domingo, 12 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17129: Blogpoesia (498): "Nomes e verbos..."; "Cabeleira farta de prata..." e "Nem a carvão... nem a gasolina...", poemas de J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728



1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) três belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros durante a semana ao nosso blogue, que publicamos com prazer:



Nomes e verbos...

Entrei pelo dicionário dentro.
Como se entra num museu.
Tantas galerias.
Tantas estantes bem ordenadas.
Repletas.

Peguei num verbo.
O verbo amar.

Pus-me a conjugá-lo.
Em todos os tempos e suas formas.
Foi no infinito que eu fiquei.
Como um apaixonado.
Agarrado ao chão.

Segui adiante.
Aos substantivos.

Que grande jardim.
Tantas flores.
Parei nos cravos.
Ó que cheirinho!
E as rosas, de tantas cores.
Que perfume!

E fui ao sótão.
Dos adjectivos.
Todos em cestos.
Como as sementes.
Tão variados.
De tantas espécies.
Que maravilha!
Davam para tudo.

Pelo corredor fora fui dar à cozinha.
Era a sala das interjeições!
Ferviam panelas.
Soltavam odores.
Ó que regalo!
Tanta panela.
Sem cozinheira.

E depois um salão.
Dos advérbios.
Todos janotas.

Lá estavam os de tempo.
Todos sem uso.
Intemporais.

Depois os de modo.
Todos pedantes.
Muito formais...

E mesmo no fim,
Uns caixotões.
Abri-lhes a tampa.
Quase morria.
Eram os assentos,
Pontos e vírgulas...
Tanta ferrugem!...
Fora de uso.

Bar "Caracol" 12 de Março de 2016
10h21m
sábado de sol
JLMG

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Cabeleira farta de prata...

Escorre da cabeça pianista
uma cabeleira farta, de prata.
Seu rosto enrugado, sereno,...
se fixa no piano calado.

Seus dedos avançam-lhe ávidos de sons.
Poisam nas teclas. Saltitam frementes.
Sobem acordes de pautas,
volutas de tons,
em cascatas acesas, raiadas de luz.

A sala se enche com ondas
duma maré, prenhe, do mar.

Esvai-se o tempo fluente de cor
Enquanto o piano entoa e encanta
uma sala de gente faminta de paz e harmonia...

Ouvindo Beethoven, concerto nº 1, por Martha Argerich
Mafra, 6 de Março de 2017
21h28m
Jlmg

************

Nem a carvão... nem a gasolina...

tenho um coração de carne.
igual ao de toda a gente.
sessenta badaladas por minuto.

se cansa e arfa.
sofre e ama.

me serve fiel,
desde o começo.
sem nada exigir.

sempre pronto.
nunca se negou a trabalhar.

por isso o guardo bem dentro,
lugar seguro.
seu alimento vem-lhe da alma.
e do Sol aceso
que me alumia...

Berlin, 11 de Março de 2015
16h24m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17117: Blogpoesia (497): Neste dia da Mulher, um poema de Juvenal Amado, dedicado à sua companheira de sempre

Guiné 61/74 - P17128: Manuscrito(s) (Luís Graça) (113): Não há mortes grátis!

Não há mortes grátis

por Luís Graça


Imagina que morres no hospital,
como um  cão,
abandonado.
O único gesto, humano, que tiveram para contigo,
foi o da jovem enfermeira
que, com todo o profissionalismo,
te deu a injeção de morfina
e correu a cortina em redor da tua cama,
para que o teu estertor,
a tua morte lenta,
não perturbasse os vivos,
nem o fluxo dos que esperavam no terminal da morte.

Lembro-me de um médico francês,
conceituado professor,
que um dia definiu o hospital
como o lugar onde se morre
... sem uma palavra.
Depois do encarniçamento terapêutico,
a treta da humanização acaba aqui.
Os médicos, em face da derrota,
que é o triunfo da morte sobre a ciência,
batem discretamente em retirada.

A medicina só se ocupa dos vivos,
a morte pertence a outro pelouro…
Tal como na guerra, lembras-te ?
No helicóptero, nas evacuações Ypsilon,
não iam cadáveres,
só os feridos, graves, que ainda podiam salvar-se,
se chegassem em menos de trinta minutos ao HM 241, em Bissau...
Os mortos, esses,  levavam-se às costas,
em padiolas, improvisadas,
quatro paus, atados por lianas,
com um fundo feito por um dos nossos impermeáveis.

Morres como um cão,  camarada,
e, pior ainda, imagina
que ninguém reclama o teu cadáver,
ou porque não tens família,
parentes, amigos, conhecidos,
ou porque a tua família está longe
ou, mais provavelmente,
não tem recursos.

Se ninguém reclama o teu corpo,
os gatos pingados perdem o dia,
não faturam,
ninguém te lava,
ninguém te veste,
ninguém te calça,
ninguém te cruza as mãos…
Ou, pior,  ninguém te enterra na terra da verdade
ou, muito menos, te manda para o forno crematório,
cumprindo a tua derradeira vontade.

Até um morto, camarada, custa dinheiro,
um enterro, já não direi cristão,  mas humano, decente,
custa uma pipa de massa…
Mesmo que alguém, por dever profissional,
ou simples caridade, ou compaixão,
acione o teu direito constitucional (ou simplesmente humano)
a uma morte condigna,
incluindo as cerimónias fúnebres,
os burocratas da segurança social
vão, primeiro, consultar a tua ficha
e fazer  o teu deve e haver…

E, na melhor das hipóteses,
podes ser enterrado ou cremado,
a crédito, a prestações,
se a funerária for pelos ajustes…
Nas terras pequenas,
não na cidade grande, anónima,
é possível pagar a prestações
a despesa do funeral,
ou contar com o subsídio da segurança social
que, tal como o Estado, paga, 
mesmo que tarde e a mais horas...

