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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21906: In Memoriam (395): O Marcelino da Mata (1940-2021) que eu conheci, em Teixeira Pinto, em finais de 1972, e depois em Cufar, no Natal de 1973, e fui reencontrar na Tabanca da Linha (António Graça de Abreu, ex-alf mil, CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74)


Foto nº 1

Tabanca da Linha > Cascais, Alcabideche, Cabreiro > Adega Camponesa > 17 de outubro de 2013 > O António de Abreu a ler, ao Marcelino da Mata, a entrada do seu "Diário da Guiné", relativa a Cufar, 26 de dezembro de 1973 (. reproduzida abaixo).



Foto nº 2

Tabanca da Linha > Cascais > Guincho > Restaurante Oitavos > 17 de julho de 2014  > Da esquerda para a direita, Mário Fitas, Marcelino da Mata e António Graça de Abreu.

Fotos (e legendas): ©  Manuel Resende (2021).. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de hoje, às 18h00,  de António Graça de Abreu, ex-alf mil,  CAOP 1,Teixeira PintoMansoa e Cufar (1972/74). 

Conheci Marcelino da Mata (aqui na foto nº 2,  de chapéu com os ex-combatentes Mário Fitas e eu, em 2014) na Guiné, em operações na Caboiana, em finais de 1972, e no Cantanhez, na acção Estrela Telúrica, no Natal de 1973.

Nesta última, no sul da Guiné, vi-o chegar à pista de Cufar, nos hélis que foram buscar os comandos ao mato, após dois dias de combates e destruição, exausto, enlameado, coberto de suor e sangue. Com os seus comandos africanos Marcelino da Mata, a quem o PAICG tinha morto o pai e uma irmã, era um militar impressionante, terror dos guerrilheiros, era uma excepcional máquina de guerra.

Reencontrei-o nos almoços dos antigos militares da ex-Guiné que engrossaram a Tabanca da Linha, em Cascais e no Guincho. Vai outra foto com ele, eu a ler-lhe a passagem de Cufar, 26/12/1973,  do meu livro "Diário da Guiné", que lhe ofereci [, e que se reproduz abaixo].

Marcelino da Mata era, aos setenta e muitos anos, um homem afável, sereno, comedido, orgulhoso de ser português. Hoje, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República, esteve no seu funeral. (*)

Que descanse em paz. (**)


2. Excerto do Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura, de António Graça de Abreu (Lisboa, Guerra e Paz Editores, 2007, pp. 175/176)


Excerto  das pp. 175/176 (com a devida vénia...)

 
Cufar, 26 de Dezembro de 1973

Graças ao Natal, umas tantas iguarias rechearam as paredes dos nossos estômagos. Houve bacalhau do bom, frango assado, peru para toda a gente, presunto, bolo-rei, whisky e espumante à discrição, só para oficiais. Fez-se festa, fados, anedotas, bebedeiras a enganar a miséria do nosso dia a dia.

Hoje, 26 de Dezembro, acabou o Natal e, ao almoço, regressamos às cavalas congeladas com batata cozida e, ao jantar, ao fiambre com arroz.

Isto não tem importância, importante é a ofensiva contra os guerrilheiros do PAIGC desencadeada na nossa região com o bonito nome de Estrela Telúrica. Acho que nunca ouvi tanta porrada, tantos rebentamentos, nunca Vi tantos mortos e feridos num tão curto espaço de tempo. E a tragédia vai continuar, a Estrela Telúrica prolongar-se-á por mais uma semana.

Tudo começou em grande, com três companhias de Comandos Africanos, mais os meus amigos da 38º fuzileiros e a tropa de Cadique a avançarem sobre o Cantanhez. O pessoal de Cadique começou logo a levar porrada, um morto, cinco feridos, um deles alferes, com certa gravidade.

Ontem de manhã, dia de Natal, foi a 38ª de Comandos a embrulhar, seis feridos graves, entre eles os meus amigos alferes Domingos e Almeida, hoje foram os Comandos Africanos comandados pelo meu conhecido alferes Marcelino da Mata, com dois mortos e quinze feridos. Chegaram com um aspecto deplorável, exaustos, enlameados, cobertos de suor e sangue. Amanhã os mortos e feridos serão talvez os fuzileiros...

No dia seguinte, outra vez Comandos ou quaisquer outros homens lançados para as labaredas da guerra. O IN, confirmados pelas NT, só contou seis mortos, mas é possível que tenha morrido muito mais gente, os Fiats a bombardear e os helicanhões a metralhar não têm tido descanso.

Na pista de Cufar regista-se um movimento de causar calafrios. Hoje temos cá dez helicópteros, dois pequenos bombardeiros T-6, três DOs, dois Nordatlas e o Dakota. A aviação está a voar quase como nos velhos tempos. Os hélis saem daqui numa formação de oito aparelhos, cada um com um grupo constituído por cinco ou seis homens, largam a tropa especial directamente no mato, se necessário os helicanhões dão a protecção necessária disparando sobre as florestas onde se escondem os guerrilheiros, depois regressam a Cufar e ficam aqui à espera que a operação se desenrole. Se há contacto com o IN e se existem feridos, os helicópteros voltam para as evacuações e ao entardecer vão buscar os grupos de combate novamente ao mato.

Ontem, alguns guerrilheiros tentaram alvejar um héli com morteiros, à distância, o que nunca costuma dar resultado.

Sem a aviação este tipo de operações era impossível. Durante estes dias, os pilotos dormem em Cufar e andam relativamente confiantes, há muito tempo que não têm amargos de boca. Os mísseis terra-ar do IN devem estar gripados porque senão, apesar dos cuidados com que se continua a voar, seria muito fácil acertar numa aeronave, com tanto movimento de aviões e hélis pelos céus do sul da Guiné.

Cufar fica a uns quinze, vinte quilómetros da zona onde as operações se desenrolam. Todos os dias, às vezes durante horas seguidas, ouvimos os rebentamentos e os tiros dos embrulhanços, das flagelações. E impressionante o potencial de fogo de parte a parte. Os guerrilheiros montam também emboscadas nos trilhos à entrada das matas onde se situam as suas aldeias. Aí, as NT começam a levar e a dar porrada, e não têm conseguido entrar nas povoações controladas pelo IN.

Natal, sul da Guiné, ano de 1973, operação Estrela Telúrica. Tudo menos paz na terra aos homens de boa vontade.
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Nota do autor:

Sobre o acidentado percurso do alferes Marcelino da Mata, ver a narração pessoal da sua participação nesta guerra em Rui Rodrigues, coord., "Os Últimos Guerreiros do Império", Editora Erasmos, Amadora, 1995, pp. 195-213.

[Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste blogue: LG]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21888: In Memoriam (393): Marcelino da Mata (1940 -2021), ingloriamente morto por tiro traiçoeiro da Covid-19 (Ramiro Jesus, ex-fur mil 'comando', 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73; Manuel Resende, régulo de A Magnífica Tabanca da Linha)

Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Uma manada de vacas, cambando o Rio Udunduma... Possivelmente pertencentes a um notável fula da região (Amedalai, por exemplo, que era a tabanca mais perto)... Só com muita relutância os fulas vendiam cabeças de gado à tropa... O gado era, tradicionalmente, um "sinal exterior de riqueza", um símbolo de "status" social...

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Do projecto de livro autobiográfico do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74) a lançar oportunamente, publicamos aqui mais uma estória, a quarta.


4 - A VACA

Para além dos sofrimentos da alma, dos perigos sempre no horizonte mental, das agruras do clima, da omnipresença dos incomodativos insetos, havia, ainda, uma alimentação monótona e quase sempre imprópria para seres humanos.

