Foto (e legenda): © Armando Pires (2012). Todos os direitos reservados.
1. Segundo poste da série, dfe acordo com o texto enviado em 3 do corrente pelo Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)
Meu Caro Luís Graça, Camarada:
Com o atraso que as circunstâncias impuseram, mas que a atempada justificação há-de ter relevado, envio o segundo texto da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".
Com este relato, permite-me que queira homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Pimenta, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.
1. Segundo poste da série, dfe acordo com o texto enviado em 3 do corrente pelo Armando Pires (ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAÇ 2861, Bula e Bissorã, 1969/70)
Meu Caro Luís Graça, Camarada:
Com o atraso que as circunstâncias impuseram, mas que a atempada justificação há-de ter relevado, envio o segundo texto da série "Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista".
Com este relato, permite-me que queira homenagear o Doutor Chaves Ferreira e o Engenheiro Agrónomo João Pimenta, meus amigos na Guiné e meus amigos na vida que a eles faltou tão cedo e de forma tão trágica.
2. Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (2): Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre.
“…poderás contar a tua experiência como militar, muito mais, como elemento do Serviço de Saúde do Exército Português, que tinha na nossa guerra uma função ímpar junto da população nativa. Tens que nos contar tudo.”
Carlos Vinhal, em comentário ao P4778 [, poste de 4 de agosto de 2009, em que foi apresentado à Tabanca Grande]
“…poderás contar a tua experiência como militar, muito mais, como elemento do Serviço de Saúde do Exército Português, que tinha na nossa guerra uma função ímpar junto da população nativa. Tens que nos contar tudo.”
Carlos Vinhal, em comentário ao P4778 [, poste de 4 de agosto de 2009, em que foi apresentado à Tabanca Grande]
- Então doutor, o puto safa-se?
Não me respondeu. Limitou-se a olhar-me assim como quem diz “vamos ver”, e a dizer-me com um sorriso benevolente:
- Vá lá dormir que você está com cara de quem precisa de descansar.
Voltei-me e dei de caras com a mulher mandinga, sentada junto à porta da enfermaria. O cansaço deixara-lhe os olhos raiados de sangue, o rosto era todo ele a máscara do desespero. Só agora reparava que nunca lhe vira, em toda a noite, verter uma lágrima. Parecia perguntar-me, “onde está o meu filho?”, “vais-te embora e deixa-lo ficar aqui?”, “não me dizes nada?”, e eu procurei dizer sem saber o que dizer. Com um sorriso, talvez meio idiota talvez meio confiante, pedi-lhe que tivesse calma, que o filho estava vivo e que os doutores iam tratar dele para que o pudesse levar de volta a casa.
A mulher mandinga não percebeu uma palavra do que lhe disse mas deixei alguém para lhe traduzir.
Fora uma longa e terrível noite, aquela porque passámos.
Saí do Hospital Civil de Bissau, rua fora em direcção ao Grande Hotel onde o Santos, o furriel vagomestre que ficara a tratar dos assuntos do nosso Batalhão, recebera um pedido meu de ali reservar um quarto, sempre que via rádio lhe dissessem que eu vinha à cidade.
O cansaço não permitiu que despisse, sequer, o camuflado. Deixei-me cair sobre a cama desfrutando da tremenda paz interior que sentia.
Conseguimos!... Saíra de Lisboa lançando a mim próprio um desafio. Não deixar que se perdesse uma vida até à chegada do socorro. Desafio tonto, arriscado e insensato, sem dúvida, mas resultado da brutal bofetada que a minha consciência levara, num certo fim de tarde, no Hospital Militar Principal.
Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.
Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.
Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.
Assim, longe da vista, Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.
Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.
Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.
Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era, levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3ª e 5ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.
Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?
Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.
À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.
Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.
E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.
Acabara o meu turno de entrar de serviço às urgências, ali pelas seis da tarde, quando chega, de ambulância, um jovem cadete da Academia Militar. Foi-lhe diagnosticada uma peritonite aguda e enviado de imediato para o bloco operatório. O sargento-enfermeiro de dia recebeu ordens do médico cirurgião para preparar os estagiários, afim de seguirem a intervenção.
Começa a cirurgia e nós a vermos. Subitamente, através daquela abertura que fizera no abdómen do doente, o médico retira algo com mão, olha para mim, que a curiosidade levara a ficar à frente, e pergunta:
- O que é isto?
O puto ignorante mas atrevido que eu era, responde sem balbuciar:
- É o fígado, senhor doutor.
Julguei perceber-lhe um esgar por detrás da máscara ao mesmo tempo que o ouvi gritar para não sei quem.
- Tirem-me imediatamente daqui estes gajos.
Eramos quatro estagiários. Fomos levados para um gabinete onde permanecemos, possuídos de um terror tal que nos impedia, sequer, de trocar uma palavra que fosse. Até que, uma eternidade depois, dentro de uma bata de um branco imaculado, onde o negro e dourado dos galões de major ganhavam ainda mais peso, chegou o cirurgião.