Aqui não adiante puxares pelos teus pergaminhos,
ou pelas cruzes de guerra que ostentavas no peito
no 10 de junho dos combatentes
da guerra do ultramar.
Meu camarada, meu bravo, meu herói, 
tu, depois de morto,
não tens filhos, netos, parentes,
amigos, colegas, camaradas,
és um “presunto”
e,  com sorte, vais na “salgadeira”,
o caixão de chumbo,
que chegará aos tombos, por terra e por rio, 
até ao cais de Bissau,
à espera de embarque, no Niassa ou no Uíge...
Três ou quatro meses depois,
talvez chegues ao cemitério da tua terra
para ficares na tua última morada
e repousares finalmente em paz!

Agora que a guerra acabou há muito
(mesmo que para ti nunca tenha  acabado!)
só tens um cenário à tua frente,
és um sem-abrigo, à espera da última morada,
estás num câmara escura, 
metido num saco de plástico, preto,
com fecho éclair,
nu e congelado,
na morgue do hospital,
em trânsito,
à espera de um carimbo e de uma autorização de despesa,
que podem demorar semanas…

Há 50 ou 100 anos atrás,
irias imediatamente para a vala comum,
sete palmos de terra e uma pazada de cal viva,
que ao fim de 24 horas tresandavas a morto,
e o cheiro a morto é o único cheiro
que os vivos não suportam!

Bem razão tinham os gregos da antiguidade clássica,
que punham na boca dos seus mortos uma moeda, 
para pagar ao barqueiro 
que fazia a travessia do rio Caronte…
Alguém se esqueceu, camarada, 
do último gesto de misericórdia,
pôr-te a moeda, entre os dentes cerrados,
para o maldito barqueiro de Caronte:
... é que não há mortes grátis!

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Guiné 61/74 - P17127: Parabéns a você (1221): Manuel Luís Rodrigues de Sousa, Sargento Ajudante Ref da GNR, ex-Soldado At Inf do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série > 11 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17125: Parabéns a você (1220): Artur Soares, ex-Fur Mil Mec Auto da CART 3492 (Guiné, 1972/74) e Joaquim Sequeira, ex-1.º Cabo Canalizador do BENG 447 (Guiné, 1965/67)

sábado, 11 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17126: Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira, ex-alf mil, CCAÇ 4740 (Cufar, dez 72 / jul 73) e Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, jul 73 /ago 74) (13): Visita de cortesia a Fá Mandinga, onde ainda pairava o fantasma do famoso "alfero Cabral"...


Foto nº 1 > Fá Mandinga > Bajudas a lavar no rio


Foto nº 2 > O alf mil Luís Mourato Oliveira, cmdt do Pel Caça Nat 52 (Mato Cão) de visita ao seu vizinho e camarada Manuel Elvas, cmdt do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga)... O pretexto foi uma caldeirada de cabrito... Para lá foi de jipe... Parece que no regresso, com a maré cheia, teve de ir dar uma volta a Bafatá...

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Fá Mandinga  > c. 1973/74

Fotos (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. Continuação da publicação do extenso e valioso álbum fotográfico do Luís Mourato Oliveira, nosso grã-tabanqueiro, que foi alf mil da CCAÇ 4740 (Cufar, 1972/73) e do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74). (*)

Foi o último comandante do Pel Caç Nat 52. Irá terminar a sua comissão em Missirá, depois de Mato Cão, e extinguir o pelotão em agosto de 1974.

De vez em quando também ia a Fá Mandinga, ao "petisco",,, Quem lá mandava, nessa altura,  era o Manel Elvas, cmdt do Pel Caç Nat 63... Diz ele que ainda por lá pairava o fantasma do famoso "alfero Cabral"... E as bajudas continuavam lindas...

O Manuel Elvas (apelido ou alcunha ?) terá sido o último comandante do Pel Caç Nat 63, desativado em agosto de 1974 (**)-

Antiga estação agronómica, agora transformada em quartel, dizia-se que por lá passara, no início dos 50, o engº agrónomo Amílcar Cabral, licenciado pelo ISA- Instituto Superior de Agronomia, de Lisboa... Ora, este facto não parece estra documentalmente comprovado...

Sobre Fá Mandinga, que fica a escassos quilómetros da nordeste de Bambadinca, na margem esquerda do Rio Geba Estreito, temos mais de 120 referências no nosso blogue. Foi sítio de passagem para muitas subunidades que estiveram no leste e não só, nomeadamente nos primeiros anos de guerra (**). Havia também a Fá Balanta...

Como já aqui o dissemos, Fá Mandinga aparentemente teve um papel discreto na guerra, para além do facto de lá terem estado, em formação, as três companhias do futuro Batalhão  de Comandos Africana... Em formação e não só: foi daqui que partiu a 1ª CCmds Africana para a Op Mar Verde (22 de novembro de 1970)...

E durante muito tempo Fá Mandinga esteve erradamemte associada ao nome do engº agrónomo Amílcar. De facto, a estação agrária experimental de Fá tinha boas instalações, entretanto desafetadas com o início da guerra. Mas Amílcar Cabral nunca ali trabalhou, e muito menos ali viveu. Ele e a sua primeira esposa, portuguesa, Maria Helena Rodrigues, silvicultora, viveram e trabalharam na estação agrária experimental de Pessubé, nas imediações de Bissau, entre setembro de 1952 e março de 1955.


Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 >  Bambaddinca >  Carta de Bambadinca > Escala 1/50 mil (1955) > Posição relativa de Fá Mandinga, a escassa meia dúzia de quilómetros de Bambadinca, na direção de Bafatá.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).