Os alimentos e quase tudo o que consumíamos estava dependente do seu transporte, desde Lisboa até ao local recôndito onde estávamos instalados, com recurso a sucessivas operações de carregamento e descarregamento, por entre navios, barcos mais pequenos, camiões, aviões e outros meios, suportando dias de exposição ao calor e à chuva, chegando ao destino, muitas vezes já afetados no seu estado de conservação ou literalmente adulterados.

Os aquartelamentos implantados junto à margem dos grandes rios ou braços de mar tinham um abastecimento mais regular, visto que recebiam diretamente, por barco, as suas provisões, mas aqueles, como era o caso de Mampatá, que tinham que organizar colunas de reabastecimento, sofriam os constrangimentos quer de eventuais ataques da guerrilha ou rebentamento de minas, quer das indiscritíveis condições de transitabilidade por caminhos que pareciam rios, na estação das chuvas.
Nalguns casos o transporte planeado para certo dia era adiado, porque numa situação de guerra de guerrilha, o espaço não era ocupado apenas por um dos beligerantes, mas sujeito sempre à presença, ainda que esporádica, do inimigo. Havia aquartelamentos implantados bem perto de tabancas habitadas por população que tinha um comportamento duplo, ora connosco ora com o inimigo. Nestes casos, ocorriam operações em que eram roubadas vacas que depois eram abatidas para abastecimento do depósito de géneros da companhia. Não era o nosso caso.

Estávamos em setembro de 1973, em plena estação das chuvas, e talvez por isso a chegada de géneros alimentícios tardava, e parecia que não havia mais nada que comer para além daquela fastidiosa massa com rodelas de chouriça de colorau, ao almoço e ao jantar. Para ser mais exato havia uma variante, arroz em vez de massa. Mas que fazer? O caçador da milícia bem se esforçava, saindo de noite para a zona periférica do quartel onde esperava horas pelo aparecimento de uma gazela ou de um porco do mato. Mas nada! Nem para ele nem para nós.

Um dia, mais uma vez, interpelei o meu Capitão, dizendo-lhe que até na enfermaria se repercutiam as consequências de uma dieta tão monótona promotora de um agravamento generalizado do estado de saúde da rapaziada. Ele, farto de me ouvir, e não tendo solução para um problema que também o trazia preocupado, propôs-me:
- Ó Carvalho, você, que até se dá muito bem com a população, veja se consegue convencê-los a venderem-nos uma vaca!

Pois o desafio era esse, convencê-los a venderem-nos uma vaca, e se não resolvia o problema estrutural, amenizava-o, pelo menos.

Os Fulas, grupo étnico predominante naquela região, no sul da Guiné, tinham muita relutância em vender uma das suas vacas que pastavam capim no lado exterior da cerca de arame farpado que nos protegia dos ataques do inimigo. Na verdade, a nossa perspetiva eivada de etnocentrismo impedia-nos de perceber que, para eles, as vacas constituíam a sua propriedade que geriam de forma muito parcimoniosa.

Devido às altas temperaturas tropicais e à ausência de meios de frio, os fulas matavam, para consumo próprio, uma vaca de cada vez, numa escala rotativa por entre todos os possuidores de cabeças de gado, sendo que toda a carne de um animal era distribuída em doses proporcionais ao número de membros de cada agregado, para consumo num único dia. Para eles, a venda de uma vaca não lhes interessava, porque alterava todo o esquema estabelecido no seio da comunidade. Era então preciso sentarmo-nos à mesa, como se diz em Portugal, para tentarmos convencer os donos daquelas vacas pequenas e magras a venderem-nos uma.

Confiante na minha facilidade de comunicação com a população de Mampatá, primeiro falei com o Régulo, Aliú Baldé, só depois com alguns dos homens grandes da terra. O régulo é assim uma espécie de presidente de Junta, mas com mais autoridade, talvez um misto de presidente de junta e regedor.
Disse-me ele, naquele seu modo seguro mas ponderado, que o assunto iria ter um bom desfecho, mas que era preciso fazer uma reunião com a presença dos proprietários das vacas, cerca de uma dúzia, e nós os dois.

No dia seguinte, pelas três horas da tarde, lá estávamos todos na morança do Régulo Aliú. Ele próprio, com a paciência de Fula, num tom monocórdico, expôs o objeto da reunião, no dialeto local, permitindo-me, mesmo assim, perceber que argumentou em favor da minha pretensão, dando-me, de seguida, a palavra.

Em rigor aquela reunião não decorria à volta de uma mesa, mas simplesmente nos encontrávamos sentados, cada um sobre uma esteira, no chão de terra. E foi assim, naquela roda democrática, que intervim aduzindo argumentos em favor da minha companhia, usando palavras em crioulo mescladas com muitos termos do dialeto fula. Disse-lhes que estávamos ali todos irmanados no mesmo objetivo, que também, inúmeras vezes colaborávamos com a população nas suas atividades agrícolas e que, por isso, agora que tínhamos problemas de saúde pela falta de uma alimentação variada, precisávamos que nos vendessem uma vaca.

Todos quiseram dar a sua opinião, mas eu estava certo que nenhum deles se iria opor. Na verdade apenas havia que se cumprir aquele ritual, e a mim nada custava deixar passar o tempo e as cerimónias próprias daquele ato diplomático.

Os Fulas eram quase todos boas pessoas e eu sentia-me bem em tratar daquele assunto. No dia seguinte uma vaca foi sacrificada, e centena e meia de soldados tiveram uma refeição melhorada.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

Guiné 61/74 - P21904: Notas de leitura (1340): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2018:

Queridos amigos,
 
É incontestável que a viragem política de Henrique Galvão se irá processar depois das suas viagens e relatórios a Angola e Moçambique, como inspetor superior de administração colonial. Diz preto no branco que há escravatura, miséria, corrupção na administração, nomeações de gente incompetente. Forma-se na Assembleia Nacional uma forte oposição, os interesses colonialistas não podem ser ofendidos e muito menos denunciados. Galvão, completamente desiludido, ingressa na oposição, irá apoiar a candidatura de Quintão Meireles e elabora planos quiméricos para um golpe de Estado.
 
Sentenciado, irá parar a Peniche, serão anos de prisão a que se seguirá uma espetacular fuga do Hospital de Santa Maria e o exílio na Argentina. O que não deixa de ser impressionante é o que aquele homem escreve e o que escreve tem sempre marcas do seu coração em África, indeléveis.

Um abraço do
Mário



Henrique Galvão, o feitiço do Império, a insubmissão a Salazar (2)

Beja Santos

“Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota, Oficina do Livro, 2011, é a biografia de uma das figuras mais polémicas de um apoiante de Salazar e do Estado Novo que se rebeliou e se constituiu como um dos mais ferozes adversários do ditador.

Depois de uma acumulação de triunfos, Galvão, deputado da União Nacional e Inspector Superior de Administração Colonial, apresenta na Assembleia Nacional o “Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas nas Colónias”. A reunião tinha um caráter absolutamente privado, e a denúncia não tem precedentes, saltam das suas palavras verdades com punhos, do género:

“Todos sabemos como são pouco rigorosas as estatísticas demográficas e de produção referentes às colónias africanas. Nem todos, mas muitos sabem que, além de pouco rigorosas, induzem por vezes em erros perigosos. Alguns, mais raros, sabem o resto, isto é, como estas estatísticas são por vezes fabricadas”.

Debruçando-se sobre o recrutamento da mão-de-obra pelo Estado, deixa siderados os membros da Comissão das Colónias:

“Em certo ponto de vista, a situação é mais grave do que a criada pela escravatura pura. Na vigência desta, o preto comprado, adquirido como animal, constituía um bem que o seu dono tinha interesse em manter são e escorreito, como tem em manter são e escorreito o seu cavalo ou o seu boi. Agora, o preto não é comprado – é simplesmente alugado ao Estado, embora leve o rótulo de homem livre. E ao patrão pouco interessa que ele adoeça ou morra, uma vez que vá trabalhando enquanto existir – porque quando estiver inválido ou morrer reclamará o ‘fornecimento’ de outro. Há patrões que têm 35% de mortos entre o seu pessoal durante o período do contrato. E não consta que algum tenha sido privado do fornecimento de mais quando mais precisar”. 

