1.ª página do "Diário de Lisboa", 2.ª edição, 28 de fevereiro de 1969 > Excerto> A noite em que a terra voltou a tremer, violentamente, 70 anos depois... Estava eu e o Sarmento em Castelo Branco, mobilizados para a Guiné. Custava o jornal um escudo e ganhávamos nós, como 1.ºs cabos milicianos, 90 escudos de pré (equivalente, a preços de hoje, a 30 euros).
Fonte: cortesia de Hemeroteca Digital | Càmara Municipal de Lisboa.
Fotos (e legenda): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Por ocasião do 19.º aniversário do nosso blogue, esperávamos poder contar com a publicação de alguns textos inéditos dos nossos camaradas, que são os nossos primeiros colaboradores, autores e leitores. Até ao próximo dia 13 de maio, ainda aceitamos "material" para inserir nesta série.
Neste quarto poste, republicamos um texto de J. Sarmento, velho conhecido do nosso editor, Luís Graça (dos tempos do CISMI, Tavira, 1968), e que já tem quatro anos (*). Foi revisto nesta data. Tem uma introdução, um pouco longa (e que vai em itálico), em que se explica como é que ele surgiu aqui no blogue.
Peniche, ou melhor, o forte de Peniche, era talvez o lugar mais improvável para reencontrar um dos poucos camaradas, do tempo do Curso de Sargentos Milicianos (CSM), em Tavira, de quem eu guardava uma nítida (falando da sua fisionomia) e sobretudo grata recordação (no que dizia respeito ao convívio e à camaradagem)... Refiro-me ao Sarmento, ao J. Sarmento (nome fictício, a seu pedido, para proteger a sua privacidade).
Tínhamos em comum o gosto e a paixão pela escrita, pelo jornalismo pelo "Diário de Lisboa Juvenil". Ele era do Fundão, de uma terra chamada Alpedrinha, sabê-lo-ei mais tarde. E chegara a colaborar, enquanto jovem, no prestigiado "Jornal do Fundão", criado em 1946, por António Paulouro, e um dos raros jornais independentes que existia no Portugal desse tempo... Eu também vinha do jornalismo regionalista, onde aprendi a fintar a censura…Em Tavira, no quartel da Atalaia, no CISMI, o Centro de Instrução de Sargentos Milicianos (CSM), colaborávamos no jornal de parede. Recordo-me que tínhamos uma equipa editorial, composta por vários soldados-instruendos que tinham dado como profissão o jornalismo…
E, claro, tínhamos, um "diretor". O comandante da unidade, um tenente-coronel ou coronel, já não me recordo qual era o posto, zelava pela "orientação editorial do jornal" e, cumulativamente, pelo moral da tropa (e, o mesmo era dizer, pela moral da Nação).
Miúdas de peitos fartos, generosos, de bicos espetados, e "bundas" (como se diz hoje, na gíria brasileira) largas e redondas, loiraças, provocantes, anglo-saxónicas, francesas ou escandinavas, eram bem vindas e aclamadas: afinal de contas, "os nossos soldados-instruendos estavam na flor da idade" (sic), precisavam de ter sonhos cor de rosa à noite... Sim, porque os sonhos verde-rubros das grandezas do império não davam tanta "pica"... a avaliar,aliás, pela rarefacção dos heróis que se dispunham a bater-se (e a morrer) por eles...
Também havia a rádio CISMI, se bem me lembro, que nos acordava em altos berros logo pela madrugada… (Eram uma tortura aqueles altifalantes!)... Mas eu e o Sarmento pertencíamos à equipa do jornal de parede, distista da rádio. Tínhamos alguma liberdade para trabalhar , todavia havia limites para a "desbunda": recordo-me de, um belo dia, ele, comandante, director, censor-mor, lídimo representante do Exército e da Nação, ter-nos obrigado a mandar para o lixo uma vasta e luxuosa edição especial, uma verdadeira enciclopédia, ilustrada, com dezenas e dezenas de fotos, infografias, gráficos, quadros estatísticos, mapas e recortes, dedicada à II Guerra Mundial e ao "nazifascismo" (que palavrão!). Foram horas e horas de trabalho, roubadas ao sono, que acabaram ingloriamente no caixote do lixo!
O argumento do censor-mor era de peso (e até de bom senso, tenho o de reconheer hoje...). Era um argumento definitivamente pedagógico e sobretudo retumbante: "Meus senhores, para guerra, já basta a nossa, a do Ultramar. Ponto final, parágrafo!"... Como, de resto, iríamos comprovar dentro de escassos meses...
