segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10427: Blogues da nossa blogosfera (55): Memórias de Bissum-Naga, no blogue de Quim Santos (CCAÇ 2781, 1970/72)











Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2465 (1969/70) > De cima para baixo: (i)  lavadeira, (i) ajudantes de cozinha descascando batas; (iii) crianças á espera das sobras do rancho; (iv) milícias; (v) tabanca, reordenada.

Fotos: Aníbal Magalhães (2009). Cortesia de Quim Santos







"Este Blog foca memórias sobre a guerra colonial, destina-se ao público em geral e aos ex-combatentes em particular", aos militares do BCAÇ 2927 e especificamente à CCAÇ 2781 /(Bissum, 1970/72)...

"Vamos recordar aquele período das nossas vidas passado na Guiné, em particula na zona de Bissau, Bissalanca, Cumeré, Bissorã e Bissum, onde estivemos destacados. Qim"..
.

Fonte: Guiné Bissau - Memórias, blogue de Quim Santos



 1. O Quim Santos - pseudónimo, Verdegaio - vive na Póvoa do Varzim, tem 12 blogues, está no Blogger desde 2007. O nosso grã-tabanqueiro Armando Pires já em tempos se tinha referido ao Quim Santos e a este blogue, tendo inclusive cedido uma série de fotos relativas à chegada dos "piras" do BCAÇ 2927 a Bissorã. E antes do Armando, já o Quim Santos tinha aparecido por aqui a informar-nos da existência do seu blogue e da sua estadia em Bissum, entre finais de 1970 e finais de 1972, como homem das transmissões da CCAÇ 2781.


Em resumo, já anteriormente estava assinalada a existência deste blogue, representando mais um ponte entre o nosso presente e o nosso passado. Metaforicamente falando, um blogue de um camarada nosso deve ser saudado como mais uma estrela no firmamento das nossas memórias. Mas, o que acontece à maior parte deles, é que têm uma vida curta, um trajeto meteórico pela blogosfera. Deixam de ser atualizados, em geral por falta de "matéria-prima" para alimentá-los...Ou então acabam por ser "destronados" pelo Facebook, hoje mais populae que os blogues...

É o que parece ter acontecido a este blogue do Quim Santos. Deixou de ser atualizado a partir de 25 de abril de 2011. Mas, no caso do Quim Santos, o problema pode ser outro: com doze blogues, mais o Facebook, o nosso camarada não tem mãos a medir... Em novembro de 2010 criou um grupo no Facebook sobre o BCAÇ 2927 (que já tem 228 membros): 

(...) Vamos tentar reunir aqui o maior número de combatentes nas ex-colónias, com saliência para a Guiné e em particular a malta do Batalhão de Caçadores 2927, que partiu em missão para a Guiné em Setembro de 1970 no Uíge e era constituído pelas companhias - CCS, 2780, 2781, 2782 e lá ainda com Caçadores 13.

Seria interessante a publicação das nossas vivências e memórias ilustradas com documentos fotos e tudo o mais relacionado com esta campanha na Guiné Bissau, que apesar de ter acontecido nos anos 70, está ainda bem presente nos ex-combatentes que a integraram.

Amigos, interessados nesta temática e ainda familiares dos ex-combatentes serão bem recebidos aqui com os seus depoimentos e tudo o mais que acharem por bem publicar. 

O meu blogue sobre as minhas memórias ao serviço da Companhia de Caçadores 2781 que se fixou em BISSUM NAGA após passagem por Bissau, Cumeré e Bissorã, pode ser visitado aqui. www.guine-bissum.blogspot.com, Abraço a todos os ex-combatentes. Pinto (TRMS da CCaç 2781). (...)


3. Entretanto do blogue sobre a CCAÇ 2781 e sobre Bissum, tomamos a liberdade de selecionar, editar e reproduzir algumas fotos, com a devida vénia. Está também na altura de convidar o nosso camarada Quim Santos para integrar a Tabanca Grande. Sabemso que ele segue o nosso blogue. LG.




Guiné > Região do Oio > Bissum-Naga > CCAÇ 2465 (1969/70) > A velha GMC, "aquela máquina"!...



Foto: Aníbal Magalhães (2009). Cortesia de Quim Santos.


4. PS - Em comentário a este poste, há a seguinte informação, oportunísssima, do nosso grã-tabanqueiro Aníbal Magalhães, ex-alf mil CCaç 2465/BCaç 2861 [, foto à esquerda]:


"Amigo Luís Graça: Quero esclarecer que as fotos apresentadas no P10427 foram tiradas no tempo da CCaç. 2465/B.Caç.2861 (Bissum-Naga, 1969/70).

 "De maneira nenhuma quero reprovar a apresentação destas fotos, até por contrário. Dizem respeito a todos nós, principalmente aos amigos que passaram por Bissum-Naga em várias épocas.

"Um abraço, Aníbal Magalhães, CCaç 2465".



Resposta do editor:

Camarada Magalhães: O seu a seu dono!... Este é um dos nossos princípios sagrados: respeitar os "direitos de autor". Já corrigi o poste. Os créditos fotográficos são, portanto, teus. Fico-te grato pela generosidade e franqueza. No blogue do Quim Santos, é difícil de apurar de quem são os créditos fotográficos. Foram estas as fotos que me sensibilizaram mais, que eu editei e procurei valorizar, fazendo-as chegar a um público mais vasto do que aquele que acede ao blogue do Quim. Tomo boa nota da tua informação, segundo a qual estiveste em Bissum-Naga, de 14/05/1969 a 14/12/1970. 

 Já agora, vou mais longe e peço-te que comentes estas fotos, que são de excelente qualidade. Se bem recordo, a maioria da população civil era de etnia balanta. 

Um alfa bravo, extensivo a todos os camaradas que passaram por Bissum-Naga. LG
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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10392: Blogues da nossa blogosfera (54): A Página do nosso camarada Carlos Silva "Guerra na Guiné 63/74" atingiu o milhão de visitas

Guiné 63/74 - P10426: Passatempos de verão (16): Viva Portugal (Felismina Costa)

1. Em mensagem do dia 21 de Setembro, a nossa amiga Felismina Costa, enviou-nos este poema escrito, "Viva Portugal", acompanhado de um anexo em MP3 com a voz de Fernando Reis Costa a declamá-lo.
Esta mensagem foi difundida pela tertúlia, mas fica aqui acessível a todos os nossos leitores.

Viva Carlos, muito boa-noite! 
A minha intervenção no blogue tem sido curta ultimamente, para não cansar os nossos leitores e amigos. Todos os dias dou um saltinho ao blogue, para ver as notícias, mas não tenho tido iniciativa que ache de interesse para os homens preocupados com a situação actual, do nosso rectângulo formoso e lindo. 

Um amigo, gravou o meu poema "Viva Portugal" e envio a gravação para quem quiser ouvir, ou só para si, Carlos: faça como quiser. 
É a minha forma de manifestar! 

Um abraço fraterno, que estendo a todos os tertulianos e amigos do nosso blogue 
Felismina


Com a devida vénia a Felismina Costa e Fernando Reis Costa
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Nota de CV.

Vd. último poste da série de 22 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10421: Passatempos de verão (15): Os Soldados Desconhecidos; A Chama da Pátria e O Cristo das Trincheiras (José Martins)

domingo, 23 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10425: Blogpoesia (301): Parassuicídio(s)... (Luís Graça)


Parassuicídio(s), em noite de São Bartolomeu 

por Luis Graça


Acho que adoraria
O silêncio mecânico das ventoinhas
Nas casas de passe,
No tempo em que havia casas de passe
E os pais levavam os rapazes às meninas
Para se fazerem homens.

Em contrapartida, sempre detestei
As flores de plástico e as cruzes de guerra de latão
Nos cemitérios, no talhão dos combatentes
De todas as guerras travadas e perdidas
Nos lugares mais quentes
Da memória.

Se me permitem,
Também não suporto as revistas cor de rosa
Nos consultórios dos psis,
Mesmo se lá colocadas com a intenção piedosa
De servirem de placebo ansíolítico
Para quem espera e desespera nas salas de espera
Sem saber que vai morrer.

Huguenote, católico, judeu,
Anabatista, luterano, ateu,
Muçulmano xiita ou sunita,
Xintoísta, hindu, budista,
Animista,
Voyeurista…
Afinal a vida é,
Irremediavelmente, dizem,
Uma merda,
Um pesadelo climatizado,
Uma encenação,
Um jogo de roleta russa,
Uma bomba de relógio ao retardador.

Sou poeta a
gnóstico, apostólico, romano, 
Mas confesso que tenho medo
Da ameaça de tempestade tropical
No final do verão da vida,
Entre dois equinócios.
Nada mais natural que o medo,
Nada mais humano que o medo do medo.
Fight or flight, luta ou foge, camarada,
Sabendo que nem sempre podes fugir,
Nem sempre podes lutar.

