“Memórias SOMânticas”, de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2016:
Queridos amigos,
Há as memórias românticas e as somânticas. A heroína desta poderosa narrativa de Abdulai Sila interpela-nos à partida: "O que devo dizer que fiz na vida se ninguém entende que o meu hoje ainda promete ser diferente do meu ontem?". No fim da vida, e quando toda a gente lhe diz que ela nada tem, contesta por escrito, não está louca, no entanto reconhece, que a loucura profética nunca suplantará a magia da narração. A literatura da Guiné-Bissau tem percorrido os caminhos mais ínvios do desentendimento e do desalento e estas "Memórias SOMânticas" falam de um sonho que não morre e que de alguém que não se resigna.
Continuo a não entender por que Abdulai Sila não é editado em Portugal, para benefício da nossa língua comum.
Um abraço do
Mário
Memórias SOMânticas: a pujança da literatura guineense
Beja Santos
“Memórias SOMânticas”, é o mais recente título de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016. Até agora, dava como dificilmente ultrapassável a obra de Filinto Barros “Kikia Matcho”, a dolorosa narrativa de um combatente que tudo dera para ter uma pátria e que depois o ignorou. Aqui há uns anos, fui procurado por uma antropóloga alemã, Tina Kramer, que me veio pedir ajuda para a sua digressão na Guiné-Bissau, pretendia recolher depoimentos sobre a reconciliação nacional e o sentir dos combatentes do PAIGC passadas estas décadas. Procurei ser útil, e a Tina partiu levando como intérprete e motorista Abudu Soncó, meu irmão no Cuor. Passaram-se os meses, e eu ansioso por conhecer os detalhes desta pesquisa em ciências sociais. A Tina veio um tanto atarantada, o Abudu vinha em estado lamentoso com o que vira e ouvira. Tinham percorrido as profundezas do país, pedido para contactar gente que habitara em locais duríssimos, como Morés, a mata de Fiofioli, Kubukaré, em Sara – Sarauol. Houve gente que se recusou a falar ou pedia dinheiro, alegando miséria extrema; houve quem fez depoimentos a soluçar, perdera pais e irmãos, ficara com incapacidade, cedo o PAIGC os esquecera, a humilhação era tal que tinham que trabalhar para compatriotas que auferiam pensões vindas de Portugal… Não é preciso acrescentar mais nada.
Esta portentosa narrativa de Abdulai Sila abre com um texto em crioulo, em português reza o seguinte: Os revezes da vida são como fogo do lixo a arder por baixo/Quem me vê de longe julga-me palmeira/Mas quem se aproxima sabe/Que eu sou um poilão grande/Nem os boabás se igualam a mim. É narrativa confessional, na primeira pessoa, uma mulher combatente, agora está presa a uma velha e esfarrapada cadeiras de rodas, guarda intactas gostosas e amargas recordações de infância, dirige-se-nos com forte convicção: “Nas noites de indecisão procurei a luz redentora, nos vestígios da luta pela afirmação procurei amparo. Cantei, louvei, celebrei a vida. Mas a vida insistia em querer iludir-me a qualquer momento, a todo o custo, não me reconhecendo o direito a interregno nessa batalha que se anunciava eterna”.
Adorava a mãe, dela guarda mensagens e sentenças, um exemplo: “O fim de uma coisa é sempre o início de uma outra”. Um outro exemplo: “Na vida há coisas que podes mudar, outras não. Concentra-te naquilo que podes influenciar com a tua ação e coloca o resto no seu respetivo lugar. Assim podes vislumbrar o fim de uma situação e o início de outra. É este o segredo da vida”.