Quis o destino que tirássemos, os dois, eu e o Sarmento, a especialidade de armas pesadas de infantaria, e que depois fôssemos mobilizados para a Guiné, não sem antes termos ido ainda dar uma rápida recruta, como 1.ºs cabos milicianos, em Castelo Branco, no BC 6, se não erro... Estávamos lá os dois quando foi o terramoto de 28 de fevereiro de 1969... O "nosso" já acontecera umas horas antes, com a ordem de mobilização para a Guiné... Ganhávamos 90 escudos de pré, o que em 1969 equivaleria hoje a 30 euros, mal dando para comprar o "Lisboa" , comer uma sandocha e tomar uma "bica", uma vez por outra... (Recordo que, meio "anestesiado", dormi que nem um justo nessa noite, não tendo sequer acordado com o pânico ou o alvoroço que se gerou na caserna, com malas, candeeiros e até cacifos metálicos a caírem com o violento tremor de terra.)
Embarcámos no mesmo dia e no mesmo navio, o "Niassa", três meses depois, em 24 de maio de 1969. Convivemos ainda nesses cinco dias de viagem, especulando sobre o incerto mundo e a estranha terra que nos esperavam. Mas, chegados a Bissau, cada um seguiu o seu inexorável destino, depois de dois ou três dias nos Adidos.
Apesar das promessas de irmos dando notícias por carta ou aerograma, acabámos por perder o rasto um do outro. Como aconteceu com outros efémeros amigos que íamos fazendo pelas estações do calvário da tropa: Caldas da Rainha, Tavira, Castelo Branco, Santa Margarida... Em todo o caso, não tenho qualquer memória da passagem do Sarmento pelo RI 5...Aliás, tenho poucas memórias do RI 5.
Foi preciso esperar meio século para, num bambúrrio de sorte, nos encontrarmo-nos e nos reconhecermo-nos, aos 72 anos !... Eu e o Sarmento, logo na cerimónia da celebração dos 45 anos da saída dos presos políticos da cadeia de Peniche, dois dias depois do 25 de Abril de 1974.
Fui lá, ocasionalmente, acompanhando a minha mulher que queria recordar os momentos, de grande ansiedade e euforia, em que fora dar um abraço a um dos seus amigos, colega de trabalho, que estava a cumprir pena de prisão. Ela não tinha a certeza de que ele viria a essa cerimónia dos 45 anos, que era também a da inauguração do novo Museu Nacional da Resistência e Liberdade. Mas a verdade é que o amigo veio, e para mais com a filha e a neta. A minha mulher voltou a fazer-lhe uma festa, abraçando-o e beijando-o efusivamente. A seu lado estava - imaginem! - nem mais nem menos, o Sarmento, e mais um amigo dele. Como virei a saber mais tarde, era o Sarmento em pessoa. Naturalmente, irreconhecível ao fim de tantos anos...
Há 45 anos atrás, na Cadeia de Peniche, foram longas horas de espera e mesmo assim não saíram todos os presos. Os fuzileiros tinham recebido instruções, da Junta de Salvação Nacional, para não deixar sair os presos condenados por "crimes de sangue" (sic)... Enfim, acabaram por sair todos, graças à forte mobilização e resiliência da multidão que se juntou frente aos portões da fortaleza de Peniche, e que foi gritando, até ao fim do dia 26 e princípios do dia 27, "ou saem todos ou não sai nenhum"... E a verdade é que saíram todos na madrugada do dia 27 de abril de 1974...
Eu não estive lá nessa altura, trabalhava e vivia em Mafra, e nem sequer namorava ainda com a minha futura mulher. Mas, ao que parece, um dos tipos que foi solto era também um amigo, conterrâneo ou familiar do Sarmento, alegadamente preso e condenado por pertencer à LUAR.
Quarenta e cinco anos depois, na comemoração dessa efeméride, e de entre os mais de dois mil e quinhentos presos políticos, que passaram por Peniche, entre 1933 e 1974, estavam alguns, talvez algumas dezenas, dos sobreviventes, agora todos eles de cabelos grisalhos... Lá estavam, aparentemente felizes e orgulhosos, de cravo ao peito, nesse sábado, dia 27 de abril de 2019. A fortaleza, monumento nacional, passava também a ser a sede do Museu Nacional da Resistência e Liberdade, o 15.º museu nacional.
