sábado, 13 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14741: Os nossos seres, saberes e lazeres (100): Passeio turístico a Sanxenxo (Galiza) promovido pelo Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes (Carlos Vinhal)

Foto de família com os combatentes, seus familiares e amigos

No passado fim de semana de 6 e 7 de Junho, o Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes organizou e proporcionou,  aos seus sócios e amigos, um passeio até à nossa vizinha Galiza, Região de Espanha onde os portugueses se sentem como em casa.

Do acontecimento aqui se deixa um texto elaborado pelo Núcleo.


Passeio turístico a Sanxenxo

06 e 07 JUN2015

O Núcleo da Liga de Combatentes de Matosinhos realizou um passeio turístico a Sanxenxo nos dias 6 e 7 com um grupo de 25 sócios e familiares, de acordo com o seu plano de atividades para o corrente ano.

A concentração dos participantes foi em frente ao Regimento de Transmissões e deu-se início à viagem, num confortável autopullman, pelas 10h00 com destino a Sanxenxo, tendo a chegada ao Hotel Ribeiro de *** na Playa das Areas acontecido pelas 12h30, onde foi servido um almoço buffet.

No interior do autocarro reinava a boa disposição

Pelas 15H30 realizou-se o passeio de barco pela Ria Arosa, acompanhado de apresentação por guia local que nos mostrou as explorações marisqueiras, observação do fundo marinho e fauna local, finalizando este longo e agradável passeio com uma degustação de mexilhões, camarões e vinho acompanhado de música e, na altura da saída do barco, ouviu-se o nosso Hino Nacional.

 Este catamaran esteve reservado exclusivamente ao nosso grupo

 Um dos viveiros de marisco da Ria de Arosa

No cais, após o desembarque, a foto de família exclusivamente masculina

Seguiu-se uma visita à ilha de La Toja, conhecida pelas suas paisagens paradisíacas, pela sua fábrica de sabonetes e cosméticos feitos com água mineral da zona e pela Capela de San Caralampio, vulgarmente conhecida pela Capela das Conchas.

 Capela de San Caralampio revestida exteriormente por conchas

Um pormenor da parede exterior da Capela
Foto: © Carlos Vinhal

A tarde terminou com a ida de alguns sócios a banhos dados os 31 graus registados, seguindo-se o jantar – uma mariscada - que se iniciou pelas 21h00 e que se revelou, pela quantidade e qualidade do marisco, uma prova difícil de terminar, mesmo para os mais resistentes nestas lides.





Sem comentários

Este 1.º dia não poderia terminar da melhor maneira, assistindo-se a uma tradicional queimada galega levada a efeito por dois cidadãos galegos num ritual de purificação para queimar os males todos das vidas dos que estavam presentes banindo bruxas, diabos, maus olhados e afins seguido de baile que terminou já noite dentro.

Queimada galega
Foto: © Carlos Vinhal

A leitura da oração contra todos os males

 A animação é bem visível, principalmente entre as senhoras

No 2.º dia, já restabelecidos do esforço físico e digestivo do dia anterior, realizou-se da parte da manhã uma visita a Sanxenxo que se encontrava em preparativos para a procissão local do Dia do Corpo de Deus e onde se destaca a sua conhecida e aprazível praia.

 Vista de uma das praias de Sanxenxo

Em Dia de Corpo de Deus davam-se os últimos retoques nos tapetes para a Procissão

Depois do almoço no Hotel iniciou-se a viagem de regresso a Portugal com paragem e visita à bonita e pitoresca vila piscatória de Combarro.


Dois aspectos de Combarro

Este tipo de atividade, realizada pelo Núcleo pela primeira vez, caracterizou-se por momentos muito agradáveis de boa-disposição e de convívio num revitalizante fim de semana cheio de alegria e radioso sol.

Todos estavam felizes e cooperantes e foi motivo de referência o extenuante e esclarecedor trabalho do vogal da Direção, Sargento Ajudante Osório, na sua função de “guia” e a forma simpática e hospitaleira revelada pelos funcionários do hotel que inclusive fizeram questão de a demonstrar por escrito à entrada do hotel: “portugueses irmãos dos galegos – benvindos”.

Texto: Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes
Fotos: Núcleode Matosinhos e Carlos Vinhal
Legendas: Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14726: Os nossos seres, saberes e lazeres (99): Tomar à la minuta (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14740: O cruzeiro das nossas vidas (22): A viagem no Alenquer, a chegada, o desembarque e o rumo ao destino (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2015, falando-nos desta vez da chegada a Bissau.

Meus amigos
Depois da Partida, eis que chega a Chegada (passe o pleonasmo).
Faz 47 anos que pisei aquela que é, para nós, a segunda pátria.
No próximo dia 10, fará 45 anos do regresso definitivo.

Abraço
Zé Martins


A CHEGADA

Dos doze passageiros que embarcaram no Alenquer, apenas três eram milicianos. Os restantes, os marinheiros e um furriel enfermeiro, eram do quadro permanente.

A viagem foi tranquila, pois despojados das fardas, que foram encerradas nos armários até ao dia do desembarque, todos vestíamos roupas civis. O próprio fardamento da tripulação, nada tinha a ver com o rigor militar.

Dado o reduzido número de passageiros, até o aviso de que as refeições iam ser servidas, era transmitido pessoalmente no convés, ou, quando caso disso, com pancadas leves na porta dos alojamentos.

Calmamente, com a calma que o mar transmite, fomos passando os dias em que foram sendo percorridas as milhas náuticas que nos separavam de África, até que, na manhã de 3 de Junho [ano de 1968], as máquinas reduziram a pressão e o barco ancorou ao largo de Bissau. Era uma Segunda-feira.


Ponte-cais, Bissau. Em primeiro, vê-se o monumento a Diogo Cão. 
Bilhete-postal, colecção "Guiné Portuguesa, 110". © Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL. Colecção: Agostinho Gaspar / Digitalizações: Luís Graça & Camaradas da Guiné 2010.

Lá longe, no cais, havia um grande vaivém de pessoas e barcos. Já não era o dia de “São Vapor” de que nos fala Amândio César no seu livro Guiné 1965 – Contra Ataque, assim era chamado o dia em que atracava um barco ao porto, fazendo com que a população se deslocasse até lá.

Ao largo, assim que começaram a descer as LDM – Lanchas de Desembarque Médio – houve um autêntico enxame de pequenas embarcações, movidas a motor ou a remos, em torno das mesmas a oferecer a venda de serviços ou comida tradicional. A tripulação que descera já dentro das lanchas, ia assumir de imediato a sua missão deslocando-se para o cais militar. Abandonaram aquela zona entre acenos despedidas e votos de boa sorte.
 
Mesmo nas vindas a Bissau, de férias ou em serviço, nunca mais voltei a encontrar estes companheiros de viagem. A Guiné é pequena, mas as coisas nunca estão ali à mão.

No porto do rio Geba, em Bissau, a chegada e a partida de embarcações era banal que o Alenquer teve de aguardar, ao largo, autorização e espaço no cais para poder atracar.