Finda a apresentação do relatório, Albino dos Reis, o Presidente da Assembleia Nacional, foi conciso no despacho: 

“Foi enviada uma cópia ao Sr. Presidente do Conselho. Arquive-se este original sobre rigorosa reserva.”

Mas Galvão não desarmava, denunciava nas suas intervenções enquanto deputado nomeações erradas, escrevia nos jornais. Meses depois, o novo Ministro das Colónias, Teófilo Duarte, determina que se faça uma inspeção extraordinária em Moçambique, Galvão é o escolhido, irá debruçar-se sobre o povoamento, emigração e economia indígenas, haveria que cooperar com o Governador-Geral. O ministro entregou a Galvão instruções complementares secretas, cinco folhas datilografadas que versavam sobre diversos aspetos da realidade moçambicana. Também o ministro pretendia saber se seria viável a ideia de substituir o recrutamento individual (de trabalhadores para S. Tomé) por outro coletivo, abrangendo não só famílias mas ainda grupos de aldeias limítrofes. 

Chegado a Moçambique, Galvão atira-se ao trabalho, sem deixar, no entanto, de caçar. Escreve o autor:

  “Galvão depara-se, em Nampula, com uma operação de recrutamento de serviçais para S. Tomé e envia um telegrama ao Ministro das Colónias. Alerta-o para a gravidade do despovoamento e para o facto de esse recrutamento só se dever efetuar se fosse largamente excedido o número de indígenas que a lei permitia recrutar. Em outubro, Galvão escreve ao Encarregado do Governo-Geral de Moçambique: “O estado de miséria em que se encontram e apresentam os condenados e desterrados cumprindo pena em Marrupa excede todos os limites e falta de decoro e humanidade. A maioria não tem qualquer vestuário nem agasalho ou se apresenta com farrapos sórdidos de casca de árvore. E assim se encontram não só nos calabouços como nos trabalhos públicos em que são empregados”.

Galvão regressa profundamente indignado com a miséria e os abusos que presenciara. Em 1948, o Ministro determinou que Galvão se deslocasse com urgência a Angola, a fim de aí completar o estudo da questão indígena iniciado em 1945, sob as orientações de Marcello Caetano. Embarca em julho e regressa em dezembro, verá desmandos da Administração Colonial verdadeiramente revoltantes. Galvão escreveu a Salazar pedindo-lhe para lhe expor verbalmente o drama político, económico, social e o caos administrativo que encontrara em Angola. 

Será recebido pelo ditador em janeiro do ano seguinte, nada transpirou. E o relatório enviado ao Ministro era uma bomba: o Governador-Geral tinha procurado encapotadamente torpedear a inspeção; tinham-se instituído novas causas de despovoamento, o fornecimento de trabalhadores era pura escravatura, os indígenas eram arrebanhados à força para trabalhar em S. Tomé, e muito mais. Iniciara-se uma guerra aberta com sólidas instituições do Estado Novo, um amigo de Salazar, Mário de Figueiredo, líder parlamentar da União Nacional, troca palavras ásperas com Galvão, forma-se um círculo de hostilidade, negam-se os fundamentos das denúncias, 

Galvão sabe que está isolado. Lança-se na verrina, a sua escrita torna-se num permanente descasca pessegueiro, escreve artigos extremamente ácidos, uma ironia velada, mas os leitores percebiam para onde iam as flechas. Mário de Figueiredo participou disciplinarmente de Henrique Galvão, este foi recusado como candidato da União Nacional, amargurado, Galvão é informado que um juiz determinara a abertura de diversos processos disciplinares e criminais contra dezenas de funcionários angolanos.

Em 1951, Galvão apoia a candidatura de Quintão Meireles, é o seu homem de comunicação, escreve furiosamente comunicados, faz denúncias, só pensa no derrube do regime salazarista. No ano seguinte, a PIDE invade a sede da Organização Cívica Nacional, de que Galvão faz parte, virão a descobrir-se documentos que, embora quiméricos, faziam supor que Galvão urdira planos para um golpe de Estado. 

Começa o calvário das suas prisões, é transferido para o Forte de Peniche, tinha sido condenado a três anos de prisão celular. É um período que Francisco Teixeira de Mota descreve com ricos pormenores até chegarmos a panfletos da autoria de Galvão que tinham o título de Moreanto (Movimento de Resistência Anti Totalitária), anti salazarista, anti fascista, anti nazi, anti comunista e anti negocista, os ataques a Salazar eram vitríolo. 

Em contestação pela sua prisão, Galvão vai fazer greve de fome, toda esta atmosfera de peripécias é descrita com enorme vivacidade, Galvão não desarma, é transferido para o Hospital de Santa Maria, Galvão escreve a toda a gente, incluindo o Cardeal Patriarca de Lisboa. E dá-se o julgamento do Moreanto, Galvão é condenado a 16 anos de prisão maior.

 A partir de agora, aquele ativista do Império só podia contar consigo próprio, como observa Teixeira da Mota: 

“Se não se invadisse, ou enlouquecia ou morria na prisão, e as duas últimas hipóteses eram inaceitáveis para o seu orgulho pessoal e para o ódio que tinha a Salazar” e é no Hospital de Santa Maria que terá lugar a sua rocambolesca fuga.

(Continua)
Imagem do livro "Henrique Galvão, Um Herói Português". Músicos guineenses na Exposição Colonial do Porto. Fotografia de Domingos Alvão, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21869: Notas de leitura (1339): “Henrique Galvão, Um Herói Português”, por Francisco Teixeira da Mota; Oficina do Livro, 2011 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21903: Casos: a verdade sobre... (20): a canoa abandonada na bolanha, na Tabanca Velha, Nova Sintra, e que servia de diversão para a rapaziada... (Carlos Barros, ex-fur mil, 2ª C / BART 6520/72, 1972/74)


Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74) > Canoa abandonada na bolanha, na "Tabanca Velha", em Nova Sintra: serviu para momentos de diversão para os militares, da companhia, tendo na proa o ex-furriel mil mec auto José Elias.


A foto foi enviada pelo Carlos Barros, mas o autor é o José Elias, ex-fur mil mec auto, da 2ª C / CART 6522/72 (Nova Sintra, 1972/74). O Carlos Barros, da mesma companhia, estava na altura em Tite.

Foto (e legenda): © José Elias / Carlos Barros (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagens de Carlos Barros, ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72, "Os Mais de Nova Sintra" (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74):

Data: segunda, 15/02/2021 à(s) 00:38 e 10h45:


Assunto: Canoa abandonada

Boa noite estimado amigo:

Reitero o que disse ou escrevi sobre este assunto (*), apenas mais umas informações depois de investigar / conversarr junto a amigos meus de Nova Sintra, ex-militares da 2ª CART / BART 6520.

A caminho do cais de Lala (local de reabastecimentos) em Nova Sintra, caiu uma enorme árvore e alguns elementos da escassa população de Nova Sintra, construíram, durante alguns dias, a referida canoa que, depois escavada por dentro e pornta, foi transportada/arrastada por uma Berliet Tramagal, em direção à bolanha, naTabanca Velha, sendo o motorista, o soldado Santos (Agostinho Coelho dos Santos) da secção dos Condutores, hoje residente em Paços de Ferreira.

A canoa ficou no meio dos mangais e seria utilizada, esporadicamente, por nativos da população para a pesca e para as nossas diversões..

Um abraço

CMLB
"Os Mais de Nova Sintra" (Guiné, 1972/74)


PS - Como já elucidei, no comentário acima, após uma conversa com o Elias no que concerne à canoa abandonada, confirma-se o que afirmei.