Curiosamente, entre os VIP presentes, sentados, frente ao palco, descortinei o Jerónimo de Sousa, deputado e secretário-geral do PCP (e, que eu soubesse, nunca fora preso pela PIDE/DGS). Há uns anos atrás é que eu viera a descobrir que ele fora também mobilizado para o TO da Guiné, tendo embarcado no "Niassa", em 24 de maio de 1969, comigo e com o Sarmento e mais uns mil setecentos e tal militares, sem sabermos naturalmente nada dele nem ele de nós. Éramos uma série de companhias independentes, além de vários pelotões, incluindo uma companhia de polícia militar a que pertencia o ex-soldado condutor auto, da companhia de polícia militar, a CPM 2537, Jerónimo de Sousa.
O Sarmento não sabia, nem sequer suspeitava, dessa coincidência, de resto já aqui relatada no nosso blogue. Também não revelou particular interesse pela presença do dirigtente comunista, nosso antigo camarada de armas. Mas fui eu quem lhe revelei esse segredo de Polichinelo, nessa manhã, depois de sermos apresentados um ao outro pelo ex-preso político, amigo e colega de trabalho da minha mulher.
Palavra puxa palavra, falou-se do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Mas o Sarmento só me conhecia por Henriques... Afinal o Graça e o Henriques era a mesma e única pessoa... Na realidade, o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande, conclui eu, algo embevecido. Caímos, naturalmente, nos braços um do outro!
Diga-se, em abono da verdade, que o Sarmento já em tempos tinha procurado saber do meu paradeiro através do blogue, e estava para me contactar, até porque queria trazer os netos à Lourinhã, para uma visita ao DinoParque, o parque dos dinossauros que é o maior da Europa, e está justamente localizado na terra onde eu hoje moro e onde nasci. (Enfim, perdoem-me a publicidade, mas é por uma boa causa!)... Não foi preciso, afinal: reconhecemo-nos em Peniche, em 27 de abril de 2019, por um mero (mas feliz) acaso...
Enquanto os ex-presos políticos ficaram a partilhar as suas doridas memórias da cadeia de Peniche, eu e o Sarmento pusemos a "escrita" em dia, falando dos tempos de Tavira, de Castelo Branco, da nossa memorável viagem no "Niassa" e das nossas desventuras por terras da Guiné, eu no leste, ele no sul...
Não sei qual de nós teve mais sorte, no TO da Guiné: mais emboscada menos emboscada, mais mina menos mina, andámos os dois na "porrada", eu numa companhia africana, ele numa companhia independente, adida a um batalhão . Nada do que aprenderamos em Tavira nos serviu. E a arma que nos distribuíram foi a G3. Nunca tivemos nem manejámos armas pesadas, canhões sem recuso, morteiros, bredas, brownings...
Antes de despedirmo-nos, trocámos endereços de email e números de telemóvel e prometemos encontrarmo-nos na Lourinhã, no próximo verão de 2020, nas férias grandes escolares dos netinhos... Eu prontifiquei-me a fazer-lhe uma visita guiada pelo DinoParque, para cuja criação, de resto, também dera a minha pequena, modestaíssima, contribuição enquanto sócio e membro, há uns largos anos atrás, dos corpos sociais do Grupo de Etnologia e Arqueologia da Lourinhã (GEAL) que está na génese do "museu da Lourinhã" e, mais recentemente, do DinoParque.
Infelizmente, no verão de 2020, estávamos todos em casa, confinados, acabrunhados, surpreendidos pela pandemia de Covid-19. E a ideia do reencontro, na Lourinhã, foi esmorecendo... Até hoje. (Pelo meio, meteram-se entretanto problemas de saúde, de um e do outro.)
O Sarmento, que vivia então nos arredores do Fundão, numa "quintinha cheia de belas cerejeiras", depois de ter feito uma carreira como professor de filosofia, no ensino secundário, na área metropolitana de Lisboa, havia-me, contudo, prometido mandar um pequeno texto para o blogue, para a minha série, "A galeria dos meus heróis"... Não só prometeu como cumpriu. Com a seguinte mensagem, passados dois dias:
"Henriques, ou melhor Graça, velho amigo e camarada de armas (pesadas): Não me peças mais para escrever sobre a tropa e a guerra. Já fechei há muito esse departamento. Por amizade e apreço pelo teu trabalho de mineiro das nossas memórias, mando-te este texto que me saiu de rajada. Vê se era isso que tu querias. Até ao próximo verão, no Dino Parque da Lourinhã. 29 de abril de 2019. Sarmento".