A acostagem só se efectuou perto da hora de jantar.
O Imediato veio informar-nos que, a partir daquele momento, a viagem tinha terminado. No entanto, como já era tarde, aconselhava-nos a pernoitar no barco, porque sendo já tarde, era muito difícil arranjar acomodações militares ou mesmo civis. Mais! Como iam demorar cerca de dois dias com as operações de descarga do navio, podíamos continuar alojados no mesmo, como convidados, devendo, no entanto, providenciar a nossa instalação futura.

Antes de jantar fomos a terra. Queríamos começar a conhecer a terra, mas também, tomar algo de fresco, porque o calor, mesmo para os que já lá estavam há algum tempo, era, digamos, insuportável. Andando e observando a cidade fomos dar ao Café Bento, conhecido pela “5.ª Repartição do QG”, uma vez que se encontrava sempre, a qualquer hora, repleto de militares em passagem por Bissau, quer na ida ou regresso de férias, quer por se encontrarem em consulta externa no Hospital Militar ou ainda a aguardar colocação.

Nos cafés a lista dos serviços que ofereciam, das bebidas aos tabacos, eram quase iguais às que oferecia qualquer café da metrópole. A diferença era no preço: a moeda local, o Peso, não tinha centavos ou pelo menos não circulavam, sendo o arredondamento efectuado, quase sempre, para a unidade inferior, o que naquela altura representava algum benefício.
As notas emitidas na metrópole eram sempre muito bem recebidas, já que tinham um valor acrescido de dez por cento. Às moedas já não lhes atribuíam qualquer mais valia.

No dia seguinte, segunda-feira, apresentamo-nos no Quartel-General do CTIG, em Santa Luzia, ficando a aguardar transporte para as respectivas unidades. Tínhamos o tempo todo livre, mas teríamos de nos apresentar, todos os dias, no Serviço de Pessoal do QG, a fim de sabermos quando e de que forma seria efectuado esse transporte para as nossa unidades.

Nesse mesmo dia, Terça-Feira dia 4 de Junho, durante o almoço a bordo do Alenquer, o imediato veio falar connosco, informando-nos que a descarga do navio estava a ser mais rápida do que o previsto. Seria aconselhável, para nós que, o jantar e a pernoita, fossem efectuadas já em terra, uma vez que tudo indicava que largassem ainda durante a madrugada do dia seguinte.

Terminada a refeição fomos apresentar, ao comandante e tripulação do navio, as nossas despedidas e sobretudo, agradecer a forma amável e distinta com que nos tinham tratado desde que a saída de Lisboa. Depois lá rumámos em direcção aos alojamentos destinados aos sargentos no Quartel-General em Santa Luzia, a escassos quilómetros da cidade.

Como era de prever, e isso mesmo já tínhamos constatado, o local, apesar de limpo e arejado, era o protótipo de local de passagem. As camas não dispunham de roupa nem havia qualquer local onde se pudesse requisitar material de aquartelamento.
Acomodamo-nos o melhor possível para passar a noite, não sem antes termos visitado o bar de sargentos, para o que já começava a ser habitual: tomar uma qualquer bebida fresca.

No dia seguinte, após passagem pelo Serviço de Pessoal para cumprimento das instruções recebidas, e não havendo qualquer previsão de transporte para os nossos destinos, como que impulsionados por uma mola dirigimo-nos ao cais.

Navio de carga "Alenquer" - Armador: Sociedade Geral do Comércio, Indústria e Transportes - Lisboa
Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses

Surpresa... tristeza... desilusão... O Alenquer já não estava nem no porto nem se avistava no estuário. Já tinha partido.

O desalento foi total. Foi como se nos tivessem cortado o cordão umbilical, que nos ligava à metrópole. Dias depois cada um seguiu o seu rumo, que, acaso do destino, ficava quase nos vértices do triângulo que a província formava: Nova Lamego, Bedanda e Farim.

José Martins
14/JULHO/2000
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14672: O cruzeiro das nossas vidas (21): Os últimos dias, a família, os amigos e finalmente o embarque, em 28/5/1968 (José Martins)

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14739: Convívios (688): Rescaldo do XIII Encontro do pessoal da CART 2520, levado a efeito no passado dia 30 de Maio em Mira de Aire (José Nascimento)


1. Mensagem do nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) com data de 4 de Junho de 2015 com o rescaldo do XIII Encontro do pessoal da sua Unidade, levado a efeito no passado dia 30 de Maio, em Mira de Aire:

Amigo Carlos,
A Cart 2520 realizou o 13.º Convívio, no dia 30 de Maio, próximo de Mira de Aire, no Restaurante "A Gralha".

Foi organizado pelo 1.º Cabo Cordeiro, o Apontador de Morteiro 60 do 3.º grupo de combate.
Os antigos combatentes reuniram-se junto à antiga e bonita capela dedicada a S. Silvestre, no pitoresco lugar do Covão da Carvalha. Aí foi celebrada missa em memória dos militares falecidos em combate, pelo padre Luís.
Este pároco, que esteve durante vários anos em Ourique, no Alentejo, teve o ensejo de relatar uma pequena e emocionante história, protagonizada por um antigo militar português que cumpriu o serviço militar em Ingoré, na antiga Guiné Portuguesa.

O Almeida, assim se chamava o militar, passava através da vedação de arame farpado, o que restava da alimentação da nossa tropa e que as crianças nativas recolhiam em latas e que lhes servia para mitigar a sua sua fome e possivelmente de alguns adultos.
Passados alguns anos, depois de ter regressado à Metrópole, por circunstâncias desconhecidas o Almeida tornou-se alcoólico, ninguém queria saber dele e era desprezado pela população, devido ao seu aspecto desmazelado, cabelos compridos, barba por fazer e a roupa sempre suja.
Mas o Almeida haveria de se curar do alcoolismo e certo dia, de cabelo cortado e barba feita, passa junto a uma obra de construção civil que estava a decorrer na sua terra, ouve chamar por "ALMEIDA". Vai ao encontro desse chamamento e qual não é a sua surpresa quando reconhece alguns operários negros a quem ele, algumas dezenas de anos antes, tinha ajudado a matar a fome, naquela terra distante da Guiné. Abraçaram-se longamente...
Algum tempo depois o padre Luís saiu para outra paróquia, mais tarde soube que este seu confidente tinha falecido.

Quanto ao convívio, (este ano com um grupo muito reduzido) foi um reviver de emoções e o recordar de um tempo, que embora passado com muitas dificuldades, ajudou a cimentar muitas amizades e jamais voltará.

Recebe um grande abraço do amigo.
José Nascimento
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14732: Convívios (687): A malta da Tabanca Grande no 10 de junho de 2015, Lisboa, Belém - Parte II: homenagem às antigas enfermeiras paraquedistas (Miguel Pessoa / Jorge Canhão)

Guiné 63/74 - P14738: Os nossos médicos (85): Memórias do Dr. Rui Vieira Coelho, ex-Alf Mil Médico dos BCAÇ 3872 e 4518 (15): Africanização Portuguesa

1. O nosso camarada Mário Vasconcelos (ex-Alf Mil TRMS da CCS/BCAÇ 3872 - Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72 - Mansoa, e Cumeré, 1973/74) enviou-nos a mensagem que se publica, com mais um texto de Memórias do Dr. Rui Vieira Coelho [foto à esquerda], (ex-Alf Mil Médico que esteve integrado nos BCAÇ 3872 e 4518, Galomaro, 1973/74).

