terça-feira, 2 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14688: Ser solidário (184): O Mês da Criança na Guiné Bissau: "Mininesa i no dritu" [O nosso direito de sermos crainças]... Concerto de Karyna Gomes e convidados. na Praça Che Guevara, em Bissau, no dia 12



Programa de atividades do "Mês  Criança", que tem a presernça especial da cantora guineense Karyna Gomes, madrinha do Observatório dos Direitos da Criança. Karyna Gomes lançou ainda recentemente o seu primeiro álbum, "Mindjer". Ver aqui, no You Tube,  "Amor Livre", o single de estreia desse álum, edição da Get!Records.

Karyna Gomes é uma das revelações da música urbana da Guiné-Bissau. Mas já canta desde pequenina, e  trabalhou com outros grandes músicos...É uma mulher socialmente empenhada... É filha de pai guineense, que andou na lutou de libertação, e de mãe caboverdiana.  Estudou jornalismo no Brasil. Canta exclusivamente em crioulo. Tem página no Facebook.



Karyna Gomes, cortesia da editora Get!Records
1. Junho de 2015: Mês da Criança 
na Guiné-Bissau


A Caritas Guiné-Bissau e a FEC [, Fundação para a Fé e a Cooperação] promovem no mês de junho atividades direcionadas a crianças, pais e encarregados de educação, e público em geral com o intuito de celebrar os direitos da criança e formalizar o Observatório Nacional dos Direitos da Criança na Guiné-Bissau.

Sob o lema “Mininesa i no dritu”,  pretende-se, alertar a sociedade civil guineense para a situação atual das crianças, valorizando-as e informando sobre as suas necessidades e desafios de desenvolvimento.

As atividades, areaklizar em Bissau,  são apadrinhadas pela cantora Karyna Gomes, madrinha do Observatório dos Direitos da Criança.

Destaque  para o  o dia 12 de junho, Dia Mundial da Luta contra o Trabalho Infantil, para o Concerto de Karyna Gomes & Convidados. pelas 20h, na praça Che Guevara. Para mais detalhes, vd. o programa acima.

A celebração do mês do Mês da criança "Mininesa i no dritu " enquadra-se no âmbito do projeto "Bambaram di Mininu", é implementado pela Caritas em parceria com a FEC. É financiado pela União Europeia, tendo ainda o apoio do BAO,  Petromar e do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua.

 [Fonte: Adapt livre de notícia divulgada no sítio da FEC - Fundação Fé e Cooperação].


Capa do álbum "Mindjer", o primeiro CD de Karyna Gomes, 2014, Get!Records.  


2. Resposta de Karyna Gomes à pergunta "Por fim, como gostaria de ver a sua Guiné-Bissau daqui a 20 anos?", no âmbito de um entrevista recente,  publicada no sítio da FEC - Fundação Fé e  Cooperação


Karyna: Politicamente e socialmente estável com infraestruturas que permitam o guineense viver no seu país sem ter que imigrar. Isso significa que temos de estar bem posicionados, cada um no seu setor a contribuir de maneira substancial para o tão almejado desenvolvimento. 

Aqui não falo de arranha-céus, nem de viadutos ou de hotéis de cinco estrelas nas ilhas Bijagós, mas de um serviço público organizado com jovens competentes, bons sistemas de educação e saúde, transportes. Quero ver acabada a impunidade, quero ver a criação e a implementação de políticas e diretivas claras para orientar todos os setores de desenvolvimento.

O setor cultural é um desses setores que eu gostaria de ver desenvolvidos como ferramenta importante para o reforço da educação e do posicionamento estratégico do país a nível mundial, através da música, literatura, cinema, dança, artes plásticas, teatro, moda, etc., mas também temos outros setores como o da pesca, da agricultura e das indústrias extrativas que têm muito que desenvolver. 

Gostava de ver o crioulo oficializado, de pessoas a ler nos cafés e nas escolas. Quero ouvir que não se pratica mais a mutilação genital feminina e que não mais enviam crianças para serem mendigos na rua escondidos na capa da religião... 

Tanta coisa!!! Sim, podemos!´


Fonte: Sítio da FEC - Fundação Fé e Cooperação >  A Guiné-Bissau de Karyna Gomes [Entrevista]

Guiné 63/74 - P14687: Parabéns a você (914): António Barbosa, ex-Alf Mil Op Esp do BART 6523 (Guiné, 1973/74) e Osvaldo Colaço Pimenta, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 (Guiné, 1973/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14681: Parabéns a você (913): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1968/70)

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14686: Cartas de amor e guerra (Renato Monteiro, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70; e CART 2520, Xime, 1970) (Parte I): Os nossos romances deviam ter um final feliz!...


Carta enviada pelo Renato Monteiro, à Guida [, Margarida]. Tem duas datas: 

(i) Contuboel, 18 (?) de abril de 1969, data provável em que fez a montagem com recortes de jornal: uma foto de um casal, um punho fechado, dois títulos em francês ("Ils esperent encore"", eles ainda esperam; "chez vous, enfim", finalmente em pé de você ou em vossa casa)... Ele abril de 1969 o Renato estava no centro de instrução militar de Contuboel, onde estavam a tirar a recruta mais de duas centenas de guineenses que irão constituir as futuras CART 11/CCAÇ 11 e a CCAÇ 12.

(ii) A data posterior, é de 26/8/1969, já ele estava em Piche, com a sua CART 11. Tudo indica que a carta tenha sido reenviada da Metrópole. Vem assinada pela Margarida (ao canto superior direito): "Para que nas horas tristes haja sempre um ideal que nos ajude. Com coração. Margarida".




Carta, datada de Piche, 6 de julho de 1969. É assinada pelo Renato José, tem recortes de uma banda desenhada em espanhol. A mensagem, manuscrita, diz:

"Querida: todos os nossos romances deviam ser como os folhetins comuns. Chegam depressa ao fim e têm um fim feliz. Mas a vida é diferente..."

Fotos: © Renato Monteiro (2015). Todos os direitos reservados (Edição: LG]


O Renato Monteiro, já no Xime, na CART 2520,
Aqui junto a uma LDG, no cais do Xime.
A foto deve ser de 1970.
1. Mensagem com data de sexta-feira, 29 de maio de 2015,  22h35, do Renato Monteiro [ o "homem da piroga",  ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70; e CART 2520, Xime, 1970):

Assunto: Depois do telefonema, a carta e os...anexos!

Grande Luís!

À vida, já longa, vão faltando páginas para completar a leitura definitiva e arrumá-la na prateleira dos velhos livros cheios de pó. Foi isto que passou pela minha cabeça e me levou a fazer-te chegar às mãos umas poucas cartas que conservo desde o meu involuntário exílio na Guiné.

Cartas destinadas à namorada, pouco convencionais, a dispensarem o aparo da Pelikan, compostas na sua maior parte por colagens de palavras e frases curtas de jornais e revistas encontrados casualmente nos aquartelamentos de Contuboel, (a tua Capri, c'est fini!) (*) e de Pitche.

Mensagens que, recorrendo ao nonsense através de expressões fragmentadas e sentidos descontínuos, nem por isso deixavam de traduzir uma certa amargura, ironia, desespero; momentos de medo e
de calados desejos; surdas revoltas causadas pela forçada expatriação que nos obrigara à separação do outro amado.

Esta forma de dar sinais de mim foi, porém, episódica, acabando em pouco tempo por retornar às repetidas notícias manuscritas, fixando-me na descrição de breves estórias quotidianas e na
exteriorização de sentimentos, sempre demasiado insuficientes porque desoladoramente aquém dos sentidos...

Sim, as cartas não passavam de péssimas cópias do que se pretendia veicular nelas!

E são ou foram estas cartas que serviram de pretexto para voltar, também, a dar-te sinais de mim e a perguntar por ti!

Com um grande abraço!|
Renato Monteiro


2. Comentário de LG.:

Quando o Renato me telefonou na sexta feira à noite, estava feliz por que ia reencontrar,  45 ou 46 anos depois, os camaradas da sua CART 2479, "Os Lacraus", mais tarde CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Piche, 1969/70), que se iam encontrar no Vimeiro, Lourinhã (, ainda pensei lá poder dar um salto, para  um alfabravo e dois dedos de conversa com os meus amigos e camaradas de Contuboel, mas não deu mesmo...):

Renato: A "carta chegou a Garcia"... Mas que bela surpresa"!... Pois as tuas cartas para a Guida são uma originalidade para a época... Direi mais: são belos poemas. E documentos muitos valiosos para se perceber a nossa geração a quem coube, na lotaria da história, fazer aquela maldita guerra (**)...

Eras já um tipo especial!... Que sorte ter-te conhecido e ser hoje teu camarada e amigo... Sorte também tiveste em ter uma Guida que te aturou e ajudou a manter a saúde mental... Se mo permites, vou publicar este material no blogue... Já tenho publicado outras, mas as tuas são as mais orginais que conheço...

