotale – e fomos informados de que estava disposta a vender-no-las. O contrato foi fechado com a empresa produtora, estando prevista a entrega em duas fases, a partir de Maio de 1974. Foi mais difícil resolver o problema dos mísseis individuais. Em Março de 1974, iniciaram-se as negociações para a aquisição de um lote de 500 Red Eyes que nos foi oferecido por uma firma europeia. Chegou-se a assinar a carta de intenção e a abrir os créditos necessários”.
Silva Cunha refere ainda o fabrico de um lança-granadas foguete do tipo RPG2, ter-se-á encarado a hipótese do fabricar em Portugal. A última referência explícita à Guiné tem já a ver com o general Bethencourt Rodrigues, tomou posse como governador foi inteirar-se da situação e veio a Lisboa. “Expôs-me e ao Presidente do Conselho como encarava a situação e a ideia da manobra para a dominar. Indicou os meios de que necessitava. Foi-lhe concedido, do existente, o mais que se pôde e deu-se-lhe conhecimento das aquisições em curso para reforçar o nosso potencial militar. Regressou confiante e, na Guiné, no primeiro trimestre de 1974, a situação continuou sem alterações sensíveis, mantendo-se a expetativa do risco da nova escalada no inimigo, mas sabendo-se que tudo se encaminhava para se dispor de meios que lhe permitissem fazer frente”.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 14 de Maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9896: Notas de leitura (360): Marcello Caetano, Silva Cunha e a Guiné (1) (Mário Beja Santos)