Setembro é um bom mês para se morrer, 

Na frente de todas as batalhas.
Poupem-me o outono,
Dispensem-me do inverno,
Não me falem do natal
Nem me desejem bom ano novo.
E a primavera, por favor,
Outra vez, não!
Quem disse que a vida renasce
Todos os anos pela primavera,
Só pode ter interesse no negócio...

Sou tolerante, ecuménico e laico, 

Sobretudo heterodoxo,
Sou capaz de ouvir e saber ouvir,

Com paciência e compaixão,
As lendas e narrativas contadas pelos mais velhos.
Haverá um dia em que matarão
Todos os mais velhos,
Como em Esparta.
Será o dia da amnésia final,
Tal como o massacre da noite de São Bartolomeu,
Em França, em 1572,
Que foi celebrada com gáudio pela corte portuguesa 
De el-rei dom Sebastião.
In nomine Dei.
Em nome de Deus. 


A velhice é uma heresia.
Todos os velhos são huguenotes.
Todos os velhos custam um pipa de massa
Ao serviço nacional de saúde
E à segurança social
E ao banco alimentar contra a fome
E ao miserável estado a que chegámos.


Por mim, não peço muito:
Uma mesa, com toalha de linha,
Num estreito promontório, sobre o mar,
Um prato de sardinhas douradas
Com pimentos vermelhos,
Um copo de tinto,
Um café e um Lourinhac.
Ah!, e o último cigarro do condenado à morte!

Seria o dia perfeito, (e)terno.
Sem o ruído dos comboios,
Nos seus carris metálicos,
Enquanto os soldados partem para a guerra,
E os navios embarcam
Velhos obuses encapuçados.
A maior noite de ternura
É quando o soldado se despede da mulher amada
E parte para ir morrer na frente da batalha.
Sou sensível aos detalhes,
Como qualquer miseur-en-scène.
Não havia mulheres nas trincheiras do meu tempo
E tinham fechado as últimas casas de passe.

Nunca saberei se o sexo é 

Uma pulsão da vida ou da morte. 
Quem disse Make love, not war
É porque nunca fez (nem poderia fazer)
Amor e guerra ao mesmo tempo. 
As duas artes são disjuntivas.

Candoz, 23/24 de agosto, noite de São Bartolomeu
_____________


Nota do editor:


Úlltimo poste da série > 23 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10424: Blogpoesia (300): Deram-me uma arma... (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)

Guiné 63/74 - P10424: Blogpoesia (300): Deram-me uma arma... (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)


1.  Poema do novo membro da Tabanca Grande  Ricardo [Marques de ] Almeida [, foto à esquerda,], que em 8 de agosto de 2012 se apresentou nestes termos 


Boa tarde,  camarada Luis graça.

Antes de mais, começo por me apresentar, como ex- 1.º cabo nº 08922568 da CCAÇ 
2548 / BCAÇ 2879, do 3º pelotão, comandado pelo alferes João Rebelo e dentre os demais furrieis destaco o furruiel Godinho, ,  o fotografo-dia,que registava as nossas imagens.

Camarada desde o nascimento do nosso blogue que tento entrar sem o conseguir até agora, mas adiante.

Acuso a mensagem que me enviaste dando-me conta de alguns pormenores como o destacado nela, a segurança montada pela tua companhia no regresso da 2548 para Bissau á espera de embarque para Portugal.

Por minha infelicidade, não fiz essa viagem de despedida visto a minha guerra ter antes terminada.  Ou melhor, travei outr, a talvez esta mais violenta que a primeira a que nos estamos a referir pois, foi travada noutras frentes de hospital, em hospital (Caramulo incluído), devido a  tuberculose pulmonar que poderia ser a minha última batalha, deixando-me esta agarrado para sempre, à ADFA - Associação dos Deficientes cdas forças Armadas, meu refúgio e minha segunda casa (...) 

Viseu em 8/8/12
Ricardo Marques de Almeida

[ ex-1.º Cabo da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71]




2. Mensagem inserida na nossa página do Facebook, em 21 do corrente:


Em mensagens anteriores via e-mail apresentei-me à Tabanca Grande como sendo o ex-1º cabo nº  089225/68,  respondendo pelo nome de Ricardo Marques de Almeida,  da CCAÇ 2548 / BCAÇ 2879 que passou pela Guiné nos anos de 1969 a 1971,  sendo este batalhão comandado pelo malogrado tenente coronel Manuel Agostinho Ferreira. 

Apresentei-me com várias fotos e um poema que ainda estarão  em vossa posse á espera de serem publicadas.  Também (vide história do BCAÇ 2879) estou postado no blogue de Carlos Silva sobre a guerra da Guiné. (...)


3. .Poema publicado em 18 de setembro, na nossa página do Facebook >Tabanca Grande 


Deram-me uma arma e disseram-me
estima-a bem, porque vai ser tua mulher
e tua amante!

E
de agora em diante,
haja o que houver,
só ela te pode valer
em momentos de aflição.

E
ganhar-lhe-ás afeição,
porque só ela te pode safar,
em situações menos boas
ela serve para matar.

E
defenderes teus camaradas
ao fazerem emboscadas
naquelas matas escuras,
sofrendo a humilhação
de andar á caça de vidas,
muitas delas por lá interrompidas,

E
outras por lá ficarão
para sempre esquecidas,
enterradas sem caixão.

E
seu pai sem o saber
E
de coração apertado
pensa nada acontecer
ao seu filho tão amado!


Mas eis que chega o carteiro
com a noticia inesperada,
ele salta do pardieiro
onde então se encontrava...

E
estranhando o aerograma
porque era de forma diferente~,
lhe entrega o telegrama
com o faz a tanta gente!

O EXÉRCITO PORTUGUÊS
VEM DIZER-LHE QUE SEU FILHO
AGORA MARCHOU DE VEZ,
VAI CAMINHAR NOUTRO TRILHO.

na sua nova morada
uma árvore é plantada,
de seu gosto o seringueiro
para assinalar que ali
E
a quem passar por aqui
verá Portugal inteiro.


Mas outra árvore nasceu
E
como a outra cresceu
na campa daquele soldado
que foi preciso ele morrer
para Portugal o ver
como cidadão inteiro!

E
de mãos dadas caminham
em perfeita solidez,
numa amizade eterna,
o soldado português
E
o preto guerrilheiro...
vir de tão longe morrer
na pátria de outro ser
E
obrigado a combater
os filhos de outro povo,
sem que razão mais houvesse
p'ra que isso acontecesse.

LIBERDADE, INDEPENDÊNCIA
PÃO, EDUCAÇÃO
SAÚDE, CIÊNCIA

NASCEU EM PORTUGAL
MAMOU LEITE PORTUGUÊS
HOJE É UM SEM ABRIGO EM PORTUGAL
HOJE É UM INDIGENTE PORTUGUÊS

e
hoje
e
hoje
e
hoje.

escrito no ponche de protecção
nas matas de Lamel,

setembro de 1969.
Marques de Almeida

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10401: Blogpoesia (299): Memória da guerra (António Graça de Abreu)

Guiné 63/74 - P10423: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (40): Poemas da juventude (III): Natureza louca (Bissau, 1985)


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Nota do editor:

Último poste da série > 13 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10377: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (39): Poemas da juventude (II): Também eu gritei......

sábado, 22 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10422: Notas de leitura (408): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 11 de Setembro de 2012:

Meus caros amigos,
Esta é a segunda parte da minha análise ao livro "O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1998-1999)" de Guilherme Zeverino*.

Com cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva


O conflito político-militar na Guiné-Bissau (2/2)

Retomando as teses de Guilherme Zeverino, para quem conhece a Guiné-Bissau, é quase uma verdade lapaliciana o dizer-se que a introdução do multipartidarismo não veio resolver, antes avivar os problemas internos no seio do PAIGC, gerando uma situação politicamente insustentável, mas, que, em nosso entender, “Nino” Vieira e a sua clique pensavam frivolamente poder controlar. Bom seria que o autor tivesse dedicado algum espaço às eternas lutas entre personalidades e facções, bem como, à permanente dança de cadeiras no seio do antigo partido do Poder. Regista e é digno de nota que nas demais formações partidárias locais, apenas com duas excepções, a liderança coube a dissidentes do PAIGC.

Não sabemos até que ponto o multipartidarismo veio reforçar a sociedade civil bissau-guineense. Para além de uma certa secundarização do PAIGC – perdeu o estatuto de partido único - houve de facto uma saudável abertura aos media, às ONG’s, à igreja e, hoje, dada a virtual inexistência no país de meios de comunicação social de massas independentes, à Internet e aos blogues. Todavia, o Poder continuou – e continua - a estar nas mãos dos militares, cabendo-lhes sempre a última palavra. Digamos que estamos perante uma porta entreaberta que se pode fechar a qualquer momento.