Como se uma ordem fosse, encaminho, retransmitindo, o texto entregue pelo ilustre amigo e camarada Dr. Rui Vieira Coelho, ex-Alf Médico, dos BCAÇ 3872 e 4518, sediados em tempos idos, em Galomaro-Guiné.
O texto aborda a problemática da "Africanização do Exército Português no CTIG".
Adicionam-se algumas fotos em sintonia com o escrito recebido.

Abraço e saudações nossas para todos os camaradas.
Que a saúde, e a alegria de vida, sempre vos acompanhe.
Mário Vasconcelos




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Notas do editor:

- As fotos referidas chegaram ao blogue sem o mínimo de qualidade para serem publicadas. Aguarda-se o envio de outras em substituição.

Último poste da série de 22 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13782: Os nossos médicos (84): Memórias do Dr. Rui Vieira Coelho, ex-Alf Mil Médico dos BCAÇ 3872 e 4518 (14): Onde se fala de doenças sexualmente transmissíveis (con destaque para a blenorragia) mas também de perturbações psíquicas como a depressão e o stresse pós-traumático de guerra

Guiné 63/74 - P14737: Notas de leitura (727): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
É uma felicidade dispormos de esplêndida literatura nos diferentes teatros de operações.
A Guiné é a nossa estrela polar, mas temos tudo a ganhar em identificar as pepitas alheias.
Este livro de António Brito é um monumento, vaticino-lhe um futuro com grandes audiências. É uma escrita desmedida, onde se entremeiam o patético, o doloroso, o melhor do ser humano, o mistério do heroísmo, as doçuras da camaradagem e as imagens mais negras do militarismo.
Vende-se a preço abordável, ficam já a saber. E asseguro que ninguém ficará desapontado com este contrabandista que assinalará grandes façanhas, conhecerá sofrimentos inenarráveis, tudo dentro dum extremo e numa bipolaridade que nos toca o coração.

Um abraço do
Mário


Olhos de Caçador: Livro soberbo, o poliedro das brutalidades da guerra (2)

Beja Santos

“Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014, é um livro inesquecível: pelo vigor das reconstituições, pela convocatória permanente da linguagem da caserna, pela abordagem sem reservas dos estados de alma, tocando em todas as teclas desde o sublime à mais degradante miséria.

Escreve-se nos dados curriculares que Brito nasceu em Coimbra e é licenciado em Direito. Antigo combatente da guerra colonial, aos 18 anos alistou-se nas Tropas Para-quedistas, sendo mobilizado para Moçambique onde combateu nalgumas das mais importantes operações militares contra os guerrilheiros nacionalistas. Figura central do romance é Zé Fraga, contrabandista e passador de emigrantes, mobilizado à má-fila. Tem todos os ingredientes para se adaptar às durezas do mato, irá tornar-se na referência de coragem e liderança da sua companhia de caçadores, colocada em Magolé. Zé Fraga tem amigos e gente que lhe vota um ódio tremendo, caso do capitão Vinhais, alcunhado de Galo Doido. Já foram praxados em Magolé, Zé Fraga, enojado com o comportamento timorato de Galo Doido durante a flagelação, quer partir. São dois amigos, o alferes Perdigoto e o sargento Bezerra, que o dissuadem.

O fundamental é pôr Magolé ao nível de um aquartelamento seguro. Trabalhou-se assim:
“Riscámos no solo um quadrado com 150 metros de lado. Cada um dos quatro pelotões instalou-se para construir e tomar conta do lado que lhe foi destinado. A nós calhou-nos um pedaço de terra plana que em tempos parecia ter acomodado uma machamba, a avaliar pelos pés de mandioca e inhame mirrados que ainda despontavam das ervas. Só vos digo que durante dias cavámos uma trincheira, em ziguezague, com um peitoril de terra virado para fora, digna do Front de Verdun. Uns metros à frente, enterrámos estacas para fixar a barreira de arame farpado, que foi crescendo como um cordão de videiras, de onde pendiam pontas aceradas, em vez de uvas. As minhas mãos, treinadas para coisas suaves como premir o gatilho e apalpar as mamas das mulheres, foram torturadas pelo cabo da picareta e pelos bicos do arame. Trabalhávamos por turnos como nas minas de volfrâmio, de calções e tronco nu. Parecíamos personagens de um filme bíblico sobre escravos do Egipto. Em vez de erguermos pirâmides, cavávamos bunkers para nos enfiarmos. Em vez de areia do deserto, derrubávamos a floresta, omnipresente, com machados e cargas de trotil. Em vez do faraó a acoitar-nos, tínhamos os ataques de fúria do Galo Doido, insultando os soldados de preguiçosos e calaceiros. Em vez das pragas e gafanhotos, tínhamos os ataques de morteiros e as nuvens de mosquitos devorando a pele”.

Assegurou-se a segurança. Começam os patrulhamentos, e um dia Zé Fraga mata um guerrilheiro:
“Caminhava curvado, apanhando do chão para dentro de um cesto feito de folhas de palmeira entrançada, as castanhas de caju caídas das árvores. A arma permanecia em repouso no ombro, pendurada pela bandoleira. Caminhava descontraído. Avançava de árvore em árvore como um barco de ilha em ilha. Rondava uma, apanhava o caju, seguia para outra. Eu olhava para ele, fascinado, na esperança de que passasse ao lado. Mas não. Viu as ramadas escorrendo até ao chão e deve ter imaginado uma boa provisão de frutos debaixo delas. Avançou, apertando as folhas com as mãos para espreitar para dentro. Não viu caju. Viu-me a mim. Ainda esboçou um gesto para levar a mão à Simonov. A boca da G3 estava a um metro dele mirando-lhe o peito nu. Apertei o gatilho e a bala rebentou-lhe com o esterno, fazendo voar pedaços de osso, num esgar que tinha mais de estupefação do que dor”.

Zé Fraga pode ser malandro e viver de expedientes, mas não mata crianças. Haverá um assalto a um acampamento da FRELIMO, Zé Fraga deixa fugir uma miúda. Regressam com troféus, desde canhangulos, passando por facas rombas até uma PPSh-41. Por ter deixado escapar a miúda, o Galo Doido recambia Zé Fraga para o Posto 36. Estão aqui páginas impressionantes, entre as melhores que Brito escreve neste livro:  
“Oficialmente, o Posto 36 era uma guarnição avançada no cimo duma colina, a um dia de marcha de Magolé, não muito longe do corredor da guerrilha que conduz à Tanzânia. Antes da guerra, era ali que se situava um depósito de água com o número 36 pintado num dos lados, onde as populações se abasteciam nos tempos de seca. No primeiro ano de guerra, o depósito foi destruído. A floresta apossou-se do local e o posto de água deixou de figurar nos mapas do planalto dos Macondes. Só os caçadores indígenas, os guerrilheiros e os batedores do Exército sabiam onde conduzia um desvanecido carreiro que partia do Chai para Magolé e depois se perdia na floresta como um fio de água nas areias. Para o Exército, o local era somente um posto avançado, a meio caminho entre o aldeamento de Miteda e a serra Mapé. Mas os soldados conheciam-no pelo tenebroso nome de Matadouro, tantas e tão frequentes eram as baixas que os iam atingindo. Foi para ali que o Galo Doido me enviou com uma punição de cinco meses”.