Proposta de legenda(s) para a fotografia:

-Canoa abandonada na bolanha, na Tabanca Velha, em Nova Sintra: serviu para momentos de diversão para os militares, tendo na proa o ex-furriel mil mec auto José Elias.

-O furriel Mil. Elias e os seus companheiros, militares de Nova Sintra, divertem-se numa
canoa abandonada na bolanha da "Tabanca Velho"

E obrigado Luís. Com os nossos depoimentos construímos "nacos de estórias" para a História de um guerra que nunca desejamos . Parabéns pelo teu extraordinário contributo em prol da Cultura , neste caso, da ex-Guerra Colonial que faz agora 60 anos ( Guiné iniciou a sua luta, como sabes, melhor que eu, em janeiro de 1963).

2. Comentário do editor LG:

Pronto, Carlos, fica reposta a verdade factual (**)... O seu a a seu dono: a canoa não foi apreendida ao IN (, o que, na época, e na linguagem da época, era um pequeno grande ronco para as NT: uma canoa, que leva muitos dias a construir, era um recursso muito importante para os guerrilheiros do PAIGC e para a populaçãosono seu controlo)...


A canoa foi, poism construida pela população de Nova Sintra, e tinha alguma utilidade para ela e para a NT... Enfim, como sabes, nestas coisas da vida e da guerra, "quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto",,, Mas foi divertida a "história da canoa", pu melhor desta fo velhinha e retocada, com quase meio século de existência... e com um curtíssima e enganadora legenda, "canoa turra"...


Vai mandando as tuas pequenas histórias de Nova Sintra e arredores... Afinal, tens posto Noca Sintra no mapa... Ninguém sabia onde ficava...

Cuida-te. Abraço, Luis
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de :

29 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21822: Fotos à procura de... uma legenda (134): Afinal, nem Jabadá nem Gampará... A cena do banho e da "canoa turra" passou-se na "Tabanca Velha", a caminho do cais de Lala, Nova Sintra (Contributos de Carlos Barros, Virgílio Valente, Amílcar Mendes, Eurico Dias)

28 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21817: Fotos à procura de...uma legenda (133): Trata-se de uma canoa em tempos apreendida ao PAIGC... Os militares tomam banho no cais de Gampará (Virgílio Valente, régulo da Tabanca de Macau, ex-alf mil, CCAÇ 4142/72, Gampará, 1972/74)

27 de janeiro de 021 > Guiné 61/74 - P21813: Fotos à procura de...uma legenda (132): "Canoa turra"?... Apreendida ao PAIGC?... Em que sítio, Jabadá ou Gampará?... (Carlos Barros, ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72, Nova Sintra, 1972/74)

(**) Último poste da série > 15 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21646: Casos: a verdade sobre... (19): A recusa dos militares guineenses da CCAÇ 12 em irem render a CART 3494 no Xime, em março de 1973, obrigando a uma intervenção do gen Spínola (António Duarte / Valdemar Queiroz / Luís Graça / Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P21902: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS) (8): Cenas de um carnaval em Bissau

Edifício do STM em Bissau

1. Em mensagem do dia 5 de Fevereiro, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), fala-nos do Carnaval de 1970 em Bissau:


RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU

PEDAÇOS DA HISTÓRIA DA GUINÉ
 
8 - Cenas de um Carnaval em Bissau

Estávamos em 1970, o Carnaval estava à porta e, apesar da guerra, em Bissau sempre havia algumas comemorações desse período que antecedia, e ainda antecede, a Quaresma.

Em Bissau tudo era diferente e tinha sabor a saudades da santa terrinha, mas havia sempre foliões, dentro dos condicionalismos que se viviam.

No QG, mais propriamente na CCS, havia um jovem sempre bem disposto, sempre com uma graça na ponta da língua, mas afinal de contas teria as suas razões para não se sentir assim tão bem. Constava que teria vindo de Angola, “premiado” com algum castigo, e andaria por ali à espera que os eventuais problemas tivessem solução. Era o Jóia, como era conhecido em todo o lado.

Assim, o Jóia, que era mesmo uma Jóia no trato do dia a dia, nesse dia de Carnaval resolveu vestir-se à Fula, embrulhou-se nuns lençóis, e lá foi até à cidade brincar e confraternizar com os amigos que tinha e eram muitos.

Mas o Jóia, amigo do seu amigo, nunca desperdiçava uma cerveja, de preferência das bazucas, e lá foi correndo todos os pontos de interesse de Bissau, a começar pelo Santos,  logo à saída da porta de armas de Santa Luzia, desde o Império, passando pelo Benfica, desde a Solmar até ao Solar do Dez, ao Portugal e ao Internacional, ao Zé da Amura, ao Bento, até que chegou ao novel Pelicano, cheio que nem um ovo dada a novidade daquele novo estabelecimento de dois pisos e com belas vistas sobre a Avenida Marginal e Ponte Cais de Bissau.

Porém, nessa confusão de gente, o Jóia, terá dado um encosto a um camarada à civil, que não gostou da brincadeira e o terá mimoseado com alguns murros e o Jóia, naquela circunstância não deixou cair a sua honra de combatente pelo que desatou, rapidamente, parte dos lençóis respondendo com as suas mãos à dita pessoa à civil que terá ficado deitado no chão do café.

Entretanto o Jóia terá dado mais umas voltas pela cidade mas regressou ao Quartel General onde já tinha recado para no outro dia se apresentar ao Comandante. Era a vida.

E o Jóia lá foi no outro dia ouvir o Comandante que lhe terá perguntado se sabia quem era a pessoa a quem tinha dado um sova no dia anterior. Claro que o Jóia não sabia,  ao que o Comandante lhe disse que o outro camarada era um Alferes paraquedista. Então aí o Jóia não se calou e terá respondido ao Comandante: 

- Não me diga,  meu Comandante. Se aquele era um Alferes paraquedista, eu vou lá acima e derreto o Batalhão todo.

O Comandante já teria falado com o médico da Companhia e o Jóia foi encaminhada para a Psiquiatria do HM 241. Chegou lá e a primeira coisa que terá feito, foi dar um murro no tampo de vidro da secretária do Médico, vidro esse se partiu em mil bocados.

Resumindo, passados poucos dias, o Jóia tinha regressado à Metrópole e corria por lá a notícia que os processos tinham sido arquivados e o Jóia passado à vida civil ainda durante a Quaresma.

Apesar de tudo, nesse ano o Carnaval foi a salvação do Jóia que andava por ali esquecido.

Carlos Pinheiro

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2018 > Guiné 63/74 - P18838: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS) (7): Recordações do STM/CTIG

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21901: A Nossa Marinha (3): a LFG Orion, "o melhor restaurante de Bissau", às quintas-feiras, em 1969/71, sem esquecer a tertúlia que, depois do jantar, se reunia na casa do célebre metereologista Anthímio de Azevedo [José Pardete Ferreira (1940-2021), autor de "O Paparratos"]



Guiné > Bissau > c. 1973/74 > "Dos poucos momentos que passei em Bissau... Junto às LFG Orion, Lira e Argos (da esquerda para a direita)"

Foto (e legenda): © J. Casimiro Carvalho (2017). Todos os direitos reservados [. Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No seu romance "O Paparratos" (a história do soldado 'comando' Gabriel, de alcunha Paparratos, e do alferes miliciano médico João Peckoff, aliás, um "alter ego" do autor), o nosso camarada e membro da Tabanca Grande, José Pardete Ferreira,  que nos deixou, há um mês, faz uma referência implícita ao NRP LFG [Lancha de Fiscalização Grande] Orion, como um dos pontos "obrigatórios" do roteiro gastronómico de Bissau no seu tempo.

