1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Setembro de 2020:
Queridos amigos,
O que há de francamente original nesta investigação, que tem tanto de ambiciosa como de bem sucedida, é um questionamento do passado sem ninguém se curvar a homenagear heróis mas a escrutinar factos, havendo resultados surpreendentes, pois há apropriação indevida de datas ou de cometimentos heróicos, caso dos massacres de Mueda ou do Pidjiguiti. É este permanente questionamento, por vezes profundamente incómodo, que faz desabar mitos ou ajuda-nos a compreender que um acontecimento ao tempo importante, caso da Operação Tridente, nos inícios de 1964, deu pasto a propaganda do PAIGC que avançou centenas e centenas de mortos portugueses, a coisa não tinha pés nem cabeça mas serviu de matéria na imprensa internacional. A evolução da guerra alterou completamente a importância do que tinha ocorrido na Ilha do Como. Estudar o assassinato de Amílcar Cabral também nos leva a compreender que há para ali a crónica de uma morte anunciada, segredos e tensões que ambas as partes em conflito escondiam. Revela-se que a chamada música de intervenção utiliza a figura inspiradora de Cabral para que organizações jovens tragam para a liça iniciativas que permitem gerar políticas públicas, revolucionar as identidades culturais. A celebração da morte do líder fundador é esquecida pelos velhos e reacendida pelos novos que reclamam uma política nova num país à deriva.
Um abraço do
Mário
Momentos marcantes da guerra colonial, lá e cá, todos na sala de espelhos
Mário Beja Santos
O projeto "As Voltas do Passado, A Guerra Colonial e as suas Lutas de Libertação", com organização de Miguel Cardina e Bruno Sena Martins, com vasto número de colaboradores, Tinta-da-China, 2018, é um roteiro indispensável para indagar o papel da memória, o questionamento do testemunho individual, a legislação ou o ato político possuidor de transformação, real ou aparente, as perguntas permanentes de quem mandou assassinar quem… É neste voltar ao passado por onde a guerra com as manifestações anticoloniais mobilizaram combatentes e populações, somos impelidos a regressar ao local e mensurar se aquele facto manteve estabilidade ou caiu no esquecimento, se é digno de evocação celebratória ou gerou indiferença.
Não é, pois, um repositório cronológico da guerra colonial, a metodologia seguida não é essa, escolhem-se marcos miliários em diferentes países, faz-se a sua anatomia ontem e hoje e expõe-se o resultado. A cronologia é a dos acontecimentos, como segue: Massacre de Batepá, São Tomé (1953), início da vaga de prisões de militantes nacionalistas em Angola (1959), Massacre de Pidjiquiti, Bissau (1959), Massacre de Mueda, Moçambique (1960). Indo por aí fora, iremos ler relatos sobre conferências, a ida das tropas portuguesas para os teatros de operações, a criação de forças especiais, a liturgia do 10 de Junho associada às Forças Armadas, o encerramento da Casa dos Estudantes do Império, a crónica de assassinatos, o fim do Exercício Alcora, a independência das ex-colónias.
Há nesta pesquisa um novo elemento disponível: a exposição é caleidoscópica, expõem-se os factos, releva-se o produto final que pode ser mitológico, extraem-se resultados que possibilitam o leitor a querer saber mais. Por exemplo, logo na descrição do Massacre de Batepá, a autora conclui:
“O que aqui se demonstra é que por mais que as políticas de memória de um evento histórico sejam instituídas e ritualizadas pelo Estado e deixem lastro ao longo de décadas e através de gerações, os seus significados mudam, emergindo outras narrações. É desta forma que os são-tomenses procuram inscrever o seu lugar nesta história”.
Também, houve quem se quis apropriar em exclusividade do arranque da luta armada em Angola, identificando a luta política anterior com o encadeado da luta armada. E também se conclui, a este respeito:
“A luta política, antecessora da luta armada, teve como autores os que, independentemente das suas tonalidades político-ideológicas, combateram o poder colonial. Frequentemente divergentes entre si, mas com um denominador comum: a prisão e a tortura como símbolos do arbítrio colonial. Nesse sentido, somos impelidos a considerar que as prisões de 1959/60 podem ser apreendidas como um processo histórico – ainda inacabado – de construção de uma gloriosa memória”.
Continua até agora por demonstrar que foi gente do PAIGC que instigou os trabalhadores do Porto do Pidjiquiti à greve de 3 de agosto de 1959. O gerente da Casa Gouveia foi irredutível, os trabalhadores revoltaram-se, veio a repressão, morreu muita gente, houve prisões, Amílcar Cabral aparece depois para aquela que terá sido a reunião crucial que irá definir quem fica no interior a subverter e quem parte para o exílio. O fundador do PAIGC considerou os acontecimentos como uma lição histórica e com a independência o 3 de Agosto ganhou a dignidade de feriado nacional. Mesmo com a separação da Guiné-Bissau de Cabo Verde, os acontecimentos do Pidjiquiti continuaram a ter lugar relevante na consolidação do PAIGC.
E, posteriormente, as referências mudaram de natureza.