São descrições análogas à que vimos no filme Apocalypse Now. Uma descrição épica, aquela marcha com carregamento suplementar, com imprevistas chuvas diluvianas. Os soldados vivem em buracos, disparam para a mata quando lhes apetece. “Ao simularem ataques do inimigo, aqueles homens só vagamente lembravam um grupo organizados de soldados. Mais pareciam uma quadrilha de malfeitores fugidos das autoridades”. São finalmente recebidos por um tenente que fica furioso quando descobre que não trouxeram cerveja fresca, quando tinham trazido tudo que era essencial para a reparação do gerador. Brito é elaboradamente excessivo, agarra o leitor pela gola tratando o horrendo como se fosse trivialidade: “Em redor de montículos de insetos caídos por terra, mortos pela luz dos candeeiros, encontrei dois gajos barbudos recolhendo os insetos maiores, levando-os para cima duma chapa aquecida na fogueira. Os bichos, postos a grelhar, libertavam um cheiro estranho, como se estivessem a chamuscar alfazema e rosmaninho. Os mais gordos rebentavam libertando um líquido esverdeado que se espalhava a fumegar pela chapa quente. À medida que arrefeciam, os barbudos metiam-nos na boca, mastigando-os com deleite. Viram-me especado a olhar para eles e ofereceram-me um inseto gordo, carbonizado, que recusei, abandando a cabeça enojado. Ante a minha repulsa, um deles comentou: - Este ou é muito fino ou não tem fome. - Nem esfomeado eu comia essa merda verde – respondi-lhe”.

O posto 36 anda à deriva, não tem rotinas, não há plano de tarefas. Quando se comia, aparecia quem queria, quem não queria não aparecia. A higiene estava diretamente dependente do nível de água dos bidões de reserva. Tudo se improvisava, quando há flagelações incendeiam-se uns montículos de lenha previamente dispersos em redor do arame. Os frelimos andam por ali à solta. Os acidentes gravíssimos sucedem-se. Zé Fraga descobre num bunker o capelão Tomé, devorando pela febre do paludismo. Irão ter discussões acesas sobre os assuntos do céu e da terra. Zé Fraga descobre, aturdido, que os soldados do posto 36 guardam bocados de guerrilheiros e um dia dão-lhe uma sandes de coirato que ele irá descobrir ter comido uma orelha humana.

(Continua)
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Notas do editor

Primeiro poste de 8 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14713: Notas de leitura (724): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14730: Notas de leitura (726): “Guerra na Bolanha”, de Francisco Henriques da Silva - (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) - O regresso de África e a reinserção - parte II (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P14736: Convívios (688): A malta da Tabanca Grande no 10 de junho de 2015, Lisboa, Belém- Parte III: homenagem às antigas enfermeiras paraquedistas (Manuel Lema Santos, 1º Ten RN, imediato no NRP Orion, 1966/68)










Lisboa, Belém, Forte do Bom Sucesso, Monumento aos Combatentes do Ultramar > 10 de junho de 2015 > Cor inf ref José Aparício (antigo cmdt da CCAÇ 1790, Madina do Boé, 1967/69), e grupo de antigas enfermeiras paraquedistas homenageadas (Ao todo, cerca de 3 dezenas; terão faltado 7 das que estão vivas, segundo informação da Giselda), Grã-tabanqueiras que estiveram na cerimónia, para além da Giselda Pessoa; a Maria Arminda,  a Rosa Serra e Aura  RicoTeles (,se não erro) (LG)


PARAQUEDISTAS

Se o ter asas simboliza a liberdade
Que a vida nega e a alma precisa,
Olhai, paraquedistas, tendes tudo:
Lá no céu elevai vossas almas
Que cá na terra a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Tendes ao menos a força de não a
Mostrardes a ninguém.

Aura Rico Teles
Tenente Enfermeira  Paraquedista


Fotos: © Manuel Lema Santos  (2015). Todos direitos reservados [Edição: LG]


1. Mensagem do  Manuel Lema Santos [,1º tenente da Reserva Naval, imediato no NRP Orion, Guiné, 1966/68; membro da nossa Tabanca Grande desde 21 de abril de 2006] [, foto atual  à esquerda]:

Data: 11 junho 2015 18:05



Assunto - Lisboa, Belém, 10 de junho de 2015, homenagem às enfermeiras paraquedistas

Luís Graça,

Dentro das minhas magras possibilidades e porque as fotografei, aqui vão algumas fotos aquando da homenagem às Enfermeiras Páraquedistas.

Como mera curiosidade, como muitos saberão, o Cor José Aparício que fez a alocução, foi comandante da CCaç 1790 [, tragicamenmte ligada ao desastre de Che-Che,  Corubal, 6/2/1969], pertencente ao BCaç 1933, em que meu irmão esteve integrado como médico (1967/69),

Abraço,
MLS
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Guiné 63/74 - P14735: Agradecimento: De Belarmino Sardinha à tertúlia, a propósito do seu aniversário ocorrido no passado dia 6 de Junho

1. Mensagem do nosso camarada Belarmino Sardinha (ex-1.º Cabo Radiotelegrafista STM, Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau, 1972/74), com data de 9 de Junho de 2015:


Caros Luis e Carlos, 
Agradeço o favor de publicarem o texto que segue. 

Embora nem sempre nos conheçamos pessoalmente, quero agradecer a todos quantos se deram ao trabalho de escreverem umas linhas a felicitarem-me por ter cumprido mais um aniversário. 
Sou e quero continuar a ser um homem de palavra, espero não os desiludir e poder continuar a receber, por muitos e longos anos os vossos parabéns e poder retribuir com o meu agradecimento. 
Espero igualmente que cumpram a vossa parte mantendo-se de boa saúde para o fazerem. 

Caros companheiros, o meu muito obrigado. 
Um abraço, 
 BS

Guiné 63/74 - P14734: Inquérito online: resultados preliminares (n=146), a dois dias de encerrar a votação: cerca de metade dos votantes admite que nunca teve relações sexuais com nenhuma mulher local, no TO da Guiné, durante a guerra colonial

I. Quando faltam dois dias para encerrar a votação, tínhamos 146 resposta, esta manhã,  dia 12. 

Os resultados (provisórios) eram os seguintes:


SONDAGEM: "NO TO DA GUINÉ, CONFESSO QUE NÃO TIVE RELAÇÕES SEXUAIS COM NENHUMA MULHER LOCAL (*)


1. Não, não tive  > 72 (49%)

2. Sim, tive, pelo menos uma vez  > 18 (12%)


3. Sim, tive mais do que uma vez  > 30 (20%)


4. Sim, tive bastantes vezes  > 12 (8%)


5. Sim, tive com muita frequência  > 14 (9%)


6. Não sei, já não me recordo bem > 0 



[Foto à esquerda, Maria, lavadeira,  bajuda de Guileje, 1968. Foto do nosso saudoso José Neto (1929-2007)


II. Os editores agradecem a generosa e  ativa participação dos nossos leitores, ex-combatentes no TO da Guiné, entre 1961 e 1974 (público-alvo a que se dirige a sondagem) e esperam ainda, nestes últimos dois dias que faltam, atingir o número de 200 respondentes.