De pé e silêncio. Os traços tensos do seu rosto não deixavam margem para duvidar do que ali o levava. O que nos disse sobre a nossa irresponsabilidade, só eu sei. Enquanto perguntava se sabíamos o que de nós esperavam milhares de homens lá na guerra, procurava o adjectivo capaz de melhor ferir a nossa consciência.
- Quanto estiverem lá no mato e um homem tombar às balas, julgam que alguém vai perguntar onde está a mãe dele? Não, meninos, o que vão ouvir é alguém gritar, 'Enfermeiro à frente!'. E vocês fazem o quê? Julgam que têm à mão um hospital como este? Se o homem morrer porque não foram capazes de o manter vivo até chegar ao médico, o que vão dizer aos vossos camaradas? E à família, vão ser capazes de a enfrentar?
Não perguntei, não soube e ainda não sei, se os meus três camaradas ali presentes eram tão ignorantes como eu ou se apenas levaram uma enorme piçada por minha culpa. Sei que aquilo me deixou de rastos. Eu não sabia se alguma vez iria para o mato, mas aquelas palavras, tão duras, acabaram por fazer de mim um enfermeiro militar. Os meses seguintes passei-os de enfermaria em enfermaria, a ver, a perguntar e a aprender.
Até que chegou Setembro de 68. Foi-me entregue uma guia de marcha para Chaves, onde iria integrar um Batalhão de Caçadores com destino à Guiné. Foi nesse mesmo dia que me desafiei:
- Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre.
Desafio tonto, arriscado e insensato. Sem dúvida. Mas eu, aos vinte anos, queria lá saber disso.
(Continua)
_______________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 9 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10354: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (1): A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança, no EREC 2454, do cap cav Manuel Monge
Não me respondeu. Limitou-se a olhar-me assim como quem diz “vamos ver”, e a dizer-me com um sorriso benevolente:
- Vá lá dormir que você está com cara de quem precisa de descansar.
Voltei-me e dei de caras com a mulher mandinga, sentada junto à porta da enfermaria. O cansaço deixara-lhe os olhos raiados de sangue, o rosto era todo ele a máscara do desespero. Só agora reparava que nunca lhe vira, em toda a noite, verter uma lágrima. Parecia perguntar-me, “onde está o meu filho?”, “vais-te embora e deixa-lo ficar aqui?”, “não me dizes nada?”, e eu procurei dizer sem saber o que dizer. Com um sorriso, talvez meio idiota talvez meio confiante, pedi-lhe que tivesse calma, que o filho estava vivo e que os doutores iam tratar dele para que o pudesse levar de volta a casa.
A mulher mandinga não percebeu uma palavra do que lhe disse mas deixei alguém para lhe traduzir.
Fora uma longa e terrível noite, aquela porque passámos.
Saí do Hospital Civil de Bissau, rua fora em direcção ao Grande Hotel onde o Santos, o furriel vagomestre que ficara a tratar dos assuntos do nosso Batalhão, recebera um pedido meu de ali reservar um quarto, sempre que via rádio lhe dissessem que eu vinha à cidade.
O cansaço não permitiu que despisse, sequer, o camuflado. Deixei-me cair sobre a cama desfrutando da tremenda paz interior que sentia.
Conseguimos!... Saíra de Lisboa lançando a mim próprio um desafio. Não deixar que se perdesse uma vida até à chegada do socorro. Desafio tonto, arriscado e insensato, sem dúvida, mas resultado da brutal bofetada que a minha consciência levara, num certo fim de tarde, no Hospital Militar Principal.
Eu nunca fui enfermeiro. A colocação de um penso rápido deve ter sido o que me deixou mais próximo dessa actividade. Quando o Luís Graça me sugeriu como titulo para esta série, “Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista” (*), aceitei não por ser uma marca distintiva de mim mas, como escreveu o poeta, por as coisas andarem todas ligadas.
Ribatejano sim, nasci em Santarém. Fadista, aceito na medida em que, naquele tempo e sem modéstia nenhuma, não era nada mau a cantar. Enfermeiro, só o fui por ser ribatejano e fadista.
Quando chegou a hora de assentar praça, Janeiro de 67, o meu destino era a Escola Prática de Cavalaria, em Santarém. Mão invisível desviou-me a trajectória para o Regimento de Infantaria 5, nas Caldas da Rainha. Havia muita gente que não se conformava com a ideia de que a disciplina e as regras militares lhes roubasse “o artista”.
Assim, longe da vista, Caldas com ele. Foram três meses dedicados à tropa e à noite.
Finda a recruta, o comboio levou-me para Tavira, onde no CISMI seria preparado para a especialidade de atirador. As saudades das amigas e dos amigos, da noite e do fado, que estavam a 380 Kms de distância, tornaram devastadora aquela primeira semana ali metido.
Chega segunda-feira e entra um gajo a segredar-nos que conseguira uma cunha do caraças, que ia dar baixa ao hospital, que ia para Lisboa e etc., provocação suficiente para pôr em marcha toda a minha capacidade inventiva.