Eu não escrevia cartas de amor, não tinha namorada nem madrinhas de guerra... Tenho cartas que nunca pus no correio, por receio de poderem ser apanhadas pela PIDE/DGS... Fobias!... Prometo também fazer-te uma surpresa. 


Mando um abraço para os nossos camaradas de Contuboel, Cândido Cunha, Abílio Duarte, Valdemar Queiroz... Destes dois últimos temos publicado coisas no blogue... E vamos falando de ti [que já tens trinta referências... Podes ver aqui ver nos links...

 
Xicoração. 
Luis



3. Resposta do Renato Monteiro, logo a seguir, ainda no dia 30:

Amigo Graça!

É tarde, e amanhã vou rever os Lacraus, 46 anos depois (?)... Uma  sensação estranha, que espero não venha a tirar-me o sono!

És um homem sempre a exagerar as minhas qualidades que, acabam por  contar-se pelos dedos. Podes crer!

Um grande abraço e até a uma próxima, de verdade: dentro ou fora de Lisboa.

Renato Monteiro



Guiné > Zona Leste > Setor L2 > Contuboel > Junho de 1969: Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o rio Geba. Descontraídos, sem armas... A guerra ainda estava longe para nós... Contuboel era um centro de instrução militar... Na  foto, furriéis milicianos Luís Manuel da Graça Henriques (CCAÇ 2590, mais tarde, CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479, mais tarde CART 11.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


4. Na Guiné nunca mais encontrei o meu amigo Monteiro que, de resto, ia morrendo afogado, num mergulho junto à estrutura da ponte, em madeira, num dos dias em que costumávamos andar por ali e dar uns mergulhos (,ele, que era muito mais afoito do que eu; mas não se lembra de nada, nem se lembrava do meu nome, nem desta foto acima...). (**)

E no entanto eu fiz operações com a CART 2520, do Xime, onde ele acabou a sua comissão, em 1970. Uma das possíveis razões para o nosso desencontro no Xime pode dever-se ao facto de ele ter sido depois colocado no Enxalé, com o seu grupo de combate. O Enxalé é um destacamento do Xime.

Enfim, perdi, infelizmente o rastro ao "homem da piroga"... Saí de Contuboel em 18 de julho de 1969, tendo a minha companhia (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) sido colocada em Bambadinca... E ele segui para Piche... Um das cartas que  hoje publicamos  é de Piche, 6/7/1969. Mas a primeira é de Contuboel, 18/4/1969.

Já muito depois do 25 de Abril, descobri que o Monteiro era coautor de um livro que li e apreciei sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha: Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote. 1990. 307 pp).

Entretanto, apareceu o blogue e, entre outras, publico esta foto... Em 4 de Julho de 2005, recebo uma mensagem assinada pelo Renato Monteiro (*). Reatámos desde então os nossos contactos e a nossa amizade... Mas até hoje ainda não descobrimos quem foi o fotógrafo... Mas é provável que tenha sido o Cândido Cunha... É uma das poucas fotos que eu tenho da Guiné. Mandei para a minha irmã do meio, Maria do Rosário, no início do verão de 1969.  No verso pode ler-se:

"Contuboel. Passeio de canoa pelo Rio Geba (que passa por Contuboel, Bafatá, Bambadinca e vai desaguar em Bissau). Com um xi-coração a Rosairinha e parabéns pelo seu brilhante exame. Luís Manuel, da Guiné com amizade  fraterna". 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6642: A minha CCAÇ 12 (4): Contuboel, Maio/Junho de 1969... ou Capri, c'est fini (Luís Graça)

(**) No início da nossa tertúlia, quando ainda éramos poucos (o Sousa de Castro, o Humberto Reis, o A. Marques Lopes, o David Guimarães,  ...) eu mandei-lhes esta foto, com o seguinte pedido, em e-mail datada do dia 1 de Maio de 2005, na secreta esperança de um dia dar de caras com ele numa esquina da cidade do Porto (....Afinal, ele vivia e trabalhava perto de mim, em Lisboa, no Lumiar!):

"Amigos: quem conhece este gajo? Não o que vai sentado na canoa (que sou eu, ou era eu… ), mas o homem que está na popa, de remo na mão… Esta foto foi tirada em Contuboel, Guiné, no 2º trimestre de 1969,em junho ou julho… O fulano chama-se Renato Monteiro, ex-furriel miliciano Monteiro, pertencente à CART 2479/CART 11… Conhecemo-nos em Contuboel, e convivemos durante pouco mais de mês e meio, no período em que estávamos a formar as nossas companhias (eu, a CCAÇ 12; ele, a CART 11). 

"Sei que nasceu no Porto, em Dezembro de 1946, que fez mais tarde o curso de licenciatura em história e que hoje deve ser professor do ensino secundário. Publicou, juntamente com Luís Farinha, uma Fotobiografia da Guerra Colonial (Lisboa: D. Quixote, 1998; há também uma edição do Círculo de Leitores). 

"Se é o mesmo que eu penso, também esteve ligado ao movimento das rádio locais. Há um fotógrafo com o mesmo nome, não sei se é o mesmo. Já não me lembro do seu 1º nome… A ponte que vocês vêem ao fundo era a de Contuboel, uma ponte em madeira e que na base fazia uma espécie de represa… Um dia o Monteiro mergulhou perto dela e estava a ver que o gajo nunca mais vinha ao de cima… 

"Gostava de o encontrar para lhe mandar esta chapa… Tínhamos muitas afinidades (políticas, culturais, humanas…). A companhia dele foi para Nova Lamego, e perdemos definitivamente o contacto. Sei que voltou da Guiné ainda em 1970, uns meses mais cedo do que eu (que vim em Março de 1971)". 

Passado uns tempos, o Renato deu de caras com a foto, inserida na nossa página na Net (Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné (1963/74) > Memória dos lugares > Bambadinca)...

Em julho de 2005, ele escreveu-me o seguinte:

"Amigo Luís, muito surpreendido por me rever numa piroga no rio Geba. Na verdade, não me lembrava desse episódio. Não menos espantado por rever a picada do Xime e outros locais que, passado tanto tempo, ainda se encontram bem presentes na minha memória... Lamento, ao contrário, não ter reconhecido ninguém nas fotos nem, sequer, te referenciar. Não sei a explicação.

Sou, na realidade, co-autor do livro que referes. Fico ao teu dispor para o caso de quereres comunicar, e feliz pela Internet ter possibilitado este reencontro. Um abraço, Renato Monteiro"
...

.A partir daqui mantivemos algum contacto regular, mas cedo percebi que o Renato tinha voltado a fechar o baú das memórias da Guiné e estava noutra... (A sua paixão era então, e continua a ser, a fotografia) (...)

Guiné 63/74 - P14685: Notas de leitura (721): “Féroce Guinée”, por Gérard de Villiers, Éditions Gérard de Villiers, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
Gérard de Villiers escreveu centenas de quilómetros de uma literatura de aventuras e de espionagem que tinha a sua singularidade: o autor explorava as atmosferas de golpes de Estado, guerras civis, máfias das armas, tentativas da CIA em depor líderes políticos inconvenientes, documentava-se minuciosamente e enviava o seu herói Malko Linge para dentro do furação, de onde airosamente se desembaraçava das missões mais espinhosas.
Isto vem a talhe de foice por causa da Guiné-Bissau onde decorre “Féroce Guinée”, com muita violência, uma beldade e descrições de sexo com pornografia suave.
Espero que gostem… E espero que esta Guiné vá desaparecendo com o regresso ao Estado de direito.

Um abraço do
Mário


Gérard de Villiers e a Guiné-Bissau (1)

Beja Santos

Gérard de Villiers (1929-2013) vendeu milhões de exemplares, foi um dos mais populares autores franceses dos anos 1960 à atualidade. Tinha um herói recorrente: Malko Linge, também conhecido por S.A.S. Descrevia-se como “declaradamente à direita, liberal, anticomunista, anti-islâmico, anti-comunitário, antissocialista”. Desdenhado pela classe bem-pensante seria lido pelos diplomatas, na medida em que frequentava os palcos onde se desenrolavam os seus romances, era claramente um autor bem documentado e um hábil narrador de ambientes. Aqui há uns tempos, o embaixador Francisco Seixas da Costa assinalou o seu óbito: “Durante anos, usei os seus livros para antecipar a visita a alguns países mais bizarros, onde ele ia situando as façanhas do seu herói intemporal, o agente da CIA, o príncipe austríce Malko Linge. Já aqui falei do seu curioso livro sobre a Lisboa revolucionária de 1975. Em Angola, recordo-me de ter lido, divertido, as descrições dos salões do Hotel Trópico nas páginas de um thriller sobre a guerra civil local onde, como era seu hábito, sempre havia muita violência e sexo. Não sei se recomende, o talvez o faça apenas pela curiosidade que representa o seu livro sobre a Guiné-Bissau intitulado “Féroce Guinée”, centrado nos militares e no tráfico da droga (Villiers trabalhava com a realidade…), como habitualmente com belas mulheres à mistura, de que as capas dos volumes sempre destacavam as qualidades mais salientes”.