Guiné 61/74 - P17125: Parabéns a você (1220): Artur Soares, ex-Fur Mil Mec Auto da CART 3492 (Guiné, 1972/74) e Joaquim Sequeira, ex-1.º Cabo Canalizador do BENG 447 (Guiné, 1965/67)


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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Março de 2017 > Guiné 61/74 - P17122: Parabéns a você (1219): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutor Auto Rodas do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

sexta-feira, 10 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17124: Notas de leitura (935): Autóctones guineenses e portugueses: Contactos sempre difíceis, dos primórdios à independência (Mário Beja Santos)

Ângulo da Fortaleza de Amura
Imagem retirada, com a devida vénia, do blogue Marinha de Guerra Portuguesa


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
A investigadora Maria Teresa Vásquez Rocha registou no seu trabalho alguns aspetos fundamentais que outros autores também confirmaram: a precariedade da ocupação do território, no fundo, e até às guerras da pacificação das primeiras décadas do século XX, a presença portuguesa circunscrevia-se a um conjunto de praças e presídios, eram inúmeros os conflitos com os régulos, a presença militar meramente simbólica, não se podia combater a concorrência que percorria livremente o que se chamava a Grande Senegâmbia; tropa mal remunerada e indisciplinada, mal equipada e insuscetível de poder sair das praças e presídios. Só no fim da primeira década do século XX é que o Governador Carlos Pereira mandou demolir as muralhas circundantes da fortaleza de Bissau, foram necessárias conversações morosas com os régulos de Bandim e Indim. Por último, a missionação não dispunha de recursos e o islamismo trazia para os autóctones aliciantes argumentos, era uma rutura menos drástica que o cristianismo pedia. É preciso atender a todos estes fatores para se perceber com a presença portuguesa que dava ao rei o título de Senhor da Guiné era uma quase quimera.

Um abraço do
Mário


Autóctones guineenses e portugueses: 
Contactos sempre difíceis, dos primórdios à independência

Beja Santos

A Revista Africana, que era editada pela Universidade Portucalense, no seu número de Setembro de 1997, publicava o artigo “Guiné: o gentio perante a presença portuguesa (II)”, por Maria Teresa Vásquez Rocha, trabalho que se inseria num projeto de investigação sobre o Islão na Guiné-Bissau, num arco temporal desde os primeiros contactos até à atualidade. A autora começa por dizer que a presença portuguesa deu sinais de crescimento a partir do século XVIII e ao longo do século XIX, expressando-se por relações comerciais, políticas e de caráter religioso. Este último aspeto prende-se com um dos maiores insucessos da missionação portuguesa que logo se viu confrontada com o proselitismo do Islão e a fortíssima e generalizada subsistência das crenças tradicionais africanas. Procurando descrever as Praças, e socorrendo-se de inúmera documentação que encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino e que foi tratada em termos paleográficos, escreve claramente: “Uma vez que o apoio dado pela metrópole era reduzido ou nulo, as Praças e suas guarnições eram normalmente decadentes”.

Um dos aspetos singulares deste trabalho é exatamente a epistolografia que deixa bem claro quanto às queixas permanentes do abandono da Guiné. E muita dessa correspondência é endereçada ao governo em Cabo Verde, já que a Guiné apenas se autonomizou relativamente a Cabo Verde em 1879, até aí esteve dependente quase na totalidade de Cabo Verde em termos políticos, administrativos, militares e religiosos, como aliás António Carreira sintetizou admiravelmente: “As Ilhas eram o cérebro, o continente o corpo”.

Os estabelecimentos de Cacheu e Bissau tinham a caraterística particular de os titulares do poder local serem nomeados pelo rei, apesar de ficarem dependentes do governo de Cabo Verde.

O Capitão-Mor de Cacheu era provido nos cargos de Feitor e Juiz, subordinado ao Ouvidor de Santiago. Todo este excesso de acumulações se revelou prejudicial às praças, ao seu bom funcionamento. A documentação analisada permite avaliar casos repetidos de corrupção e grande negligência perante os interesses do Estado.

Para se avaliar como a Guiné era a parcela menor do governo de Cabo Verde, atenda-se ao significado da deliberação do Conselho de Estado, na sua reunião de 14 de Junho de 1653, determinado que os governadores de Cabo Verde visitassem pelo menos duas vezes o distrito da Guiné durante o seu triénio. Voltemos atrás à história das Praças. Em 1696 foi nomeado pela primeira vez um Capitão-Mor para a Praça de Bissau. As povoações de Geba, Farim e Ziguinchor tinham um comandante militar nomeado pelo governador de Cabo Verde. Era frequente enviar-se para estes presídios e praças soldados indisciplinados e punidos, antigos corrécios, que aproveitavam todos os pretextos para se insubordinarem, ou por falta do pagamento do pré, ou pelo fardamento estar desfeito e não ser substituído ou até mesmo por falta de armamento e munições.

No século XVIII, a soberania portuguesa é francamente precária e no século XIX a história da Guiné Portuguesa continua a mover-se à volta das povoações de Cacheu e Bissau, a soberania portuguesa fazia-se sentir apenas entre os rios de Casamansa e de Bolola.


Fortaleza de Cacheu
Imagem retirada, com a devida vénia, do blogue Alma de Viajante

Perante a penúria de meios e a mais completa desarticulação dos recursos, já desde o século XVII se ensaiavam formas de administração contemplando a criação de sociedades de caráter majestático. Em 1670, apareceu a primeira Companhia de Cacheu, com o exclusivo de navegação e comércio da Costa da Guiné. Resta dizer que tudo isto não passava de uma encenação, não havia meios de controlar as frequentes incursões dos concorrentes espanhóis, franceses e ingleses. Também nessa companhia majestática surgiram abusos e irregularidades, foi sol de pouca dura. A segunda Companhia de Cacheu, designada como Companhia de Cacheu e Cabo Verde, foi criada em 1690. À semelhança da primeira, gozava de uma série de benefícios e isenção de direitos. Mais abusos e irregularidades.

Em 1755, foi criada a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, que passou a deter o monopólio do comércio das colónias de Cabo Verde e Guiné. Para além do recurso às companhias de caráter majestático, a colonização portuguesa foi levada a cabo por habitantes de Cabo Verde a quem foram concedidas facilidades no comércio a realizar na Guiné do Cabo Verde.