A sondagem não tem (nem pode ter) qualquer propósito "científico", mas apenas informativo e didático. Qualquer generalização destes "resultados",  para o universo dos mais de 200 mil militares portugueses que passaram pelo TO da Guiné, durante a guerra colonail (1961/74),  é "abusiva", não é "legítima", do ponto de vista metodológico da investigação científica.

Em todo o caso, esta sondagem revela tendências interessantes, mesmo sabendo que os seres humanos (homens e mulheres) podem nem sempre responder, com total sinceridade, a questionários sobre sexualiadade, por reserva da intimidade da sua vida privada ou por preconceitos cultarais.

Recorde-se que o voto é feito, não por "EMAIL", mas automaticamemente, "ON LINE", no canto superior esquerdo do blogue: quem ainda não voutou (ou quiser corrigir  o seu voto), só tem de clicar, com o rato  numa de 6 hipóteses de resposta (sendo a último "Não sei, já não me recordo bem", uma hipótese meramente "académica"; todos temos direito a "amnésias"...).

Naturalmente, a resposta  é anónima.

Aceitam-se, todavia, comentários sobre um tema de que os ex-combatentes tendem a falar, entre si, nos seus convívios, sem grandes inibições nem preconceitos. De resto sobre sexo (em tempo de guerra) temos já cerca de meia centena de referências no nosso blogue.

Xicorações e bons festejos santoantoninos. Os editores.

O famoso santo antoninho dos anos 60... 
PS1 - Como estamos em véspera dos festejos de Santo António, padroeiro de Lisboa, santo popular, casamenteiro e brejeiro, aqui vai umas quadras, a condizer:

Santo António foi à guerra,
Na Guiné perdeu os três,
Foi bajuda lá da terra
Quem o menino lhe fez.

E não foi por patacão
Que ela lhe partiu catota,
Alfero e maganão,
Era um rapaz bem janota.

Cá tem imposto de palhota,
P´rós amores de gente boa.
Só o sexo se paga com nota
Em Bissau ou em Lisboa.

Mas agora é que são elas,
Só memórias do passado,
Desde que foste p'ra Bruxelas,
Só nos resta o triste fado.

Luís Graça

Lisboa, Alfama, Miradouro de Santa Luzia, 11/6/2015, 22h

PS 2 - Ah!, e faz hoje, 12 de junho de 2015, 30 anos que o Santo António nos deixou...
Já foi de Pádua, já foi de Lisboa, agora é de Bruxelas...



Lisboa, Alfama, museu e estátua de Santo António, 11/6/2015, 22h


Foto: © Luís Graça   (2015). Todos direitos reservados [Edição: LG]
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Guiné 63/74 - P14733: Ser solidário (185): Regressei de Bissau e trago um abaixo-assinado de 12 filhos, com as respetivas cópias do BI. A Associação "Fidju di Tuga" quer sensibilizar os deputados portugueses que passaram pelo TO da Guiné (Catarina Gomes, jornalista)

1. Mensagem da jonalista do "Público", Catarina Gomes, autora da reportagem "Filhos do Vento"e do livro "Pai, tiveste medo ?" (Lisboa, Matéria Prima Edições, 2014):


Data: 9 de junho de 2015 às 10:33

Assunto: Filhos

Bom dia,  professor Luís Graça,

Estou de regresso. Como descrever o que senti durante estes dias? Presenciei a uma reunião da associação "Fidju di Tuga", ofereci-lhes o gravador do Tiago Teixeira e a máquina fotográfica de João Sacôto, que os vai ajudar a registar as suas histórias.

O Pepito tinha-lhes prometido tempo de antena nas rádios comunitárias da AD e uma motorizada para que fizessem o levantamento dos filhos pelo país, mas infelizmente a nova AD não deu continuidade à promessa.

Constato que os filhos que eu conheci há dois anos não são os mesmos da associação, que outros novos se lhe juntaram, que há cada vez mais. Acompanhei o presidente, Fernando Hedgar da Silva [. foto à esquerda,] , e constato que a associação vai sendo cada vez mais conhecida na Guiné, e que reforçou laços entre pessoas que tiveram o mesmo destino e que agora já não estão sós, estão a forjar uma identidade em conjunto. As reuniões são tristes e alegres ao mesmo tempo.

Fiquei muito feliz com a sondagem do blogue, sobre o aparente consenso em torno da questão da nacionalidade. Acho que tem de haver mais a fazer por estas pessoas. Espero que a reportagem de dia 18 de Junho, do pai que voltou a Angola para conhecer o filho, ajude a despertar consciências adormecidas!

Não havendo possibilidade de reencontros entre pais e filhos, acho que chega a altura de o Estado português fazer alguma coisa por estas pessoas que vivem em condições muito parecidas com as que os ex-combatentes conheceram há 40 anos.

Será que me pode mandar o mail dos dois deputados que foram passaram pelo TO da Guiné ?  Falei neles ao Fernando e será ele a mandar o mail.

Penso que seria importante que os ex-combatentes se mobilizassem nesta causa, o professor tem feito por isso. Eu trouxe um pequeno abaixo-assinado, com as respectivas cópias dos bilhetes de identidade de 12 filhos.

Assim que descarregar as fotos do meu telemóvel mando-lhas. (**)

Até breve

Catarina Gomes
Jornalista
Jornal PÚBLICO
(+351) 21 0111179 (Directo)
cgomes@publico.pt
www.publico.pt

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Notas do editor:


Guiné 63/74 - P14732: Convívios (687): A malta da Tabanca Grande no 10 de junho de 2015, Lisboa, Belém - Parte II: homenagem às antigas enfermeiras paraquedistas (Miguel Pessoa / Jorge Canhão)


Lisboa, Belém > 10 de junho de 2015 >  "Um plano mais pormenorizado das enfermeiras pára-quedistas durante a homenagem que lhes foi prestada. Discursava então a propósito o TCoronel [José] Aparício, que tem dado nestes últimos meses total colaboração nas apresentações que têm sido feitas do livro 'Nós, Enfermeiras Pára-quedistas' ".

Foto (e legenda): © Miguel Pessoa (2015). Todos direitos reservados [Cortesia do Miguel Pessoal e da página da Tabanca do Centro]



Lisboa, Belém > 10 de junho de 2015 >  Homenagem às enfermeiras paraquedistas .(1)


Lisboa, Belém > 10 de junho de 2015 >  Homenagem às enfermeiras paraquedistas (2)



Lisboa, Belém > 10 de junho de 2015 > "Um heli da FAP sobrevoando toda aquela juventude"...