Vamos então falar de “Féroce Guinée”, por Gérard de Villiers, Éditions Gérard de Villiers, 2014, custa no mercado francês 7,50 €, na Livraria Francesa em Lisboa, por encomenda, 9 €. O agente da CIA Fred Lemon está em Bissau e dirige-se ao aparthotel Jordani (onde jantei em 30 de Novembro de 2010, era uma noite de calor abrasador, saboreava um peixe e via neve em Bragança, pelo televisor). Bissau cai aos bocados, as velhas fachadas nos tempos coloniais estão roídas pela humidade, o alcatrão das ruas desaparece. A Guiné-Bissau caminha para uma não-existência. Em 2006, surgiu uma nova receita a complementar as castanhas de caju: a cocaína proveniente da Venezuela e da Colômbia. A partir desse momento, o país tornou-se uma placa-giratória nos narcotraficantes colombianos. É no hotel Jordani que está previsto o encontro com o seu elemento de ligação local Djallo Samdu, que trabalha nos serviços de informação militar, é um Fula vigiado pelos Balantas, é a etnia maioritária no exército. A CIA não tinha elementos em Bissau, mesmo a DEA (Drug Enforcement Administration) ignorava Bissau, partindo do pressuposto que esta cocaína ia diretamente para a Europa. Mas surgira um dado novo, um comando mauritano de islâmicos radicais do AQMI (Al Qaeda no Magreb Islâmico) apresentara-se em Bissau, fora detido e depois todos se evadiram. A CIA pretendia uma resposta: que tramavam os radicais em Bissau?

Enquanto Fred Lemon aguarda a chegada do seu pivô, é “assaltado” por três beldades e temos sexo escaldante. Chega Djallo, põe as meninas na rua, entra-se nos assuntos da espionagem. O aliado guineense dos narcotraficantes é o contra-almirante José Américo Bubo Na Tchuto, trata-se de um delinquente que aterroriza a sociedade civil e política da Guiné. Djallo informa o agente de que os farmacêuticos são mauritanos, um dos três radicais evadidos, Sidi Oulm Sidina tem um encontro aprazado na farmácia Yacine. Lemon vigia a manobra, vê sair o radical islâmico que transporta uma encomenda debaixo do braço, provavelmente dinheiro para entregar a alguém, é transportado para casa do contra-almirante, o agente segue-os, foi referenciado, é detido, tenta fugir, depois de ter conseguido enviar uma mensagem para a embaixada norte-americana, é horrivelmente esquartejado.

É agora que Malko entra em ação. O chefe da estação da CIA em Dakar informa-o do que se passou, explica-lhe que os Balantas esquartejam os seus inimigos, já o tinham feito com Nino Vieira, mas há algo nesta mutilação que só pode ter sido feito por alguém vindo da Argélia ou Mauritânia, Lemon aparecera com a cabeça fendida à catanada. O autor aproveita para explicar que a Guiné-Bissau é o quinto país mais pobre do mundo com um rendimento anual por habitante de 700 dólares, um território que se degrada ano após ano, desapareceu energia elétrica, o saneamento, os serviços de saúde só funcionam com a cooperação internacional, o mesmo se passa com a educação, não há polícia, não há correios, ninguém sabe o que é segurança social.

Malko tem várias questões para resolver: vingar a morte de Lemon, saber o que os radicais islâmicos tramam com Bubo Na Tchuto, se inclusivamente se prepara um golpe de Estado efetivo, quem são os colombianos que com ele negoceiam e como atuam. Os seus elementos de ligação em Bissau serão Djallo Samdu, Frank Martal, o concessionário da Rover que lhe cederá um motorista bem informado, Yahia. Começa a exploração de Bissau num Range Rover, Yahia vai-lhe mostrando os pontos principais. Frank esclarece o agente acerca do poder desmesurado do contra-almirante, patrão do arquipélago dos Bijagós, já liquidou os seus principais rivais, o primeiro-ministro Carlos Gomes Junior foi intimado a não regressar à Guiné-Bissau, já conseguiu neutralizar o novo Chefe do Estado-Maior Zamora Induta. É nisto que chega a namorada do temível Bubo Na Tchuto, uma mestiça de rara beleza, vem pedir uma reparação do seu leitor de CD, Malko vai discretamente atrás dela e encontram-se na piscina do hotel Bissau Palace. Entabula conversa com Agustinha, esta cria distância, lembra-lhe que o contra-almirante é um ciumento perigoso. É nisto que chega ao hotel o traficante colombiano Luís Miguel Carrera que conduz Agustinha à sua casa e temos mais sexo escaldante. Carrera envia mensagens a Bubo, está a chegar um carregamento impressionante.

Frank Martal prepara um encontro entre o agente da CIA e um importante informador guineense, de nome Lamine, num restaurante da Praça Che Guevara. Lamine é um homem untuoso, tem que se questionado a saca-rolhas, Malko procura esclarecimento sobre o peso real de Bubo e qual o nível dos seus negócios. Malko pede para ser apresentado a Bubo. Marcam novo encontro para breve. Lamine dirige-se a Bubo que lhe fala num representante da União Europeia que lhe pediu uma entrevista.

Nessa mesma noite, Djallo interpela à sorrelfa Malko, deve partir imediatamente, tem a cabeça a prémio, sabe que Lemon foi assassinado em casa de Bubo, um dos seus mercenários pretende vender o seu relógio, um Breitling, Djallo adianta que Lemon sabia da operação do levantamento de dinheiro a partir de uma farmácia, a partir daí perdeu-lhe o rasto. Malko quer que ele investigue a pista dos islamitas mauritanos.

Em casa de Bubo, Agustinha revela-lhe que um branco lhe faz a corte, vive no Bissau Palace. Em estado de fúria, Bubo veste-se, rodeia-se de um contingente de mercenários, anuncia a Agustinha que vai retalhar o atrevido.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14679: Notas de leitura (720): "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial" (autor: João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de A. Marques Lopes): Excertos (Parte II): "Você, alferes Aiveca, está muito mole para esta guerra, disse o major, zombateiramente"...

domingo, 31 de maio de 2015

Guiné 63/74 - 14684: Blogpoesia (415): Dunquerque, Calais, St. Omer, La Lys, Verdun... O cemitério militar português de Richebourg (António Graça de Abreu)




França > Cemitério militar português de Richebourg  L'Avoué, perto de La Lys com os túmulos de 1.831 compatriotas nossos, mortos na I Grande Guerra.


Fotos. © António Graça de Aberu (2015). Todos os direitos reservados 



1. Mensaqgem do nosso camarada e amigo António Graça de Abreu [ex-alf mil,  CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74,  poeta, escritor e conhecido sinólogo:

Neste mês de Maio de 2015 tive a ventura de viajar um pouco por uma Europa que conhecia mal. Tenho um filho na Comunidade Europeia, a trabalhar em Bruxelas, e foi altura de abalar para terras belgas, da Valónia e flamengas, mais terras francesas, luxemburguesas, alemãs e holandesas. Tudo em pouco mais de uma semana, 1.400 quilómetros num carro alugado em Bruxelas.

Tinha fisgada a ideia de ir aos locais do desembarque na Normandia, o dia D de Junho 1944. Acabei por entrar em França por Dunquerque e depois Calais. Não cheguei mais a sul, a Caen, mas atravessei todo o norte da França, em direcção ao Luxemburgo. Dormi numa cidadezinha chamada St. Omer e segui viagem, sempre por estradas secundárias.

Impressionantes as centenas de “jardins de pedra”, os cemitérios das centenas de milhares, ou milhões de homens mortos em combate, em toda esta região, na 1ª e na 2ª Guerra Mundial, homens de tantas nacionalidades, franceses, alemães, norte-americanos, canadianos, checos e também portugueses, os nossos quase todos mortos na batalha de La Lys, em 1918. 

Perto de La Lys fica o cemitério português de Richebourg com os túmulos de 1.831 compatriotas nossos. Vejam as fotos Também podem procurar no Google em “imagens”, “cemitério português de Richebourg”. Fui lá pesquisar e tive a surpresa de ver a foto de um primeiro-ministro português a visitar este cemitério. Não digo quem é o homem, vão à net e procurem, creio que também terão uma surpresa.

Entretanto escrevi cerca de sessenta poemas, ao sabor das paragens viajadas e visitadas. Os poemas que têm a ver com a guerra, guerras onde morreram tantos “meninos de sua mãe”, guerras diferentes mas por onde nós também passámos, são estes:

Nunca ouvi nada tão bonito, tão dilacerante, tão profundamente triste, ecoando, até ao fundo do meu sangue, a dor do mundo.