A mãe morreu, escolheu uma nova mãe. Crescia e com interpelações dolorosas, inquietantes: será que uma mulher tem sempre que pertencer a um homem? Alguém lhe disse que a mulher foi feita para sofrer não para mandar. Depois apaixonou-se, o jovem falava-lhe de igualdade, justiça e liberdade e visionava que um dia iriam ser africanos de verdade. E partiu para a guerrilha, lá longe. Ela decidiu também partir, encaminhou-se para Conacri, foi uma habituação difícil. Voltaram-se a ver, houve desentendimento, fez-se enfermeira, mas aquele seu companheiro não lhe saía do espírito. Ela começara por trabalhar no Lar do PAIGC, sonhara ser professora, não enfermeira. Tornou-se uma enfermeira exemplar. Deslocou-se para a Frente Sul, o seu homem podia ser encontrado em Kubukaré, aí ardeu a paixão, fizeram um filho. Foi habitar em Boké, dali um dia partiram o seu homem e o seu filho, vieram anunciar que tinham morrido. “Lembro-me de ter visto o teto branco da enfermaria a fugir de mim e a mudar constantemente de cor. Era um movimento vagaroso, que se repetia sem parar. Separando-se do resto da enfermaria, o teto daquele quarto deslocava-se para cima, em direção às nuvens no céu e a meio do caminho mudava de cor. Depois voltava para o seu lugar inicial, trazendo e enchendo o quarto do ruído ensurdecedor do motor de um camião a alta velocidade. Às vezes era só o motor do camião, outras vezes vinha misturado com gritos”. A guerra chegou ao fim, ela viu a sua Guiné esplêndida e gloriosa: “Eu sou dos inúmeros concidadãos que definitivamente vão voltar para casa magoados, com alguma amputação, temporária ou vitalícia. Eu levo todo um sonho amputado”.
A realidade era outra, cedo descobriu que se tinha falado em reconciliação e agora se perseguia sistematicamente os inimigos de ontem, irmãos guineenses. Ela fora uma guerrilheira com credenciais, deslocou-se por todo o país à procura de desaparecidos, aparentemente ninguém sabia de nada. Apercebeu-se que tinha havido fuzilamentos. Trabalhou intensamente num internato, queria viver a paixão da sua causa, encontrou pela frente a burocracia, a indiferença, viu o desânimo no rosto da gente. E descobriu que o seu partido já não se interessava por internatos. “Perdido o internato, os meus filhos desapareceram um após outros, até não sobrar nenhum. Mas sinto que estão por aí, entregues à sua sorte, sem a bênção de quem devia revelar-lhes as virtudes regeneradoras da fé e as lições da vida tiradas da História”.
E agora ela está por ali agarrada à cadeira, à procura de respostas que tardam em chegar. Foi amputada de tudo, perdeu companheiro e filho, tiraram-lhe o internato e chegou aquela blasfémia de se insinuar que os guineenses não eram capazes de tomar conta da sua terra e de construir o sonho pelo qual tinham combatido. Não entende os jovens, com os gestos obscenos, descobriu que os pais são condescendentes porque os filhos não têm profissão. No entanto, ela continua a arder em esperança, espera nesse novo mundo em que a maldade e o sofrimento não podem existir. Tem orgulho na sua história, continua a pensar que nasceram, toda aquela gente nasceu, para uma missão, sabe que vai partir em breve deste mundo, e grita bem alto aquele seu sonho que nunca envelheceu:
“Marginalizados? Nós é que domesticámos o invasor e abolimos o medo perante o desconhecido. Na calada da noite prenhe de incertezas reinventámos a vida e, bem alto no céu, fizemos soar a sinfonia da dignidade.
Deserdados? Construímos um mundo plural, onde todas as cores do arco-íris se fundem sem nunca se confundirem. Recuperámos a palavra, e abençoando-a, fizemos com que a magia da narração sustentasse os novos limites da razão. Muito além do verbo e da doutrina.
Não erguemos troféus, não exigimos medalhas, nem guardámos ressentimentos. Impusemos um novo paradigma da inteligência: sem ser mártir nem ambicionar ser herói, viver uma paixão até à exaustão e morrer sonhando”.
Uma narrativa que muito honra a literatura da Guiné-Bissau.
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Nota do editor
Último poste da série de 21 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17688: Notas de leitura (990): “Cartas do Mato, Correspondência Pacífica de Guerra”, por Daniel Gouveia, Âncora Editora, 2015 (3) (Mário Beja Santos)