Fotos (e legendas): © Jorge Canhão (2015). Todos direitos reservados [Edição: LG]









Cópia do louvor atribuído pelo CEMGFA às antigas enfermeiras paraquedistas que serviram na Guerra do Ultramar, entre 1961 e 1974,  e que foi lido no decorrer da cerimónia de homenagem às nossas camaradas, em Belém, no passado 10 de junho de 2015,


Cortesia do Miguel Pessoa e do blogue da Tabanca do Centro.
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Nota do editor:

Último poste da série > 11 de junho de  2015 > Guiné 63/74 - P14729: Convívios (687): A malta da Tabanca Grande no 10 de junho de 2015, Lisboa, Belém- Parte I

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14731: Efemérides (192): 75º aniversário do gesto heroico de Aristides de Sousa Mendes ao decidir ajudar a salvar milhares de seres humanos fugidos ao terror nazi...Dia da Consciência, no próximo dia 17 de junho, celebrado com missas em diversas partes do mundo cristão, de Bordéus ao Vaticano, de Cabanas de Viriato a São Paulo, de Fátima a Newark ... Exposição e sessão de homenagem nesse dia, no Centro Cultural Franciscano, Lisboa (João Crisóstomo, Nova Iorque)



"Faz agora 75 anos que Aristides de Sousa Mendes, Cônsul de Portugal em Bordéus em 1940, se via perante um grande dilema: dcomo corresponder a todas as solicitações de vistos de refugiados desesperados para saírem da França, procuranda escapar à invasão pelo exército nazi ?" 

(Fonte: Amigos  Aristides e Angelina de Sousa Mendes, reproduzido com a devida vénia)


I. Mensagem do nosso querido amigo e camarada João Crisóstomo, a partir de Nova Iorque:

[ João Crisóstomo: (i) é natural de A-dos-Cunhados, Torres Vedras; (ii) foi alf mil, na CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/66); (iii) vive em Nova Iorque desde 1975, onde foi mordomo até ao início de 2015 (reformou-se agora); (iv) é um mediático ativista comunitário, tendo estado ligado à defesa de três causas que tiveram repercussão internacional e que nos dizem muito, a nós, portugueses (gravuras de Foz Coa, independência de Timor Leste e memória de Aristides Sousa Mendes); (v) foi um dos fundadores do "Luso-American Movement for East Timor Autodetermination" (LAMETA); e, não menos importante, (vi) é casado em segundas núpcias com a eslovena e nossa querida amiga Vilma e, por fim, (vii) integra a nossa Tabanca Grande desde 26 de julho de 2010]

Data: 4 de junho de 2015 às 01:12
Assunto: Aristides S.Mendes ( 17 de Junho)

Caro Luís Graça,


1. Tive pena de não poder ter ido à reunião de 9 de Maio [, convívío do pessoal da CCAÇ 1439, nas Caldas da Raínha] (*), para  alimentar os especiais  laços de  amizade fraternal que une quantos andaram  por terras da Guiné,  especialmente os que  connosco compartilharam  as mesmas vivências em terras de Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole, Missirá…

Não poude ser, mas como vou passar umas semanas a Portugal e  tenciono aí  "dar umas voltas", sempre que tiver oportunidade vou, quando passar por perto destes nossos camaradas- irmãos   tentar contactá-los  para um abraço.

O telefone é o meu  meio de contacto favorito e é esse que eu vou tentar dentro do possível; mas se alguém me quiser contactar por E mail, aqui está o meu endereço digital:
crisostomo.joao2@gmail.com

2. Entretanto venho pedir-te um favor, (se isso for possível), e explico  a razão do meu pedido:

Há anos atrás, pelo mesmo motivo, fiquei muito satisfeito por vários comentários a uma notícia que puseste  no blogue sobre o " Dia da Consciência" (a 17 de junho) desse ano. (**)

 Ora este ano estamos lembrando o 75º  aniversário deste dia  em 1940  em que, levado pela sua consciência de ser humano e de cristão, Aristides de Sousa Mendes, arriscando a sua carreira, o seu futuro e da sua família ao desobedecer a Salazar, salvou dezenas de milhares de seres humanos  que teriam na maioria sido levados para campos de concentração e aí exterminados  como sucedeu à maioria dos que não tiveram um Aristides  para lhes valer.

Por esta razão -  mesmo à ultima hora, devido a uma crise de "zona" que demorou vários meses e me impedia de fazer nada (a não ser obrigar-me a aposentar-me mais cedo do que tencionava..)  -  decidi tentar ainda dar a vertente espiritual a esta data, já que  como o próprio Aristides confessou, foi a sua fé cristã que o levou a tomar essa corajosa decisão  de valer e salvar os seus irmãos.

Se puderes dar uma notícia no teu blogue (que verifico com muita satisfação é seguido com muito interesse por muitos dos nossos camaradas) isso vai possibilitar talvez a que alguns  se possam associar a estas  comemorações,  especialmente as que vão  ter lugar em Portugal. 

 Para facilitar vou  transcrever notícia  já saída no blogue "Amigos  Aristides e Angelina de Sousa Mendes" , da dra Mariana Abrantes (conforme informação que eu mesmo lhe enviei).

Como podes  verificar a maioria dos celebrantes são os mesmos  que tomaram parte nas comemorações em 2010, cujos contactos eu  tenho sempre muito cuidado em não perder e que agora tornou possível organizar isto mesmo à última hora.) 


Sábado, 13 de Junho, na Igreja de S. Louis, Bordéus, França (que a família Sousa Mendes frequentava): 
Missa celebrada pelo Sr. Cardeal Claude RicardM

Quarta-feira, 17-Junho, 11:00, Fátima, Igreja da Santíssima Trindade,
Missa com intenção pelo "Dia da Consciência"
Celebrante Sr. Bispo de Viseu Dom Ilídio Leandro;
Outras celebrações incluem o Sr Bispo Dom Serafim Ferreira da Silva e Sr. Bispo Montes Moreira noutros locais;

Quarta-feira, 17-Junho, 20:00, Cabanas de Viriato
Missa na Igreja Matriz celebrada pelo Sr. Pe. Marco Pais Cabral;

Missa em Vila Real no mesmo dia às 10.00AM
na Igreja de S. António da Auracária, 
celebrada pelo Sr. Pe. Diamantino Maciel Rodrigues;

Quarta-feira, 17-Junho, 10:00 Nova Iorque, NYC/USA 
Igreja de Nossa Senhora de Fátima, pelo Sr .Pe. Oswaldo Franklin;

San José, Califórnia, Igreja das Cinco Chagas e outras igrejas com comunidades portuguesas relevantes;

Quarta-feira, 17-Junho, Vaticano,
Celebrantes Sr. Cardeal Renato Martino e Sr. Cardeal Saraiva Martins;

Quarta-feira, 17 de Junho, 20h, Centrol Cultural Franciscano, Largo da Luz, 11 Lisboa;
Exposição e Conferência Dia da Consciência, 75 anos 1940 - 2015
Exposição de cópia de documentos encontrados na Casa do Passal em 2004,
incluindo correspondência familiar datada de 1909;

Quinta-feira, 17-Junho, São Paulo, Brasil,
celebrada pelo Sr. Cardeal Cláudio Hummes;

Quinta-feira, 17-Junho, Fall River, Mass. USA:
celebrada pelo Sr. Bispo Edgar Moreira da Cunha na capela;

Quinta-feira, 18-Junho, Homenagem junto ao busto de Aristides Sousa Mendes,
Promenade, Bordéus, França;

Domingo, 21-Junho, 11.00 Newark, New Jersey,  USA
Igreja de Na. Sra de Fatima, celebrada pelo Sr. P. António Ferreira Silva;

Domingo, 21-Junho, 12.00 igreja de S. José, Oackville, Ontario, Canada
celebrada pelo Sr. P. Fernando Pinto.