António Lobo Antunes


Dunquerque, Calais, St. Omer, La Lys, Verdun 

por António Graça de Abreu

Setenta anos depois,
ainda o sangue a embeber
a memória e as areias de Dunquerque.

Nas terras de Pas de Calais,
à sombra dos jardins de pedra,
milhões de mortos na insânia da guerra.
Meus irmãos mais velhos.

La Lys, apenas um ribeiro
entre vergeis e o nada.
As margens ainda embebidas em sangue.

Cemitério em Richebourg,
mais de mil e oitocentos portugueses mortos.
1918. Nas lápides, as quinas,
um nosso nome,
“um menino de sua mãe.”
Tulipas rubras
crescem entre estelas de pedra,
não murcham as flores da memória.

Meninos como eu, tão jovens,
franceses, americanos, ingleses, alemães,
dilacerados pela metralha, pela loucura.
Recolhimento, uma prece.

Outrora, a floresta encharcada em sangue.
Hoje, incontáveis jardins de pedra,
tudo verde, branco de mármore
e o silêncio.

Heróis quase esquecidos
pela passagem dos anos,
mas o rosto da memória
caminhando, com a luz do sol.

Aqui em Verdun, há quase um século
caíram, trespassados pelas balas,
mais de meio milhão de homens,
também “ meninos de sua mãe”.
Hoje, nestes cemitérios da guerra,
os ossos, as cruzes infindáveis,
memórias do inferno na terra.

Em África, 1972/74
também fui soldado.
Um regresso com mágoa,
mas de coração aberto para o mundo.
Tantos anos depois,
na distância e no tempo.
meus olhos perdem-se
no ondular verde e amarelo
dos campos de França,
Lágrimas e chuva inundam a paisagem.


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Guiné 63/74 - P14683: Libertando-me (Tony Borié) (19): ...É o destino

Décimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.




As pessoas mais ou menos da nossa idade, quando as coisas não correm em conformidade com os seus desejos, normalmente dizem: “É o destino”.

Neste caso, ”O Destino” foi termos nascido nesse “cantinho à beira-mar plantado”, foi termos idade adulta naqueles anos para sermos militares, participando na “Guerra do Ultramar”, que Portugal manteve “orgulhosamente só”, foi sermos perseguidos pela então “Polícia do Estado”, foi vermos alguma oportunidade de vida, de liberdade, podendo criar uma família, na emigração, no outro lado do Atlântico, muito longe desse sol radiante, onde às vezes fazia geada pela manhã, a que os nossos vizinhos chamavam “orvalho”, foi ter havido uma greve, na companhia aérea que viaja pelo mundo com a bandeira de Portugal, houve atrasos, ainda os há, mas nós, não pedíamos mais nada, só adquirir dois normais bilhetes para ter lugar nos aviões, daqui de New Jersey para onde nos queríamos deslocar, mais exactamente para atravessar o Atlântico, usando como destino a cidade de Lisboa.

Não era nossa intenção ir para uma aventura em qualquer floresta no Bali, numa perspectiva diferente desta incrível ilha, onde os arrozais podem cobrir cerca de vinte por cento de toda a ilha, com densas florestas do interior, mas nas áreas mais secas, podemos esperar um matagal, com algumas savanas, onde os cones vulcânicos nos surpreendem com paisagens estéreis.

Não era nossa intenção ir para as “Cataratas de Iguaçu”, na fronteira do Brasil com a Argentina, onde chamam “Cataratas del Iguazú”, onde existe um conjunto de cerca de 275 quedas de água, localizado na bacia hidrográfica do rio Paraná, com cerca de 250 mil hectares de floresta subtropical, que já é considerada Património Natural de Humanidade.

Não era nossa intenção ir conhecer uma qualquer Igreja perdida na Ilha de Lewis, no mar da Escócia, ou ver a cidade arqueológica Maya, de “Chichén Itzá” cujo nome tem raiz Maya, que significa "pessoas que vivem na beira da água", no norte no México, localizada no estado de Lucatã, que funcionou como centro político e económico da civilização Maya, onde ainda hoje se encontram várias estruturas como a Pirâmide de Kukulkán, o Templo de Chac Mool, a Praça das Mil Colunas ou o Campo de Jogos dos Prisioneiros, que podem ainda ser admiradas e são demonstrativas de um extraordinário compromisso para com a composição e espaço arquitetónico, e claro, também foi declarada Património Mundial da Unesco.

Não era nossa intenção ir visitar o “Monte Merapi” na Indonésia, (Merapi, em indonésio significa “Gunung Merapi”), que por sua vez significa Montanha do Fogo, que é um vulcão localizado na ilha indonésia de Jawa, que atinge os 2968 metros de altitude, e que tem a particularidade de ser o vulcão mais activo da Indonésia, país que tem a maior densidade de vulcões do mundo.

Não era nossa intenção ir de visita à cidade perdida “Machu Picchu” também chamada "cidade perdida dos Incas”, que é uma cidade pré-colombiana, bem conservada, localizada no topo de uma montanha, a cerca de 2400 metros de altitude, no vale do rio Urabamba, no actual País, chamado Peru, que é provavelmente o símbolo mais típico do Império Inca, quer devido à sua original localização e características geológicas, quer devido à sua descoberta tardia, somente no ano de 1911, onde apenas cerca de 30% da cidade é de construção original, o restante foi reconstruído. As áreas reconstruídas são facilmente reconhecidas pelo encaixe entre as pedras, mas a construção original é formada por pedras maiores, com encaixes com pouco espaço entre as rochas, dividindo-se em duas grandes áreas, a agrícola, formada principalmente por terraços e recintos de armazenagem de alimentos, e a outra, a urbana, na qual se destaca a zona sagrada, com templos, praças e mausoléus reais.

Estava longe do nosso pensamento ir até às dunas de areia, no deserto da Austrália, que por lá chamam “Kurnell Dunas”, está estimado em cerca de 15.000 anos de idade, sendo formadas quando o mar atingiu o seu nível actual, começando por se estabilizar onde uns rios que por lá existiam fluíram para o sul-leste sob o actual sistema de dunas e, se juntou ao oceano, claro, isto resultou no isolamento de Kurnell, que era uma ilha do continente, e os rios, eventualmente, ficaram bloqueados com o acumular da areia e sedimentos, e é fácil compreender, com os rios assoreados gradualmente, foram forçados a mudar seu curso.

Também não era nossa intenção ir ao “Palácio de Jaipur”, na Índia, que inclui os palácios Chandra Mahal e Mubarak Mahal e outros edifícios que formam o complexo do Palácio em Jaipur, a capital do Estado de Rajasthan, que foi residência do marajá de Jaipur, o chefe do clã Kachwaha Rajput, onde hoje se abriga um museu, mas a maior parte deste complexo ainda é uma residência real, onde se incorpora um conjunto impressionante de pátios, jardins e edifícios, onde os seus arquitetos conseguiram uma fusão do Shilpa Shastra da arquitetura indiana com Rajput, Mughal e, alguns estilos europeus de arquitectura.

Longe do nosso pensamento estava ver as “Cataratas Vitória” a que também chamam “Quedas Vitória”, que são das mais espectaculares do mundo, situando-se no Rio Zambeze, mais propriamente na fronteira entre a Zâmbia e o Zimbabwé, que têm cerca de 1,5 km de largura e uma altura máxima de 128 metros, vistas em 1855 por um explorador escocês, que foi o primeiro ocidental a vê-las, e que lhes deu o nome em honra da rainha Vitória, mas o nome do local é Mosi-oa-Tunya, que quer dizer "fumo que troveja". Diz-se que o explorador português Serpa Pinto também contribuiu para que aquela zona ficasse mais acessível o que ocorreu por volta do ano de 1905, com a construção de uma linha do caminho de ferro.

Não queríamos ir ao Curral das Freiras na nossa Ilha da Madeira, onde no princípio da colonização possuía apenas a designação de Curral, ou Curral da Serra, derivando esta do facto de ser este local um centro de pastagens, mas a passagem da denominação de Curral ou Curral da Serra para a de Curral das Freiras terá acontecido segundo uns autores entre 1492 e 1497, aquando da passagem da propriedade dos terrenos para a posse das freiras do convento de Santa Clara, segundo outros, dizem, só se tenha verificado mais tarde, em 1566 aquando do saque da cidade do Funchal por corsários franceses, o que fez com que as religiosas do convento de Santa Clara se refugiassem ali, nas suas propriedades, talvez para não serem violadas.