Recorde-se que, depois do CAOP, em Teixeira Pinto, de que foi o médico entre fevereiro e junho de 1969 (cinco meses), foi colocado no serviço de cirurgia do HM [Hospital Militar] 241, em Bissau (1969/71).

No final do seu serviço no Hospital, João Peckoff [leia-se: José Pardete], procurava ter em Bissau "uma vida de sociedade tão normal quanto possível" (p. 49). Como fazia amizades com  facilidade, tormou-se "presença assíduia nos habituais jantares das quintas-feiras, que tinham lugar na Base Naval [ao lado do cais do Pingjguiti],  que eram destinados aos oficiais de Marinha e seus familiares, sediados  em Bissau ou de visita, e a militares de outras Armas e mesmo a civis,  com o estatuto de convidados" (p. 50).

E aqui o autor faz uma homenagem à hospitalidade da LFG [Orión} e do seu comandante (no romance, Freitas de Sousa, leia-se Faria dos Santos], "um gentleman" (sic) , e evoca  poeticamente os "tons vermelhos vivos de sangue, atenuados  com fins de tarde cálidos e embalados de cinzento numa LFG acostada ao Cais do Pidjiguiti, durante o jantar a bordo, com mais dois ou três amigos" (p. 50).

2. Sabemos que se trata(va) da Oríon (**), de acordo com uma mensagem que o José Pardete Ferreira nos mandou, em 2011, juntamente com uma letra de fado, a do "Fado da Oríon" , que ele dedicou aos  camaradas da Marinha, e em especial à malta da LFG Orion, e que nós já reproduzimos em dois postes  (*).

(...) Caro Luís, o prometido é devido:

O Fado da Orion foi escrito em Homenagem ao Comandante [Alberto Augusto] Faria dos Santos [, entretanto falecido em 1986, ex-1º ten, comandou o NRP Orion, 1968/70].

A LFG {Orion] passou mais de um ano acostada ao molhe do Pi(n)djiguiti porque tinha cedido à [LFG] Batarda um dos motores.

Quando o recebeu de volta ou ele foi substituído por um novo, já não posso precisar, fez uma viagem experimental e de contrabando "a acreditar nos praticantes da má-língua" e, de seguida, foi o navio almirante da ida a Conacri [, Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970], sob o Comando de Faria dos Santos, mais tarde Comandante do porto e, em seguida, Governador Civil de Aveiro.

Poeta e grande amigo, recebia a jantar e bem um pequeno número de amigos na torre, onde, no final, a poesia expulsava o álcool.

Ele foi, igualmente, a nossa chave de acesso à Base Naval de Bissau onde, às quintas-feiras, havia jantar melhorado e aberto a convidados. (...)

 
Fado da 'Orion' (excerto)

Tristes noites de Bissau,
Neste clima tão mau,
Passá-las não há maneira,
Sem comer arroz, galinha.
Ou então ir à "Marinha"
Aos "jantares da quinta-feira"!

Às vezes um Comandante,
Bom amigo, bem falante,
Obriga uma pessoa,
Com uma grande bebedeira,
Pensar que o Ilhéu do Rei
Fica em frente de Lisboa.

Refrão

Ser marinheiro
De "LFG' no estaleiro,
Sem motores nem cantineiro,
Junto ao cais sem navegar,
E esperando,
A comissão foi passando,
Ai!, os amigos engrossando,
Com o Geba a embalar. (...)


[Nota do autor: 1ª parte e refrão escritos em Bissau em Novembro de 1970; 2ª parte,  escrita em Setúbal na madrugada de 15 de Dezembro de 1997. Para ser cantado com a Música do "Fado do Cacilheiro" do Maestro Carlos Dias).


3. Voltando ao romance "O Paparratos" e à figura do nosso doutor, João Pekoff:

(...) "O senhor comandante, entre outras qualidades, tinha a de receber bem, fazendo jus à fama da Marinha de Guerra Portuguesa" (p. 50).

 Por outro lado, "gostava imensamente de poesia e a tertúlia que entretanto se fundara em casa do António Almeida [, leia-se Anthímio de Azevedo  (Ponta Delgada, 1926- Lisboa, 2014). o famoso metereologista da Rádio Televisão Portuguesa, na altura, diretor do Serviço de Metereologia da Guiné, entre 1967 e 1971,] (...) tornou.se uma alternativa ao doce balançar no navio e à vista  do Ilhéu de Rei" (p. 50).

A casa de Anthímio de Azevedo era "local de reunião quase obrigatório após o jantar" [no navio], transformando-se num espaço de liberdade onde se dizia poesia, se falava da guerra e das últimas operações no mato, bem como da crueza da vida e da morte no Hospital,  reviam-se comissões de serviço anteriores, partilhava-se  projectos para o futuro, etc.

4. Quando o nosso doutor sentia necessidade de sair do ambiente da tropa, tinha em Bissau outras, poucas, alternativas:

"Um balaio de ostras com um molho feito com sumo de limão e piri-piri, acompanahado com umas cervejitas, aqui ou ali, ou ocasionalmente um jantar num dos poucos  restaurantes que havia, como por exemplo o Solar dos 10, satisfaziam-lhe os apetites, espirituais e físicos" (p. 50).  

Este restaurante seria pertença a um setubalense, que se tornou também comandante dos bombeiros de Bissau. Opinião do autor: "Durante muito tempo foi o Tavares Rico de Bissau" (p. 51). E terá sido no Solar dos 10 que o José Pardete Ferreira, o criador literário do Paparratos e do João Pekoff,  apresentou um dia, "numa noite de festa da malta do Hospital", na despedida de um colega, o Fado da Orion (*).

No roteiro gastronómico de Bissau, aponta-se ainda "a sala de jantar da Pensão Portugal, ou casas de pessoas tornadas suas conhecidas" (p. 51).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8966: Blogpoesia (163): Fado da 'Orion' (José Pardete Ferreira)

Vd. também o poste de 2 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9129: O nosso fad...ário (4): O Fado da Orion (J. Pardete Ferreira, ex-Alf Mil Médico, 1969/71)

Guiné 61/74 - P21900: In Memoriam (394): João Domingues da Rocha Cupido, ex-Cap Mil Art, CMDT da CCAÇ 2753 - "Os Barões do K3" (Guiné, 1970/72) (José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753)

IN MEMORIAM

Ex-Cap Mil Art João Domingues da Rocha Cupido
CMDT da CCAÇ 2753/BII 17/CTIG 1970/72



1. Mensagem do nosso camarada José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72), com data de 10 de Fevereiro de 2021 com a notícia do falecimento do ex-Cap Mil Art João Domingues da Rocha Cupido, Comandante d'Os Barões do K3.

Caro camarada e Amigo Luís,

Hoje, é com tristeza que venho informar, todos os que privaram ou que conheceram, o João da Domingues da Rocha Cupido, ex-Cap Mil Art, Comandante dos Barões do K3, que nos deixou para sempre, muito recentemente, nos últimos dias de Janeiro.

Mantendo contactos com o João Cupido, conhecia a existência de alguns problema de saúde que enfrentava, tendo-me informado em meados de Janeiro, que estava no Centro de Reabilitação da Tocha, por necessitar de cuidados de fisioterapia.

Sempre que falávamos e uma vez mais neste último telefonema, manifestava o enorme desejo de concretizarmos a realização de mais um almoço, com alguns ”Barões”, na sua Mira, que se adiava desde o inicio da pandemia, também pelos frequentes internamentos no Hospital de Coimbra, durante o ultimo ano. Lamentavelmente jamais se realizará!

O João Cupido foi o grande Comandante, que fazia por passar despercebidas essas funções, sendo tão-somente o camarada mais velho, mais experiente e com todas as responsabilidades, naquela fantástica companhia de jovens.