Matando, de vez, a minha veleidade de o convidar para integrar a nossa Tabanca Grande, ele foi definitivo e peremptório na sua resposta:
"Muito obrigado, camarada, mas o tempo não volta atrás... E depois, os professores de filosofia, mesmo reformados, são chatos, e pior ainda, incómodos. Tenho as minhas cerejeiras para tratar. E os meus netos para ver crescer. As cerejeiras são árvores delicadas. E os meus netos são a maior riqueza que eu deixo, quando morrer. E não quero que eles passem o que eu já passei. Quero para eles (e para os teus e os vossos netos) um país e um mundo muito melhor do que o país e o mundo em que eu nasci, vivi, penei e fui obrigado a fazer uma guerra, contyra a minha consciència. Por favor, não me peças para voltar a falar desses tempos cruéis."
Texto introdutório: LG
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A melhor ditadura é sempre pior
que a pior democracia
por J. Sarmento (2019)
Os portugueses, soturnos e fatalistas, escrevem nas portas interiores das casas de banho: "Isto é uma merda". Os espanhóis, cínicos mas encantadores, escrevem um bilhetinho e põem-no na porta do elevador: "Disculpen las moléstias".
O pequeno almoço é uma merda, casqueiro com marmelada, e a Internet não funciona, o quarto do hotel é horroroso,já passaram por aqui milhares de motoristas de camiões TIR e putéfias (desculpem-me as feministas!). As paredes estão pintadas a cor de vómito e de esperma requentado. Mas o gerente não tem que ser simpático, apenas tem que saber gerir o bordel espanhol que a agência de viagens nos arranjou à beira da estrada, na periferia de Cáceres. (Éramos, nessa altura, um grupo de reformados de visita à Espanha romana com capital em Mérida, aliás a cabeça da então Lusitânia. )
Com a violência de género a aumentar exponencialmente em Espanha, eram as espanholas que então gritavam, em manifestações de protesto na rua: "Disculpen las moléstias..., pero nos están matando".
Que pena, eu nunca ter estado em Espanha antes do 25 de Abril, nem conhecer nenhum espanhol e muito menos nenhuma espanhola. Minto, conhecia alguns galegos, que tinham tascos e carvoarias em Lisboa ou eram amola-tesouras. Ia-se a Espanha, nesse tempo, só com passaporte. Há séculos que havia uma fronteira, com gajos façanhudos, mal encarados, armados, de um lado e do outro, como em todas as fronteiras.
Mas a maior parte dos portugueses deu-se ao luxo de dispensar o passaporte e o controlo fronteiriço e foi "a salto", com a mala de cartão às costas. Só lhe interessava chegar aos Pirinéus franceses. A partir daí, era outra vida, outro mundo, o "eldorado" (pensavam muitos, coitados)... Desgraçadamente, o "paradis" de França, era o "bidonville" e os "chantiers", o bairro de lata e os estaleiros de construção. Nunca ninguém ofereceu, em nenhuma parte do mundo, que eu saiba, o paraíso aos imigrantes...
Dava-me jeito ter aumentado o meu léxico com essa deliciosa expressão idiomática espanhola: "Disculpen las moléstias!"... Dava-me jeito quando fiz a tropa e fui mobilizado para a Guiné para defender uma parte da Pátria que não era minha. Estava disposto (ou pelo menos fui educado para isso, na escola de Alpedrinha) a dar a minha vida pela parte da Pátria que era minha, a minha terra, a terra dos meus pais, avós e demais antepassados, os meus filhos e netos, as minhas cerejeiras...
Faço a minha declaração de interesses: não fui faltoso, nem refratário, muito menos desertor. Também não fui herói. Nunca me bati à cruz de guerra. O tenente Esteves, no CISMI, Tavira, ainda bem tentou cantar-me a cantiga do bandido: "Eu sou devedor à Pátria, / E a Pátria me está devendo, / A Pátria paga-me em vida, / Eu pago à Pátria em morrendo"...
Quem disse que "é doce morrer pela Pátria", que dê um passo em frente... Aprendi na tropa a não ser voluntário para nada, e muito menos para morrer aos vinte e poucos anos... (Tinha vinte e dois, quando recebi o batismo de fogo.)