Não vamos dizer que não queríamos ir à Ilha de Kiribati na Micronésia, que é o primeiro país do mundo a mudar de ano, na ilha de Kiritimati, devido ao fuso horário, pois Kiribati é o país mais adiantado em questão de horário e, como consequência das mudanças climáticas em curso no planeta, especula-se que a existência do país esteja ameaçada, estando as ilhas de Kiribati condenadas a desaparecer.





Porque o texto já vai longo, não vamos dizer que não queríamos ir até à Patagónia, onde existe uma grande concentração de “pinguins”, pois na verdade o queríamos era que todos chegassem a um acordo, não houvesse greves, não houvesse atrasos, era podermos adquirir dois bilhetes normais, numa data normal, num dos aviões que descolam de New Jersey, atravessam o Atlântico, aterrando pela madrugada nesse País distante, na Península Ibérica, era ir ver as nossas raízes, ir cumprir uma “promessa” da esposa e companheira, conhecer pessoalmente alguns companheiros combatentes que já considero a minha segunda família, ver aquela mulher descendo a montanha, a caminho da sua aldeia rural, com uns restos da planta de milho às costas, desviando-se dos arbustos que lhe tocam constantemente nas pernas, ferindo-a, mas não se queixa, vem descalça, não usa, ou talvez nunca usou sapatos e, quando lhe falam, podemos capturar na sua face um sorriso inocente de bondade, fazendo com que nós, a viver por aqui, viajantes do mundo, nos sintamos portugueses, mas a viver e a adquirir os costumes duma terra estrangeira.


Seja qual for a razão, estas são as histórias que transformam o emigrante, viajante do mundo, não importando os anos de ausência do seu País, nunca perdeu as suas raízes, sendo talvez um verdadeiro “Indiana Jones”.

Tony Borie,Maio de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14655: Libertando-me (Tony Borié) (18): Os carapaus em molho de escabeche da Ti'Glória

Guiné 63/74 - P14682: Efemérides (191): Aquele dia inextinguível (Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52)

1. Em mensagem do dia 24 de Maio de 2015 o nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) lembra o dia 19 de Março de 1969, quando Missirá ardeu durante um ataque do PAIGC.


Aquele dia inextinguível

Beja Santos

Tinha 24 anos quando vivi uma epopeia, não me aconteceu outra. Em 19 de Março de 1969, pela calada da noite, uma flagelação bem acontecida, com muita bala incendiária certeira no colmo ainda quente das moranças, destruiu praticamente Missirá, transformando-a em terra calcinada. Vários prodígios convergiram: o envio generoso de muito material do Batalhão de Engenharia, nunca vi em dias da minha vida tanta chapa ondulada, esquadrias de portas, sacos de cimento; a humilhação e a dor eram tais que garanti a mim próprio que haveria tempo para tudo: para ir a Mato de Cão diariamente, para abastecer as gentes do Cuor, e para se reerguer Missirá.

O que aconteceu, entre finais de Março e meados de Junho. Vários ventos sopraram de feição: houve uns chuviscos a debutar a época das chuvas, protegeu-nos todos os tijolos de adobe, nada se estragou; não houve férias para ninguém, não se celebraram choros, ninguém partiu nem para semear nem para colher, não houve contestação àqueles horários draconianos, cedo erguer e todo o dia movimentação, quem patrulhava entrava à mesma nas escalas de serviço, até para ir buscar água. E um dia, nos tais meados de Junho, percorri pelas novas moranças, pelos novos abrigos, telheiros e armazém, tudo a cheirar a fresco, obra de uma convocatória que obteve uma resposta tão incendiária como aquele desalmado incêndio que reduzira mais de três quartos de Missirá a um escombro.

Também houve tempo para a escrita. Perdi tudo no incêndio, vivia por empréstimo no abrigo do furriel Casanova, uma construção modelo que era motivo do seu legítimo orgulho, desmanchara a casa de Manuel Spencer em Malandim, entre Finete e a estrada para Mato de Cão. Daqui expedi os meus aerogramas meses a fio. A minha tia Carlota fazia anos a 1 de Junho e não deixei de a saudar, tinha por ela uma grande adoração, foi por seu intermédio que ganhei a paixão pelos azulejos pombalinos e pela arte do leque. Ter-lhe-ei dado uma versão adoçada do que era a minha vida, ele era mais que septuagenária, torneei os sobressaltos. E nunca mais pensei no assunto.

Aqui há alguns anos, telefona-me a minha prima Madalena, a sua única neta, houve conversa animada até que chegámos ao essencial: olha, Mário, imagina tu que abri um livro da minha avó e saltou de lá uma folha, era uma cartinha tua a dar-lhe os parabéns, tu estavas muito feliz, muito animado, falavas de umas obras muito grandes e a certa altura escreveste que tudo o que tinhas feito até então eram insignificâncias, que pela primeira vez na vida tinhas um grande desafio pela frente, que estavas cheio de fé e as pessoas que contigo viviam pareciam contagiadas, e davas graças a Deus, olha, não percebi bem o que te estava a acontecer mais era uma escrita tão exaltada que me deixou comovida, vou-te enviar esta carta que me encantou e estou absolutamente certa que deixou a minha avó feliz.

Tinha 24 anos, vivi uma epopeia de braço dado com militares e civis inesquecíveis. Nunca mais terei um aniversário como aquele, a ver crescer, a derrubar o touro da morte e a sentir o tutano da camaradagem. É por isso que quando me vem uma contrariedade há logo um rebate: lembra-te o que se passou naquele tempo em 1969, aquele teu dia de anos em que foste a Mato de Cão, vieste por Finete, regressaste a Missirá, discutiste com os teus colaboradores as obras, os pagamentos, o trivial da burocracia e como adormeceste cansado e enriquecido pelo dever cumprido. Que sejam assim todos os dias que Deus te deu para cumprir.

Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. 

Fotografia do início do Março de 1969, todo aquele fundo irá desaparecer, dias depois aquele balneário era indescritível, aquelas chapas rasgavam a carne a qualquer descuidado. Procurei-o em 2010, disseram-me que vivia para os lados de Farim, que estava muito velho e cansado. Tenho muitas saudades do meu querido cozinheiro, um bonzão com as crianças a quem cedia as nossas sobras.
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14680: Efemérides (190). O ataque a Bambadinca foi há 46 anos, em 28/5/1969, recorda o barbeiro mais famoso de Dalvares, Tarouca, o Manuel da Costa, que foi sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2852 (1968/70)

Guiné 63/74 - P14681: Parabéns a você (913): Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52 (Guiné, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14676: Parabéns a você (912): António Vaz, ex-Cap Mil, CMDT da CART 1746 (Guiné, 1967/69)

sábado, 30 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14680: Efemérides (190): o ataque a Bambadinca foi há 46 anos, em 28/5/1969, recorda o barbeiro mais famoso de Dalvares, Tarouca, o Manuel da Costa, que foi sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2852 (1968/70)



Portugal, distrito de Viseu, Tarouca, Dalvares > O Manuel da Costa, autor de Nova Barbearia Costa, a sua  página na Net que tem  cerca de 5400 acessos ou visualizações. Os nossos parabéns!


 Fotos: © Manuel da Costa (2015). Todos os direitos reservados. (Edição: LG.)


1. Da página do Facebook do Manuel da Costa, amigo da nossa página no Facebook, Tabanca Grande Luís Graça, ex-sold maqueiro da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), tomamos a liberdade de publicar a seguinte mensagem,  evocativa da data de 28/5/1969, quando Bambadinca foi atacada, em força, dois  meses e meio depois da grande operação de limpeza no setor L1, conhecida pelo nome de código Lança Afiada. (*)

O Manuel da Costa é uma figura muito popular na sua terra, Dalvares, Tarouca, distrito de Viseu. É barbeiro, nas horas vagas, profissão que já exercia em Bambadinca onde pertencia à equipa de saúde, chefiada pelo saudoso alf mil médico David Payne.  


O TEMPO PASSOU MAS AS MEMÓRIAS FICARAM…
por Manuel da Costa

Fiz parte da Companhia Comandos e Serviços (CCS) do Batalhão de Caçadores 2852. estava ligado à enfermagem como maqueiro,  mas dado a minha profissão de barbeiro que tinha na vida civil desde 1964,  comecei a desempenhar essa arte na barbearia do comando,  alternando sempre que era preciso vir à enfermaria e aos domingos sempre que o ilustre e saudoso médico Dr. Payne, já falecido,  precisava,  lá ia eu fazer psíco às Tabancas só para rapar os cabelos das feridas crónicas dos civis.

Bambadinca era uma pequena vila sossegada no leste da Guiné até ao dia 28 de maio de 1969.




Guiné > Zona leste > Setopr L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 1  > C. 29 de maio de 1969 > Invólucros de canhão s/r. O PAIGC terá usado 3 canhões s/r contra o aquartekamento e posto administrativo de Bambadinca, sem grandes consequências---




Faz precisamente 45 anos no dia 28/5/2014 às 0h25 que o Quartel de Bambadinca foi severamente atacado pela primeira vez na história da guerra da Guiné. 