Respeitado e admirado por todos os seus subordinados, jamais presenciei qualquer posicionamento de autoritarismo, sendo um excelente dialogante e contemporizador nas mais difíceis situações.

À Família e amigos apresento as minhas sentidas condolências.

Envio em anexo duas fotografias, onde o João Cupido está, tiradas em Angra do Heroísmo, poucas semanas depois da sua chegada, para tomar conta da CCAÇ 2753.

Muita força para os tempos actuais e muita saúde, é o que eu desejo para todos.

Abraço do
José Carvalho


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Angra do Heroísmo, berço da CCAÇ 2753

Em Abril de 1970, em Angra de Heroísmo, no campo de futebol da cidade, uma equipa de oficiais mobilizados do BII17.

Na foto, doze oficiais milicianos (dois Capitães e dez Aspirantes) e um oficial do quadro.
Em pé a partir do lado esquerdo: Carlos Oliveira, Fernandes, Cap. Mil. Cav. Calvão Silva, Cap. de Inf. Sérgio Crespo, Cândido Pereira, Cap. Mil. Art. João Cupido, Santos, Vítor Junqueira. À frente: Costa, José Carvalho, ?, Sousa Pinto, Jorge França. Este último seria mais tarde meu colega na Escola Superior de Medicina Veterinária – Lisboa – onde também se licenciou.


Em Janeiro de 1970, naquela unidade foram incorporados os recrutas, que deram origem a três Companhias Independentes de Caçadores, tendo duas como destino a Guiné (CCaç  2753 e 2754) e uma Moçambique, CCaç 2755.

Nesse inicio de ano chegou ao BII 17 uma dúzia de Aspirantes a Oficiais Milicianos, que tinham saído de Mafra, duas semanas antes e que enquadraram as referidas companhias.


Os oficiais que inicialmente enquadraram a CCAÇ 2753, junto de uma peça de artilharia, na Fortaleza de São João Batista, também referida como a fortaleza do Monte Brasil. Construída no século XVI, pelo Rei Filipe I de Portugal, Filipe II de Espanha.

Em Março de 1970, os Aspirantes a Oficiais Milicianos, Vítor Junqueira, José Carvalho, Cândido Pereira e Sebastião Sousa Pinto. Ao centro Cap. Mil. Art. João Domingos da Rocha Cupido

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2. Nota do editor:

Em nome da tertúlia e dos editores deste Blogue, deixámos à família do nosso camarada João Domingues da Rocha Cupido, os mais sentidos votos de pesar, entensivos à "família" dos Barões do K3.

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21888: In Memoriam (393): Marcelino da Mata (1940 -2021), ingloriamente morto por tiro traiçoeiro da Covid-19 (Ramiro Jesus, ex-fur mil 'comando', 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73; Manuel Resende, régulo de A Magnífica Tabanca da Linha)

Guiné 61/74 - P21899: Blogues da nossa blogosfera (149): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (59): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


UM GESTO DE SILÊNCIO

ADÃO CRUZ
© ADÃO CRUZ

Todos nós temos os nossos desertos
pequenos ou grandes
e todos nós temos os nossos labirintos
grandes ou pequenos
simples ou complexos.
Os caminhos e os percursos
entre os nossos desertos e os nossos labirintos
mais rectos ou mais sinuosos
são ao fim e ao cabo os caminhos da nossa vida.
E esses caminhos são feitos predominantemente de silêncio.
A grande força da nossa vida reside no silêncio
o silêncio das nossas meditações
das nossas reflexões
das nossas decisões
dos nossos segredos e intimidades
dos nossos medos e coragens
dos nossos sonhos e entusiasmos
das nossas alegrias
das nossas mágoas e frustrações.
O silêncio é a primeira voz que um homem ouve
quando está dentro de si.
O silêncio é o respirar do nosso íntimo
a dialéctica da nossa personalidade
o único espaço onde a mentira não cabe.
O silêncio é o relógio oculto e secreto das nossas horas.
Nós somos a nossa própria teia
e só o silêncio nos deixa ver e separar
os emaranhados fios que a tecem.
A mágica sensatez do silêncio
é o fio-de-prumo da nossa calibração.
São imensas as verdades que podemos conhecer
só por ficarmos estendidos a pensar calmamente
porque as verdades estão em nós
e só o silêncio nos permite desvendá-las.
Tantas vezes o silêncio tem vontade de fugir
e necessidade de gritar…
de gritar as verdades que descobre
mas como o silêncio não tem palavra de se ouvir
vai enformando os mais variados actos da vida
os gestos e as artes da vida que só nele vivem.
Assim nascem assim se criam e se desdobram
todas as nossas inúmeras expressões vivenciais
que mais não são do que as vozes ampliadas
dos nossos próprios silêncios.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21830: Blogues da nossa blogosfera (148): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (58): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21898: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (18): Saia uma "rolada" para o jantar...



Fonte: In: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 16.


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:

(i) ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974;

(ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem 2 dezenas de referências

 

A “rolada"…

por Carlos Barros


Os soldados do 3º grupo de combate de Nova Sintra andavam sempre com apetite, já que as refeições habituais não passavam de arroz com salsichas, de feijão ou de massa meada, esparguete, cortada…-, o que originava uma certa saturação alimentar.

Um dia o furriel Barros,disse para o seu grupo de combate:

- Amanhã, vamos ter uma comida especial a acompanhar a refeição habitual , vinda da cantina!

Levantou-se uma “auréola “ de volumosa expectativa entre os soldados presentes…

O Barros, numa tarde muita abrasadora, com o sol a queimar a pele, pegou na sua arma de pressão e foi caçar para junto de um pequeno riacho onde as rolas costumavam beber. Uns arbustos propiciava o esconderijo ideal para o Barros caçar, camuflando-se no meio dos seus ramos e das poucas folhas existentes naqueles ressequidos arbustos

As rolas começaram a chegar e o furriel ia disparando , abatendo várias dessas aves e, ao fim de duas horas, o Barros tinha oito rolas bem gordinhas e não prolongou a caçada porque temia que alguma vara de javalis viesse beber e com a arma de pressão pouca hipótese teria de se defender, desses perigosos e agressivos animais.

Regressou ao quartel, falou, ”clandestinamente, com os soldados Domingos Oliveira , Cruz, Pedralva, Serra e Lurdes para depenarem as rolas e as fritassem numa cozinha improvisada da caserna.

A missão dos “cozinheiros de algibeira” foi cumprida e o óleo da frigideira, esta emprestada pelo cozinheiro Rochinha, foi guardado numa garrafa de cerveja, para uma futura “investida”!

Ao jantar, o Domingos Oliveira , veio com uma improvisada e enfarruscada, panela com as rolas fritinhas e foi o delírio entre os soldados que nunca imaginaram ter aquele petisco tão saboroso, naquele ambiente de tanta penúria gastronómica.

Com o furriel Barros, a promessa feita, era promessa cumprida!...

A sorte do furriel Barros foi não ter aparecido, junto ao “riacho”, um javali sequioso caso contrário, a promessa não seria respeitada…


Nova Sintra 1974

Ex-furriel Miliciano Barros-

Bart 6520/2ª CART (1972/74)

“Os Mais de Nova Sintra”

Esposende 2 de fevereiro de 2021
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Guiné 61/74 - P21897: Blogpoesia (719): "A fome"; "Casa da Tripa" e "O silêncio", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


A fome

Condenação ou não, o homem tem de ganhar seu pão com o suor de seu rosto.
A fome obriga o homem a trabalhar se quer manter sua vida acesa.
Motor da vida impele o homem a se levantar da cama cada dia,
Com chuva ou sol,
Para ganhar seu pão e o de seus descendentes.
Quem não o fizer será só um parasita.
Como o verme que vive no húmus.
Foi essa a vontade do Criador de tudo quanto existe.

