1. Em mensagem do dia 21 de Setembro de 2013, o nosso camarada Abílio Magro (ex-Fur Mil Amanuense. CSJD/QG/CTIG, 1973/74), ao contrário do que costuma fazer, fala-nos muito a sério de um caso que se multiplicou por muitos, o abandono puro e simples dos nossos camaradas Guineenses.
Um Amanuense em terras de Kako Baldé
(Para quem não sabe, Kako Baldé era o nome por que era conhecido, entre a tropa, o General Spínola. Kako – (caco) lente que o General metia no olho. Baldé – Nome muito comum na Guiné)
11 - Djassi, o ordenança
Como já referi em
post anterior, prestei serviço na CSJD/QG/CTIG (Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel General do Comando Territorial Independente da Guiné) situado nas instalações militares de Santa Luzia.
Há quem, neste blogue, confunda o QG/CTIG com o QG da Amura. Aí estava instalado o QG/CCFAG (Quartel General do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné. Isto é: O QG/CTIG era o Quartel General do Exército, enquanto o QG/CCFAG era o Quartel General de todas as Forças Armadas em serviço naquele território.
No tempo em que por ali andei (1973/74), o primeiro foi comandado pelo Brigadeiro Alberto da Silva Banazol e depois pelo Brigadeiro Galvão de Figueiredo; o segundo pelo General Spínola e depois pelo General Bettencourt Rodrigues.
Em Agosto de 1974 na CSJD tínhamos um ordenança, o Djassi, soldado nativo que aparentava ter já ultrapassado os 30 anos de idade e que, enquanto operacional, foi gravemente ferido, tendo-lhe sido retirado um pulmão e integrado nos serviços auxiliares, sendo ali colocado para efectuar pequenas tarefas relacionados com aquele Serviço.
O Djassi apresentava invariavelmente um semblante carregado e raramente esboçava qualquer sorriso, denotando, porventura, algum sofrimento pelo seu débil estado de saúde, mas era um indivíduo afável, educado, disciplinado e prestável. Dava gosto lidar com ele. Nunca o vi aceitar com azedume qualquer tarefa oficial ou particular que se lhe solicitasse.
Nessa altura, Agosto de 1974, já muitas Companhias tinham abandonado os seus quartéis no mato e regressado à Metrópole, e outras encontravam-se estacionadas em Bissau a aguardar igual destino.
Por essa razão, estavamos assoberbados com papelada decorrente do "fecho de contas" daquelas Companhias o que indiciava que nós, os do "ar condicionado" seríamos talvez os últimos a "abandonar o barco".
A situação era confusa. Sabíamos que iríamos abandonar a Guiné, mas não sabíamos como, nem se o faríamos definitivamente, nem quando.
Começou a correr a informação de que a partir de finais de Agosto não seriam autorizadas férias a ninguém.
Ora, eu e o meu camarada Silva do Barreiro, nessa altura já os mais "velhinhos" da CSJD com excepção do Ten Cor e do Major, estávamos há já mais de um ano sem gozar férias e começamos logo a tratar da papelada para o efeito.
Lá viemos de férias em meados de Agosto e, entretanto, o "êxodo" continuava e com maior cadência.
Findas as férias, regressamos à Guiné exactamente no dia em que foi reconhecida a independência por parte de Portugal - 12 de Setembro de 1974.
As patrulhas na cidade eram efectuadas pela PM conjuntamente com elementos do PAIGC, muitos estabelecimentos tinham encerrado, a tropa que ainda restava era composta de "piriquitos" oriundos das Companhias mais recentemente chegadas à Guiné, na CSJD só o Ten Cor e o Major não tinham ainda sido substituídos, os bens escasseavam, na messe de Sargentos só se encontravam "piriquitos", etc., etc.. Ou seja: eu e o Silva estávamos completamente deslocados e se não tivéssemos a estúpida ideia de meter férias naquela altura, teríamos certamente regressado definitivamente, sem necessidade de desembolsar os "pesos" que nos custou a viagem.
Logo tratamos de, junto do Ten Cor, dar conhecimento da nossa "triste" situação e efectuar o "choradinho" adequado.