A 1ª  foto com as caixas das granadas dos canhões sem recuo e os morteiros (82) foram lançadas sobre o aquartelamento e 90% caíram na bolanha ao qual nós não respondemos porque vivíamos em tranquilidade. 




Guiné  > Zona leste > Setopr L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Foto nº 2 > Vésperas de Natal de 1968 ou 1969 > O sold maqueiro Manuel da Costa, de bata branca, finge que faz a "vistoria sanitária" aos leitões que irão à mesa natalícia...


Fotos: © Manuel da Costa (2015). Todos os direitos reservados. (Edição: LG.)


A 2ª foto foi tirada nas vésperas do Natal de 1968 onde estou numa brincadeira fazendo crer que estava a examinar os leitões. Chamaram-me na barbearia que era junto à cozinha e refeitório geral para os praças e cabos. O que está em troco nu é o cabo cozinheiro Carneiro e o do camuflado era o cozinheiro Teixeira,  já falecido o único que ficou ligeiramente ferido. 

Deste ataque resultou a mudança de todo o comando e a penalização injusta nas suas carreiras assim como a do alferes dos morteiros uma vez que era frágil autodefesa que tinham recebido do comando anterior. 


Bambadinca vista de cima... A foto (originalmente a cores) é do nosso camarada  Humberto Reis (2006), publicada no nosso blogue, embora o Manuel da Costa não cite a fonte. 


A 3ª foto mostra o aquartelamento tal qual foi recebido do anterior comando. Nesse dia 28 (ou no dia
29 ?) foram todos convocados para ouvir (pensavam eles) os Senhores da Guerra. O coronel do setor de Bafatá, Hélio Felgas [, comandante do Agrupamento 2957,]   ao qual nós pertencíamos,  e o general Spínola com uma conversa acutilante,  como se tratasse de um rebanho de ovelhas domesticadas,  direcionada para o comando do batalhão,  mais propriamente para o sr. Major das operações Pires da Silva,  homem de estatura média mas de qualidades altas. Se ele fizesse o que os Senhores da Guerra diziam certamente muitos de nós teriam sucumbido às balas de Nino Vieira que comandou o ataque. 

O major Pires da Silva deu uma resposta inteligente: 
- .Meu comandante, prefiro soldados vivos do que heróis mortos. 

Depois chega o 2º comando sendo um deles o capitão Manuel Maria Pontes Figueira homem disciplinado e disciplinador, amigo dos seus subordinados.

O primeiro Comando [do BCAÇ 2852] era assim constituído:
Tenente coronel Pimentel Bastos
Major Bispo
Major Pires da Silva
Capitão Eugénio Batista Neves

O segundo Comando era formado pelos:
Tenente Coronel Corte Real
Major Ribeiro
Major Sampaio
Capitão Manuel Maria Pontes Figueira

Tanto o 1º Comando como o 2º Comando eram pessoas educadas e de respeito para os seus subordinados e para os civis fossem eles brancos ou de cor, e eu sou testemunha porque de 15 em 15 dias eu cortava-lhes o cabelo.

Falando agora do meu percurso da vida civil...
Fui motorista internacional de Turismo durante 39 anos da EAVT – Empresa Automobilística de Viação e Turismo e depois JOALTO desde 2009. Voltei às origens, cortando o cabelo a amigos e clientes, vivendo em paz e tranquilidade, não tendo muitos clientes mas todos de boa qualidade.

Um abraço amigo aos meus companheiros de tropa desde o comando de oficiais aos praças (68/70).

Barbearia Costa
Dalvares - Tarouca

2. Comentário de L.G.;

Manuel da Costa, essa do Nino Vieira comandar o ataque a Bambadinca, em 28/5/1969 (**), é novidade para mim. Mas tudo é possível..  Diz-me onde "sacaste" essa informação... Eu, e o resto da malta da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, estávamos a chegar à Guiné, a desembarcar do T/T Niassa, e passámos por aí em 2/6/1969... Vindos de LDG, de Bissau até ao Xime, seguimos depois em coluna auto para Contuboel, com paragem em Bambadinca. Deu para perceber o vosso estado de espírito...Diz-me se te lembras do nosso fur mil enf, o João Carreiro Martins (CCAÇ 12, Bambadinca, julho de 1969(março de 1971)..

O cor Hélio Felgas esteve em Bambadinca nesse mesmo dia, 28/5/1969... Não sei se o Spínola também. A história da tua unidade é omissa nesse ponto. A verdade é que o comando do teu batalhão do "decapitado"...

Vai daqui um abraço para ti,  camarada de Bambadinca, do meu tempo.  E aceita o meu convite para formalizar a tua entrada no nosso blogue, onde há vários camaradas da tua CCS.  Recordo  que o pessoal de Bambadinca de 1968/71 tem amanhã o seu encontro anual, na Trofa.  Presumo que vás... Infelizmente eu não poderei lá estar. Vai daqui também uma alfabravo para todos os meus camaradas dessse tempo, a começar pela malta da minha CCÇ 2590/CCAÇ 12.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14679: Notas de leitura (720): "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial" (autor: João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de A. Marques Lopes): Excertos (Parte II): "Você, alferes Aiveca, está muito mole para esta guerra, disse o major, zombateiramente"...




Guiné > Região do Ccaheu > Barro > CCAÇ 3 > 1968 > Grupo Os Jagudis > Ox-al fmil at inf A. Marques Lopes comandava este  grupo de combate....Antes, em 1967, tinha passado pela CART 1690, om sede em Geba (Zona leste, região de Bafatá, onde foi gravemente ferido; evacuado para metrópole, voltaria cerca de nove meses depois para acabar a sua comissão de serviço na CCAÇ 3,. em Barro, na fronteira com o Senegal).

Fotos: © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados


1. Mais dois excertos do livro de memórias "Cabra-cega" (*), que vai ser lançado no próximo dia 3 de junho, às 15h30, na biblioteca municipal de Matosinhos. (**)

Trata-se de gentileza do nosso camarada e amigo A. Marques Lopes, coronel inf, DFA, na situação de reforma, ex-alf mil da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968), um dos primeiros membros membros da nossa Tabanca Grande (entrou em 14 de maio de 2005) [, foto atual à esquerda]:



(...) Ali, deitado sobre a terra e desejoso de nela se afundar, deixou a sua condição humana, alapado como um coelho que segue os passos do caçador à espera do momento oportuno para fugir. Levantou instintivamente a cabeça por cima do capim que cercava o baga-baga para ver o momento oportuno.

Tendo abandonado as suas posições de combate, os guerrilheiros avançavam em linha ao longo da clareira lançando rajadas curtas de costureirinha e kalash. Estava a vê-los, numa imagem de ocasião, sem saber ainda se era real ou imaginária. Fortes, atléticos mesmo, em passadas decididas, senhores da vitória. Despertou nele o animal cujas reacções são comandadas pelo instinto de sobrevivência e, ao mesmo tempo, o animal especial que era, domesticado para reagir a determinados sinais e estímulos. Pôs instintivamente em práctica todo o mecanismo de comportamento do animal encurralado por numerosos caçadores. Decidiu rastejar até à orla direita da clareira. Mas antes, lixado com a maçariquice de andar com eles, enterrou os galões camuflados que usava e jurou nunca mais os usar. Achou que não lhe servia ali a Convenção de Genebra, que o seu futuro de prisioneiro seria melhor se não soubessem do seu posto. Uma ideia estúpida avaliar nesses termos a enrascadela em que se encontrava mas era melhor assim, concluiu.

Foi rastejando e, a certa altura, ouviu um silvo agudo no ar, levantou a cabeça e numa fracção de segundos viu uma granada de morteiro em direcção a si. Nem pensou, deu três voltas para o lado a rebolar. Ela enfiou-se na terra mole do sítio onde tinha estado, viu de esguelha o seu rebentamento, sentiu a terra que levantara cair-lhe no camuflado e ouviu o zumbido dos estilhaços. Cabeça entre os braços, ficou agarrado ao chão. Nunca imaginara que isso fosse possível, mesmo quando vira nos filmes não acreditara. Ali ficou alguns instantes nesta ideia.

Mas tinha de reagir e continuou a rastejar até chegar à orla. Aí, encostou-se ao tronco de uma palmeira jovem, ainda baixinha, tapado pelas ramadas que tocavam no solo. E viu, depois, que eles tinham chegado ao sítio onde antes os seus homens e ele tinham estado.

“Manga de ronco!”, gritavam todos, levantando as armas alegremente.



Capa do livro (Lisboa, Chiado Editora, 2015). Já está á venda na 85ª edição da Feira do Livro de Lisboa (que abriu ontem , e vai prolongar-se até 14 de junho, no Parque Eduardo Sétimo).