Ouvindo Schubert
8h59m
Jlmg


********************

Casa da Tripa

Um casarão fidalgo.
Um palácio comprado com dinheiro das rendas senhoriais das quintas.
Uma alameda empedrada de camélias multicolores
Ligava-o à estrada nacional.
Uma grande quinta arrendada a um lavrador rendeiro
Abastecia-o de vinho e de pão.
Era gente oriunda de Trás-os-Montes.
Quem lá vivia agora era uma descendente, com seus quatro filhos.
Dois pares.
A dona Efigénia. Viúva.
Muito dedicada ao serviço da Capela de Pedra Maria.
Ainda bastante viçosa.
Cantava e tocava órgão na capela.
O abade da freguesia era um convidado habitual lá de casa.
Apoiava-a e era apoiado.
Era bonito vê-la, toda de preto, vir pela alameda sob latadas,
Pelas trazeiras do palacete,
Dirigida a Pedra Maria.
Foi minha madrinha de crisma, aos 11 anos.
Éramos dois fãs um do outro.


Berlim, 10 de Fevereiro de 2021
10h10m

Jmg


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O silêncio

Ninguém gosta do silêncio.
Ninguém gosta de se ouvir.
Nossos medos. Nossos temores e complexos
Afloram à superfície.
Aquela voz implacável.
Não desculpa o próprio dono.
Censura o que está errado,
Mas louva o que está certo.
Uma campainha alerta.
Toca ao mais pequeno dislate.


Berlim, 12 de Fevereiro de 2021
19h12m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de7 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21863: Blogpoesia (718): "O que vai dentro"; "A seiva do mar" e "Suicídio", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21896: Os nossos seres, saberes e lazeres (437): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (6): A despedida de Óbidos, regresso a Lisboa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Diz o anexim que o que é bom nem sempre dura, ensina a experiência que assim é, felizmente que regressámos desta viagem com vontade de a continuar, talvez noutra estação do ano, por aqui andámos com a prudência que exigia o tempo de pandemia, guardando imagens que vão do castelo às igrejas, das livrarias aos museus, cirandou-se pelos arredores, desde as Caldas da Rainha até Peniche, contemplou-se o mar, aqui por definição com densa neblina e de ondas bravias, a intimidar os banhistas. Assentou-se em grupo que há muita coisa que merece ser revista, talvez com outra luz, põe-se a hipótese de se regressar na primavera e por ali andar, entre o Santuário do Senhor Jesus da Pedra, um dos ícones barrocos de Óbidos, percorrer as muralhas, já que a cerca é tão bela e dá um pleno desfrute dos telhados do casario, visitar a pousada e as livrarias, está prometido e por isso se sugere a quem nos lê e que não conheça devidamente este sítio que o ponha na agenda, ele é merecedor da visita de todos nós.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (6):
A despedida de Óbidos, regresso a Lisboa


Mário Beja Santos

É nosso desejo aproveitar o princípio da tarde fazendo um périplo rápido por algumas das riquezas que mais nos impressionaram em igrejas, livrarias, museus, o castelo e a sua espantosa cerca. Fomos diretos ao Museu Municipal tentar ver com outros olhos a bela pintura de Josefa d’Óbidos, mas não só, o museu conserva no seu acervo outras preciosidades. Coisa curiosa, terá sido outrora este espaço Paço do Concelho como se lê no livro Linha do Oeste: “De pequena casa, onde apenas cabiam duas arcas, uma mesa e um banco, este local de audiências dos juízes medievais da vila e de reunião da vereação substituído nas assembleias magnas pelo próprio adro da igreja que lhe ficava em frente, veio a dar lugar no século XVI a um edifício de maiores dimensões e de maior dignidade arquitectónica localizado, ao que tudo indica, no espaço hoje preenchido pelo Museu de Óbidos”. São alguns dos vestígios artísticos do seu passado fluorescente que aqui se conservam. Falando da arte da pintura entre os séculos XVI e XVII, Vítor Serrão, o indiscutível especialista no Maneirismo, recorda que o conjunto de pintura dos séculos XVI e XVII se distribui por diversas igrejas, conventos, palácios, museus e demais coleções públicas e privadas da região estremenha definida pelos concelhos Caldas da Rainha, Óbidos, Alcobaça e Peniche, constitui sem dúvida (em termos plásticos, documentais, iconográficos e históricos, pela diversidade de testemunhos, estilos e épocas) um dos mais interessantes do nosso país. Não se pode cingir toda esta arte a Josefa d’Óbidos, há Diogo Teixeira, Belchior de Matos e mesmo Baltazar Gomes Figueira, não podendo ser esquecido André Reinoso. Vamos ver algumas dessas preciosidades.
Vale a pena dar de novo a palavra a Vítor Serrão: “A paleta de Josefa é sempre peculiar, saborosa, inventiva e acesa de sensibilidade: o seu cromatismo é cálido, sensual e luminoso, o claro-escuro é assaz correto na transposição de zonas de sombra e nas gradações de luz esbatida, e as ingenuidades de debuxo das figuras dilui-se no preciosismo da decoração garrida e barroca com que se envolve”. Reconheça-se como estas naturezas-mortas são primorosas, não são?
Já se disse que este museu foi anteriormente a residência do pintor Eduardo Malta, um retratista muito procurado no seu tempo. Aqui se mostra o retrato da sua mulher, guardo dele a recordação de um grande desenhador, como se sabe os artistas preferem o quadro a óleo por razões financeiras, muitos deles não escondem que a sua paixão passa pelo desenho. Malta aceitou encomendas oficiais, uma delas foi a Exposição Colonial do Porto de 1934. Aqui se mostram dois desenhos de traço inatacável, consegue deslumbrar-nos pela captação da pose, a dimensão do porte, tudo com pequenos recursos de um lápis que viaja a dar formas ou a sublinhar aqueles aspetos que ele considera que devem ser o foco da nossa atenção, ainda hoje contemplo com prazer desenhos como estes.
A mulher de Eduardo Malta
Régulo Mamadu Sissé, desenho de Eduardo Malta
Abdulai Sissé, filho do régulo, desenho de Eduardo Malta

Há no centro da vila o Museu Abílio de Mattos e Silva, dele já falámos, foi um cenógrafo muito procurado e pintor atraído pela escola modernista. Há obras suas no Museu Municipal de Óbidos, vila que ele tanto apreciava, fez uma doação dos seus trabalhos, merecem ser vistos.
Quadro de Abílio Mattos e Silva

Saímos do museu e vamos cirandar pelo castelo e cerca, é impressionante pelas suas linhas majestosas, lembremo-nos que por aqui andaram romanos e que o primeiro rei de Portugal apostou em Óbidos como lugar defensivo, exigências da Reconquista, a mourama costumava fazer razias, havia que lhes fazer frente, passou o perigo e ficou o testemunho eloquente desses tempos agitados, a vila está pejada de vestígios de tão importante passado, e não deixou de nos sensibilizar aquele símbolo gravado à porta de uma igreja que não soubemos interpretar mas não deve estar ali por acaso, Óbidos sofreu imenso com o terramoto de 1755, houve muitíssima reconstrução e aproveitou-se para novos embelezamentos, as fachadas das igrejas também foram revistas, de onde este símbolo deve ter importante significado, senão teria sido apagado nos trabalhos de restauro.
E pronto, disse-se adeus a Óbidos, há muito para recordar e todos apostam num regresso, quanto mais cedo melhor. Feita a despedida, pesarosa, segue-se para Peniche, vamos amesendar. Nada de perdas de tempo, todos clamam por uma boa pratada de peixe, aqui o mar é fértil em substância dessa natureza. E é a caminho de uma casa de pasto já conhecida que se olha para uma parede, digamos que na correnteza de um conjunto de prédios de arquitetura desenxabida se encontra este vestígio do passado, o posto de despacho da Alfândega de Lisboa, com as armas reais, é pena que num contexto de prédio expectante, oxalá na pior das hipóteses estas pedras de um tempo impressivo para Peniche vão parar a um museu. É coisa estranha, mas acontece com frequência, acabarmos uma viagem a deplorar o desprezo dos homens pelos importantes símbolos de um passado que nos marcam a um lugar. Terminou a viagem mas aqui se deixa um grito à navegação.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21859: Os nossos seres, saberes e lazeres (436): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (5): A despedida de Óbidos, em breve regresso (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21895: O cruzeiro das nossas vidas (29): Recordando o dia 22 de Julho de 1967, no N/M Timor (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Despedida no Cais de Alcântara


1. Mensagem do nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) com data de 10 de Fevereiro de 2021 com a recordação do sem embarque para a Guiné em 22 de Julho de 1967:



RECORDAÇÕES

Olhando para os longínquos 22 de Julho de 1967, recordo o cais, a imponência do navio Timor, imponência sim, já que alguns soldados nunca tinham visto um navio, que os levaria para terra africanas, mais precisamente para a Guiné.

