Caros camaradas e amigos,
Envio-vos, em dois segmentos, o capítulo XXV do meu livro “Guerra na Bolanha” (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) que nos fala de vários casos, que conheci, de reinserção - ou de não reinserção - de jovens, como eu, que haviam cumprido o serviço militar, na Guiné e noutras paragens ultramarinas, na sociedade portuguesa. A reintegração nuns casos foi razoavelmente bem sucedida e noutros tal não ocorreu, subsistindo traumas físicos e, sobretudo, psicológicos até aos nossos dias.
Via de regra, tendo em conta a aventura espantosa que vivemos em África, arrancados que fomos à relativa mansidão da nossa Tugalândia e ao ramerrame do nosso dia-a-dia, dos idos anos sessenta do século passado, confrontámo-nos com um verdadeiro “reality shock” e, por isso, temos tendência a concentrarmo-nos nos feitos de guerra e no nosso quotidiano em terras da Guiné. Porém, existe sempre um antes, que por vezes também é referido (a nossa juventude e como a vivemos antes da nossa passagem pelas fileiras) e, de igual importância, senão mesmo mais impactante, um depois (mas desta fase poucos falam e, todavia, ela é, a meu ver, crucial).
Uma das minhas preocupações de fundo foi tentar entender em que consistiu, com um mínimo de rigor, a fase posterior, o que é uma tarefa, no mínimo, ingrata. No meu caso pessoal, creio que marquei objectivos, que, aliás, descrevo com algum detalhe no meu livro, elaborei uma estratégia para os alcançar e, com maior ou menor sacrifício, consegui atingi-los. Todavia, muitos jovens de então, por uma multiplicidade de razões, infelizmente, não obtiveram qualquer êxito nessa caminhada.
Penso que não podemos circunscrevermo-nos a falar em circuito fechado da “nossa guerra” e que nos devemos abrir à sociedade em geral, sem tabus, sem preconceitos e sem complexos. Se queremos algum reconhecimento pelo que fizemos - e todos nós sabemos bem quão ingrato é ou pode ser o nosso Portugal actual - temos de falar para que alguém nos ouça. Não queremos pancadinhas no ombro do nosso proverbial nacional-porrerirsmo, não queremos agradecimentos, medalhas, louvores e lisonjas, mas apenas, que se reconheça que, para o bem e para o mal, com sacrifícios, desassossegos e canseiras, lutámos pelo nosso país. Verifico, por exemplo, que, nos Estados Unidos, independentemente dos conflitos justos ou injustos, populares ou impopulares, da respectiva legitimidade ou ilegitimidade, a população, em geral, presta tributo aos seus veteranos, quer os da II Guerra Mundial, da Coreia, do Vietname, do Iraque ou do Afeganistão. Na Rússia passa-se exactamente à mesma coisa. Portugal, pelo contrário, parece que quer deliberadamente apagar a sua história, todavia um tal curso de acção é um absurdo, jamais poderá ser concretizado.
Um abraço
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç. 2402 e
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)
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A reinserção dos outros. Será que houve verdadeira reintegração? Realidade e ficção.
(1.ª parte)
Caso 1
Pousou o cigarro fumegante no cinzeiro metálico na mesa daquela esplanada da Costa da Caparica. Falou e acto contínuo começou num tom fortemente emotivo:
- Sabe, meu amigo, não consigo. Não consigo. Não me sai da memória. Depois daquela emboscada já perto, muito pertinho de Bula, numa maldita bolanha. Santo Deus! Não consigo...