Eu nunca consegui perceber os discursos patrioteiros do tenente Esteves, dizendo-me que eu, o Henriques e mais uma chusma de soldados-instruendos do CSM, o Curso de Sargentos Milicianos, vindos dos quatro cantos de Portugal, éramos "a fina flor da Nação"... Gajos que tinham o 5.º ano dos liceus ou equivalente. Outros até o 7.º ou o 7.º incompleto. Sempre tinham mais letras do que a grande maioria da população, é verdade. Mas quem é que frequentava o liceu naquele tempo? Só nas capitais de distrito havia liceus, nas vilórias como as nossas havia alguns colégios particulares, incluindo seminários (como o do Fundão onde estudou o grande escritor Virgílio Ferreira, e foi essa experiência que o inspirou, e o levou a escrever a "Manhã Submersa").
Para mim, desde os quinze anos, em 1965, quando comecei a escrevinhar e a interessar-me pela vida política, tinha a estranha perceção de que era "a fina flor, sim, mas... do entulho". Na terreola onde nasci, lá nas berças... E era isso, que escrevíamos, por outras palavras, nos jornais de caserna em Tavira... Eu, o Henriques e outros soldados-instruendos de quem já não recordo nem nomes nem caras.
Fiz questão, há uns largos anos atrás, de visitar o antigo quartel da Atalaia, em Tavira, depois de lutar durante mais de quarenta anos contra a minha fobia em relação às coisas da tropa e da guerra, que me deixaram um amargo de boca e um arreigado sentimento antimilitarista. As fobias não se explicam... Os preconceitos têm raízes fundas, daí não ser fácil extirpá-los. No realidade, baseiam-se em experiências mais ou menos desagradáveis de cada um de nós (e, muitas vezes, na ausência efetiva de contacto com o objeto do preconceito).
Achei o quartel ainda muito mais pequeno do que no meu tempo. Ridiculamente pequeno, liliputiano. Aquilo parecia o "Portugal dos Pequenitos". Não sei como é que, naquele espaço diminuto, cabiam tantas cabeças e pernas e braços, fardados, éramos algumas centenas de jovens na flor da idade, já com carimbo na caderneta e destino marcado: "Mobilizado para servir a Pátria na províncias portuguesa ultramarinas de... Angola, ou Guiné, ou Moçambique".
Por muito que eu me esforçasse, não consegui reviver os dois meses e meio que aqui passara, no último trimestre de 1968... Não consegui chamar até mim os fantasmas de alguns instrutores e comandantes de companhia, como o Robles, o Trotil e o Esteves a quem batíamos a pala com temor e reverência... Não me recordo do Robles, já não era do meu tempo, mas o seu fantasma pairava no ar... Eram heróis, "cacimbados", da guerra de Angola, dizia-se...
Do Esteves, que foi meu comandante de companhia, meu e do Henriques, e tinha o posto de tenente, recordo-me da sua única frase de digna de antologia: "Vocês são a fina flor da Nação"... E a malta repetia, baixinho: ... "fina flor do entulho"... Fina flor da merda da feira do gado da cidade, onde rebolávamos às quintas-feiras, fina flor da merda das salinas de Tavira, fina flor da merda das bolanhas da Guiné...
Nunca me passou pela cabeça, a não ser agora, que estou reformado, mas eu devia ter apresentado, no regresso a casa, um "pedido de desculpas"... Devia ter devolvido a massa que o exército me pagou. O que era complicado: o "patacão da guerra" que ficou amealhado no banco, foi para a vida de estroina dos primeiros meses, na peluda, em Coimbra e depois Lisboa, e para pagar dívidas da família: as propinas do colégio da mana mais nova, num colégio de padres, na capital de distrito; um adiantamento para as despesas da boda da mais velha; um adiantamento ao velhote para o compensar dos calotes dos clientes...
Deviam-me ter pedido desculpas e aceitar de volta o "patacão sujo da guerra" (a expressão, acho que era do Henriques), que me pagaram a troco da intrujice de me considerarem parte integrante da "fina flor da Nação"...
Acho até que fui vítima de um erro de "casting", devem ter-se enganado no nome e morada... (Naquele tempo ainda não havia código postal!)... Certamente por engano dos serviços mecanográficos, devo ter ido em lugar de um gajo qualquer da elite, da fina flor da Nação, que, esse, sim, é que devia ter combatido (e até morrido, em caso de necessidade...) pela Pátria ou pelo menos pela parte da Pátria que lhe pertencia. Para mim a Pátria estava dividida em duas partes: a que não era minha e a que era minha... Confesso, no entanto, que a linha divisória não era facilmente percetível e reconhecível...
"Fina flor do entulho" voltei a sentir-me eu, quando fui preso pela PIDE/DGS, depois dos acontecimentos da Capela do Rato, logo nos primeiros dias de janeiro de 1973. Ainda hoje estou para saber qual foi o meu crime e o móbil do meu crime...