Observemos agora as Praças: viveram quase exclusivamente do comércio, o que quer dizer goma-arábica, cera, algodão, a par do ouro e dos escravos. Para a obtenção dos escravos, verifica-se uma enorme concorrência entre as potências europeias e aqui se pode perceber porque é que os régulos se sentiam muitas vezes lesados pelo facto dos portugueses venderem muitas vezes produtos de qualidade inferior por preços mais onerosos que a concorrência, e por isso batalhavam Para que aparecessem mais comerciantes, que houvesse maior liberdade de comércio, os religiosos também secundavam esta liberdade de comércio.

Estamos agora no fim do século XVIII, começa a questão de Bolama quando Philipe Beaver chega a Bolama à frente de bastantes famílias, vêm com o objetivo de se estabelecerem, Portugal não dispunha de capacidade militar para ripostar e os ingleses faziam contratos com os régulos de Canhambaque e Guínala. A presença religiosa, durante quase todo o século XVI, fora das fortalezas e feitorias, teve sempre caráter esporádico e provisório, havia as visitas dos frades de Santiago que regressavam depois às ilhas após alguns meses de pregação. Também os Jesuítas não foram bem-sucedidos. Os missionários viviam em extrema pobreza, não tinham meios para manter as igrejas. Ainda foram batizados alguns régulos, mas revelou-se trabalho inconsistente. Onde a missionação teve algum sucesso foi junto dos Grumetes, que eram empregados nos trabalhos auxiliares de porto e dos navios, a designação tornou-se extensiva a todos os naturais que, convertidos ao cristianismo, adaptassem normas e apelidos portugueses.

 O islamismo penetrou na Guiné trazido pelos Mandingas, a propagação da doutrina foi um processo lento mas duradouro, com algumas originalidades de aculturação. Mandingas, Fulas e Sossos foram as etnias mais islamizadas. O islamismo, quando comparado com o cristianismo, revelava-se menos exigente para o africano, o cristianismo obrigava a uma drástica rutura com princípio em crenças ancestrais, o islamismo foi sempre mais flexível. Isto para não deixar de referir a questão elementar da monogamia e da poligamia. No termo do seu trabalho, a autora descreve a importância das confrarias (a Qadiriya e a Tidjaniya eram as mais importantes). Os missionários supunham que a conversão do régulo se traduzia automaticamente na tradução do seu povo, não se apercebiam que os régulos eram nomeados pelos conselhos dos homens grandes e estes tinham uma maior influência que o régulo junto das populações.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17109: Notas de leitura (934): “O Adeus Ao Império, 40 anos de descolonização portuguesa”, organização de Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira, Nova Veja, 2015 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P17123: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (6): Vida e morte de Simão Mendes, vítima de bombardeamento, pela FAP, da base central do Morés, em 20 de fevereiro de 1966




O nosso colaborador assíduo do blogue, Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494. Xime e Mansambo, 1971/74): tem já mais de 110 referência no nosso blogue; ainda está no ativo, é professor universitário, doutorado em ciências do desporto. Este texto, a publicar em duas partes, foi submetido ao blogue em 4 de janeiro de 2017]


1. Introdução

Apresentei no início deste ano uma resenha histórica, dividida em duas partes por questões editoriais, relacionada com a realização do I Congresso do PAIGC, organizado nos arredores da tabanca de Cassacá (Frente Sul), entre 13 a 17 de Fevereiro de 1964 [P16991 e P16998].(*)

Nela dei conta, com particular destaque, à importância social da saúde e da instrução literária,. analisadas um mês depois, em 21 de março, na Base Central (Morés), por iniciativa dos responsáveis dessa Frente [Norte], Ambrósio Djassi [nome de guerra de Osvaldo Vieira, 1938-1974] e Chico Té [nome de guerra de Francisco Mendes, 1939-1978], cumprindo deste modo as resoluções aprovadas no encontro de Cassacá.

Nesse âmbito, e no que concerne à área da Saúde, Simão António Mendes [enfermeiro de formação], seu principal responsável na Região Norte, apresentou um relatório [normas ou regulamento] com dez pontos, que foi aprovado por unanimidade.

Hoje, ao ler o P17119, da responsabilidade do camarada Jorge Ferreira (**), onde se faz referência a Simão [António] Mendes, nome com que foi baptizado o Hospital Nacional de Bissau [imagem acima], “antigo enfermeiro da época colonial, militante do PAIGC, morto em combate no Morés, e sobre o qual se sabe muito pouco”, tomei a iniciativa de partilhar convosco o que apurei sobre este tema.


2. SIMÃO ANTÓNIO MENDES – As suas funções e a sua morte

2.1. O que apurei

Como fonte de investigação bibliográfica, utilizei para este caso os arquivos da Casa Comum da Fundação Mário Soares.

Confirma-se, pela nota abaixo reproduzida, que Simão António Mendes fazia parte, de facto, da Direcção de Saúde do PAIGC.

No documento, por si assinado, enviado à Direcção Central do PAIGC em 24 de Março de 1964, ou seja, três dias após ter apresentado na Base Central (Morés) as normas de funcionamento da sua estrutura, pode ler-se:

I – Junto se remete a requisição dos medicamentos e mais artigos para um trimestre para consumo de guerrilheiros e povo da zona libertada por esses últimos não poderem deslocar a outra parte à procura de assistência sanitária.

II – Tomámos boa nota da última carta do nosso camarada Lourenço Gomes [responsável no exterior (Senegal; Base de Samine) pelo acompanhamento dos evacuados do interior da Guiné], sobre doentes a enviar para a fronteira que passarão a ser só os feridos por arma de fogo, tais como fracturas e certos casos graves que não podemos resolver cá, por falta de recursos.

Cumprimentos cordiais. 