Bebeu mais um gole de água e um pouco mais distendido continuou:
- Emboscaram-nos em grande, os cabrões! Era um fogachal medonho por todos os lados. Disparavam as RPG’s e as Kalashes sem descanso. Não, não eram, como habitualmente, uma meia-dúzia. Desta vez, era mesmo em grande. Não sei fazer as contas, mas eram muitos, mais que às mães, como se costuma dizer. Eram tiros e rebentamentos por tudo quanto era sítio. Estavam ali à nossa espera. Já não sabíamos uns dos outros, porque tínhamo-nos reunido em pequenos grupos para resistir melhor, mas aquilo não parava e não tínhamos onde nos abrigar. Aliás, estava tudo espalhado e tresmalhado no meio da água e do capim. Se não tivéssemos cuidado, daí a pouco estávamos a disparar uns contra os outros. Sabe, são imagens que ainda hoje não me saem da cabeça. Estou a ver a cena toda. Depois, acertaram em dois ou três de nós, talvez mais. Não sei bem. Ouviam-se os gritos. Ouço-os todos os dias. “Ai minha Nossa Senhora! Acudam-me que eu fico já aqui! Mãe! Oh, minha mãe! Estou com as tripas de fora! Ajudem-me! Ajudem-me! Vamos aqui ficar todos! Virgem Maria! Acudam-me! Enfermeiro! Enfermeiro!” E o héli não vinha. Não vinha e nós cada vez mais desesperados.
Vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Revivia tudo como num filme em câmara lenta. Parava. A bobine voltava atrás e avançava outra vez, mas não tinha fim, recomeçava. Olhou para a linha do horizonte e viu a praia com os banhistas sob o escaldante sol de Julho, um avião sobrevoou-nos, dirigia-se à Portela. O que lhe parecia verdadeiramente irreal era aquela cena corriqueira e não o seu relato, o seu filme, o que tinha para contar. Essa, sim, era a história real.
Poilão de Brá
Foto ©: Arquivo de Francisco Henriques da Silva
Caso 2
Era meu vizinho do bairro. Uns anos mais novo, mas a diferença de gerações, hoje inexistente, não nos impedia de relatarmos as nossas experiências.
- Sabes, Chico, eu era furriel da Polícia Militar e tenho duas ou três cenas que não me saem da memória, isto já no final da comissão. Em Portugal, tinha acabado de se dar o 25 de Abril e em Bissau, aquela malta começava a manifestar-se por toda a parte. Por conseguinte, a PM tinha que redobrar de esforços, por que as coisas podiam dar para o torto. Uma das tarefas de que fui incumbido e precisamente aquela que não posso, por forma alguma, esquecer foi a prisão do Governador e Comandante-chefe da Guiné, General Bethencourt Rodrigues. Mandaram-me ir prendê-lo ao Forte da Amura, no dia 26 de Abril. Perguntei: ‘Quem? Eu, um simples furriel da PM?’. Responderam-me que sim que a tarefa era da minha responsabilidade e que não ia comigo nenhum oficial. Fiquei um bocado à rasca com tudo aquilo e cheio de nervoso miudinho: ia prender o Grande Chefe, nem mais nem menos.
Cheguei à dependência onde se encontrava, na Amura, bati a pala e, antes de poder abrir a boca, o General adiantou-se-me dizendo-me: ‘Estou pronto. Podemos seguir para o aeroporto’.
Bom, lá fomos em silêncio, estrada fora. Sabes estas coisas são difíceis de contar, têm de ser vividas. Foi muito desagradável. Senti-me muito incomodado.