Tinha vindo da Guiné há um ano e tal, em março de 1971. Completei o sétimo ano e matriculei-me na Faculdade de Letras, em filosofia, no ano letivo de 1972/73. Nunca me filiei em nenhuma "organização subversiva" (como então se dizia), contrariamente ao meu amigo da LUAR, que estava preso em Peniche no dia 25 de Abril de 1974, e que acompanhei 47 anos depois. Muito menos andei a pôr bombas e sabotar os navios de transporte de tropas, ou as Berliet do Tramagal, ou os helis de Tancos. Estava demasiado cansado da guerra para voltar a "pegar em armas"... mesmo que a causa fosse justa. E, de resto, nunca fora (nem tivera jeito para) "rambo".
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"O Grito do Povo", órgão da OCMLP, nº 19 outubro / novembro de 1973. Fonte: Casa Comum, com a devida vénia |
Como é que eu fui parar à António Maria Cardoso e depois a Caxias, ainda hoje estou por saber, essa informação está omissa na ficha da PIDE/DGS que eu consultei na Torre do Tombo. Ou pura e simplesmente desapareceu. Estive detido três meses e tal, sem culpa formada, e fui submetido à tortura do sono, como era uso e abuso na António Maria Cardoso...
Queriam nomes e moradas!... Por muito boa vontade que eu tivesse (pudera, debaixo de porrada!), não tinha nomes para dar, aos pides, sobre a "rede" a que eu alegadamente pertencia: chamavam-lhe "O Grito do Povo", uma organização que se destacava, na altura, pela denúncia da guerra colonial e pelo apoio aos desertores e exilados políticos... (Soube mais tarde que "O Grito do Povo" passou a ser, em dada altura, em meados de 1973, o órgão da OCMLP - Organização Comunista Marxista Leninista Portuguesa.)
Devo acrescentar aqui um pormenor caricato: quando já estava há vários dias e noites, na tortura do sono, à beira da exaustão (para não dizer do colapso), na véspera de ser interrogado por um novo inspetor da PIDE/DGS, há um "estagiário" que vem fazer o "turno da noite"... e que, de repente, me reconhece do tempo de Guiné:
− Meu furriel?!... Sarmento?!...
Incróvel, náo podia ser, eu devia esdtar a delirar!... O homem era da minha antiga companhia!... E parecia mais incomodado do que eu pelo insólito da situação: eu, vítima, e ele, carrasco. Senti um frémito de horror só de pensar que ele estava quase tentado a abraçar-me:
− O que é faz... aqui ?
− Eu é que te pergunto!...Afinal, sou teu hóspede...
Intencionalmente, tratei-o por tu, e com ironia, tive esse rasgo extremo de lucidez. Enfim, conhecia-o bem, era o "escritas", o 1º cabo escriturário da companhia... Um tio, padre, aconselhara-o, a entrar para a PIDE, agora rebaptizada como DGS - Direção Geral de Segurança... "Tinha cama, mesa e roupa lavada. E vencimento de funcionário público ao fim do mês". Nada mais seguro, nos incertos tempos que corriam. E a "situação estava para durar", garantia-me... Disse-me que ainda era "estagiário"... e estava a "aprender os truques" (sic) para poder integrar uma brigada de investigação.
O meu guarda dessa noite era, afinal, um antigo camarada de armas!... Eu não podia acreditar!... Devia ser delírio, mas não, era mesmo real, ele estava ali, de carne e osso!...E a mim, de repente, apetecia-me mesmo esganá-lo...
Afinal, tínhamos ido e vindo no mesmo navio. E, naturalmente, sempre que eu ia à secretaria da companhia, lá estava ele a bater à máquina de escrever, no teclado HCESAR. E a tirar cópias a "stencil"... Confesso que nunca fomos amigos, embora tenhamos feito um trabalho ou outro juntos, na secretaria, por ocasião da festa do 1º ano da companhia. Nessa altura, o 2º sargento estava de férias e substitui-o, por duas ou très semanas, na chefia da secretaria, por conveniência de serviço. Nem sequer tínhamos um 1º sargento, como tantos outros, quando soube que ia para a Guiné, deu baixa por razões de saúde....