No que concerne a interdependência entre a crise no PAIGC e a crise nas Forças Armadas, devemos assinalar que, efectivamente, essa correlação existe. Mais. O Partido no seu último Congresso (o VI, nas vésperas do conflito), optando por uma estapafúrdia e absurda política de avestruz, não abordou as questões mais candentes das Forças Armadas ou o problema “escaldante” de Casamansa, nem sequer aflorou o tema dos veteranos de guerra. Os militares verificaram, assim, que a solução dos seus problemas devia ser resolvida por eles próprios, à semelhança aliás do que “Nino” Vieira fizera em 1980. Se a interdependência entre as duas crises parecia ser patente, não obstante, a resolução dos problemas seria estritamente militar e não tinha nada que ver com as questiúnculas internas do PAIGC. É aqui que se separam as águas. Há quem queira ver no levantamento de 7 de Junho de 1998, uma questão interna partidária com expressão castrense, a inversa assume, a meu ver, foros de maior verosimilhança. O fulcro do problema estava em “Nino”, o grande régulo – Presidente da República, Comandante Supremo das Forças Armadas e Presidente do PAIGC – e, bem entendido, no seu “núcleo duro”. Em suma, e para não nos perdemos noutras considerações, a interdependência entre as duas crises existe, mas não foi a causa principal do confronto (foi tão-somente uma das causas, porque outras houve de dimensão semelhante). Logo, a questão tem de ser relativizada.

Desconhecemos em que medida a rivalidade cultural Portugal-França e as respectivas políticas de cooperação terão levado a posicionamentos divergentes na crise bissau-guineense. Estes factores contribuíram, seguramente, para o reforço dessas posições, mas não as engendraram Todavia, os dados essenciais do problema eram, a nosso ver, do foro estritamente político: para Paris, tratava-se de um motim contra a autoridade legítima estabelecida – ou seja, uma rebelião contra um presidente eleito - , logo tinha de ser debelado e, ao longo do tempo, esta posição não oscilou; para Lisboa, partindo inicialmente do mesmo pressuposto, assumiu, de seguida, uma “política essencialmente realista”, como refere Zeverino (vd. p. 87), tendo em conta a situação no terreno, a problemática dos refugiados e a mediação entre as partes em conflito e, há que sublinhá-lo com toda a frontalidade, aproximando-se das posições rebeldes, até porque o regime “ninista”, apesar da democraticidade aparente, era, sob múltiplos aspectos, condenável. Logo, oscilou. Consequentemente, os factores apontados por Zeverino contribuem apenas para alicerçar opções e posições políticas de fundo pré-existentes ou em fase de formação.

A adesão precipitada da Guiné-Bissau ao franco CFA, sem medidas de acompanhamento macro-económicas, foi, como releva Zeverino, nefasta. A má gestão, a inépcia, o sobre-endividamento, o sufoco financeiro, a manifesta incapacidade para debelar a pobreza endémica do país, o ciclo impiedoso do sub-desenvolvimento sem solução de saída, que caracterizaram os governos de Saturnino Costa e de Carlos Correia (deste em menor medida), faziam igualmente parte da receita para o desastre e contribuíram com a sua quota-parte para o levantamento militar. A problemática económico-financeira é, porém, tratada com alguma ligeireza. A nosso ver, merecia maior atenção por parte do autor. Por outro lado, não se pode meter no mesmo saco as adesões à zona franco e à Francofonia, bem como, as pressões externas dos países limítrofes francófonos, ou seja no capítulo das causas económicas (ou económico-financeiras) do levantamento. A adopção do franco CFA insere-se claramente nesta esfera, a francofonia no âmbito politico-cultural, as pressões externas no contexto das relações externas. Misturar alhos com bugalhos induz-nos em erros e confusões desnecessárias.

Estamos inteiramente de acordo que a intervenção militar estrangeira, do Senegal e da Guiné-Conakry, suscitou uma espontânea e muito viva reacção nacionalista por parte da população da Guiné-Bissau. Trata-se, sem sombra para quaisquer dúvidas, de uma questão sócio-política de primeira grandeza e que marcou de forma perene a guerra civil naquele país africano. Todavia, no âmbito social outras questões de grande relevância deveriam ter sido abordadas, pois constituíam problemas estruturais que estão na raiz do levantamento militar e que continuam, ainda hoje, por resolver. Referimo-nos às clivagens entre as velhas e novas gerações de militares (os que fizeram a “luta” e os que não lutaram porque eram ainda crianças ou nem sequer eram nascidos), aos veteranos de guerra, abandonados e votados à marginalização social; e last but not least ao problema étnico, que o autor, de todo em todo, não aborda (sabendo-se, por exemplo, que o grosso dos contingentes das fileiras das Forças Armadas é constituído pela etnia balanta – cerca de 2/3 – um grupo relegado a um estatuto subalterno na sociedade e que “Nino” Vieira, na fase final da guerra, em desespero de causa foi recrutar jovens papeis e bijagós, os “aguentas” , como guarda pretoriana do regime). Aliás, retomando o tema da fissura entre velhas e novas gerações entendemos que se trata de um problema sociológico de fundo e que não se circunscreve apenas ao âmbito castrense, pois afecta horizontalmente toda a sociedade bissau-guineense. Ora, tudo ponderado, para uma obra com pretensões académicas, estas omissões no capítulo social são graves. Finalmente, o autor não aborda e devia ter abordado como causas próximas do conflito as razões de ordem pessoal que levaram Ansumane Mané a revoltar-se contra o seu amigo de sempre e companheiro de luta “Nino” Vieira. E esta questão não é despicienda, como se sabe.

Como tese de dissertação possui alguns méritos, mas com a devida vénia, em nossa opinião, fica aquém das naturais expectativas que se depositam num projecto desta natureza. Mister é reconhecer, porém, que foi escrita e apresentada escassos 4 anos após os acontecimentos, portanto, de certo modo, ainda “a quente.” De qualquer forma apresenta alguns factos marcantes do período em causa e algumas pistas interessantes que permitem interpretar a história recente da Guiné-Bissau.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste anterior de 20 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10411: Notas de leitura (406): O conflito político-militar na Guiné-Bissau (1) (Francisco Henriques da Silva)

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10416: Notas de leitura (407): O Corredor de Lamel - 68 Guiné 69 - de Guilherme Costa Ganança (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10421: Passatempos de verão (15): Os Soldados Desconhecidos; A Chama da Pátria e O Cristo das Trincheiras (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 13 de Setembros de 2012:

Boa noite, senhores editores
Tenho um texto "na gaveta" que, mesmo polémico vai avançar.
Há muito tempo que o tinha em mente, mas apareceram na pesquisa a referência a documentos dos anos 60 que quero consultar. Como não os encontrei, ao procura-los, pedi auxilio e estou a aguardar uma indicação, para ser mais preciso na exposição do mesmo.
Entretanto, para ilustrar o texto referido, ao procurar imagens para o ilustrar surgiu um relato que, além do texto, valia pelas imagens, imagens essas do inicio dos anos 20 do século passado. Como disponho de elementos sobre o/os factos, deitei mãos à obra, e por isso terminei há pouco um texto sobre "Os Soldados Desconhecidos", a "Chama da Pátria" e o "Cristo das Trincheiras".
Nada tem a ver com a Guiné nem com a Guerra Colonial. Apenas a diferença. O que revelo neste texto, vai de 1920 a 1858, ou seja 38 anos, tantos como tem a nossa democracia.
Diferenças? Muitas.

Um abraço
José Martins


OS SOLDADOS DESCONHECIDOS 
A CHAMA DA PÁTRIA 
O CRISTO DAS TRINCHEIRAS

O mundo conheceu, entre 28 de Julho de 1914 e 11 de Novembro de 1918, uma guerra que, a pouco e pouco, envolveu quase todos os países de mundo, ficando conhecida como a Grande Guerra, ou a Guerra das Guerras porque se julgava que, depois de tamanha catástrofe, não mais haveria guerras.

Para tal, foi assinado o Tratado de Versalles, em 28 de Junho de 1919, que impunha à Alemanha, pelas nações vencedoras mas principalmente a Inglaterra e a França, sanções politicas, económicas e militares. O tratado foi ratificado pela Liga das Nações em 10 de Janeiro de 1920. No final do conflito, seriam contadas cerca de 19 milhões de mortes, entre as partes em confronto e contando militares e civis. Passada a euforia da vitória, celebrada com desfiles para que as tropas pudessem ser ovacionadas, havia que honrar os que tinham tombado em combate.

Em França, Francis Simon e Maurice Maunoury, “repescam” a ideia de François Ferdinand Philippe Louis Marie d'Orléans, Príncipe de Joinville, (Neuilly-sur-Seine, 14 de Agosto de 1818 - Paris, 17 de Junho de 1900), de trasladar o corpo de um soldado não identificado na Guerra franco-prussiana de 1870/1871. Assim, a França inumou, no Arco do Triunfo (11 de Novembro de 1920), o seu Soldado Desconhecido.