Acontece que numa certa tarde de domingo, na praça de touros da Figueira da Foz, a promessa de forcado que eu era, levou um encontrão de um touro que lhe deixou fortes mazelas nas 3ª e 5ª vértebras lombares. Morreu ali o forcado mas eu ganhara um motivo para, tempos depois, gritar ao alferes que comandava a marcha naquela manhã de segunda-feira, por entre gemidos e ais, que a minha coluna claudicara.
Vim nessa tarde para Lisboa, de ambulância, de baixa ao hospital militar. Deixemos de lado a parte da medicina e vamos à hora das decisões. Que fazer depois da alta? Para onde ir?
Se forem à minha “carta de apresentação” aqui na Tabanca, vão lá encontrar escrita esta parte da história que decidiu o meu futuro militar.
À entrada do Parque Mayer havia um bar (ainda lá se veem as ruínas) chamado Dominó, ponto de encontro e de partida para o que de melhor a noite tinha para nos oferecer. Numa dessas noites, foi ali que uma amiga me disse que tinha uma amiga que, por sua vez, tinha um amigo que trabalhava nos serviços mecanográficos do exército. Na noite seguinte, juntámo-nos os quatro à mesa e ele perguntou o que pretendia eu.
- Ficar em Lisboa, pá. Quero ficar aqui, vê lá o que se arranja. Trabalho na rádio, talvez possa ir para foto-cine.
Diz-me que em Lisboa só dava para enfermeiro.
- Que se lixe, pá. Eu quero é ficar aqui.
E foi assim, ficando as coisas todas ligadas, que nasceu o “furriel enfermeiro, ribatejano e fadista”. Três meses de displicentes presenças nas aulas teóricas de enfermagem a que se seguiram mais três meses de estágio, passados nas diversas enfermarias do Hospital Militar.
Acabara o meu turno de entrar de serviço às urgências, ali pelas seis da tarde, quando chega, de ambulância, um jovem cadete da Academia Militar. Foi-lhe diagnosticada uma peritonite aguda e enviado de imediato para o bloco operatório. O sargento-enfermeiro de dia recebeu ordens do médico cirurgião para preparar os estagiários, afim de seguirem a intervenção.
Começa a cirurgia e nós a vermos. Subitamente, através daquela abertura que fizera no abdómen do doente, o médico retira algo com mão, olha para mim, que a curiosidade levara a ficar à frente, e pergunta:
- O que é isto?
O puto ignorante mas atrevido que eu era, responde sem balbuciar:
- É o fígado, senhor doutor.
Julguei perceber-lhe um esgar por detrás da máscara ao mesmo tempo que o ouvi gritar para não sei quem.
- Tirem-me imediatamente daqui estes gajos.
Eramos quatro estagiários. Fomos levados para um gabinete onde permanecemos, possuídos de um terror tal que nos impedia, sequer, de trocar uma palavra que fosse. Até que, uma eternidade depois, dentro de uma bata de um branco imaculado, onde o negro e dourado dos galões de major ganhavam ainda mais peso, chegou o cirurgião.
De pé e silêncio. Os traços tensos do seu rosto não deixavam margem para duvidar do que ali o levava. O que nos disse sobre a nossa irresponsabilidade, só eu sei. Enquanto perguntava se sabíamos o que de nós esperavam milhares de homens lá na guerra, procurava o adjectivo capaz de melhor ferir a nossa consciência.
- Quanto estiverem lá no mato e um homem tombar às balas, julgam que alguém vai perguntar onde está a mãe dele? Não, meninos, o que vão ouvir é alguém gritar, 'Enfermeiro à frente!'. E vocês fazem o quê? Julgam que têm à mão um hospital como este? Se o homem morrer porque não foram capazes de o manter vivo até chegar ao médico, o que vão dizer aos vossos camaradas? E à família, vão ser capazes de a enfrentar?
Não perguntei, não soube e ainda não sei, se os meus três camaradas ali presentes eram tão ignorantes como eu ou se apenas levaram uma enorme piçada por minha culpa. Sei que aquilo me deixou de rastos. Eu não sabia se alguma vez iria para o mato, mas aquelas palavras, tão duras, acabaram por fazer de mim um enfermeiro militar. Os meses seguintes passei-os de enfermaria em enfermaria, a ver, a perguntar e a aprender.
Até que chegou Setembro de 68. Foi-me entregue uma guia de marcha para Chaves, onde iria integrar um Batalhão de Caçadores com destino à Guiné. Foi nesse mesmo dia que me desafiei:
- Enquanto não chegar a evacuação, ao meu lado ninguém morre.
Desafio tonto, arriscado e insensato. Sem dúvida. Mas eu, aos vinte anos, queria lá saber disso.
(Continua)
_______________
Nota do editor:
(*) Vd. poste de 9 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10354: Furriel enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (1): A estreia de um fadista ou a desesperança do Esperança, no EREC 2454, do cap cav Manuel Monge