De resto, éramos mais de 160 na companhia, e vivíamos em abrigos diferentes. Mas eu não tinha nada a apontar-lhe por eventuais palavras, ações ou omissões. Era um gajo igual a tantos outros, contando os dias do calendário que faltavam para acabar a comissão. Nem sequer sabia o que é que ele pensava da guerra ou da situação política, ou deixava de pensar. Se calhar nem pensava nada, como muitos outros, a grande maioria. Éramos todos uma "carneirada", rosnava eu, entre dentes.
Pois é, a vida dá muitas voltas e é preciso "fazer pela vidinha". justificava-se ele, quase com candura... Para alguns, a PIDE/DGS era um emprego, "seguro", tal como era a GNR, a Polícia de Trânsito, a Guarda Fiscal, a PSP, as finanças, os tribunais... O tio era padre e tinha uma boa paróquia, "estava governado"... Enfim, o "escritas" procurou ser "gentil" comigo, ao tentar justificar a sua opção de emprego no pós-guerra... Que "o Exército só podia estar grato à PIDE na Guiné", e outras enormidades que me dispenso de citar... O homem não se calava...
Bêbedo de sono, ofendido e humilhado, acabrunhado, não conseguia manter qualquer diálogo com o meu novo carrasco, de quem no entanto, devo acrescentar, sentia um misto de asco e de curiosidade mórbida... Como é que um gajo, que me parecia "minimamente decente", como era o "escritas" da minha companhia, um antigo camarada de armas, da Guiné, de 1969/71, se tinha tornado um pide ?
O cabrão do "escritas", que ainda mantinha o sotaque nortenho que eu sempre lhe conhecera, teve um tímido e atabalhoado gesto de compaixão, ao ver-me no mísero estado em que eu estava, um autêntico farrapo humano, sonâmbulo, com olheiras fundas, daquelas de meter medo a qualquer ser vivo... Continuou sempre a tratar-me por "meu furriel":
− Meu furriel, não fique de pé, sente-se aqui nesta cadeira. Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas... E assim retempera as forças − aconselhava-me o gajo.
Sem esperar pela minha resposta, acrescentou, mostrando já conhecer bem os cantos à casa:
− O senhor inspetor tem horário de funcionário público. Só volta às nove horas, nove e tal, de amanhã, para não dizer dez. Até lá, você tem a minha autorização para dormitar.
E enfatizava o adjetivo possessivo (a "minha autorizaçáo"), para logo a seguir mostrar a sua cumplicidade misturada com esperteza saloia:
− Eu velo pelo seu sono. Estamos aqui os dois, sem ninguém nos ver, eu empresto-lhe a minha cadeira. Por mor dos tempos passados na Guiné... Por mor da nossa camaradagem... E pela nossa divisa: "Um por um, todos por todos", lembra-se ?!... Se eu ouvir passos, dou-lhe um empurrão e acordo-o. Mas está tudo a bater a sorna a esta hora da noite. Afinal também somos gente, civilizada. Não quero que fique com má impressão minha... Pode ficar descansado...
Não foi, confesso, o melhor sono da minha vida. Não consegui dormir em cima da cadeira do pide, meu ex-camarada de armas. Mas descansei as pernas, que estavam um trambolho, depois de tantos dias de pé, sujeito à tortura do sono. O meu medo era aparecer, de rompante, o filho da puta do inspetor e perceber a marosca... Espantoso, sem o querer, era eu, inconscientemente, que estava a vigiar o pide (ou aprendiz de pide, ou o raio que ele dizia que era...), e não o pide que me estava a guardar...
Por volta das oito e tal, ele sacudiu-me os ombros e eu abri os olhos, estremunhado... Só me disse:
− São horas de se preparar... Boa sorte. E desculpe lá qualquer coisinha.
Desta vez já não me tratou por "meu furriel". Também ele ensonado, deve-se ter compenetrado do seu e do meu papel... Nunca mais, na vida, lhe pus a vista em cima ...
Entretanto, às dez horas em ponto, com uma hora de atraso em relação ao horário do funcionário público que tem de assinar o livro de ponto às nove, o senhor inspetor, bem barbeado, bem dormido, ainda a cheirar a café, a cigarro e a água de colónia barata, veio-me fazer a sua visita matinal e trazer-me notícias:
- Uma boa e outra má, ou menos má... − disparou o sacana, cofiando o bigode, curto, "démodé".
E, depois, já em tom de confidência, sentou-se, numa cadeira ao meu lado, e revelou-me:
− Vou-lhe contar um segredo: também estive na Guiné, afinal fomos camaradas de armas, sabia ?!..., se bem que desempenhando papéis diferentes, eu na guerra da inteligência, em Bissau, e você de G3 em punho no mato. Ambos lutámos pela Pátria. Eu, ainda no tempo do general Schulz [ ele dizia Schultz...], você do nosso general Spínola. Dois grandes chefes militares, se quer que lhe diga.