“Em 1993, uma greve de marinheiros marca o aniversário do massacre. Desde então, o feriado de 3 de agosto é também usado periodicamente pelos sindicatos como um momento de protesto pela falta de pagamento de salários. Durante as celebrações de 2014, enquanto Domingos Simões Pereira desafiava os guineenses para a criação de um museu em honra e memória de todos os resistentes, o secretário-geral da União Nacional dos Trabalhadores da Guiné afirmava que os atrasos nos pagamentos de salários punha em causa a realização dos sonhos dos mártires do Pidjiquiti. Pidjiquiti torna-se assim no símbolo da desilusão com os rumos da política pós-colonial à governação, aos desvios do projeto revolucionário do PAIGC ou à indiferença social”.
Em 16 de junho de 1960 ocorreu o Massacre de Mueda. Houvera detenções, o governador do distrito de Cabo Delgado, Almirante Teixeira da Silva, compareceu a um encontro com as populações, foi agredido por um maconde, chegam viaturas militares que abrem fogo. Quem lá estava fala em 16 mortos, a Frelimo em Argel fala em 150, mais tarde escreve-se que foram 600 mortos. Depois começa o uso feito do massacre.
“Na cerimónia de Mueda, no dia 16 de junho de 2000, houve, em figurantes, colunas guerrilheiras do tempo da luta armada, isto é, uma representação da própria Frelimo. No passado houvera peça de teatro sobre o massacre, a última vez que foi representada foi em 1995, os atores estavam fartos de ser utilizados para uma cerimónia oficial e depois não receber nada. O próprio Faustino Vanomba tinha representado o seu papel (isto é, o papel que a História oficial lhe dava), em 1987 e 1990, a pedido insistente do administrador. Mas estava triste e dizia que não tinha sido assim".
Falando desta investigação o autor adverte que em todas estas contradições a questão de saber quem tem razão não é o essencial, não se pode é brincar aos heróis.
“A Frelimo faz parte da História de Moçambique, mas a História de Moçambique nunca se poderá resumir à história deste importante partido. Mueda, 1960, não faz parte da história da Frelimo, nem pode, obviamente, fazer. Esquecê-lo para só transmitir a visão da Frelimo, de legitimidades e poderes que vieram depois, leva ao esquecimento dos homens que fizeram Mueda. Mas são eles os heróis”.
O autor traz também algumas saborosas observações, falando dos arquivos coloniais refere que estes veiculam a narrativa do colonizador, mas têm uma vantagem: não mudam. E termina dizendo que em 2000 perguntou a uma testemunha africana da tragédia de 16 de junho de 1960:
- Houve muitos mortos?
- Sim, muitos! Foram 16!
- Ah! Pensava que eram 600…
- … Sim, depois recebemos orientação de que eram 600.
Um grupo de cabo-verdianos, filiados do PAIGC, foram preparados em Cuba para desembarcar em Cabo Verde, a data prevista era 1967. Eram 31 guerrilheiros, prestaram juramento e comprometeram-se a desembarcar nas ilhas de Santiago e Santo Antão, seriam apoiados pelo governo cubano. O plano foi abortado, os membros do grupo seguiram outra formação militar na URSS, na sequência da qual passaram a intervir no terreno da guerrilha da Guiné, em 1968.
Na lógica dos acontecimentos subsequentes, alguns deles foram figuras preeminentes na guerrilha, caso de Pedro Pires, Silvino da Luz, Honório Chantre ou Manuel dos Santos. Em 1988, foi institucionalizado em Cabo Verde o Dia das Forças Armadas Revolucionárias do Povo. Em 1991, realizaram-se as primeiras eleições legislativas multipartidárias, o vencedor foi o MPD. A partir de então, dá-se uma mudança profunda de discurso e de atitude, mudaram os símbolos nacionais em Cabo Verde concebidos durante o período da guerra pelo PAIGC. Alterou justamente a bandeira sobre a qual foi feito o juramento dos 31 guerrilheiros, houve debate, a questão parece arrumada. Mas como diz o investigador há que estudar as diferentes narrativas veiculadas que se tentaram impor desde a independência, incluindo os poderes simbólicos, mas surgiu um elemento novo, o MPD não pretende cultivar grande parte desse passado.
“Na sociedade cabo-verdiana da década de 1990, a maioria da população residente tinha nascido após o período colonial, até aos dias de hoje, a história do país no século XX não consta dos programas do ensino básico e secundário, e a investigação histórica nacional sobre o processo de luta pela obtenção da independência política é ainda incipiente”.
É altíssimo o valor da obra "As Voltas do Passado", é uma seriação de factos que geraram quadros mentais, levaram a decisões políticas irreversíveis mas que ganharam reversibilidade com a mudança de atores, com a chegada de novos ideários políticos, com o cansaço de ritos que se vieram a demonstrar serem vazios ou não corresponderem à realidade. A grande lição deste projeto é que ainda pouco sabemos sobre a guerra colonial e as lutas de libertação e que o legado das mudanças ou das celebrações provoca incómodos. Isto para além de haver ainda silenciamento de amplas vertentes do conflito. É um incentivo para que se continue a estudar para bem da memória de todos.
Obra de consulta obrigatória para todos os interessados no estudo das guerras de África.
Cerimónia de comemoração do 10 de junho, Terreiro do Paço
Os resgatados da Operação Mar Verde
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Nota do editor
Último poste da série de 10 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24215: Notas de leitura (1571): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (2) (Mário Beja Santos)