Permito-me sugerir que, quem assim puder,  pode contactar o seu pároco e pedir-lhe que inclua esta intenção na missa de 17 de Junho, como acontece em vários casos dos acima mencionados, onde a missa já estava planeada com outras intenções e os participantes concordaram em incluir a intenção de Aristides. (***)

 Espero ver-te (e outros amigos comuns) em Portugal brevemente.

Até lá um abraço grande com saudade e muita  amizade.

João  (e Vilma…of course!…)

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Guiné 63/74 - P14730: Notas de leitura (726): “Guerra na Bolanha”, de Francisco Henriques da Silva - (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) - O regresso de África e a reinserção - parte II (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, , Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 8 de Junho de 2015:

Caros camaradas e amigos
Segue a II parte ou segmento da capítulo XXV da minha obra “Guerra na Bolanha” (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015), na sequência do meu escrito anterior, em que relato vários casos de reintegração (ou de não reintegração) dos jovens regressados da Guiné e de outros T.O’s africanos.
Saudações amigas

Um abraço
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alferes miliciano de infantaria da C.Caç. 2402 e
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)

************


A reinserção dos outros. Será que houve verdadeira reintegração? Realidade e ficção.

(2ª parte)

Caso 4

O “Bisugo” nunca na vida quis estudar, nem trabalhar, diga-se de passagem. Andou numa escola técnica qualquer e não possuía habilitações literárias dignas de registo. Quando foi às sortes, depois da recruta, acabou na Artilharia Anti-Aérea, onde chegou a Cabo. Amigos e vizinhos do mesmo bairro, alinhávamos nas eternas coboiadas de rapazes, nas jantaradas, nos copos, nas garotas, nos conjuntos musicais e nos desportos motorizados, de que todos gostavam, menos eu (mas lá ia para não destoar). Para minha surpresa, encontrámo-nos em Bissau, eu, a terminar a minha comissão e ele a começar a dele. O “Bisugo” estava de prevenção quando da Operação “Mar Verde”, em Novembro de 1970 (uma operação anfíbia que visava a realização de um golpe de Estado na Guiné-Conacri e que se destinava, igualmente, a libertar prisioneiros de guerra portugueses e eliminar dirigentes daquele país e do PAIGC). Creio que andou uma noite inteira a carregar bombas nos FIATs da Força Aérea, em Bissalanca, que poderiam ter de intervir em Conacri, caso as coisas corressem mal às unidades que estavam no terreno e precisassem de apoio.

Por artes que o império tece, o “Bisugo”, à parte um ataque inconsequente dos guerrilheiros do PAIGC a Bissalanca, teve uma tropa santa ou quase. Ao chegar a Portugal, já desmobilizado, não tinha propriamente onde cair morto e veio com ar compungido pedir emprego a minha mulher. Pretendia ser vendedor de automóveis numa reputada empresa situada na “baixa” lisboeta, cujo proprietário era amigo do meu sogro. À revelia deste, a Ana teve pena do rapaz e enchendo-se de brios, foi falar com o dito indivíduo, conseguindo garantir-lhe o almejado emprego. Como já o disse, no Portugal da época, com estes conhecimentos, as coisas sempre se resolviam a contento. Grande e natural satisfação do “Bisugo”, tinha atingido, sem grande esforço o seu objectivo. O primeiro ordenado serviu-lhe para comprar um presente para minha mulher que fez questão de oferecer, com alguma solenidade, entre dois uísques, em minha casa. O meu sogro, quando soube da história, ficou furibundo e deu uma descasca monumental na minha cara-metade, considerando que ela havia passado das marcas e que este tipo de coisas, para mais envolvendo amigos pessoais, não se podiam, de modo algum, fazer, sem o seu pleno conhecimento e aval explícito.

O tempo entretanto passou. Mantivemos alguns contactos esporádicos com o “Bisugo”. Sobreveio o 25 de Abril e nunca mais soubemos nada do personagem em questão. A minha filha nasceu, nos primeiros dias de Janeiro de 1975 e venho, casualmente, encontrar o referenciado lá para o fim do mês. Paro o carro e pergunto-lhe:
- Estou muito surpreendido contigo. Então a minha filha nasceu e, depois de tudo o que fizemos por ti, não te dignaste aparecer, nem uma saudação, nem um simples telefonema, nada. Enfim, não deste qualquer sinal de vida.

Mirou-me com uma calma olímpica e cofiando o bigode, mastigou meia-dúzia de frases sem se atrapalhar.
- Olha, tu desculpa, mas não posso associar-me convosco. O teu sogro fugiu à justiça e pertencia à polícia política. Os tempos mudaram. Agora são outros. Não me posso dar com vocês.

Fiquei embasbacado, de tal forma que fui incapaz de reagir, como devia. Limitei-me a engatar a primeira e a desaparecer numa curva do caminho.

Fiquei a saber pouco depois, que o “Bisugo”, fazendo tábua rasa do emprego arranjado pela Ana, à revelia e contra a vontade do meu sogro, mandando às urtigas uma amizade de muitos anos, apesar de semi-analfabeto e sem qualquer formação política integrava, agora, um dos sindicatos do sector automóvel e, inclusive, constava das listas de candidatos a deputados pela Frente Revolucionária Socialista. O tempora, o mores!

Nunca mais o vi. Amigos comuns disseram-me que tinha ficado psicologicamente muito afectado com os seus tempos de Guiné (afectado com quê e porquê? Santo Deus!). Acabou por perder o emprego e vive hoje do Rendimento Social de Inserção na periferia de Lisboa. Reintegrou-se? Que responda quem souber. A julgar pelo RSI parece que sim.