No ano seguinte, ano de 1921, foi a vez da Itália, Portugal, Bélgica e Estados Unidos da América e no ano de 1922, a Grécia, Checoslováquia, Jugoslávia e a Polónia.

O féretro do soldado tombado em França, transportado por soldados de infantaria 

Na 41ª Sessão da Câmara dos Deputados, realizada em 18 de Março de 1920, o Governo decide fazer trasladar dois corpos de soldados portugueses, um da Flandres e outro de Moçambique. Os Soldados Desconhecidos seriam inumados na Sala do Capítulo, no Mosteiro da Batalha, e as cerimónias teriam início no dia 9 de Abril de 1921, devendo esse dia ser considerado feriado nacional.

Nesse mesmo mês, Março de 1920, o Governo deu instruções ao seu adido militar em Paris, para iniciar o processo de trasladação do corpo de um militar, não identificado, para Portugal. O corpo foi exumado do cemitério na Flandres e transportado para o Havre, ficando em câmara ardente no quartel do Regimento Francês nº 129. Daí foi transportado, no navio de transporte “Porto”, para Portugal sendo, a partir do Cabo da Roca até ao cais de Santos, escoltado pelo Contratorpedeiro “Guadiana”, onde desembarcou a 6 de Abril de 1921.

O féretro do soldado tombado em Moçambique, transportado por marinheiros

No cais de Santos estava postada uma força para prestar Honras Militares ao féretro, que era transportado por seis soldados de infantaria, para o Arsenal da Marinha, sendo depositado na Casa da Balança. Das honras militares prestadas, constaram o hino da “Maria da Fonte”, executado pela Banda da Marinha, enquanto os navios de guerra fundeados no Tejo, fizeram uma salva de vinte e um tiros.

Na cerimónia estavam presentes: o Presidente da República António José de Almeida, o Ministro da Guerra Álvaro de Castro, além de outros representantes do Governo e do Parlamento. A Igreja estava representada por D. José do Patrocínio Dias, Bispo de Beja e Chefe do Corpo de Capelães do CEP.

Entretanto, a bordo do navio de transporte inglês “Briton”, da Union Castle Mail, já se encontrava em viagem, desde a África Oriental Portuguesa (Moçambique), a urna contendo os restos mortais do “Soldado Desconhecido” tombado em combate perante os alemães, nos combates que nunca foram objecto de declaração de guerra, por parte daquele país.

O navio foi, na parte final da viagem, sobrevoado por um hidroavião até ao cais da Pontinha, na ilha da Madeira, onde é desembarcado o esquife com os restos mortais cerca das 20 horas do dia 30 de Março de 1921.

No dia seguinte, ainda na Madeira, pela uma hora da tarde, o féretro foi conduzido em cortejo no qual se incorporaram as autoridades civis e militares, o corpo consular, alguns oficiais ingleses, representantes das diferentes escolas e agremiações, contingentes das forças militares da guarnição do Funchal, desde o Posto de Desinfecção Marítima, onde tinha sido recolhido após o desembarque, até aos Paços do Concelho, onde ficou em câmara ardente até ao dia 3 de Abril, data em que foi embarcado no cruzador “Republica” para ser conduzido até Lisboa, onde chegou no dia 6 de Abril de 1921 para ser conduzido para a Casa da Balança, onde se encontrava o corpo do militar tombado em França.

As autoridades que estiveram na recepção ao corpo do militar vindo de França, também estiveram presentes à recepção do soldado vindo de África.

Para as cerimónias de inumação dos Soldados Desconhecidos, e que se iriam desenrolar em Lisboa, Leiria e Batalha, diversos países fizeram-se representar pelas seguintes entidades oficiais e representações militares:
• Marechal Joffre, da França, e o cruzador francês “Jeanne d’Arc”;
• Marechal Diaz, da Grã-Bretanha, e o cruzador inglês “Cleópatra”;
• Contra-almirante Hughes e o cruzador USS “Olympia”:
• General Smith Dorien, Governador de Gibraltar
• Almirante Pedro Zofia, de Espanha, e o cruzador D. Afonso XIII”.

No dia 7 de Abril, as urnas contendo os restos mortais dos "Soldados Desconhecidos", foram transportados em armão militar desde a Casa da Balança, nas instalações da Marinha, até ao Palácio do Congresso, hoje Assembleia da Republica, seguindo pela Rua do Arsenal, Rua do Ouro, Rossio, Avenida da Liberdade, Rua Alexandre Herculano, Praça do Brasil (actualmente Largo do Rato), Rua de São Bento e Largo das Cortes. O Presidente da República e as entidades oficiais estrangeiras, assistiram à passagem do cortejo das janelas da Estação do Rossio.

O cortejo transportando os corpos dos Soldados Desconhecidos. 

Integraram-se no cortejo a representação da Câmara Municipal de Lisboa, as Bandeiras de todos os regimentos do país com a respectiva escolta, as Universidades, Corporações de Bombeiros, contingentes militares estrangeiros, soldados da Infantaria Portuguesa, Guarda Nacional Republicana, Escuteiros e mulheres cujos filhas foram dados como desaparecidos na guerra. Ao chegarem ao palácio, foram as urnas colocadas em câmara ardente, veladas pelas forças de Terra e do Mar, em permanência, até serem transportadas para o local de repouso final: a Sala do Capítulo do Mosteiro Santa Maria da Vitória, na Batalha.

A Câmara dos Deputados realizou uma sessão de homenagem aos Soldados Desconhecidos, no dia 8 de Abril de 1921.

Quiseram os governantes deste país que, três anos após o “desastre de La Lys” fosse um dia de glorificação para os Combatentes que lutaram e tombaram na Grande Guerra em África a na Flandres, a que o povo aderiu. Afinal estavam a glorificar os seus filhos, os seus rapazes que, deixando tudo, partiram ao para a guerra, tendo tombado por lá ou regressado com mazelas no corpo e na alma.

Porque “Homenagear as cinzas desses Heróis Anónimos, é homenagear as relíquias da Raça lusa, é homenagear os seus irmãos, que, feita a guerra e despidas as fardas de gloriosos combatentes, se espalharam pelas províncias de Portugal, depondo as armas e empunhando o arado, para continuarem as suas vidas tão anónimos e desconhecidos como aqueles que ali dormem…” [texto parcial da homenagem prestada pela 5ª Divisão de Coimbra, no 6º aniversário da Batalha de La Lys – separata do “Correio de Coimbra” – 1924].

As urnas em câmara ardente do Palácio do Congresso

Os esquifes que continham os restos mortais dos Soldados Desconhecidos foram transportados para a Basílica da Estrela, para a cerimónia solene das exéquias fúnebres, que seria celebrada pelo Cónego Anaquim, o Arcebispo de Évora D. Manuel Mendes da Conceição Santos teve a seu cargo a homilia, sendo a absolvição proferida pelo Bispo de Beja D. José do Patrocínio Dias que, Cónego da Sé da Guarda em 1915, se ofereceu para voluntariamente servir no CEP na assistência aos soldados portugueses em França, tendo sido nomeado Capelão Chefe. À cerimónia, preparada pelo Bispo de Beja e o Ministro da Guerra Álvaro Xavier de Castro - para serem dignas dos soldados tombados em combate - assistiram o Chefe de Estado, as delegações estrangeiras da Itália, França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Espanha, e altas dignidade civis e militares.

Finda a cerimónia, o cortejo saiu da Basílica descendo a Calçada da Estrela, Avenida Presidente Wilson (actual D. Carlos I), 24 de Julho, Cais do Sodré, Rua do Arsenal, Rua Augusta, em direcção à estação do Rossio, onde aguardava um comboio especial para transportar o féretro sob escolta de honra, e as demais entidades para estação de Leiria, estando as ruas ladeadas pelo povo em sentida homenagem aos Heróis da Pátria.

O Cardeal-patriarca de Lisboa D. António Mendes Belo, o Presidente da República Dr. António José de Almeida, e o presidente do Ministério Dr. Bernardino Luís Machado Guimarães, seguiam a pé, nas ruas de Lisboa, os dois ataúdes que continham os restos dos Soldados Desconhecidos.

Junto à estação do Rossio, que junto à fachada tinham sido colocados sacos de areia e morteiros, simulando uma trincheira, as urnas foram recebidas pelas autoridades portuguesas e delegações estrangeiras, postadas em continência.

Vagão onde foram transportadas as urnas. 

Para transportar o féretro na sua viagem para Leiria e daqui para a Batalha, foram organizados três comboios.

Os ataúdes foram, a partir de Leiria, escoltadas pelas bandeiras dos regimentos de todo o país e das legações estrangeiras, assim como por uma força militar em Guarda de Honra.