E prosseguiu, cínico, provocador, ameaçador e enigmático:
−A boa notícia é que vou... soltá-lo. Não tenho mais razões por o manter aqui detido. E depois está a ocupar uma vaga no nosso hotel de cinco estrelas [ referia-se ironicamente a Caxias... ] que nos está a fazer muita falta. Como sabe, nestes últimos tempos a procura tem excedido a oferta. Não nos faltam clientes... Aquela coisa da Capela do Rato foi muito feia, muito má para todos, a começar para nós, os católicos... Os comunistas, infelizmente, já chegaram ao altar... Mas quanto a si, não temos, em boa verdade, nenhum facto, substancial, que comprove, de maneira clara e inequívoca, a sua ligação ao "Grito do Povo".
Calou-se intencionalmente por alguns segundos, respirou fundo e voltou, solene, a ser o dono do jogo:
−A má notícia... é que você vai continuar a ficar debaixo de olho. Do nosso, claro. Se lhe posso dar um conselho, como seu ex-camarada da Guiné, não se meta com essa canalha, acabe o seu curso, e trate da sua vidinha. Case-se e dê filhos à Nação. E, já que anda em filosofia, fique com esta máxima que eu lhe dou de borla: "Mais vale uma boa ditadura do que uma má democracia"...
Puxou de um cigarro, ofereceu-me um outro (que recusei polidamente, por não fumar), e prosseguiu a sua diatribe:
− Estamos em guerra, lá fora, em África. E cá dentro, também, infelizmente... Somos talvez o último bastião da defesa da liberdade do mundo ocidental. O apoio, direto ou indireto, à deserção e aos desertores é um crime de lesa-Pátria.
Num ápice levantou-se da cadeira, ajeitou a gravata e ordenou-me em tom militar:
− Levante-se, vista-se, lave a cara, recomponha-se...
E dando a estocada final na minha pobre autoestima, repetiu a expressão que eu já havia ouvido ao aprendiz de pide:
− E desculpe lá qualquer coisinha.
Não sem antes de me ter posto ao ridículo, pela enésima vez, lembrando-me o "crime" de eu ter dado, ingenuamente, a minha morada para a entrega do correio, a um gajo meu conhecido da faculdade, que tinha passado à clandestinidade (sem eu o saber)... A correspondência passou a ser intercetada pela PIDE/DGS e eu caí que nem um patinho nos braços dos gajos...
... Ainda voltei a Caxias, para fazer o "check out"... Pequei na minha trouxa, com um nó seco na garganta, apanhei o comboio até ao Cais do Sodré e voltei ao meu quarto, numas águas furtadas da rua da Misericórdia, que estavam inteiramente por minha conta (tal como a caixa do correio). Tomei um banho, demorado, e fui ao Trindade comer o melhor bife da minha vida... No dia seguinte, voltei à Faculdade para dar uma explicação sobre as minhas "férias" de 3 meses e tal por conta da PIDE/DGS... Não estiveram com contemplações, os gajos da secretaria. Chumbei por faltas nesse ano. Felizmente que um ano depois aconteceu o 25 de Abril.
E hoje, ao fim de uma vida, só posso discordar do inspector da PIDE/DGS que me torturou, ao mesmo tempo que me dava lições de ciência política... Afinal, a melhor ditadura é sempre pior que a pior das democracias. Os democratas é que são parvos, tratam os seus inimigos com tolerância e clemência...
Tanto quanto soube, mais tarde, tanto o "escritas" como o "senhor inspetor", estiveram na prisão de Alcoentre e foram uns dos tais 89 pides que fugiram pela porta do cavalo, em 29 de junho de 1975... Para Espanha, seguramente. E de lá estou a vê-los a mandarem, cinicamente, um bilhetinho para as suas antigas vítimas:
− "Disculpen las moléstias"!...
J. Sarmento, Fundão, Quinta das Cerejeiras, 29/4/2019.
Versão revista em 25 de abril de 2023.
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 28 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24262: 19º aniversário do nosso blogue (3): Somos uma autêntica "Universidade Sénior" (Hélder Sousa, provedor da Tabanca Grande)
(**) Vd. poste de 30 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19729: A galeria dos meus heróis (29): 'Disculpen las moléstias"... Ou uma história que mete vítimas e carrascos (Luís Graça)