1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Julho de 2015:
Queridos amigos,
O planeamento socioeconómico pesou no processo político metropolitano e ultramarino. Lê-se este bem condimentado trabalho de Nunes Barata, sentem-se as boas intenções em diversificar produções e exportações, intensificar a industrialização, o autor até vaticina ser uma boa aposta o caju na Guiné e faz referências brandas ao desenvolvimento piscatório. É um estudo que ele elabora em Bissau, data de Novembro de 1962, o Sul já está em subversão, é impossível que o economista não disponha de informações de que se avizinha uma tormenta, e deixa-nos um documento sereno, confiante, nada se passa a não ser a fé naquela aposta do desenvolvimento. Foi assim que aconteceu, quando o estudo foi publicado este projeto estava definitivamente comprometido. Mas é preciso ler tudo, dar atenção a tudo e perceber que a Guiné teve e tem enormes potencialidades para o desenvolvimento e o bem-estar do seu povo.
Um abraço do
Mário
Como era encarado o desenvolvimento da Guiné, à beira da guerra
Beja Santos
Para deter uma informação contextualizada sobre evolução socioeconómica da Guiné, entre o pós-guerra e a eclosão da guerra de libertação, é indispensável reunir várias peças e sobretudo as opiniões disponíveis, perceber o alcance das previsões. Foi nessa perspetiva que li o estudo de José Fernando Nunes Barata publicado em 1963 pela Biblioteca do Centro de Estudos Político-Sociais, trabalha idóneo, documentado, seguramente concebido sem sentir os efeitos da guerra que se pressagiava e que depois se propagou, até destroçar qualquer planeamento fora da custódia militar.
É ocioso determo-nos sobre o que ele escreve quanto a território, população, ambiente social e até realidades económicas, embora neste último aspeto vale a pena uma certa recapitulação: não existia agricultura organizada nas mãos dos “civilizados”, mas havia “ponteiros”, geralmente industriais de água-ardente, muitas vezes e simultaneamente comerciantes. Os produtos de exportação eram o amendoim, o coconote e as madeiras, o arroz, tão exportado na década de 1950, começava a cair a pique. Mas este arroz pesava eternamente, era o alimento privilegiado da autossubsistência. Quanto a madeiras, exportava-se “bissilom”, “mancone”, “pau conta”, “pau sangue”, “pau bicho”, “pau miséria”, “pau incenso”, “pau veludo”, entre outros. Havia ao tempo propostas para um melhor aproveitamento da floresta e sobretudo falava-se no aproveitamento, com caráter industrial, dos subprodutos das florestas. De há muito que a borracha perdera o significado que tivera entre finais do século XIX e começos do século XX. E o autor observa:
“A borracha talvez possa constituir uma notável fonte de receita para a Guiné. Não muito longe, na Libéria, a conhecida Firestone explora uma plantação de 80 mil hectares, a que corresponde uma produção superior a 20 toneladas de borracha”. Como prova de que as pescas, por insólito que pareça, tinham um peso inexpressivo nas atividades económicas, basta ouvir a opinião do autor.
“Quanto a pesca, parece revestir-se de interesse a execução de um plano de desenvolvimento desta indústria, pois as riquezas de bancos relativamente próximos, recomenda tal desígnio. De resto, a atividade das populações nativas neste setor é primitivo e insuficiente”.
Um soberbo palmar no parque do Cantanhez,
A indústria apresenta-se como uma grande nebulosa, mas há expetativas quanto à bauxite e ao petróleo, fala-se no contrato com a N. V. Billiton Maatschappij para pesquisar e explorar minérios de alumínio em Angola e na Guiné. Após pesquisas, confirmaram-se depósitos de bauxite na região do Boé e outras, com um teor de minério inferior. Em 1958, a Esso obteve o direito de pesquisar e explorar jazigos de carbonetos de hidrogénio, rescindiu contrato em 1961, o trabalho de Nunes Barata não avança as razões da rescisão. Em termos de import-export, vem aí uma novidade:
“A Guiné, como não consome tudo quanto importa, faz a reexportação para os países limítrofes de enorme quantidade de tabaco, uísque e tecidos. Daí o volume impressionante de invisíveis que alimentam as casas de câmbio de Lisboa, que os aproveitam para pagamento de transações com Tânger”.
Para se entenderem as propostas de Nunes Barata, convirá não esquecer que o regime de Marcello Caetano apostara no planeamento como matriz do desenvolvimento, era esse o papel nevrálgico do Estado, tanto na metrópole como no Ultramar. Assim se percebe melhor o esquema de um plano de estudo sobre a situação económico-social da Guiné, mostrar o país no seu relevo, clima, solos, cursos de água, vegetação e fauna, etc; a sua população e o mosaico étnico, alimentação, saúde e ensino, para tomar o poço das necessidades; diagnosticar a ação da população branca para perceber as possibilidades de povoamento; deter um quadro das infraestruturas – todos os tipos de transporte, levantamento do equipamento social e fontes de energia; definir o desenvolvimento agrícola através da investigação científica, da agricultura e os elementos de apoio as programas de desenvolvimento, a silvicultura e as pescas; enquadrar as possibilidades do subsolo, da criação de indústrias agroalimentares, entre outros. E depois definir as condições e política de desenvolvimento económico à luz dos Planos de Fomento já existentes, definir medidas para a existência de elites associadas à política de desenvolvimento, montar uma administração ao serviço desse desenvolvimento, com aparelho estatístico, serviços modernos de assistência técnica (e aí o autor enumera exaustivamente a agricultura, a pecuária e as florestas, mas também as indústrias extrativas e as energias). E tece um apanhado de considerações sobre as quais vale a pena refletir:
“No capítulo das despesas sociais justifica-se uma conveniente dotação dos serviços em quadros de pessoal e meios técnicos e o prosseguimento nos pequenos melhoramentos para o bem-estar dos agrupamentos nativos, na política de saúde e assistência e, sobretudo, na instrução pública. Penso que haveria todo o interesse em valorizar o percurso Bissau-Mansabá-Bafatá-Gabu. Esta estrada parece-me a grande linha de penetração para o interior. Por ela circula já hoje o maior trânsito da Guiné. Um segundo trajeto que haveria a cuidar é o de Bissau a São Domingos e Praia de Varela. Justificariam esta atenção não só razões económicas mas ainda motivos de segurança e, sobretudo, turísticos.
A Guiné é uma terra favorecida pelo mar. Aproveitar o dote natural dos rios e dos canais, nos problemas de circulação, será ainda um ato de economia e de inteligência”.
Nunes Barata assina o seu trabalho em Novembro de 1962, depois de enumerar uma criteriosa bibliografia consultada. Estes ideais de desenvolvimento nunca serão postos em prática, a guerra está a chegar, o território ficará desarticulado, Spínola intentará um plano de desenvolvimento, rasgará as estradas à sombra da tal poderosa custódia militar. E quando chega a independência, os dirigentes do PAIGC não podiam ignorar a situação calamitosa em diferentes regiões. Foram voluntaristas, ingénuos e deixaram-se ludibriar por muita gente corrupta, puseram em lugar de responsabilidade gente incompetente. Ao caos da guerra juntou-se o ilusionismo de tudo para a frente. E assim aconteceram as amargas deceções até ao próximo presente.
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Nota do editor
Último poste da série de 3 de Junho de 2016
Guiné 63/74 - P16161: Nota de leitura (844): Boticas e beberragens: a criação dos serviços de saúde e a colonização da Guiné, por Philip Havik (Mário Beja Santos)