No espaço frente ao Mosteiro da Batalha, que ia ser transformado em Panteão da Pátria, duas filas de militares armados continham a multidão que se comprimia num último adeus aos seus Soldados Desconhecidos.

À passagem do féretro, seguido pelas bandeiras, os militares apresentaram armas numa eterna homenagem e num adeus derradeiro, enquanto as bocas de fogo davam salvas de artilharia.

A partir desse momento, “o Túmulo do Soldado Desconhecido no Mosteiro da Batalha passou a ter sempre uma guarda de honra e uma vela acesa como sinal do respeito perene pelos que caíram no cumprimento do dever”.

* * *

Quem segue de perto o dia a dia deste país, decerto que se vai apercebendo que, apesar dos mesmos factos nunca se repetirem, o que é certo é que a história, as várias histórias deste centenário povo acontecem, senão com certos laivos de igualdade, pelo menos com muitas parecenças.

Depois de pensada e executada a trasladação dos corpos de militares tombados no Campo da Honra em África e na Flandres, depois das cerimónias a que foram atribuídas o maior brilhantismo possível, passaram ao “esquecimento”. A distância da Batalha ao centro do poder instalado em Lisboa, a “Capital do Império”, era mais que suficiente para o esquecimento: o que tinha sido considerado o Templo da Pátria, o Panteão dos Heróis, estava ao abandono.

Um dos armões onde foram transportadas as urnas, de Leiria para a Batalha.

Esta situação era constatada, não só por quem visitava aquele templo erguido por voto de D. João I aquando da batalha de Aljubarrota, mas sobretudo por delegações estrangeiras, que lá se dirigiam, para honrar os restos mortais dos Soldados Desconhecidos de Portugal.

Nesse sentido, em 24 de Maio de 1922 [data não confirmada], o Parlamento dá conhecimento do facto ao Ministro da Guerra General António Xavier Correia Barreto do estado de abandono, pelos poderes públicos, em que encontra o Panteão dos Soldados Desconhecidos, na Batalha, a Sala do Capítulo, assim como a vergonha que representava para o país e para o Exército. Para obviar esta situação vexatória para o país, foi votado “uma verba suficiente para completar de forma condigna a homenagem aos Soldados Desconhecidos, que são o símbolo da heroicidade da raça lusitana nos campos da Europa, África, no ar e no mar, durante a Grande Guerra”.

* * *

Pela pena do jornalista Gabriel Boissy surge, em 1923, a ideia de colocar junto da tumba onde repousam os “Soldados Desconhecidos”, uma “Chama da Memória” que, uma vez acesa, permaneceria assim, perpetuando uma luz, por maior que fosse a escuridão, uma luz dizíamos, que sinalizasse o local onde jaziam os Soldados cujos corpos não identificados, representavam o sacrifício dum povo. Ainda persistia a ideia de que o mundo tinha assistido, na época de 1914/1918. à Guerra das Guerras, ou seja, a última.

Pura ilusão, sabemos hoje, e de que maneira! Assim, dando corpo à ideia da colocação de um lampadário junto dos restos mortais destes Heróis, a 5ª Divisão do Exército, sediada em Coimbra, tomou à sua responsabilidade levar a efeito esta concretização, recaindo sobre o Mestre António Augusto Gonçalves, escultor, elaborou o projecto, cuja entrega dos desenhos fez ao Presidente da Comissão da “Chama da Pátria” , em carta datada de 1 de Abril de 1961, de que se transcreve a explicação das figuras que a compõem: “Devo esclarecer que as três figuras representam combatentes, sintetizando os acontecimentos de três épocas das mais gloriosas dos feitos portugueses: 
• Fundação da nacionalidade – D. Afonso Henriques (Século XII). 
• Consolidação definitiva da nacionalidade na península e a sua dilatação pelas conquistas ultramarinas – D. João I (Século XV). 
• Confirmação dos seus destinos na revivescência das suas energias históricas na “Grande Guerra” da actualidade [Século XX].”

A execução da obra foi entregue a Lourenço Chaves de Almeida, 1º Sargento Serralheiro do Regimento de Infantaria nº 23 (Coimbra) e discípulo do autor do projecto, que enaltece no texto que escreveu e acompanhou a entrega da obra, dizendo: “Preito da Minha Gratidão ao meu Querido Mestre António Augusto Gonçalves, que depois de Meu Pai, foi quem completou a minha personalidade artística!”

Ultimo e definitivo projecto da Lampadário “Chama da Pátria” tal como se encontra no Mosteiro da Batalha velando os restos simbólicos dos Heróis portugueses na Grande Guerra.

O 1º Sargento Serralheiro Lourenço Chaves de Almeida era condecorado com a Cruz de S. Tiago da Espada – grau Cavaleiro, medalha da Vitória do CEP e medalha de Comportamento Exemplar.

A escultura, em ferro forjado, foi iniciada em 20 de Abril de 1921 e concluída em 29 de Junho de 1922, tendo sido dispendidas cerca de 4.800 horas de trabalho.

A sessão de entrega do lampadário para ser colocado junto da Campa Rasa dos “Soldados Desconhecidos”, foi efectuada em 9 de Abril de 1922, pelas 15 horas, na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha.

Foi o Ministro da Guerra, Tenente-coronel Américo Olavo Correia de Azevedo, que acendeu a “Chama da Pátria”, a ser alimentada por genuíno azeite português.

No já extinto jornal diário o “Século”, o jornalista Mário Campos escrevia, na edição do dia 9 de Abril de 1924, na página 5 na sua crónica “A jornada gloriosa do 9 de Abril”: "(...) Precisamente no momento do silêncio, o Sr. Ministro da Guerra, o Sr. Américo Olavo, acenderá, na Batalha, junto do túmulo dos Soldados Desconhecidos o «Lampadário da Pátria», devendo fazer uso da palavra nessa impressionante celebração, o general Sr. Simas Machado, comandante da 5ª Divisão militar, os representantes oficiais das Ligas de Combatentes e da Comissão de Padrões e, por último, o Sr. Ministro da Guerra".

* * *

O simbolismo da Sala do Capítulo, não estava completo. Havia “algo” que, durante a permanência das nossas tropas no seu sector defensivo, os protegia e amparava na sua dura missão na guerra e em terra estrangeira.

Dominando a paisagem entre as localidades de Lacouture e Neuve-Chapelle, pregado no seu madeiro e sujeito à chuva e ao vento que se fazia sentir, estava uma imagem de Cristo que, para os nossos avoengos camaradas de armas, representava a ligação à Terra-Mãe, a ligação à Família que, lá longe, se ajoelhava perante uma imagem semelhante, para por eles orar.

Foi sobre esse cenário de “calma e devoção” que, em 9 de Abril de 1918, o exército alemão fez cair a sua tempestade de metralha e morte, fazendo revolver a terra e incendiando-a. Neuve-Chapelle quase desapareceu do mapa, reduzida a escombros.

No terreno tombaram, no Campo da Honra, cerca de 7.500 portugueses da 2ª Divisão do CEP, agonizantes ou já mortos.

De pé no local, apenas o “Cristo Crucificado”, apesar de mutilado: os estilhaços tinham-lhe decepado as pernas e um braço e uma bala, “a lança dos tempos modernos” tinha-lhe trespassado o peito.

Para os portugueses era, e ainda é, o “Cristo das Trincheiras”.

O “Cristo das Trincheiras” derrubado da cruz.

As tropas retiraram ou foram retiradas, mas a imagem manteve-se no seu lugar em permanente vigília, na mesma forma e local em que estivera ma Batalha do Lys, durante mais quarenta anos.

Imagem de grande significado quer para os soldados do CEP quer para a generalidade do povo português, que já ouvia da boca dos combatentes o sucedido e, por esses relatos, já conhecia esse Cristo, o que acabou por ser solicitado, pelo governo de então, a sua vinda para Portugal.

A Imagem chegou a Lisboa, por via aérea, em 4 de Abril de 1958, por sinal na Sexta-feira Santa, acompanhada por uma delegação de combatentes portugueses, que tinham fixado residência em França, e por uma delegação de deputados franceses, chefiada pelo Coronel Louis Christians.

Apoteoticamente recebida pela população, foi transportada para a Capela da Escola do Exército (actual Academia Militar) nos Paços da Rainha, onde esteve à veneração até ao dia 8 desse mês de Abril, altura em que foi transportada numa viatura militar para o Mosteiro da Batalha, sem qualquer cerimónia especial. Ao chegar à Batalha, foi conduzida para o refeitório do mosteiro, onde ficou exposta.

No dia 9 de Abril de 1958, no 40º aniversário da Batalha do Lys, começaram a chegar ao Mosteiro da Batalha, pelas 11 horas, as entidades que estariam presentes na cerimónia, entre as quais o embaixador de Portugal em França e da França em Portugal, os Adidos Militares da França, Bélgica e Estados Unidos, altas patentes militares portuguesas do Exército, Marinha e Força Aérea (criada em 1 de Julho de 1952), autoridades civis, militares e religiosas.

