1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Junho de 2018:
Queridos amigos,
É bem verdade que todos estes testemunhos coletivos vão ter que ser tomados em conta pelos futuros historiadores. Esta região do Xime que aqui se viveu em 1967 e inícios de 1968 se transformou radicalmente de um ano para o outro. Quando a CCaç 1550 partiu, extinguiu-se o destacamento da Ponta do Inglês, desapareceu Samba Silate, ao que se dizia a maior tabanca de todo o leste da Guiné, o PAIGC atacava com ferocidade as tabancas entre Amdalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, com o evoluir da guerra abandonou-se Moricanhe, para mim uma aberração tal medida, era um posto avançado de inegável importância para proteger tanto o Xitole como Bambadinca. E Galomaro, que os autores tratam por colónia de férias, passou a ser sede de Companhia, daqui partiu uma em fevereiro de 1969 para uma operação de retirada de Madina do Boé, teve pesadas vítimas.
Honra a quem escreveu este legado de memória, tão singelo e tão terno.
Um abraço do
Mário
CCAÇ 1550, todos presentes e lembrados, 50 anos depois
Beja Santos
A obra intitula-se
"Memorial, O livro dos 172 autores", DG Edições, 2018. Quem coordenou foi José Marques Valente, mal soube do acontecimento telefonei-lhe e pedi-lhe o documento, é um memorial enternecedor, pelo registo onde primam testemunhos quase incógnitos, onde cada um depositou as suas imagens e as suas memórias.
Partiram para a Guiné em 20 de abril de 1966, a 26 seguem em coluna-auto de Bissau até Farim, vão sem armas, passam pelo K3, atravessaram na jangada o Cacheu, em Farim organizaram-se para ir para Binta e Guidage. Há uma apresentação sumária do setor, recorda-se que o Corredor de Sambuiá estava encravado entre Binta e Bigene.
Vão então para Binta e segue para Guidage um grupo de combate reforçado. Foram render a CCaç 675, a do Capitão do Quadrado, Alípio Tomé Pinto, é história para nós conhecida, JERO escreveu a vida do primeiro ano da Companhia, é um documento histórico. É uma primeira fase de comissão que não deixou péssimas memórias:
“Nos oito meses que permanecemos em Binta não se verificaram ataques violentos ao aquartelamento. Apenas por três vezes foram disparadas granadas de morteiro e tiros de metralhadora para dentro do aquartelamento e tabanca”.
A relação com as populações terá sido magnífica, havia escola a funcionar e tratamentos para guineenses e senegalenses. Fizeram patrulhas de reconhecimento e foram a Sambuiá. Nas proximidades desta área sujeita a controlo do PAIGC destruiu-se uma ponte pedonal, via de acesso às culturas de arroz. Foram sempre felizes a picar as estradas, nunca houve sinistros no contingente militar.
E um dia a Companhia muda de poiso, vai para o Xime, Ponta do Inglês, Taibatá/Demba Taco e Samba Silate. No Xime a CCaç 1550 era reforçada com o Pel Caç Nat 53 e milícias da tabanca, na Ponta do Inglês havia um grupo de combate reforçado, Taibatá/Demba Taco, milícias e população em autodefesa e em Samba Silate população em autodefesa, mais adiante um destacamento em Galomaro, uma secção e muitas espingardas Mauser. Esta Guiné e esta região, nos inícios de 1967, serão bem distintas daquela que irei conhecer a partir de agosto de 1968.