Fomos então incumbidos de queimar todo o arquivo morto da CSJD que ocupava totalmente uma daquelas pequenas vivendas tipo colonial e que era composto por processos instaurados desde o tempo em que ainda não havia guerra na "Província", após o que poderíamos "meter os papéis" para regressar à Metrópole.
A tarefa impunha alguma responsabilidade e cuidado pois não podia ficar qualquer fracção de papel por arder o que, nos processos mais volumosos, nos obrigava quase a arrancar folha por folha.
Ali estivemos quinze dias a queimar papel que, quando amontoado, nos obrigava a remexê-lo com um pau para que não se apagasse e, no fim de cada dia, só abandonávamos o local quando existissem apenas cinzas.
De quando em vez, um ou outro processo despertava a nossa curiosidade pelos objectos de prova que continha e cheguei mesmo à tentação de desviar alguns, mas o desejo de regressar a casa depressa e bem, falava mais alto.
A nossa vontade em terminar a tarefa o mais rapidamente possível era tanta que logo que o sol dava sinais de vida, lá íamos nós p'ra "incineradora" e um dia tivemos a sorte de nos cruzarmos com o Ten Cor que, talvez sensibilizado pela nossa madrugadora actividade, nos mandou chamar para que "metêssemos a papelada para bazar dali".
A tarefa ainda não estava terminada, mas o Ten Cor, face à nossa proficiência e empenho, achou por bem mandar para lá alguém mais "piriquito" e nós lá regressamos à Metrópole quinze dias depois de lá termos vindo no final das férias.
E foi numa deslocação a Bissau para, no mercado negro, "despachar" os últimos pesos que tinha comigo (na messe de sargentos de Santa Luzia já nada havia para comprar) que encontrei o Djassi, já civil e que me interpelou de uma maneira agressiva como nunca imaginei que fosse capaz, confrontando-me com a situação para a qual o Exército Português o tinha atirado e dando-me a entender que, naquele momento, para ele, eu era o representante daquele Exército e exigia-me explicações que eu não podia dar.
- Furriel, eu fui ensinado a respeitar a bandeira portuguesa desde que nasci, andei muitos anos no mato a lutar por Portugal, fui ferido várias vezes, fiquei sem um pulmão, sou português, sempre me considerei português!
- E agora, dão-me dinheiro e vão-se todos embora?! - O que vai ser de mim?! - O que é que o PAIGC vai fazer comigo?!
Naquele momento senti-me envergonhado por ainda pertencer ao Exército que abandonara à sua sorte o exemplar militar português que era o Djassi.
Emudeci e não me recordo de lhe ter dirigido grandes palavras de conforto para além de um lacónico:
"Calma, vai correr tudo bem".
Cabisbaixo e algo deprimido retirei-me do local, mas confesso que, minutos depois, o egoísmo veio ao de cima e já só pensava nas "voltas" a dar no sentido de embarcar com destino à Metrópole.
Quando, tempos depois, já na Metrópole, comecei a ouvir os noticiários sobre os fuzilamentos de antigos militares portugueses da Guiné, muitas vezes me veio à memória (e continua a vir quando se fala no assunto) o exemplar militar Djassi e questiono-me sobre o destino que teria tido e se os capitães de Abril (na altura no poder) não teriam podido fazer mais por aqueles que combateram ao nosso lado.
Há muito que tinha em mente falar sobre o Djassi, ordenança da CSJD/QG/CTIG, mas como tenho o hábito de salpicar a minha "prosa" com tiradas pseudo-humorísticas (está-me no sangue), tenho alguma dificuldade de escrita para assuntos mais sérios como este. Dispus-me agora a fazê-lo, reconhecendo, no entanto, que este episódio era merecedor de uma escrita mais adequada ao fim a que me propus:
Prestar uma sentida homenagem a todos os "Djassis" da Guiné-Bissau.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE ABRIL DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11466: Um Amanuense em terras de Kako Baldé (Abílio Magro) (10): Bombeiro (in)voluntário e outras histórias