O “Cristo das Trincheiras” reposto na cruz, à cabeceira dos “Soldados Desconhecidos”. 

Pelo meio-dia chegou ao local o Ministro da Defesa Nacional, Coronel Fernando dos Santos Costa, acompanhado do Coronel francês Louis Christians, aos quais foram prestadas Honras Militares por um batalhão do Regimento de Infantaria nº 7, de Leiria, que tinha participado no CEP com uma força a nível de batalhão.

O andor que transportou o “Cristo das Trincheiras” entre o refeitório e a Sala do Capitulo do Mosteiro de Santa Maria da Vitoria, foi levado em ombros pelos representantes da Liga dos Combatentes da Grande Guerra, sendo a imagem de Cristo colocada à cabeceira da campa rasa, cuja lápide, inicialmente colocada paralelamente à parede lateral e virada para a porta, tinha sido mudada para a posição perpendicular à mesma.

Findas as intervenções militares e religiosas, o representante francês condecorou os Soldados Desconhecidos, colocando, sobre a laje tumular, duas Cruzes de Guerra.

A fanfarra do Regimento de Infantaria nº 19, de Chaves, executou os toques de ordenança, enquanto uma bateria do Regimento de Artilharia Ligeira nº 4, de Leiria, executava uma salva de 19 tiros.

Medalha da Cruz de Guerra, francesa

Desde a sua inumação na Batalha, os Soldados Desconhecidos têm sido alvo de diversas cerimónias, quer de forças militares quer de outros organizações, lembrando os combatentes que tombaram em defesa da Pátria. É normal haver referências ao “Soldado Desconhecido”, talvez por na lápide que cobre a sepultura, ter a seguinte inscrição:

PORTUGAL, 
ETERNO NOS MARES, 
NOS CONTINENTES E NAS RAÇAS 
AO SEU 
SOLDADO DESCONHECIDO 
MORTO 
PELA PÁTRIA
 _ 

GRANDE GUERRA 
1914-1918

Na realidade são dois soldados e, em nosso entender não são “desconhecidos”.
Esses militares, e todos os outros, tiveram pai e mãe, tiveram irmãos, avós e outros familiares e, possivelmente, muitos já tinham filhos. Portanto não são desconhecidos. Apenas não foram identificados e, por conseguinte, mantêm-se incógnitos, como tantos outros a quem, a História, se esqueceu de registar o Nome.

Fotos: © www.momentosdehistoria.com

José Marcelino Martins
josesmmartins@sapo.pt
13 de Setembro de 2012
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10417: Passatempos de verão (14): Composição fotográfica CCAÇ 2317 - Pioneiro de Gandembel (Joaquim Gomes Soares)

Guiné 63/74 - P10420: Meu pai, meu velho, meu camarada ( 32): Luís Henriques (1920-2012) evoca, em entrevista gravada em 10 de março de 2010, os sítios onde passou 26 meses, na ilha de São Vicente, em plena II Guerra Mundial: Mindelo, Lazareto, Matiota, São Pedro, Calhau...


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > RI 23 > "No dia15 de Fevereiro de 1942, os três amigos íntimos [,da direita para a esquerda,] Luís Henriques, António F. Delgado e José Leonardo... os três bigodinhos querem é dizer que têm bigode... invisível!... [Eram três 1ºs cabos inseparáveis, todos da mesma companhia e


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > RI 23 > "Num dos funerais que cá se realizou , ao passar nas salinas (?) em São Vicente. 1942. Luis Henriques"




Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > RI 23 > Parte da festa do 1º de dezembro de 1941. Corrida de cavalos. Lazareto, São Vicente, Cabo Verde. Luis Henriques"


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > RI 23 > "Uma das partes mais brilhantes do programa da festa da restauração: a ginástica. No dia 1 de dezembro de 1941. Lazareto, São Vicente, Cabo Verde. Luis Henriques"


Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > RI 23 > "Duas secções em diligência. No paiol, São Vicente, novembro de 1941. Luis Henriques".



Cabo Verde > Ilha de São Vicente > RI 23 > Calhau > Janeiro de 1942 > Um amigo do Fundão, no verso pode ler-se a seguinte dedicatória: "Ofereço ao meu amigo [Luis Henriques] com verdadeira amizade, esta fotografia em Cabo Verde. Seu amigo António João Abel, 1º cabo nº 267/41, RI 15"... Ao fundo, vê-se o "jardinzinho", no Calhau,  a que o Luís Henriques se refere nesta entrevista abaixo...






Lourinhã, cemitério local, 22 de setembro de 2012 > A lápide de Luís Henriques, homenagem de seus filhos, netos e bisnetos.

Fotos: © Luís Graça (2012) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados




Lourinhã > 20 de março de 2010 > Luís Henriques (1920-2012), ex-1º cabo  inf  nº 188/41, 1º Pelotão, 3ª Companhia, 1º Batalhão, Regimento de Infantaria nº 5 (Caldas da Rainha). Esteve no Mindelo, Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, entre Julho de 1941 e Setembro de 1943. Neste episódio, evoca alguns dos sítios da ilha por onde passou ou que conheceu: Mindelo, Lazareto, Matiota,  São Pedro, Calhau, Monte Verde, Monte Cara... Na época ainda estava longe de ser mundialmente famosa a praia da Baía das Gatas... Fala também das duras condições de vida na illha, responsável por dezenas mortes entre o pessoal do RI 23...

Vídeo: 13' 02'. © Luís Graça (2012). Alojado no You Tube > Nhabijoes




Mapa da ilha de São Vicente (Cortesia de Wikipédia):   A azul, assinalam-se alguns dos topónimos aqui referidos na entrevista dada por Luís Henriques, em 10 março de 2010. Morreu em 8 de abril de 2012, sem nunca ter voltado a São Vicente, ilha de que falava com muito afeto...

(...) São Vicente (em crioulo: Sanvicente ou Soncente) é a segunda ilha mais populosa de Cabo Verde, localizada no grupo do Barlavento, a noroeste do arquipélago. O canal de São Vicente separa-a da vizinha ilha de Santo Antão. O Aeroporto Internacional Cesária Évora localiza-se a sul da cidade do Mindelo, o principal centro urbano da ilha e segunda maior cidade do país, onde se concentra grande parte da população da ilha que no seu todo conta com 74.136 habitantes. Mindelo é frequentemente considerada informalmente a capital cultural de Cabo Verde

A ilha, de aspecto seco e árido, tem na pesca, no turismo e na exploração do seu movimentado porto de mar ― o Porto Grande ― as suas principais fontes de receita.  São Vicente tem muitos pratos típicos, muitos deles tendo o marisco por base. Para além da célebre "cachupa", pontificam o "arroz de cabidela de marisco à Dadal" e o "guisado de percebes".

São Vicente é também conhecida pelo Festival de Música da Baía das Gatas ― realizado no primeiro fim-de-semana de lua cheia do mês de Agosto ― e por ser a terra natal da célebre cantora Cesária Évora " (...).


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Nota do editor:

Último poste da série > 21 de agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10284: Meu pai, meu velho, meu camarada (31): Expedicionários em Cabo Verde, mortos entre 1903 e 1946 e inumados nas ilhas de São Vicente e Sal (Lia Medina / José Martins)

Guiné 63/74 - P10419: Do Ninho D'Águia até África (11): Zarco, o combatente (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (11)

Zarco, o combatente!

O dia, é de calor infernal, húmido e abafado.
A população no aquartelamento cresceu.
Há grande movimentação de militares.

Chegam tropas da capital da província, onde vem parte de uma companhia de Pára-quedistas, onde vem o Zarco, amigo do Cifra. Um grupo de comandos especiais, que se tinha há pouco formado na capital da província, com elementos africanos, comandados por um capitão que tinha sido promovido a este posto por actos de bravura, em combate, não por frequentar a academia militar ou a universidade. O Cifra reparou neste capitão, aliás, todos repararam, pois chegou ao aquartelamento, sozinho conduzindo um jeep, quando saltou para o chão o jeep ainda rodou por uns segundos, até que parou. Trazia um camuflado, já coçado, justo ao corpo e curto, mangas muito arregaçadas, um emblema dos Comandos um pouco grande ao peito, quase em cima do bolso, o Cifra não se recorda se tinha umas luvas pretas nas mãos e um lenço amarelo ao redor do pescoço, mas parece que sim, umas botas de cabedal, pretas, altas com muitos fios de cor branca, a ataremnas, e muito bem engraxadas, luziam mesmo. O cinto caído de um lado, onde estava uma pistola, usava na cabeça uma boina vermelha de lado e uns óculos de aviador escuros, onde não se viam os olhos.