Simão António Mendes e João Augusto Costa

Citação: (1964), Sem Título, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35806 (2017-3-09)

Fonte: Casa Comum

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 04613.065.155

Assunto: Remete a requisição de medicamentos e mais artigos para os guerrilheiros e população (para um trimestre). Refere que tomaram boa nota das indicações de Lourenço Gomes de enviar para a fronteira apenas os feridos com arma de fogo.

Remetente: Simão António Mendes, João Augusto Costa.

Destinatário: Direcção do PAIGC.

Data: Terça, 24 de Março de 1964.

Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência 1963-1964 (dos Responsáveis da Zona Sul e Leste).

Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.

Tipo Documental: Correspondência

(Reproduzido com a devida vénia...)


2.2. A sua morte em 20 de fevereiro de 1966

De acordo com o comunicado da Base Central (Morés), a morte de Simão António Mendes ocorreu no dia 20 de fevereiro de 1996, domingo, sendo descrita nos seguintes termos:

“No dia 20 de fevereiro [de 1966] o inimigo apoiado por 8 caçadores [caça-bomdeiros  T 6 ? ou companhias de caçadores ?] invadiu a Base Central [Morés]. O combate que durou 6 horas de tempo, teve como resultado a retirada em debandada inimiga que caiu em 3 emboscadas sucessivas.

O inimigo,  não podendo realizar o plano, reforçou a aviação. Com o fim de bombardear a base, onde os nossos camaradas de armas anti-aéreas deram uma grande prova de corage,  não os deixando realizar o plano.

Depois de duas horas de combate, só conseguiram lançar uma bomba dentro da Base causando a morte a 3 camaradas entre os quais o responsável da saúde do C.I.R.N., Simão António Mendes.

Dois aviões foram atingidos pelo fogo da D.C.K. [metralhadora pesada de 14.5 mm]

Região Oío, Zona Morés, Base Central.





Citação: (s.d.), "Comunicado [Região 3]", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40720 (2017-3-09)

Fonte:  Casa Comum

Instituição: Fundação Mário Soares

Pasta: 07065.068.011

Título: Comunicado [Região 3]

Assunto: Comunicado da Base Central, na Região de Oío, Zona de Morés, dando conta da invasão desta Base pelo exército e aviação portugueses, tendo sido atingidos dois aviões pelos combatentes do PAIGC, munidos de armas antiaéreas.

Data: s.d.

Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Exército Popular Zona Norte (Comunicados)

Fundo: DAC – Documentos Amílcar Cabral.

Tipo Documental: Documentos.

(Reproduzido com a devida vénia...)


Mapa da Região do Oio - Base Central (Morés)


2..3. A versãodo cmdt Bobo Keita:

A antiga glória do futebol guineense, Bobo Keita (1939-2009), nas suas memórias, tem  uma versão um pouco mais detalhada sobre a vida e a morte de Simão Mendes:

(i) "trabalhou na administração colonial como responsável pela saúde" (sic), em Binar ou Bissorã ("não tenho a certeza");

(ii) numa das suas deslocações, "caiu num emboscada montada pelo camarada Agostinho Cabral d'Almada", o famoso "Gazela";

(iii) essa emboscada foi já "perto da base de Morés";

(iv) "foi levado como prisioneiro" (sic)  para o Morés e aí explicou que já há tempo "procurava estabelecer contactos" com o PAIGC;

(v) ingressou, deste modo pouco ortodoxo, no Partido;

(vi) "morreu,  mais tarde, no intenso bombardeamemnto da base de Morés ocorrido no dia 14 de novembro de 1964" [, aqui é que a data não bate certo com a do comunicado, acima reproduzido, que refere 20/2/1966, ou seja um ano e três meses depois...];

(vii) nesse bombardeamento, "os camaradas Juvêncio Gomes e  Tiago Aleluia Lopes foram atingidos por estilhaços", na cabeça (o Tiago) e  nas mãos e parte do rosto (o Juvêncio).

Fonte: CARVALHO, Norberto Tavares - De campo em campo:  dos estádiso de futebol à luta de libertação nacional dos povos da Guiné e de Cabo Verde; conversas com o comandanet Bobo Keita. Edição de autor, Porto, 2011, p. 244.
_____________________


Obrigado pela atenção.
Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

09MAR2017.
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Notas do editor:

Guiné 61/74 - P17122: Parabéns a você (1219): Joaquim Cruz, ex-Soldado Condutor Auto Rodas do BCAÇ 4512 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2016 > Guiné 61/74 - P17114: Parabéns a você (1218): António Marques Lopes (DFA), Cor Art Ref, ex-Alf Mil Art da CART 1690 (Guiné, 1967/69)

quinta-feira, 9 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17121: Consultório militar do José Martins (21): Trabalho de investigação do Aspirante de Cavalaria Pedro Nuno Guilhermino Marçal Lopes sobre "A tipologia das Unidades Mobilizadas pela Arma de Cavalaria durante a Guerra de África (1961-1974)" (Academia Militar, 2014)


Capa do trabalho de investigação do Aspirante de Cavalaria Pedro Nuno Guilhermino Marçal Lopes



O NOSSO BLOGUE COMO FONTE DE INFORMAÇÃO E CONHECIMENTO

Foto à esquerda: José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), nosso colaborador permanente, autor da série "Consultório Militar".

Já não me recordo quando e como foi: se o pedido foi enviado à Tabanca Grande, ou se o interessado, no caso um Aspirante-Aluno, da Academia Militar - Curso de Cavalaria, Pedro Lopes, me contactou por e-mail pessoal.

Sei que houve troca de e-mails, entre ambos, quando o mesmo preparava o “Relatório Científico Final do Trabalho de Investigação Aplicada” no ano de 2014.

Escolheu estudar e desenvolver, como tema do seu trabalho de curso,  “A Tipologia das Unidades Mobilizadas pela Arma de Cavalaria durante a Guerra de África (1961-1974)”.