Recordo que chagados ao cais de embarque de Alcântara, seriam 10 horas da manhã, uma multidão nos esperava gritando, gesticulando e choramingando, braços estendidos em diracção dos seus entes queridos, meninos e moços feitos soldados à pressa. 

Eu não tinha qualquer familiar presente para se despedir, já o tinha feito uma semana antes. Foi arrepiante o que presenciei nesse dia, ver mães, pais, esposas, algumas já com filhos, num grito lancinante, com a voz embargada e rouca de tanto chamar pelo seu familiar, e acenando os lenços brancos da despedida até o navio desaparecer no horizonte.

Cerca das 12 horas entrou no cais a banda do Exército, sinal de que estavam prestes a começar as cerimónias de despedida das tropas em parada e o consequente embarque naquele monstro flutuante que nos esperava, não sem antes ser tocado o Hino Nacional.

N/M Timor

Às tantas o Timor, depois das escadas e amarras recolhidas, começa a navegar rio abaixo rumando em direcção ao oceano, aquele que para muitos era a primeira vez que viam, levando no seu bojo aqueles jovens rapazes já soldados.
Abel Santos a bordo do Timor

A viagem foi um suplício para a maioria, não foi o meu caso, o pessoal foi distribuído pelos porões, colocado em beliches num navio sem condições para transportar pessoas, a tal carne para canhão. Em relação à alimentação estamos conversados, e como sempre, as chefias tiveram outro tratamento. Ao fim de poucas horas de viagem, já havia camaradas com problemas de enjoo, o que foi provocando um cheiro nauseabundo e pestilento, embora a lavagem dos porões fosse feita em dias alternados.

Naquelas condições, ao fim de sete dias de viagem, pisámos terra firme da Guiné, depois de os batelões nos terem largado no cais onde o Timor não podia atracar.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21576: O cruzeiro das nossas vidas (28): A Síndrome dos Embarques (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Guiné 61/74 - P21894: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (7): "O Alberto", "O Sipaio" e "O expresso de Ilondé"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):



19 - O ALBERTO

Logo no início da nossa estadia no Ilondé começou diariamente a aparecer à entrada da nossa tenda o Alberto, um guineense de 12 ou 13 anos, humilde e educado, filho de uma das lavadeiras, residente naquela localidade, que sabia ler e escrever, o que lhe dava algum estatuto junto do pessoal pois funcionava como tradutor de crioulo que também nos ia ensinando.

A nossa tenda tinha 8 habitantes e todos gostavam do Alberto. O seu trabalho era reduzido, assentando na varredura diária do chão da tenda e um qualquer recado, a troco de um ou outro peso que lhe íamos dando e, por vezes, de algumas guloseimas que recebíamos de casa.

A esta distância tenho ideia que a nenhum de nós passou pela cabeça que o Alberto estaria feito com o inimigo. Contudo, hoje, acho estranho o seu relacionamento connosco tendo em conta que na localidade moravam dezenas de jovens da mesma idade de cuja existência apenas nos apercebíamos quando havia cinema no quartel. Assim ou assado, estimávamos o Alberto e procuramos sempre ajudá-lo, nomeadamente, fornecendo-lhe com a maior rapidez possível os resultados de cada jornada do campeonato nacional de futebol, disputado na Metrópole, que ele seguia religiosamente através de um caderninho onde apontava os jogos e os respetivos resultados.

Dada a abundância de roupa que não me servia para nada resolvi, um dia, dar umas calças ao Alberto. Ora, na época, os africanos eram muito vaidosos e extravagantes com o vestuário e a roupa tinha que ficar bem justa. Ao vestir as calças o Alberto disse logo que não as queria por serem demasiado largas. Agarrei no Alberto e nas calças e fui a Bissauzinho onde havia alfaiates de rua que logo ali ajustaram as calças ao gosto do cliente. Custou a brincadeira setenta pesos, tanto como pagava mensalmente à lavadeira, mas valeu a pena ver a alegria do Alberto.

Enfim, as coisas mudaram e nunca mais soube do Alberto. Oxalá a vida lhe tenha sorrido.


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20 - O SIPAIO

Era frequente sair a porta de armas, que ficava junto à estrada para Bissalanga ou Quinhamel, e fumar um cigarro debaixo de uma árvore onde alguns elementos da população se juntavam em amena cavaqueira, em crioulo, da qual pouco ou nada entendia.

Gostava daquela gente, que tinha tão pouco e vivia aparentemente feliz. Por razões culturais, que transcendiam o meu entendimento, a riqueza dos homens media-se pela quantidade de mulheres e de animais que possuíam. As mulheres eram consideradas como animais, avaliadas em cotejo com estes, e eram elas que angariavam os meios de sustento da família através do seu trabalho, fosse como lavadeiras fosse como domésticas.

Naquele dia, estava um grupo mais numeroso que o habitual e, entre eles, um sujeito vestido com uma farda que não conhecia e que, pensei, ser uma qualquer autoridade local que designei de sipaio (ou cipaio).

A certa altura, no decorrer da conversa, o tal sipaio afastou-se alguns metros e ajoelhou-se. Tal movimento despertou-me a atenção e pensei que o sujeito ia rezar, mesmo sem tapete. Um minuto depois vejo-o a remexer na terra, levantar-se, sacudir as calças, aproximar-se de novo do grupo e retomar a conversa. Afinal tinha estado a urinar.

Recordei então que, de facto, pelos caminhos da Guiné por onde tinha andado, nunca me apercebi da presença de dejetos humanos produzidos por esta gente e, testemunhando aquela atitude, percebi porquê.


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21 - O EXPRESSO DO ILONDÉ

Diariamente, uma pequena camioneta de passageiros que fazia a ligação Ilondé – Bissau estacionava na estrada, quase em frente à porta de armas.

Uma hora antes da partida, com um calor quase insuportável, já muitos passageiros estavam instalados nos respetivos lugares.

A carga mais volumosa ia no tejadilho a que se acedia por uma escada existente na traseira da camioneta.

Porém, o mais engraçado era o transporte dos animais, principalmente cabras, galinhas e porcos, que iam normalmente do lado da janela ao colo dos seus proprietários, sendo que as cabras se instalavam paulatinamente com o focinho de fora aguardando o arranque da viatura.

Pouco mais tarde, aparecia uma carrinha Toyota, de caixa aberta, que arrebanhava o resto do pessoal que não tivesse tido lugar na carreira normal e, uns em pé, junto à cabine, outros sentados, no chão da caixa, com os respetivos tarecos, lá partiam para Bissau.

Estou em crer que esta carrinha desempenhava a função de desdobramento.

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Nota do editor

Último poste da série de11 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21886: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (6): "A reunião", Os incêndios" e "O prostíbulo"