Diziam que era um puro guerreiro, talvez um louco, quem sabe. Até se dizia que esse capitão tinha apostado que, por “vinte pesos”, ou seja vinte escudos, sozinho, com um jeep com o tanque cheio de gasolina, uma pistola e uma granada no bolso, era capaz de ir até ao norte da província, até à fronteira, e regressar vivo e sem nada lhe acontecer.
Podia ser verdade, mas parecia, incrível. E alguns diziam: - Melhor que isto, só uma película do John Wayne!.

Também chegou um batalhão de artilharia que tinha chegado há pouco à província, e que faria o seu baptismo em combate.

Os helicópteros trazem pessoas importantes. Parecem importantes, pois trazem vestido camuflados novos, mas têm cara de velhos, alguns com cabelos já brancos. Também trazem preso no cinto uma pistola dentro de um coldre, e outro objecto que parece ser uns binóculos, tudo muito limpinho, um, também trás uma máquina de filmar, ou câmara fotográfica, o Cifra não recorda, mas parecia máquina de filmar, pois esse militar gesticulava com os braços, mandando as pessoas saírem da frente, e colocava-a na cara por alguns segundos, e depois dava a uma manivela falando um pouco mais alto que o normal, parecendo ser o lider.

Anda pó no ar, respira-se o ar quente e húmido que entra nas narinas, e faz as pessoas, transpirarem e molharem o camuflado.

Os militares de acção andam aflitos e na expectativa, não há alojamento para tanta gente, ocupam quase toda a área do aquartelamento, dão-se dois passos e tropeça-se em qualquer coisa. Há muito lixo pelo chão. O cheiro a gasóleo, dos motores das viaturas, que não param de trabalhar, sufocam. Há outro cheiro esquisito, que deve ser das fardas de camuflado novas, dos soldados do batalhão de artilharia.

Enfim, é um pandemónio nesse fim de tarde, que se prolonga por toda a noite.

O Zarco pede água ao Cifra, talvez lembrando a água pura e cristalina que bebia na montanha, donde era oriundo em Portugal.
- Por favor, dá-me água, só água, mais nada.

Os lábios estão secos, os olhos fixos em qualquer coisa que ninguém sabe o que é. Naquele momento o Cifra não reconhece o amigo, alegre e descontraído, que costumava ser o Zarco, quando o visitava na capital da província, e até recordou uma dessas visitas em que se juntou um grupo de amigos, num sábado à tarde, e se bebeu um barril de vinho, roubado no quartel que no final, para não haver vestígios, foi queimado.

O Cifra caminha por entre todo este pandemónio, que neste momento é o seu aquartelamento, cheio de receio, pois vê tantos militares, tantas armas e outro material bélico, que até lhe dão umas náuseas, que deve ser do receio que sente, e tem que por as mãos na boca algumas vezes, para não vomitar, pois, como os leitores já sabem, o Cifra é um razoável militar, mas um fraco guerreiro e nunca se sentiu confortável em zona de conflito.

Na madrugada do dia seguinte começam a sair do aquartelamento. Todas as unidades militares abandonam a área do aquartelamento, quase ao mesmo tempo, é um comboio de viaturas. Os helicópteros fazem um ruído ensurdedor, levantando pó, folhas e lixo.

(O relato de acção que se segue, foi descrito por alguns intervenientes, principalmente o Zarco, amigo do Cifra, e confirmado pelos relatórios que chegavam à mão do Cifra, passou-se mais ou menos isto, poderá haver erros de descrição, o que, se alguns intervenientes, ainda vivos, souberem, por favor expliquem com mais pormenores, esta operação decorreu na região do Oio, em princípios de 1965, talvez Fevereiro ou Março, e o objectivo creio que era base de “casas mato”, em Morés, ou nas proximidades de Morés, e sairam do aquartelamento de Mansoa).

Avançam no terreno por algum tempo da manhã.

Deixam os militares no local, que entendem que é ideal, e as viaturas regressam, com algumas forças, só para manterem segurança, ficando a uns quilómetros do aquartelamento onde existe um pequeno posto avançado, junto a uma ponte de um pequeno rio. A missão deste conjunto de tropas era a destruição de uma importante base de guerrilheiros que controlava, há já bastante tempo, determinada zona.

Quando estão próximo do que julgam ser o objectivo, um avião, vindo da capital da província, passa rasteiro, largando umas bombas que normalmente continham napalme, o pelotão de morteiros, já posicionado, lança algumas granadas.

Não se ouve um só tiro de resposta.

Os guerrilheiros do acampamento inimigo, a tal base, que normalmente era um acampamento disfarçado de aldeia, a que os informadores dos militares chamavam “casas de mato”, por vezes com vários túneis, onde até havia compartimentos, e onde normalmente todo este cenário estava localizado debaixo de frondosas árvores para não se ver do ar. Os guerrilheiros, avisados de todo aquele aparato militar, tinham abandonado essa base, com quase todo o equipamento, e tinham-se deslocado para outro local, um pouco mais ao sul, cobrindo diferentes áreas, no terreno, próximo e por trás de onde se encontravam neste momento as forças militares.

Passado pouco tempo de o avião passar, largando as bombas, e de o pelotão de morteiros ter lançado algumas granadas, a retaguarda das forças militares posicionadas no terreno, começam a ser flagelados por granadas de morteiro, em diversas direcções.

Enquanto as forças militares se posionam de novo, sofrem pelo menos dois mortos, nos soldados do batalhão de artilharia, que por alguma inexperiência se expuseram. Pedem ajuda do avião que demora uma eternidade, pois tinha que ser de novo abastecido na capital da província.

Os guerrilheiros, com experiência em guerrilha, disparavam granadas de morteiro de diferentes direcções, assim como rajadas de metralhadora. Era um ataque às forças militares de pura guerrilha, género de dispara e foge, mas de diferentes áreas ao mesmo tempo.

Os comandos, do tal capitão, as tropas pára-quedistas e alguns militares de acção, já com alguma experiência e mais corajosos, avançam de arma em punho, tentando abrir algumas clareiras, fazer algumas baixas nos guerrilheiros, ou fazendo-os recuar, mas era difícil, mesmo muito difícil, pois não os viam, nem sabiam onde estavam localizados. Os guerrilheiros conheciam o terreno, disparavam de diferentes direcções e movimentavam-se rápido, com eficácia. Tinham também alguma organização, eram muitos, tinham boas armas, conheciam a área onde actuavam e usavam o género de guerrilha traiçoeira de dispara e foge, cobrindo-se sempre uns aos outros.

Os oficiais, no terreno, sabiam que era uma questão de tempo, sabiam o género de guerrilha que o inimigo usava e sabiam que passado pouco tempo, iria recuar para outras áreas. Os militares já tinham algumas baixas. Os helicópteros tinham regressado ao aquartelamento com as tais pessoas importantes, pois só deviam ter ido à zona do conflito, talvez para analizarem o local, ou tirarem fotografias, e estavam estacionados no aquartelamento, com as hélices a trabalhar em movimento lento, mas a levantarem algum pó e lixo, e não deslocariam tão depressa, pois o tiroteio continuava intenso no local do conflito.

Mas voltando à zona de combate, o Zarco, num ascesso de fúria e raiva, sai com o seu grupo em direcção a certa área de onde vinham constantes disparos que já tinham feito um morto. Vai de arma em punho, disparando debaixo de fogo. Três elementos do seu grupo são atingidos e caiem. Ele ainda não foi atingido, atira-se ao chão, o fogo é cerrado, não o deixa levantar. Um do seu grupo grita com dores, com parte do estômago destroçado por rajadas de metralhadora.

Os tiros abrandam.

O Zarco rasteja até ao colega do seu grupo com o estômago destroçado, que lhe pede, aos soluços, deitando algum sangue pela boca:
- Por favor, Zarco dá-me um tiro na cabeça e termina comigo, pois não suporto mais a agonia destas malditas dores. Pega nele conforme pode, corre para trás, onde pensa que se encontra a barreira das tropas, anda por algum tempo sem orientação, com o corpo do companheiro ferido às costas, que continua a pedir-lhe para o matar e acabar com aquela agonia insuportável. Por fim chega junto da tropa, com os olhos chorosos e vermelhos de fúria e raiva, a boca seca, o corpo curvado com o peso do companheiro nas costas, banhado em sangue e sem vida. Quando poisou o corpo do companheiro no chão, verificou que este lhe tinha salvo a vida, pois estava com várias balas de metralhadora, alojadas nas costas, servindo-lhe de escudo durante a fuga para junto das forças militares.

Chega o avião de novo, que orientado por alguém com poderes para isso, usa o telefone do Trinta e Seis, o tal soldado telegrafista, baixo e forte na estatura, a quem o Curvas alto e refilão obedecia e não refilava, que com uma calma fora do normal, diz, referindo-se à área onde pensa que se encontram os guerrilheiros:
- Larga as bombas, aí, incendeia essa área, onde estão esses filhos da puta, que isto vai terminar já!