Pela minha experiência sei que foram largas horas que dedicou ao seu trabalho, nomeadamente nas pesquisas às várias Histórias das Unidades, que teve de consultar, sobre as forças de Cavalaria que operaram nos três teatros: Unidades de Reconhecimento, Polícia Militar e “tipo Caçadores”.

Sobre o trabalho, quem seria melhor para o apresentar, que o seu autor? É o resumo do trabalho, que transcrevo:

O presente Trabalho de Investigação Aplicada encontra-se subordinado ao tema “A Tipologia das Unidades Mobilizadas pela Arma de Cavalaria durante a Guerra de África (1961-1974)”. O principal objetivo é a caracterização da tipologia das unidades de Atiradores, de Reconhecimento e Polícia Militar, mobilizadas pelas unidades territoriais de Cavalaria da metrópole, para os Teatros de Operações de Angola, Guiné e Moçambique, durante a Guerra de África (1961-1974).


Numa primeira fase tratamos de contextualizar o leitor com a temática da Guerra de África, começando com a situação Portuguesa de então, no cenário internacional, passando pelas principais características da guerra subversiva e terminando com o papel da Arma de Cavalaria neste conflito.

Na segunda fase, relativa à mobilização de Unidades de Reconhecimento, inicialmente é apresentado o dispositivo da Arma de Cavalaria, e as principais Unidades Mobilizadoras. De seguida são apresentados os dados da mobilização de Unidades ao longo do tempo para os três Teatros de Operações, juntamente com o esforço relativo de cada unidade mobilizadora. No final são abordadas as principais viaturas que equiparam este tipo de Unidades, e é feita uma síntese conclusiva do capítulo.

À semelhança do terceiro capítulo, também no quarto são analisados os dados de mobilização e o esforço das Unidades Mobilizadoras, mas desta, das Unidades do tipo Atiradores. Na síntese conclusiva deste capítulo é demonstrado o esforço relativo de mobilização comparativamente às Armas de Infantaria e Artilharia.

Em seguida são apresentados os dados de mobilização das unidades de Polícia Militar, de forma semelhante aos capítulos anteriores.

Na fase final do trabalho são respondidas as questões derivadas e central, que nos indicam as Unidades Mobilizadoras, tal como o esforço relativo de cada tipo de unidades, para cada Teatro de Operações.

Conheci o autor pessoalmente quando, ocasionalmente, nos encontrámos no Arquivo Histórico Militar, que aproveitámos para trocar impressões sobre o trabalho que estava a organizar. Fiquei com a certeza de que seria um trabalho a não perder, mas a que só agora tive acesso, através de um alerta do Luís Graça.

Ainda não o li totalmente. (Poderão encontrar, em anexo, as listas das unidades e subunidades de Cavalaria mobilizadas para o TO da Guiné: Apêndices F - Batalhões; G - Companhias; H - Esquadrões de Reconhecimento; I - Pelotões de Reconhecimento;  J - Companhias de Polícia Militar; e K - Pelotões de Polícia Militar.)

Porém estou certo de que, quer pelo autor, quer o seu orientador, Tenente-Coronel de Artilharia Pedro Alexandre Marcelino Marquês de Sousa, Oficial Superior da Arma de Artilharia e Professor História na Academia Militar, quer por outros Oficiais que lhe transmitiram o seu saber e dedicação à causa castrense, este trabalho é um “louvor” aos antigos combatentes, que o autor não se esqueceu de lembrar e agradecer:

“A todos os ex-combatentes que mantêm acesa a chama da nossa história através dos seus contributos nos blogs relativos à guerra colonial, em particular ao camarada José Martins“ (p. iii).

Amigos e camaradas, caros leitores do nosso blogue, poderão, e deverão, ler este trabalho disponível, em formato pdf (119 pp., com anexos),  no RCAAP - Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal:

José Marcelino Martins
Odivelas, 7 de Março de 2017
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Nota do editor:

Último poste da série > 22 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17074: Consultório militar do José Martins (20): Pelotão de Reconhecimento AML/Panhard 1106 (Guiné, 1966/68)

Guiné 61/74 - P17120: Notícias (extravagantes) de uma Volta ao Mundo em 100 dias (António Graça de Abreu) - Parte III: Gilbraltar, Santa Cruz de Tenerife, oceano Atântico, a caminho das Caraíbas, no navio cruzeiro "Costa Luminosa" (17 pisos, 93 mil toneladas, 2800 passageiros, 950 tripulantes)...












Parte II (pp. 7 a 10)



Texto, fotos e legendas: © António Graça de Abreu (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das crónicas da "viagem à volta ao mundo" do nosso camarada António Graça de Abreu, escritor, poeta, sinólogo, ex-alf mil, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com mais de 175 referências. É casado com a médica chinesa Haiyuan e tem dois filhos, João e Pedro. Vive no concelho de Cascais.

Partida do porto de Barcelona em 1 de setembro de 2016. 




Guiné 61/74 - P17119: (De) Caras (60): Buruntuma, 1961: o enfermeiro Cirilo e o professor primário Timóteo Costa... (Jorge Ferreira / Mário Magalhães)


Guiné- Bissau > Bissau > 2000 > O Hospital Nacional Simão Mendes (, antigo enfermeiro da época colonial, militante do PAIGC, morto em combate no Morés, e sobre o qual se sabe muito pouco).


Foto: © Albano Costa (2000). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Jorge Ferreira (ex-alf mil da 3ª CCAÇ,  Bolama, Nova Lamego,  Buruntuma e Bolama, 1961/63), autor do livro "Buruntuma: algum dia serás grande!... Guiné. Gabu, 1961-63" (ed. autor, Oeiras, 2016).