Ficha técncia:

Título: Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial
Autor: João Gaspar Carrasqueira
Data de publicação: Junho de 2015
Número de páginas: 582
ISBN: 978-989-51-3510-3
Colecção: Bíos
Género: BiografiaPreço: 19 € (edição em papel) [10 € na sessão de lançamento)
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(...) O velho, agitado, dizia algumas palavras que não entendia mas que lhe pareceram crioulo. Disse ao Otcha para saber o que andavam a fazer e para onde iam. O rapazito estava cheio de medo. O cego abria os olhos baços e franzia a boca receosa. Apercebera-se do mal invisível.
– “Iam para uma tabanca aqui perto onde têm família. O velho é avô do rapaz e é cego.”

Foi a informação do Otcha depois de falar com eles. A DO estava agora por cima deles. O radiotelegrafista trouxe--lhe o “banana”.
– “O que é que se passa aí em baixo, nosso alferes?”
– “Meu major, é um jipe com dois gendarmes do Senegal, apareceram aqui. Parece-me que é melhor irmos embora, já não dá para o que viemos fazer.”
– “Eh, pá! Mande os gajos embora, e sem uma beliscadura. Não podemos arranjar problemas desses. Depois pode retirar.”
Aiveca virou-se, depois, para os gendarmes.
– “Allez-vous en! Levem o cego e o miúdo!”

Ficaram encantados, nem se lhes notou qualquer contrariedade por não irem ter com as “femmes amies”. Elas lá estariam à espera para outra altura, certamente.
– “Agarrem nos dois e metam-nos no jipe”, disse para os que cercavam o avô e o neto.

Quando os gendarmes partiram deu ordem de abandono da posição. Não era bom continuar ali pois tinha a certeza que eles iam avisar o PAIGC. Disse ao Bailo para irem por caminho mais fácil, não queria demorar muito com receio de serem perseguidos. Meteram pela mata em direcção à Guiné e deram com uma tabanca. Estava abandonada, com alguns restos de moranças ainda, muito mato rasteiro, mas havia um grupo de bananeiras ao pé da mata.
– “Está ali uma mulher!”, gritou o Otcha.

Todos viraram a cara para lá. Ela tinha-os ouvido e virou também a cara para eles. Viu-os e desatou a correr. Levava uma criança no bambaran, o pano para segurar as crianças às costas. Logo alguns levantaram a G3.
– “Quietos!”, gritou Aiveca saltando para a frente deles. “Fodo o primeiro que disparar! Clode, Falcão, vão atrás dela!”

A morte de Abess nunca mais lhe saíra da cabeça e não queria outra situação idêntica. Viu que o bambaran se soltara e a criança caíra no chão. A mulher virou-se angustiada a ver a criança a chorar mas olhou com terror para o Clode e o Falcão que corriam para ela e continuou a fugir internando-se na mata.

De repente o silvo de um rocket. Atiraram-se todos para o chão. O rocket rebentou perto das palmeiras.
– “Clode, Falcão, tragam a criança! Todos para a mata!”

O Clode corria com a criança nos braços. Começou o fogachal do lado do Senegal. Já abrigados na orla da clareira, disse para o Bailo:
– “Estamos longe do alferes Salgado?”
– “Não tá, nossalfero. Tá perto à direita.”

Mandou, depois, o furriel Fernandes ir com a secção dez metros para trás, recomendando-lhe que só disparassem morteiradas. O Lindolfo foi dez metros para a direita. Ficou com o Aguinaldo Baldé, que tinha o Benhanté com a bazuca.
Disse também a três homens da secção dele para irem dez metros para a esquerda. Era uma precaução porque tinha a ideia que eles podiam cercá-los. Com a bazuca ali podia retê--los até decidir recuar.
– “ Polícias foram avisar os turras”, disse o Aguinaldo por entre as rajadas.
– “Claro.”
– “Devíamos ter matado eles.”
– “E arranjávamos um trinta e um do caraças, era?.”

As bazucadas do Benhanté e os dilagramas do Otcha mantinham-nos em respeito. Disse ao radiotelegrafista para ligar ao alferes Salgado. Quando o fez deu-lhe o “banana”.
– “Ó Salgado, estás a ver o que está a suceder?”
– “Estou, pá, bem as oiço. Estou a ver que tens festa.”
– “Tu daí podes dar-nos uma ajudinha. Nós estamos na tabanca que está à tua esquerda. Tens o mapa, faz os cálculos e manda-lhes umas morteiradas para a mata do lado do Senegal.”
– “É, pá, eu já não estou no mesmo sítio. Vou a caminho do quartel.”
– “O quê!? Foda-se! Tínhamos combinado que ficavas lá à minha espera!”
– “É pá, vi que não estava lá a fazer nada.”
– “Vai pró caralho!”, e desligou.

O Aguinaldo, mesmo no meio do tiroteio, apercebera--se da conversa.
– “O que foi, meu alferes?”
– “O alferes Salgado deixou-nos, foi-se embora.”
– “O alferes Salgado não é bom.”
– “É mas é um grande filho da puta”, estava mais que furioso.

Passados mais uns minutos, disse ao Benhanté para mandar mais uma bazucada e ao Otcha um dilagrama e mandou recuar. Verificou que do lado esquerdo e do direito também o faziam. Enquanto isso o Fernandes continuava com as morteiradas. Quando se juntaram todos ouviu a DO. Foi ele que ligou logo.
– “Estamos aqui com um problema, meu major.”
– “Já sei. Estava na pista do quartel e ouvi. É o tal bigrupo?”
– “Parece-me que não há nenhum bigrupo, meu major. Os que nos atacaram não têm esse poder de fogo, além de que não tiveram capacidade para uma manobra de envolvimento que nos lixasse.”
– “Podem não ter querido mostrar. Mas agora não interessa. Retire-se que eu vou pedir uns T6 para despejarem aí umas bujardas.”
– “É óptimo, para ver se não vêm atrás de nós. Além disso podem dar cabo de umas plantações de arroz que eles têm na bolanha. Mas isso o meu major já sabe.”

Uns segundos para engolir, como era hábito.
– “Toca a andar, homem. Eu vou para o quartel e falamos lá.”
Não explodia facilmente, era verdade.

Não iam muito longe quando os T6 apareceram. Despejaram umas tantas e foram-se embora. Mas deu para que os do PAIGC não lhes fossem no encalço. Durante o caminho chegou-se à secção do Fernandes, onde o Clode continuava com a criança ao colo.
– “Nome di bó?”, perguntou-lhe.
– “É badjudinha”, disse o Clode.

Ela não disse nada e chorou.
– “Tá bem, é rapariga. Ó Fernandes, que dia é hoje?”
– “É dia 20 de Agosto, meu alferes.”
– “Não. O dia da semana.”
– “É terça-feira.”
– “Então, como a miúda não quer ou não sabe ainda dizer o nome, vamos chamar-lhe Terça.”

O pessoal ouviu, cochicharam entre eles e acharam piada. Era normal para eles, havia muitas Sábado e Segunda, conforme o dia da semana em que tinham nascido. Não era novidade.

Quando chegaram ao quartel o primeiro que viu foi o Salgado. Foi o primeiro porque era quem queria ver. Estava com o Rodolfo. Dirigiu-se a ele de G3 em riste.
– “Se me fazes aquilo outra vez fodo-te o coiro!”

O Rodolfo olhou-o espantado.
– “Tem calma. Que merda é essa, Aiveca?”
– “Pergunta a este cabrão.”

Mas estava tão furioso que foi ele que acabou por contar ao Rodolfo o que se tinha passado e que o Salgado se pirara deixando-o enrascado. Vieram dizer-lhe que o major estava na secretaria à sua espera. Estava com um capitão, devia ser do seu staff do COP, e o piloto da DO.
– “Então, nosso alferes, conte lá como foi aquilo.”
– “Foi o que estava planeado. Quando estávamos na picada do Senegal apareceu um jipe de gendarmes. Tive de os mandar parar.”
– “Mas não os podia ter deixado seguir e continuar emboscado?”
– “Tive receio que eles dessem pela nossa presença. Gerar-se-ia uma confusão e tenho a certeza que os meus homens os matavam. Gorava-se a nossa missão na mesma e denunciávamos a nossa presença.”
– “Assim sucedeu o mesmo”, disse em tom crítico. “Ouvi dizer que apanharam lá um velho e um miúdo mas deixaram--nos ir embora.”

Foram os furriéis que já andaram por aí a contar, pensou Aiveca.
– “E”, continuou o major”, apanharam uma miúda e deixaram fugir a mãe. Fez mal porque podíamos colher deles muitas informações sobre a presença do PAIGC ali.”