A CCaç 1550 viera render a CCav 678, nessa altura havia flagelações praticamente todos os dias na Ponta do Inglês e picava-se o itinerário entre Xime e Bambadinca com muitos cuidados, não só as minas mas as emboscadas num local conhecido por Ponta Coli, sobretudo. Deixara de se fazer a ligação por terra entre o Xime e a Ponta do Inglês, aquele itinerário foi um sorvedouro de vidas e de viaturas. Explica-se a constituição da população do Xime, a organização do aquartelamento, a construção de uma paliçada. A vivência na Ponta do Inglês é mais do que inóspita:
“Formado por uns abrigos, onde se comia e dormia, rodeados por arame farpado e postos de vigia, estavam ali cerca de 40 homens, armados com G3, Morteiro 60 e bazuca. Os abastecimentos e correio eram entregues pela Marinha, que passava regularmente no Xime. A água era recolhida, diariamente, num poço a uns 500 metros do arame farpado, com a ajuda da única viatura disponível. Diariamente, sob o mesmo ritual, picava-se o percurso do arame farpado ao poço e avançava-se com o Unimog e os bidões. Uma parte do pessoal ficava de arma aperrada, enquanto os outros com balde e corda puxavam a água, até encher os reservatórios. O poço onde se ia buscar água era comum às nossas tropas e às populações do outro lado da bolanha (controlada pelo IN), pelo que o teste antiveneno para verificar se a água estava envenenada era praticamente desnecessário”.
Fala-se da vida em Taibatá e de Samba Silate, na margem esquerda do Geba, local de cambança de grupos IN, e há referência de que do outro lado do rio estava a zona de Mato de Cão onde acima havia bastantes casas de mato do IN. E recorda-se as matas onde o IN se instalava: Galo Corubal, Bissari, Fiofioli, Ponta Luís Dias, Buruntoni e Poindom. Galomaro, ao tempo, era uma paz de alma, em pleno Cossé, zona de Futa-Fulas, encruzilhada comercial entre o Senegal e a Guiné Conacri.
O aquartelamento do Xime é passado a pente fino e as imagens que o livro publica foram-me imediatamente familiares, incluindo a capelinha, a messe de oficiais, as caravanas ali instaladas, até os arruamentos dentro da tabanca. Detalha-se o que cada um fazia, desde a carpintaria, aos eletricistas, à mecânica auto.
E segue-se o lado emocionante do memorial, as fotos destes 172 autores, os seus nomes, posto e alcunha. E lembra-se que 45 já tinham partido deste mundo. Temos os testemunhos das doenças, dos medos, faz-se o elogio dos bravos, como se constituíam pés-de-meia, como se comia mal e se procurava comer bem, são testemunhos genuínos como o de um 1.º Cabo que em maio de 1977 foi a Demba Taco que tinha sido atacada, saqueada e incendiada durante a noite:
“Ficou um rasto de destruição, com civis mortos e outros raptados. Quando lá chegámos, do pouco que ficou, tudo fumegava.
Depois de feito o levantamento da situação, foi escalada a 1.ª Secção composta por sete militares, para ali ficarem a manter a segurança e ordem na reconstrução da tabanca. Não tínhamos qualquer tipo de abrigo. Ali ficámos com alguns alimentos, numa temperatura superior a 40º até que chegou a hora de preparar a primeira refeição. Foi necessário escolher, entre os sete camaradas, quem tivesse aptidão para cozinhar.
Destacado o soldado A. F. que logo improvisou com duas pedras e uma fogueira os meios para preparar a nossa refeição de batatas cozidas e atum de conserva. Mas quando nos preparávamos para distribuir as batatas e o atum, deparámo-nos com imensas crianças, olhando famintas. Jamais poderei esquecer este cenário. De entre as crianças destaquei uma, de nome Umaru Baldé, de 12 anos, que nessa noite tinha perdido o pai e a mãe.
Criei um sentimento de amizade e ternura que quando acabei a missão, em Demba Taco, me custou a separação desta criança. Com o tempo e as circunstâncias, perdi-lhe o contacto, mas nunca esquecerei este miúdo que me marcou profundamente nos quase três meses que estive em Demba Taco, em que dia a dia as minhas refeições eram repartidas com ele”.
Obra tocante na composição e pelo recurso ao anonimato, vejam as imagens do livro, leiam a folha solta sobre o Victor, feita pelo organizador do livro, o José Marques Valente, a quem já comuniquei que este belíssimo testemunho seria publicado num blogue onde teremos o orgulho em o acolher, bem como aos seus camaradas da CCaç 1550.
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de março de 2021 >
Guiné 61/74 - P21959: Notas de leitura (1344): “Um Mergulho no Muxito”, por Jorge Paulino; Chiado Editora, 2017 (Mário Beja Santos)