Data: 8 de março de 2017 às 17:04
Assunto: Buruntuma


Caro Luís:


Estou neste momento reunido com Mário Magalhães,  puxando pelos "neurónios", uma vez que a questão que levantas nos obriga a recuar mais de 50 anos. (*)

Quanto ao enfermeiro  Cirilo (???) o único facto a relatar é que (anteriormente à minha deslocação para Buruntuma), estando à frente do destacamento o Furriel Mário Magalhães [MM]. houve um acidente com arma de fogo casual e,  ao ser requisitado os serviços do Cirilo,  o seu comportamento
foi verdadeiramente exemplar (MM dixit).

O poderoso régulo de Canquelifá, que morava
 em Buruntuma, Sene: c. 1961/62.
 Cortesia de Jorge Ferreira (2016)
Não se deve ignorar que os enfermeiros [civis] tinham uma actividade extremamente nómada pois
diariamente visitavam as nabancas com enfermarias onde permaneciam os doentes com "doença do sono" ou "lepra". Convirá referir que a Missão do Sono da Guiné era uma estrutura sanitária altamente prestigiada cuja acção era relevada pela OMS [Organização Mundial de Saúde]..

Não há registo de qualquer acção "suspeita" do enfermeiro. quer durante a permanência em Buruntuma do MM ou de mim próprio.

Quanto ao dito professor Timóteo [Costa]  (???) não se pode ignorar que as nossas instalações eram frontais à escola, junto a ela funcionavam as nossas instalações sanitárias, e existia uma morança habitada por um português que tinha sido deportado por "razões políticas" e que se tinha "cafrealizado", vivendo com uma mulher nativa e vários filhos.

Por outro lado, não se deve ignorar que a Escola era frequentada diariamente pelos militares que não estavam envolvidos em "operações de nomadização" ou "escalas de serviço",  na sua função de apoio escolar.

Por tudo isto parece-nos que o professor  não tinha condições para se dedicar a actividades subversivas. Não se deve ignorar que o próprio Corpo de Guardas do Régulo  [Sene Sané] exercia uma importante acção de vigilância que muitas vezes pôs em causa a "lealdade" dos informadores do
responsável pelo posto da PIDE.

Já após o regresso do MM a Portugal, talvez por volta de 1966 (???), este foi abordado em
Lisboa pelo professor de modo muito cordial ...

E é tudo quanto se nos oferece dizer (MM / JF) sobre as questões que levantas no teu / nosso Blogue.

Saudações-

JF / MM


ET -  O MM manifestou todo o interesse em aderir à Tabanca Grande !!!


2. Comentário do editor LG:

Caros Jorge Ferreira e Mário Magalhães:

Como eu já tinha dito em comentário ao poste P17108 (*),  o resumo do teor do documento em causa, feito pelos técnicos da Fundação Mário Soares,  parece-me "ambíguo" ou "confuso": (...) "Assunto: Transmite um recado do enfermeiro Cirilo, que se encontra em Buruntuma como professor, sobre o trabalho em prol da luta de libertação."

Timóteo Costa, que é o remetente, transmite a Marcelo Ramos de Almeida ("Marcel", para a família e amigos mais íntimos...), representante do PAIGC em Koundara, Guiné-Conacri, um recado do Cirilo, enfermeiro, que está em Buruntuma, a fazer trabalho político para o PAIGC, ao mesmo
tempo que é enfermeiro pago pela administração portuguesa...

Sem dúvida que, e à falta de médicos, os enfermeiros da administração colonial tiveram um papel importantíssimo na luta contra a doença do sono, a lepra e outras doenças tropicais, bem como no apoio sanitário às populações, antes da guerra. Também é verdade que houve, de resto, vários enfermeiros aliciados pelo PAIGC (ou melhor, PAI) nesta época (1961)... O Simão Mendes é um deles. (Morreu em combate, e deu o nome ao antigo hospital central da época colonial, em Bissau)

Conclui-se, do vosso depoimento que o tal Cirilo, enfermeiro, era conhecido das NT e fez inclusive tratamentos a um militar ferido, num acidente com arma de fogo, da CCAV 252,  quando o  fur mil cav Mário Magalhães comandava o destacamento de Buruntuma, ainda antes da chegada do Jorge Ferreira (em outubro de 1961).

O Timóteo Costa é que é o professor que acaba de chegar a Buruntuma (em 1961, não sabemos em que dia e mês)... O Mário Magalhães tê-lo-á conhecido em Buruntuma, em 1961, e reconhecido em Lisboa, por volta de meados dos anos 60. Devia ser cabo-verdiano, (**)

Ficamos gratos a ambos pelo vosso depoimento e felizes pelo facto de o veterano Mário Magalhães (mais antigo que o Jorge Ferreira em Buruntuma, talvez dois ou três meses!...) aceitar o convite para integrar a nossa Tabanca Grande...

De facto, é uma "preciosidade" encontrar camaradas de 1961 (!) com "cabeças ainda frescas" como vocês, Jorge Ferreira e o Mário Magalhães!.. E mais do que isso: prontos a partilhar com os seus camaradas as memórias (boas e más) de há 50 e tal anos atrás!

Recorde-se que a CCAV 252 foi a primeira companhia de cavalaria a ser mobilizada para a Guiné (agosto de 1961 / outubro de 1963), tendo como unidade mobilizadora o RC 3. O Jorge Ferreira, por sua vez, foi mobilizado para o TO da Guiné em maio de 1961, estebve a dar instrução no CIM de Bolama, foi para Nocva Lamega, para a 3ª CCAÇ, e ao fim de 3 meses, é colocado no destacamento de Buruntuma, onde esteve 11 meses.  Antes de acabaer a comissão, em junho de 1963, ainda voltou ao CIM de Bolama.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17108: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral e outros / Casa Comum (21): O professor primário e o enfermeiro de Buruntuma, em 1961... Trabalhavam para o PAICG na cara da PIDE ?!...

quarta-feira, 8 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17118: Os nossos seres, saberes e lazeres (202): Central London, em viagem low-cost (4) (Mário Beja Santos)