Bissau - Centro
Foto de Paula Tábuas © copyright


Caso 5

Com o meu amigo Mário mantive longas conversas sobre a problemática do regresso, da adaptação, da reintegração na sociedade e por aí fora. Não sei se serei ou não um fiel intérprete do muito que dissemos ao longo dos anos, mas vou tentar reproduzir, de forma abreviada, alguns dos diálogos que mantivemos sobre este assunto. Assim falou:
- Sabes, os que voltaram pretenderam refazer as suas vidas: uns, como nós, queriam retomar os estudos e ao mesmo tempo manter empregos que garantissem a subsistência; outros, reingressar na vida activa voltando às actividades que desenvolviam antes da guerra; outros, ainda, mudar completamente de rumo. As coisas, porém, nem sempre funcionaram bem. Os nossos casos eram paradigmáticos dos que queriam obter o “canudo”, a enxada, a ferramenta de trabalho para poderem lutar pela vida com um relativo à-vontade, mas este é, por assim dizer, o grupo dos citadinos.
- Queres tu dizer, Mário, que este grupo não era maioritário, ou porque não queriam prosseguir os estudos, ou porque não tinham meios materiais para o fazer ou, pura e simplesmente, por desinteresse ou preguiça?
- Não sei. Seria talvez um pouco de tudo isso, mas não vou estar para aqui a emitir juízos de valor, longe disso. Cada um fez o que entendeu que devia ser feito. Voltando ao assunto, depois tens o grupo dos rurais, aqueles que vieram da província e à província regressavam. Os pais eram proprietários agrícolas e eles limitavam-se a dar continuidade à tradição familiar. Tens muitos exemplos, como sabes. A seguir deparas com todos aqueles que quiseram mudar de agulha, nalguns casos tomando decisões drásticas. Olha, lembro-me de um caso de um rapaz, ex-seminarista de Miranda do Douro, que recusou voltar lá às serranias transmontanas e decidiu candidatar-se a um emprego na Caixa Geral de Depósitos. Assim fez, mas as coisas não correram bem. A inadaptação a Lisboa, um casamento falhado e ei-lo que volta ao seu meio, depois de uma experiência frustrante. Existem muitos casos destes? Claro que sim. Portugal, naqueles tempos, era ainda um país maioritariamente rural.
- Mário, na tua enumeração, esqueceste-te daqueles que sem saberem muito bem o que fazer, meteram o “Chico” e permaneceram nas fileiras. O teu caso foi diferente. Estiveste lá uns tempos, apenas por uma questão de sobrevivência, enquanto não acabavas o curso. Todavia, muitos outros, sem soluções alternativas, porque não as procuravam ou porque se sentiam sem ânimo para fazer o que quer que fosse, aproveitaram-se das facilidades do decreto que instituía o Quadro Especial de Oficiais e lá voltaram eles para as fileiras. Aliás, conheci vários casos, um deles alferes da minha ex-companhia de caçadores.
- Lembra-te, Chico, que o dito papel garantia-te um emprego para a vida ou seja, até aos 60 anos de idade. Além disso, ninguém sabia ao certo quando é que a guerra iria terminar. Ao ouvir os homens do regime, podia durar uma eternidade. De modo que, apesar da incomodidade e do risco de sucessivas comissões em África, assegurava-se um emprego razoável e para tal não eram precisos grandes esforços, nem sequer queimar as pestanas.
- Mas mudando de assunto, Mário, como é que as pessoas, os cidadãos vulgares de Lineu viam a guerra? Sobre o assunto, tenho a minha opinião formada, mas gostava de confrontá-la com a tua.
- Olha vou-te contar a minha experiência pessoal que é a este respeito elucidativa e que constituiu para mim uma lição de vida. Fui a um jantar de amigos, pouco depois de ter chegado da Guiné. Para começar, o tema despertava pouco interesse entre os circunstantes, mas lá me foram fazendo perguntas e eu fui respondendo. A páginas tantas, entusiasmei-me e comecei a entrar nas questões de fundo. De repente, apercebi-me de que estava pura e simplesmente a perder tempo, porque, apesar de falarmos a mesma língua, não nos expressávamos na mesma linguagem. Quando lhes disse que comandei um destacamento de tropa nativa, perguntaram-me alarvemente: “Se você comandava uma companhia de pretos, como é que distinguia uns pretos dos outros?” Fiquei siderado. Em seguida mais uma perguntinha “E do ponto de vista cultural o que é que faziam?” É claro que não viam filmes do Ingmar Bermann, nem liam Proust (que grandes cretinos!). Retorqui que eu lia muito, como sempre, e que enquanto o gira-discos funcionou, porque foi destruído num ataque, ouvia a minha música. Percebi que estava a perder tempo, que não havia qualquer sintonia de pensamento, que ninguém fazia a menor ideia do que era a guerra de África: o meu mundo não tinha nada a ver com o deles. Se queres que te diga, senti-me humilhado.
- Em suma, desembarcávamos do planeta Marte. Diz-se, amiúde, que mantemos entre nós uma espécie de código de silêncio, que ninguém quer falar das suas experiências africanas, das peripécias da guerra, do que por lá passámos. Compreende-se. Não é que não queiramos falar, o problema é que ninguém nos quer ouvir. Para nós e para os soldadinhos foi uma aventura que nos marcou para a vida – e de que maneira! -, para esta gente, tudo passava à margem, nada lhes dizia respeito. Assim sendo, para quê falar? Só como exercício catárquico para a geração que por lá passou e que teve uma vivência concreta destas situações.


A população da Guiné-Bissau na actualidade
Foto de Paula Tábuas © copyright


Casos

O Tó, meu amigo de infância, veio de lá surdo, uma canhoada, morteirada ou lá o que foi, explodiu na caserna onde se encontrava. Apesar dos estilhaços se terem espalhado um pouco por toda a parte, escavacando tudo, por sorte um armário de metal e duas camas tombadas salvaram-no miraculosamente do que podia ter sido uma morte prematura ou ferimentos muito graves, uma vez que a explosão foi a escassos metros do local onde se encontrava, mas ficou com a audição reduzida a 20%. Andou de emprego em emprego, pelo Brasil e por vários países da América Latina, mas permaneceu marcado para sempre por aquele tremendo handicap.

O Fernando, com quem estudei algumas vezes, quando do meu regresso de África, não esteve na Guiné, mas a sua experiência no Norte de Angola – andou por Nambuangongo, salvo erro – foi altamente traumática, quer do ponto de vista físico, quer psicológico. Na primeira operação no mato, pôs-se à frente do seu grupo de combate e fez-se ao caminho por um trilho, com marcas visíveis da passagem de guerrilheiros. Percorridos uns 400 metros, pisou uma mina anti-pessoal, esfacelando uma perna. O helicóptero lá apareceu ao fim de meia hora; foi evacuado para Luanda; dali para o Hospital da Estrela em Lisboa e depois para a Alemanha onde lhe foi colocada uma prótese. Passou aos serviços administrativos do Exército e, ao mesmo tempo, lá foi tirando o seu curso. Mais tarde conseguiu alternar a carreira militar que foi seguindo, degrau a degrau com alguma lentidão, e a docência, num liceu da capital. Viveu relativamente bem acumulando dois ordenados, mas sempre amargurado com essa deficiência física. Na fase derradeira da vida, foi acometido por uma outra doença bem mais complexa, sem retorno possível, e perguntava-me: “Diz-me por que é que não morri na mina? Teria sido tudo mais fácil, não achas?” Não respondi.

Como fuzileiro, Teodoro conheceu bem a Guiné, de Norte a Sul e de Leste a Oeste. Sofreu inúmeros ataques e nem sequer sabia contabilizar os contactos de fogo, tantos foram, tão frequentes e tão intensos. Quando regressou à chamada metrópole, estava feito um farrapo humano. Não sei se o álcool, se os pesadelos e os traumas de guerra, ou se uma combinação de tudo isso lhe tinham alterado o juízo. De quando em quando, chorava baixinho, quase em silêncio. Falava pouco, sobretudo não queria falar “daquilo”. Teve um casamento infeliz e curto, com cenas inopinadas de violência conjugal, mas apesar de tudo dessa união resultou uma filha, hoje, emigrada na Alemanha e que nunca mais quis saber do pai. A mulher que, sem prejuízo dos seus ataques incontrolados de fúria, genuinamente amava, foi viver com outro, refez a sua vida e libertou-se daquele “louco”. Não, não sabia por onde ela andava. Constava-lhe que vivia no Porto ou em Gaia, mas quem sabe? Andou de psicólogo em psicólogo, de psiquiatra em psiquiatra, até que lhe diagnosticaram “stress pós-traumático de guerra”. Ficou-se com o palavrão e com os problemas de sempre que continuam a atormentá-lo.
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14722: Notas de leitura (725): “Guerra na Bolanha”, de Francisco Henriques da Silva - (Programa Fim do Império, Âncora editora, Lisboa, 2015) - O regresso de África e a reinserção - parte I (Francisco Henriques da Silva)