Para o major era o vale tudo. Mas para ele não era.
– “Meu major, nunca pensei que a minha missão fosse apanhar cegos, o velho era cego, não sei se sabe, e miúdos. E a mulher fugiu-nos quando eles nos começaram a atacar.”
– “Mas apanharam a criança dela.”
– “Meu major, não podia deixar a criança no meio do tiroteio ou correr o risco de lhe cair uma morteirada em cima.”

O major encarou-o zombeteiramente.
– “Você, alferes Aiveca, está muito mole para esta guerra.”
– “Estou com certeza, meu major, e não sei se alguma vez estarei duro.” (...)

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(**) Último poste da série > , 29 de maio de  2015 > Guiné 63/74 - P14678: Notas de leitura (719): "As orações de Mansata", por Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora Limitada (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14678: Notas de leitura (719): "As orações de Mansata", por Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora Limitada (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
Aqui temos o Macbeth guineense.
Macbeth tem sido uma tentação para escritores e cineastas.
Em 2001, foi levado ao palco Umabatha, uma adaptação de Macbeth à tragédia sobre a identidade zulu no começo do século XIX. No cinema, temos O Último Rei da Escócia, que recria a sociedade do Uganda sob a ditadura de Idi Amin. Os Fidalgos de Bissau foram encenados por um polaco que trouxe um Macbeth ao Teatro da Trindade, a música era de Braima Galissá.  
“As orações de Mansata” foram representadas em 2013 em vários teatros do país e em Santiago de Compostela. Foram proibidas em Luanda, pois claro.
Abdulai Sila ganhou a aposta com este seu realismo mágico, a linguagem rude e brutal das mulheres e dos conselheiros que incitam a tomada do poder. De forma subtil, Abdulai Sila deixa o retrato da tirania interminável nesta história repleta de desordem e derramamento de sangue.

Um abraço do
Mário


As orações de Mansata, por Abdulai Sila

Beja Santos

Já aqui se fez o registo dos três romances de Abdulai Silá, um escritor que também se intromete na economia, na política, na educação e desenvolvimento social. Como observou Érica Cristina Bispo numa entrevista que fez a este escritor de Catió, “Um traço curioso do escritor é a pronúncia do seu sobrenome, que é uma oxítona (Silá). A fim de transgredir a língua, o autor optou por ferir a regra e tirar o acento. A transgressão da língua é um dos traços da sua escrita, que mescla a língua portuguesa ao crioulo e às demais línguas nacionais da Guiné-Bissau”.

Em 2007, Abdulai Sila publicava na editora que ajudou a criar, Ku Si Mon Editora Limitada, a tragédia “As Orações de Mansata”, uma adaptação de Macbeth à realidade africana. Como observa no prefácio Russell G. Hamilton, “As orações de Mansata é uma verdadeira adaptação da peça de Shakespeare, com respeito a temática, personagens, conteúdo e forma. É a primeira peça teatral da Guiné-Bissau a ser escrita e cuja ação decorre no período pós-colonial. Aliás, é uma das primeiras peças da pós-independência em toda a África”. A trama não ilude ninguém: a avidez do poder, as misérias morais dos cortesãos e aduladores do déspota, enfim, uma história repleta de desordem, tirania e violência. Mais adiante, escreve o prefaciador: “Na peça de Shakespeare as personagens principais são thanes, nobres que possuíam ligações à Casa Real da Escócia. Na peça de Andulai Sila, os equivalentes contemporâneos aos nobres da antiga monarquia da Escócia são ministros, chamados conselheiros. A obrigação desses ministros é aconselhar Mwankeh, o Supre Chefe da Nação. Todos os tais conselheiros estão satiricamente responsáveis para vários assuntos. Portanto, Amambarka, o mais ambicioso procurador de poder, é o conselheiro para assuntos de tchumum-tchamal (confusão e desordem).”

Em “As orações de Mansata”, tal como em Shakespeare, há bruxaria, fantasmas, sobrenatural, predições, a sistemática execução de colaboradores, o déspota vive a paranóia das traições, o déspota quer ter acesso a formula que lhe garanta perpetuar-se no poder, seja a que preço for. Não há Lady Macbeth mas há as três mulheres de Amambarka que funcionam como as impulsionadoras da suprema ambição do ajudante do déspota que lhe quer tomar o lugar, como irá acontecer. Em toda a peça fala-se sempre de poder.

No primeiro ato, alguns discípulos de escola corânica pedem a um alegado vidente que os ajude, em sentido alegórico são cegos que querem ver a beleza da nação, querem ter fé no alto dignitário da nação, a sua maior esperança está no alvorecer da nação que irá renascer das cinzas para se tornar no mais belo jardim do mundo. Mais adiante, três raparigas, simples katanderas (jovens auxiliares num santuário animista) correm atrás do vidente, simbolicamente este primeiro ato é a esperança da gente jovem na regeneração do seu atribulado país.

O segundo ato passa-se no gabinete do Supremo Chefe, Mwankeh está reunido com os seus conselheiros, um deles fala ao telefone com uma das mulheres do déspota e depois tratam de negócios, o Supremo Chefe lamuria-se: “O meu dinheiro roubado na Europa, os meus rendimentos cada vez mais reduzidos, a oposição cada mais ativa e agressiva…”. Todo o seu reinado foi construído com muito sangue, o déspota anda inquieto, agora tem medo, sente que há muita gente a querer apunhalá-lo pelas costas. Fala-se num redentor, poderá ser um perigo potencial, é preciso encontrá-lo, neutralizá-lo.

O terceiro ato chama-se Poder malgós (amargo), o conselheiro Amambarka é vexado pelas suas mulheres, acusam-no de estar irreconhecível, o Supremo Chefe não quer nada com ele, perdeu amigos, perdeu influência, é espancado, há mesmo um fantasma que o increpa, o outrora poderoso conselheiro é agora um nojento farrapo, ele que fora o torturador dileto do ditador, o fantasma insinua que ele pode recuperar todo o prestígio que tivera no passado, tem que provar que não é cobarde, tem que mostrar que é macho.

No quarto ato, Amambarka reúne-se com alguns dos conselheiros e traçam as linhas da conspiração, ele exige-lhes um juramento de fidelidade, ouve-se a voz do fantasma a lembrar que toda aquela gentalha tem sido desleal e infiel a vida inteira, estes conspiradores irão ser devorados um a seguir ao outro. Uma outra voz de fantasma incita-o a tomar o poder: “Move-te, grande homem, para que a nação não fique eternamente subordinada à mediocridade, à pobreza de espírito e à falsidade”. Compete a este conspirador resgatar o esplendor da nação oprimida. O conspirador entra em delírio, já sonha em carros e vivendas, em castelos e mulheres, será o prémio de chegar a Supremo Chefe. Está montada a arquitetura da tragédia e o derramamento de sangue que a acompanha.

No quinto ato, tudo parece correr mal aos conspiradores, mas Amambarka recorre a um expediente infalível, ele que durante anos fora o responsável pela segurança da Suprematura, conhece todos os caminhos para chegar ao coração do poder. E quando os conselheiros na presença de Mwankeh interrogam um apoiante de Amambaka, na altura em que a conspiração está completamente desmascarada, Amambarka entra na sala e liquida o déspota e os conselheiros.

No sexto ato, o novo supremo chefe vai entrevistar videntes, pede-lhes que lhe dêem os segredos de Mansata: “Preciso desses poderes, não para benefício pessoal, mas para fazer progredir a nação. Com esses poderes, não vamos pedir esmola a nenhuma outra nação, vamos ser autossuficientes. Vamos construir hospitais, vamos ter escolas para as crianças. Reparem numa coisa: Hoje é o branco que tem todos os poderes do mundo. Se precisarmos de viajar, temos que pedir ao branco, tem que ser com o carro ou com o avião que o branco construiu…”. O novo déspota procura seduzir os videntes que lhe dizem com a maior naturalidade que Mansata não existe. Só existem orações que para funcionarem é preciso purificar o corpo. E na sala de visitas da Suprematura Amambaka é apunhalado pois está em curso uma conspiração de conselheiros, eles querem ter acesso a essas orações. E dá-se uma chacina, na agonia Amambarka liquida os conspiradores e morre.

Michel Laban, acerca desta terrível peça de teatro teceu os seguintes comentários: “Será que um escritor pode ignorar os graves disfuncionamentos de que sofre a sociedade em que vive? O seu deve não será conferir um caráter útil à sua produção literária? As orações de Mansata confronta-nos com graves problemas sociais – o facto de tratar-se de uma peça de teatro faz com que as preocupações do autor se traduzam de ma maneira mais viva. Podemos ficar agradecidos a Abdulai Sila!”.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14674: Notas de leitura (718): "Cabra-cega: do seminário para a guerra colonial" (autor: João Gaspar Carrasqueira, pseudónimo literário de A. Marques Lopes): Excertos (Parte I): "Tinha-se interrogado várias vezes sobre as razões que o levaram a entrar no seminário"...