Igreja da Santíssima Trindade - Long Melford


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 25 de Outubro de 2016:

Queridos amigos,
Deambular por Londres traz surpresas. Como se vivia um programa low-cost, escolheu-se um museu gratuito, uma casa portentosa, The Wallace Collection, antes visitou-se o Exército de Salvação, gente amável que ofereceu café e biscoitos, o feitiço dos livros superou a disciplina da carga, saiu-se dali com mais três quilos a abraçar até regressar a casa. Tinha visto o visitante no Museu Berardo obras de Bruce Nauman, foi curioso vê-lo do outro lado da montra, em fato de macaco a montar uma instalação, acenou-se-lhe, o artista veio à porta, confessou-se admiração e teve-se direito a visita guiada a uma imensa traquitana em fase de montagem, o que se reteve foram luzes feéricas sob um teto azul, um género de paraíso da sociedade de consumo. Seguiu-se para Suffolk, o pretexto é visitar uma vila medieval. E viagem prosseguirá, com grande expetativa, até Cambridge, em circunstância alguma o viandante esqueceu essa suprema maravilha da arquitetura que é King's College Chapel.

Um abraço do
Mário


Central London, em viagem low-cost (4)

Beja Santos

O turista vai passar a manhã em Londres, tem agenda completa, à tarde ruma-se para a região de Suffolk, a primeira etapa é pernoitar em Long Melford e daqui para Lavenham, uma cidade medieval que enriqueceu nos tempos prósperos nos negócios da lã. Primeiro, assiste-se a um concerto pela banda do Exército de Salvação, música religiosa. Sempre afáveis, convidaram a assistência a ir tomar café e ir comer uns biscoitos nas suas instalações. O turista cometeu a asneira de andar a ver livros vendidos ao preço da chuva, doravante andará com uns quilos de cultura às costas.



Há edifícios em Londres que têm esculturas preciosas, no caminhar desatento nem damos por elas. Foi exatamente a esperar o sinal verde que o viandante se apercebeu que aquela escultura não era o melhor conjunto de ferros, disse mesmo para si: "Não me digas que é uma escultura da Barbara Hepworth, a minha deusa da escultura contemporânea". E era mesmo.


Ferro forjado em Londres há às toneladas. Na II Guerra Mundial muito deste ferro foi requisitado para fazer navios e aviões, talvez canhões e outras coisas. Houve que refazer, e no refazer encontraram-se soluções engenhosas, com aditamentos requintados. O turista especou-se a ver, custou muito, não se importaria de viver assim.


The Wallace Collection é uma belíssima coleção que se pode visitar gratuitamente, resulta de doações em cinco gerações sucessivas dos marqueses de Hertford e Sir Richard Wallace. Há para aqui muita armaria, mobiliário francês e holandês, até ali se encontrou um baú Namban que meteu negócios portugueses. Na pintura, prima o classicismo, o turista pode deambular a ver relógios, porcelanas, bustos, majólicas, não falta Rubens e Boucher, este está aqui representado a pintar Madame de Pompadour. O viandante deu-se sempre muito bem com a pintura de Frans Hals, estava um pouco cansado e compartilhou dos luxuriantes detalhes da indumentária e da figura. O quadro chama-se “O cavaleiro a rir”, mas é pura ilusão de ótica dada pelo olhar amarotado e pelos bigodes retorcidos. Seja o que for, ninguém nega a obra-prima.


É dia de sol, os londrinos, o viandante já parou, reverenciado, a ver a esplêndida sala de espetáculos que é Wigmore Hall, teve até a esperança que houvesse um concerto com a Maria João Pires, agora vai-se até ao parque através de Wigmore Street, ali bem perto, e come-se o almoço, os londrinos estão felizes também tiveram sorte com as amenidades do Outono. Curioso este parque em Cavendish Square, com imenso bulício à volta, estamos praticamente no coração de Londres. Prossegue agora o passeio para ir buscar a bagagem e partir para Suffolk, no caminho a bela surpresa de ver a montagem de uma instalação de Bruce Nauman, artista contemporâneo que o viandante aprecia, foi convidado a vir à tarde, infelizmente não pode ser.


The Black Bull é uma reconstrução de albergaria que vem dos tempos dos Tudor, o viandante abre uma exceção low-cost, desta feita tive direito a pequeno-almoço com ovos e bacon e algo mais. Chegou-se a Long Melford, vila que tem a caraterística, bem rara em terras inglesas, de se estender pelas bermas da estrada. Foi o que de mais perto se encontrou para chegar ao objetivo, Lavenham uma cidade medieval construída entre 1450 e 1500 e escrupulosamente tratada. Ali se passará o dia, não haverá meios para se satisfazer um dos sonhos do viandante, ir a casa de Gainsborough, um dos mais importantes pintores do romantismo, não é fácil superar o problema dos transportes.



Long Melford estava radiosa para receber o turista, um céu claríssimo, aves a esvoaçar, o turista consulta o mapa, sabe que há duas casas senhoriais visitáveis, daquelas que custam 16 libras cada, e uma portentosa igreja, a da Santíssima Trindade. Uma das descobertas do viajante é que anda perplexo com a fronteira ténue entre o catolicismo e a igreja anglicana, vê santos nas igrejas, rituais semelhantes, alguém lhe explica que a Alta Igreja está cada vez mais próxima do catolicismo, não será por acaso que Roma e Cantuária se reúnem tão amiudadas vezes. Mais uma questão de estudo. O mais importante é registar a beleza do templo, mais por fora do que por dentro, pena que a câmara do viandante não consinta em dar um plano integral de tão bela construção. Fim do passeio, toma-se autocarro para Lavenham, tudo o resto do dia será para passar aqui, mas tarde novo transporte para a penúltima etapa, Cambridge.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17101: Os nossos seres, saberes e lazeres (201): Central London, em viagem low-cost (3) (Mário Beja Santos)