Parou durante uns momentos, talvez para mudar um pouco de tema, muito embora se referisse invariavelmente a episódios do pós-25 de Abril em Bissau:
- Deram-me também como missão específica, naqueles dias, logo a seguir à revolução, que fosse libertar os presos políticos que se encontravam em Bissau, à guarda da PIDE. Também não foi nada fácil, muito embora o final fosse estilo tourada. Eu já te explico. Aquela malta - refiro-me aos locais - estava possessa e queria que os presos fossem libertados de imediato. Começou-se a juntar a multidão, com cada vez mais gente, e nós, ou seja, eu e os meus homens, éramos poucos - creio que uma secção, ou coisa que o valha - tínhamos a maior das dificuldades em contê-los. Bom, lá fui à cadeia e libertei os 7 que lá se encontravam (sim, seriam 7, mas não te posso garantir o número exacto), isto perante a gritaria constante daquela gente. As coisas podiam dar para o torto, porque estavam todos excitadíssimos. Quando os gajos vieram para a rua, a multidão avançou para mim e eu, muito francamente fiquei, então, com um cagaço dos antigos. Estava a ver que podia ser linchado. Mas, não, levaram-me aos ombros como um toureiro e andaram a passear-me pelo centro de Bissau. Transformaram-me em herói. Não ganhei para o susto, mas tudo bem. O que te fui contando e que tu percebes melhor que ninguém, pois também por lá andaste, fica-nos gravado na memória. Por muito que a gente queira, isto não desaparece. Eu não andei aos tiros no mato, como tu e outros, mas vivi estas coisas na cidade intensamente. Hoje, tenho o meu emprego, à espera da reforma, a minha mulher, filhos e netos, enfim a vida que todos têm ou deviam ter. O que passei em África, está ultrapassado, mas fica sempre qualquer coisita, não é verdade?
Bissau actual
Foto de Paula Tábuas © copyright
Caso 3
Empresário com algum sucesso, o António, hoje, sexagenário, com graves problemas de artrose, lá consegue movimentar-se agarrado a uma bengala. A sua história é igual à de muitos outros, com algumas diferenças, que não são simples matizes.
- Alferes miliciano de infantaria, a minha especialidade eram as armas pesadas, andava lá para o Sul com os morteiros de 105. Veio o 25 de Abril e pouco depois tudo aquilo entrou em parafuso. Ninguém mandava em ninguém. Os soldados não queriam combater. Os “turras” confraternizavam connosco. Nada do que assisti fazia sentido e se comparássemos com o que se tinha passado uns meses antes, em que andavas para ali aos caídos a apanhar no toutiço, a comer mal e a ser comido pelos mosquitos, menos sentido fazia. Era um ver se te avias. Eu não sabia muito bem como aquela história ia acabar. Enfim, lá nos mandaram embora e para aqui viemos. Mas a verdadeira história é por cá que começa, na Santa Terrinha. Cheguei e o que eu queria era beber umas cervejolas e comer umas gambas, descontrair, gozar a vida, depois de ter passado o que passei lá pela mata da Guiné, o que quer que viesse a seguir que se lixe, ficava adiado - era para se pensar nisso mais tarde. Mas um gajo chega e, no fundo, o que é que vê? Um país em convulsão, tudo excitado e aos berros, todos a quererem tudo ao mesmo tempo, já, neste instante, agora. Estás a ver? Lembras-te, com certeza. Mas o pior nem sequer era isso. O pior é quando te acusavam de teres estado em África a matar pretos. ‘Então voltaste, mataste muitos pretinhos, não foi?’ diziam-me. De repente, éramos os maus da fita e mesmo os amigos voltavam-nos as costas. Todos eram revolucionários, comunistas, socialistas, maoístas, eu sei lá. E depois nós que andámos ali a bater com elas, éramos desconsiderados, desrespeitados, insultados. Em nenhuma parte do mundo, os militares que combateram pelo seu país foram tratados desta forma, como se fossem criminosos. O problema foi da Nação, foi colectivo e não apenas nosso, dos combatentes. Limitámo-nos a cumprir ordens que nos vinham pela cadeia hierárquica e não éramos nenhuns nazis: não fizemos nada contra a nossa consciência, nem contra os nossos princípios. Sabes, o sermos tratados como lixo é que me doeu. Essa imagem é que está gravada no meu espírito. Esta gente foi profundamente ingrata. A bolanha e os tiros esquecem-se, mas quando os teus compatriotas e os teus supostos amigos te tratam como se fosses merda, aí não te esqueces, nunca mais.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 8 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14713: Notas de leitura (724): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (Mário Beja Santos)