Tal como ele disse, passado uns minutos, deixou de se ouvir tiros, tudo isto, muito antes do anoitecer, pois os guerrilheiros, possívelmente, com algumas baixas, deslocaram-se para outras áreas. As forças militares recolheram os mortos, chamaram os helicópteros para transporte dos feridos mais graves para o hospital da capital da província, e as viaturas regressaram ao aquartelamento antes da noite.

A base foi destruída, tendo sido capturado algum material bélico dos guerrilheiros. Soube-se mais tarde que as forças militares fizeram dezenas de mortos nos guerrilheiros e que estes os vieram buscar ao terreno durante a noite. O batalhão de artilharia, que tinha chegado há pouco à província, teve o seu baptismo em combate, com alguns mortos, que era um dos principais objectivos dos guerrilheiros, para desmoralizar os restantes militares do referido batalhão.

Diziam, mas não fazia parte de qualquer relatório, que foram os comandos do tal capitão e as tropas para-quedistas, juntamente com alguns militares de acção, mais corajosos, que salvaram o batalhão de artilharia, de não ter dezenas de mortos. Até diziam que o tal capitão, debaixo de fogo, falava em código e por sinais para os seus comandos e que tinha um sangue frio e eficácia nos movimentos, como se estivesse num ambiente calmo, e não no meio de um terrível conflito.

Talvez não fosse verdade, mas dizia-se.

O Zarco foi condecorado com a medalha de cruz de guerra, por valentia em zona de combate, por altura do dia dez de Junho, no Terreiro do Paço, em Lisboa.

O Curvas, o tal soldado alto e refilão, foi ferido com estilhaços de granada de morteiro numa perna, de um lado, mas recusou-se a ser evacuado para o hospital da capital da província, recebeu tratamento no aquartelamento, vindo a tirar os estilhaços só quase no final da comissão.

Mais tarde foi louvado e condecorado, juntamente com o Setúbal, no meio do aquartelamento, perante todos os militares, numa história, que mais para a frente contaremos.

Às vezes o Curvas alto e refilão, dizia, referindo-se a esta operação de destruição, da base dos guerrilheiros:
- Pareciam o diabo, pareciam fantasmas, estavam sempre por trás, ou onde nós não os podíamos ver, porque se eu os visse, matava-os a todos!

O Cifra não mais teve notícias do tal capitão, chefe do grupo de comandos especiais, mas pelo desenvolvimento que a guerra tomou, na referida província, ou morreu em combate, ou deve ter chegado a general.
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Nota de CV:

Vd. postes anteriores da série de:

21 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10177: Do Ninho d' Águia até África (1): Mobilização e partida para um Comando de Agrupamento (Tony Borié, ex-1º cabo cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

 24 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10190: Do Ninho d'Águia até África (2): Montando o Centro de Cripto (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

 31 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10212: Do Ninho d'Águia até África (3): Uma pausa para reflectir, guerra é guerra (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

 4 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10225: Do Ninho d'Águia até África (4): No aquartelamento, quase em final de construção (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)

13 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10260: Do Ninho d'Águia até África (5): Em cenário de guerra deixas de ser tu (Tony Borié)

21 de Agosto de 2012 > Guiné 63/74 - P10285: Do Ninho d'Águia até África (6): Apanhado pelo clima (Tony Borié)

6 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10336: Do Ninho d'Águia até África (7): O abastecimento ao aquartelamento (Tony Borié)

11 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10365: Do Ninho d'Águia até África (8): O "Arroz com pão" (Tony Borié)

 15 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10388: Do Ninho d'Águia até África (9): Orquídea Negra da lama da bolanha (Tony Borié)
e
18 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10403: Do Ninho D'Águia até África (10): Minas na estrada (Tony Borié)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10418: Blogoterapia (217): Mário Tito, aliás, Mário Serra de Oliveira, camarada da diáspora, está disponível, em 27 de outubro, no lançamento do seu livro, ou então na 1.ª quinzena de novembro, para estar com os camaradas de cá, para "papiar crioulo" e "parti mantenha e lembra tempo di tuga"

1. Comentário do Mário Tito, aliás, Mário Serra de Oliveira (, camarada da diáspora, que vive nos EUA), ao poste P10376:

Amigos Guineenses e Camaradas ex-combatentes:

Com um abraço fraterno a todos, gostaria de solicitar "dicas" de locais onde poderei confraternizar com o pessoal da Guiné, durante a minha curta estadia em Portugal - 25 de Outubro a 20 de Novembro - durante a qual terei alguns dias ocupados mas na maioria livres.

Vejamos:

(i) Chego a Lisboa a 25 de manhã;


(ii) seguirei para a minha aldeia  o Alcaide (Fundão);

(iii) regresso a Lisboa no dia seguinte para ultimar pormenores com editora do meu livro - PALAVRAS DE UM DEFUNTO, ANTES DE O SER - cujo lançamento será dia 27;

(iv) Dia 28 vou ao Luxemburgo e regresso dia 31, seguindo novamente para a minha aldeia;

(v) Depois disso, sou "todo vosso" e do pessoal da Guiné que acaso estejam disponíveis para "papiar crioulo" e "parti mantenha e lembra tempo di tuga";

(vi) até dia 14 de Novembro...

(vii) porque, dia 16-17-18, é a festa dos míscaros (cogumelos) na minha aldeia onde vou estar novamente a tentar vender alguns livros;

(viii) convido a todos que possam visitá-la, porque segundo consta é muito bonito; eu nunca lá estive; só consta que, no ano anterior, visitaram a aldeia cerca de 30 mil pessoas.

Assim, aqui fica o convite. Mário.


2. Mensagem, de hoje, do Mário Tito, a propósito de comentário do editor L.G. ao poste P10413, sobre os topónimos da Guiné do nosso tempo com mais "marcadores" no nosso blogue (Guileje e Bambadinca, à cabeça, com mais de 350, à frente de Bissau (270), Mansoa (270), Nhacra (220), Bafatá (190),Nova Lamego/Gabu (190), Mampatá (190), Gadamael (180), Mansambo (180), Bula (180), Buba (170), Xime (170), Teixeira Pinto/Canchungo (170) Guidaje (160), Bissorã (160), Mansabá (160), Catió (160), Galomaro (150), Gandembel (140), Missirá (120), Xitole (110), Farim (100)...

Prezado Camarada L. Graça:

Ainda bem que a frase final, ilumina a questão que se me pôs na minha c.c.c., quando li Bissau na lista dos "top ten".


Não dei um salto mas tive um sobressalto, assim como que uma reacção de antecipação - coisa que tem faltado há muitos anos - aos jogadores do Sporting, clube do qual o meu infortúnio de inclinação desportiva me condenou até à morte. Raios partam a minha sorte!... Não me poderia ter calhado pelo menos o Sporting da Covilhã - a 17 Km da minha Aldeia mas a milhas do meu coração?

(...) Bem, já (...) me desviei do que ia a dizer sobre Bissau: Então se eu estive ali quase 15 anos e nunca senti o "quentinho" dos "gafanhotos" tracejantes e luminosos durante a noite... como é que Bissau figurava (essa era a minha questão inicial, quando me sobressaltei, ao fim destes anos todos, quando, só por ler, uma referência a Bissau estar) entre os 10 mencionados locais.

Bem me parecia que era só por uma questão de estatística do que de outra coisa.

Verdade se diga, há que delimitar um perímetro de efectividade de zonas "quentes"... diria eu que... durante a maior parte do tempo, teria que se considerar mais uma meia-lua circular à volta de "Biombo Cumerú", como zona mais ou menos segura na parte interior da meia-lua e, a partir dali, no lado exterior da meia-lua, já "cheirava a cacimbo".

Honra seja feita a todos os que estiveram na parte de fora da "meia-lua".

Bem, não levem a mal pela "laracha". É só para tentar divertir-me, tal como me tenho divertido - hoje mais uma vez - com os resultados do Sporting. Aleluia... que não perderam!

Abraço a todos.
Mário Oliveira.

1.º Cabo Amanuense 262 da BA12 - 67/68 (residente em Bissau até Agosto de 1981).
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Nota do editor;

Último poste da série > 12 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10372: Blogoterapia (216): As amizades são para serem vividas (José Câmara / Carlos Vinhal)

Guiné 63/74 - P10417: Passatempos de verão (14): Composição fotográfica CCAÇ 2317 - Pioneiro de Gandembel (Joaquim Gomes Soares)

1. O nosso camarada Joaquim Gomes Soares (ex-1.º Cabo da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835, Gandembel / Ponte Balana, 1968/70), em mensagem do dia 19 de Setembro de 2012, mandou-nos esta composição fotográfica para publicação no nosso Blogue:


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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10407: Passatempos de verão (13): Lorde Byron e o cerco de Missilonghi (Mário Beja Santos)